ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
NÚMERO 22 Maio/Ago 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe História da Educação Pelotas n. 22
p. 1-282
Quadrimestral Maio/Ago 2007
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE Presidente: Maria Helena Câmara Bastos Vice-Presidente: Maria Stephanou Secretário: Claudemir de Quadros Conselho Editorial Nacional Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)
Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa)
Comissão Executiva Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Eliane Teresinha Peres
Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti flaviaguidotti@hotmail.com
Consultores Ad-hoc Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Dra. Berenice Corsetti (UNISINOS) Dr. Claudemir de Quadros (UNIFRA)
Imagem da capa Deux mères de famille Elizabeth Gardner Le Salon de 1888 Paris
História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 22 (Maio/Ago 2007) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5 Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................................5 CRIAÇÃO E REINVENÇÃO DOS LICEUS: 1802-1902 LYCÉE(S) CREATION AND RECREATION: 1802 – 1902 Philippe Savoie; Tradução de Eduardo Arriada e Maria Helena Camara Bastos.............................................................................................................9 UMA NOVA FORMA DE ENSINO DE DESENHO NA FRANÇA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX: O DESENHO LINEAR THE LINEAR DRAWING AS A NEW DRAWING TEACHING METHOD IN FRANCE IN THE BEGINNING OF NINETEENTH CENTURY Renaud d’Enfert; Tradução de Maria Helena Camara Bastos..........................31 A CO-EDUCAÇÃO DOS SEXOS: APONTAMENTOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA THE CO-EDUCATION OF THE SEXES: NOTES FOR AN HISTORICAL INTERPRETATION Jane Soares de Almeida .................................................................................61 ESCOLAS ANARCO-SINDICALISTAS NO BRASIL: ALGUNS PRINCÍPIOS, MÉTODOS E ORGANIZAÇÃO CURRICULAR ANARCHO-SYNDICALIST SCHOOLS IN BRAZIL: SOME PRINCIPLES, METHODS AND CURRICULAR ORGANIZATION Dagoberto Buim Arena .................................................................................87 A PUC-CAMPINAS: AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS NARRADAS POR SEUS DOCENTES MAIS VELHOS PUC – UNIVERSITY OF CAMPINAS (BRAZIL): THE INSTITUTIONAL CHANGES NARRATED BY ITS OLDEST TEACHERS Rogério Canciam; Vera Lúcia de Carvalho Machado (co-autora).................. 109
JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO DE AUTORES CATÓLICOS THE WAY JOHN DEWEY’S IDEAS ARE USED BY CATHOLIC AUTHORS Viviane da Costa.........................................................................................121 EDUCAÇÃO E FILANTROPIA NA CIDADE DE SÃO PAULO, NO FINAL DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: UM ESTUDO DA OBRA DO CONDE JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO NO BAIRRO DO IPIRANGA EDUCATION AND PHILANTHROPY IN THE CITY OF SÃO PAULO, IN THE END OF THE NINETEENTH CENTURY AND FIRST DECADES OF THE TWENTIETH CENTURY: A STUDY OF THE WORKMANSHIP OF THE COUNT JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO IN THE SUBURB OF IPIRANGA Lincoln Etchebèhére Júnior; Leonel Mazzali; Rosemari Fagá Viegas ............155 ENTRE O CURA E O MÉDICO: HIGIENE, DOCÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL IMPERIAL BETWEEN THE CURI AND THE PHYSICIAN: HYGIENE, TEACHING AND SCHOLARSHIP IN IMPERIAL BRASIL José Gonçalves Gondra................................................................................183 RESENHA AGÊNCIAS MULTILATERAIS E A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL BRASILEIRA Manoel José Porto Júnior; Giana Lange do Amaral......................................207 DOCUMENTO REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)...........217 REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.3, março de 1884, p.57 a p. 84) ...235 ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES.........................................281
APRESENTAÇÃO
A revista História da Educação cumprindo seu compromisso editorial, em seu número 22, apresenta a seus leitores uma série de artigos que, sem dúvida, reafirmam sua missão que é a de colaborar para o desenvolvimento da área da história da educação. Abrimos nossa revista com dois artigos de pesquisadores franceses Philippe Savoie e Renaud d’Enfert que com seus textos “Criação e reinvenção dos Liceus (18021902)” e “Uma nova forma de ensino de desenho na França no início do Século XIX: o desenho linear” nos trazem preciosa contribuição à investigação da história da educação do século XIX. È sabido de todos os estudiosos da área de educação a contribuição da França para a constituição do sistema de ensino brasileiro, portanto estes trabalhos trazem novas luzes no sentido de melhor conhecermos a gênese do estrutura educacional do século XIX. Com o texto “A co-educação dos sexos: apontamentos para uma interpretação histórica” a renomada pesquisadora Jane Soares de Almeida nos brinda com um trabalho de excepcional qualidade e que contribui para uma melhor compreensão da questão da coeducação. O professor Dagoberto Buim Arena retoma uma questão relacionada aos movimentos anarquistas e que tem ocupado a atenção de vários estudiosos na área da História da Educação. “Escolas anarco-sindicalistas no Brasil: alguns princípios, métodos e organização curricular” é mais uma contribuição para a a construção de um bom entendimento da atuação deste movimento ideológico na área da educação. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 5-7, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
No trabalho “Puc-Campinas: as mudanças institucionais narradas por seus docentes mais velhos” os professores Rogério Canciam; Vera Lúcia de Carvalho Machado retomam com propriedade e competência uma questão teórico-metodológica muito investigada na área de História da Educação que é a memória como fonte de investigação. A professora Viviane da Costa no texto “John Dewey na argumentação de autores católicos” trabalha um autor de significativa importância no Brasil, mormente no que diz respeito ao movimento da Escola Nova, que é Dewey. Seu trabalho investiga a influência deste teórico norte americano na constituição teórico-ideológica de autores católicos. “Educação e filantropia na cidade de São Paulo, no final do Século XIX e primeiras décadas do Século XX: um estudo da obra do conde José Vicente de Azevedo no bairro do Ipiranga” é outro texto que explora em termos metodológicos a técnica de história de vida. Lincoln Etchebèhére Júnior; Leonel Mazzali; Rosemari Fagá Viegas exploram aspectos importantes da constituição do sistema educacional em São Paulo principalmente nas primeiras décadas do século XX. O renomado pesquisador da área da educação José Gonçalves Gondra analisa em seu trabalho “Entre o cura e o médico: Higiene, docência e escolarização no Brasil Imperial” aspectos fundamentais para a compreensão da constituição do movimento higienista na área da educação no Brasil Imperial. Na tradicional secção “Documentos” complementamos o documento iniciado no número anterior “A revista da Liga de Ensino” que, temos a convicção, muito 6
contribuirá como fonte para futuras investigações na área da história da educação brasileira. Esperamos que os leitores façam bom proveito deste conteúdo configurando à revista História da Educação um papel importante em suas vidas de investigadores na área da educação e particularmente na de história da educação.
A comissão executiva
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CRIAÇÃO E REINVENÇÃO DOS LICEUS: 1802-19021 Philippe Savoie Tradução: Eduardo Arriada e Maria Helena Camara Bastos
Resumo Este artigo analisa a trajetória percorrida desde o liceu criado por Bonaparte em 1802 até o liceu moderno, que resulta da grande reforma de 1902. A questão fundamenta-se, primeiramente, no que aconteceu ao papel atribuído aos liceus na construção de uma instrução pública dominada pelo Estado, e de um ensino secundário em que eles devem coexistir com estabelecimentos municipais e particulares. A segunda parte da análise fundamenta-se na tensão entre uma lógica do estabelecimento, arraigada na tradição humanista, e uma lógica da cátedra professoral, perceptível na mobilidade dos professores e na especialização dos ensinos. O decréscimo do número de alunos internos dos liceus precipita a crise do ensino secundário e conduz à reforma de 1902, que cria o liceu moderno e marca o fim do modelo humanista. Palavras-chave: França, século XIX, liceus, ensino secundário LYCÉE(S) CREATION AND RECREATION: 1802 – 1902 Abstract This article analyzes the lycée trajectory since the one created by Bonaparte in 1802 to the modern lycée resulted from the 1902 big Reform. Firstly, the question is about what occurred to the lycée ascribed role, concerning to the construction of a public instruction dominated by the state. Also, the text mentions secondary instruction and its coexistence with private and municipal institutions; secondly, the analysis is based on the tension between a logic deep-rooted institution based on a humanist tradition, and a logic of the professoral cathedra, perceptible in teachers’mobility and in teaching specialization. The internal lycée students decreased in number. This fact caused to happen the secondary teaching crisis and
Título original «Création et réinvention des lycées (1802-1902)», in Pierre Caspard, Jean-Noël Luc, Philippe Savoie (dir.), Lycées, lycéens, lycéennes. Deux siècles d’histoire, Paris, INRP, 2005. Publicação autorizada pelo autor. 1
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 9-30, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
leaded to the 1902 Reform that created the modern lycée and marked the humanist model end. Keywords: France; XIX century; lyceum; secondary school CREACIÓN Y REINVENCIÓN DE LOS LICEOS: 18021902 Resumen Este artículo analiza el camino recorrido desde el liceo creado por Bonaparte en 1802 hasta el liceo moderno, que resulta de la grande reforma de 1902. La cuestión está fundamentada, primeramente, en lo que ha pasado al rol atribuido a los liceos en la construcción de una instrucción pública dominada por el Estado, y de una enseñanza secundaria en que ellos deben coexistir con establecimientos municipales y particulares. La segunda parte del análisis se fundamenta en la tensión entre una lógica del establecimiento, arraigada en la tradición humanista, y una lógica de la cátedra profesoral, perceptible en la movilidad de los profesores y en la especialización de la enseñanza. El decrecido del número de alumnos internos de los liceos precipita la crisis de la enseñanza secundaria y conduje a la reforma de 1902, que crea el liceo moderno y marca el fin del modelo humanista. Palabras-clave: Francia, siglo XIX, liceos, enseñanza secundaria
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O nascimento e os primeiros anos dos liceus coincidem com o apogeu e mais tarde com o desmoronamento do sistema político napoleônico. Esse impactante contexto incita a privilegiar, na análise da sua criação e na da instauração do monopólio universitário, a dimensão política e os aspectos conjunturais e táticos2. Contudo, longe de se reduzir a essas evidentes preocupações externas, a criação dos liceus e da Universidade inscreve-se em um projeto conjunto que permanece fundamentalmente o mesmo3. Gostaríamos de tentar recolocar essa criação dentro da história de longa duração das instituições escolares, esboçando a trajetória que conduz do liceu arcaico da época consular ao liceu moderno e examinando as conseqüências do projeto e do dispositivo de 1802, bem como as contradições e as tensões que o caracterizavam. Fazemos uma análise, de forma evidentemente muito breve, do período de um século, já que, acertadamente, o começo do liceu moderno é considerado como tendo ocorrido em 1902, ano do centenário dos liceus, mas também de uma profunda reforma do ensino secundário que marca, de muitas formas, a inclinação decisiva em direção ao novo modelo. A lei do 11 floreal do ano X (1º de maio de 1802)4, cujo objeto é o de organizar a instrução pública na França, cria o liceu e lhe confere um lugar bastante central no embrião do sistema educacional. Com o liceu se pretende, devido à sua fama e à sua influência, transformar toda a oferta educacional, ao menos no Ver o trabalho sempre útil de Alphonse Aulard, Napoléon I et le monopole universitaire. Origines et fonctionnement de l’Université impèriale, Paris, 1911, 385 p. 2
Philippe Savoie, « Construire un système d’instruction publique. De la création des lycées au monopole renforcé (1802-1814) », in Jean-François Boudon (dir.), Napoléon et les lycées. Enseignement et société en Europe au début du XIX siècle, Paris, Nouveau Monde Éditions, 2004, pp. 39-55.
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Recueil des lois et règlements concernant l’instruction publique (RLR), t. 2, pp. 43-54. 4
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que se refere à formação das elites. Quanto à sua organização, o liceu distingue-se radicalmente das escolas centrais que substitui, aproximando-se do modelo dos colégios de humanidades dos séculos anteriores no sentido de que constitui um verdadeiro estabelecimento escolar e não um simples somatório de cátedras professorais5. A vocação que tem o liceu para agir sobre o conjunto da instituição escolar, pública e privada, a construção de um estabelecimento estruturado conforme um modelo já experimentado: essas duas características centrais fornecerão os dois eixos principais desta reflexão. Examinamos, portanto, após termos apontado os aspectos principais do liceu de 1802 e definido seu lugar no sistema da instrução pública, como esse lugar evoluiu com as profundas modificações institucionais, pedagógicas e também financeiras que a instrução pública atravessou. Vemos, depois, como a lógica do estabelecimento pode coabitar com uma outra lógica que surgiu com o desaparecimento das escolas centrais: a da cátedra de ensino como centro da organização escolar.
A criação dos liceus: inspirar-se no passado para inovar A lei da instrução pública substitui através dos liceus as escolas centrais criadas, em 1795, pela Convenção termidoriana. Sob vários pontos de vista, os novos estabelecimentos opõem-se as escolas centrais. A criação dos liceus marca, primeiramente, o retorno a um tipo de organização escolar: a dos colégios do Antigo Regime. Tal organização escolar caracteriza-se pela divisão dos alunos em classes sucessivas correspondendo cada uma a um nível de estudos e, ao percorrê-las, a um curso traçado anteriormente Marie-Madeleine Compère, Philippe Savoie, « L’établissement secondaire et l’histoire de l’éducation », in : M-M. Compère, Ph. Savoie (dir.), L’établissement scolaire. Des collèges d’humanités à l’enseignement secondaire, XVI-XX siècles, numéro spécial d’Histoire de l’éducation, n° 90, mai 2001, pp. 5-20. 5
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dentro de um campo determinado de estudos. Essa forma de organização, que parece hoje em dia perfeitamente natural, teve sua origem histórica nos Países Baixos, no fim da Idade Média, nas escolas dos Irmãos da Vida Comum. Ela se impõe à toda a Europa com a difusão, no que se refere aos países católicos, do modelo dos colégios de ensino constituídos pela Universidade de Paris, no início do século XVI6. Foi esse o sistema que permitiu a aplicação da pedagogia simultânea segundo a qual o mestre pode fazer trabalhar conjuntamente todos os alunos. As escolas centrais tinham abandonado esse modelo por um funcionamento muito mais aberto, oferecendo uma grande variedade de cursos possíveis. A criação dos liceus marca também o retorno do internato, enquanto que as escolas centrais eram externatos7. O retorno ao internato, inspirado ainda nos modelos dos antigos colégios, permite que coexistam as duas partes indissociáveis da pedagogia humanista: de um lado, a aula, ou seja, duas seções quotidianas de duas horas aproximadamente cada, onde o professor ministra seu ensinamento e distribui abundante trabalho pessoal aos alunos; do outro lado, o estudo, onde os alunos efetuam seu trabalho pessoal sob o olhar dos mestres de estudos (denominados repetidores, a partir de 1853) que os vigiam, verificam seus deveres e devem ajudá-los na assimilação das lições. Outros tipos de atividades e de cursos extras (desenho, exercícios, cursos de línguas vivas ou de história, artes recreativas) têm lugar no tempo intermediário entre as aulas, sempre sob a vigilância dos Marie-Madeleine Compère, Du collège au lycée (1500-1850), Paris, Gallimard-Julliard, 1985, pp. 19-62. 6
Dois dos quatro primeiros liceus parisienses, os da rua Antoine (Charlemagne) e da Chaussée d’Antin (Bonaparte sob o Império, Condorcet, hoje) são externatos, situação provisória tornada definitiva, mas a associação de pensões particulares lhes substitui o pensionato. O acórdão de 22 messidor ano 12 (1° de julho de 1804) reúne cinqüenta alunos nacionais em cada um, «repartidos entre as escolas secundárias circundantes, com a condição de que todos os alunos das ditas escolas irão à aula no liceu» (Archives nationales [AN], F17 9195). 7
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mestres de estudo8. Os liceus recebem também os externos, mas muitos deles são de fato alunos de uma pensão privada na qual se beneficiam de serviços análogos, enquanto que outros moram na casa de um professor. A criação dos liceus marca ainda – mas de maneira equilibrada em 18029 – o retorno às humanidades clássicas e ao reino do latim, que as escolas centrais haviam substituído em prol de um ensino de inspiração enciclopedista, dando mais interesse às ciências, ao desenho e às matérias modernas em geral. Entretanto, nas escolas centrais, assim como nos primeiros liceus, a realidade afasta-se às vezes bastante das prescrições regulamentares e a continuidade parcial do corpo de professores matiza as rupturas10. Enfim, essa criação inscreve-se em um projeto global de fundação de uma instrução pública controlada pelo Estado. Tal Marie-Madeleine Compère, Philippe Savoie, «Temps scolaire et condition des enseignants en France depuis deux siècles», in: M-M. Compère (dir.), Histoire du temps scolaire en Europe, Paris, INRP – Economica, 1997, pp. 267-312; Antoine Prost, Histoire de l’enseignement en France, 1800-1967, Paris, Armand Colin, 1968, pp. 50-58; André Chervel, «Les travaux écrits des élèves dans l’enseignement secondaire du XIX siècle», in Pierre Caspard (dir.). Travaux d’élèves, XIX-XX siècles. Pour une histoires des performances scolaires et de leur évaluation, numéro spécial d’histoire de l’éducation, nº 54, mai 1992, pp. 1338. (conforme A. Chervel, La culture scolaire. Une approche historique, Paris, Belin, l998, pp. 57-75). 8
Desde o segundo ano de estudos, os professores de matemática dividem o horário de aula com os de latim e de letras (acórdão de 19 frimaire ano XI – 10 de dezembro 1802) Philippe Savoie, Les enseignants du secondaire. Le corps, les carrières. Textes officiels. Tome 1 : 1802-1914, Paris, INRP – Economica, 2000, pp. 96-99). A partir de 1809, o ensino das ciências é dirigido às altas classes, até se encontrar reduzido aos dois anos de filosofia em 1821 (ibid, pp. 184-185). A seguir encontra um lugar menos marginal. 9
Marie-Madeleine Compère, «Les professeurs de la République. Rupture et continuité dans le personnel enseignant des écoles centrales», Annales historiques de la Révolution française, janvier-mars 1981, n° 243, pp. 39-60; Paul Courteauld, Les origines du lycée de Bordeau. Le lycée de l’an XI, Bordeaux, 1905, pp. 95-112; A. Aulard, op.cit, pp. 111-114. 10
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projeto, longe de ser dirigista e monopolista, como se tornará mais adiante, é de inspiração semi-liberal. De fato, aos olhos dos criadores dos liceus, e especialmente para Fourcroy, que apresenta seu projeto diante do Corpo Legislativo11, o dispositivo das escolas centrais cometeu o erro de dispersar os recursos muito limitados de que dispunha o Estado – recursos humanos e recursos financeiros –, além de multiplicar as escolas quando teria sido preciso concentrar as forças. O projeto de 1802 não pretende ganhar terreno nem oferecer para todos uma instrução garantida pelo Estado. Pretende, sim, fazer escolas suficientemente bem cotadas por seus professores, seus alunos e a força de seu ensino, para que possam impor seu modelo a todas aquelas que propõem estudos da mesma ordem. Pretende, aliás, criar um laço entre as outras escolas e os liceus, recrutando nelas os futuros alunos do governo, isto é, os bolsistas nacionais que fornecem a cada liceu sua clientela fundamental. Em 1802, contava-se com uma centena de escolas centrais. A lógica que tinha presidido a construção desse mapa escolar novo era a da repartição homogênea sobre todo o território nacional. Após se ter dado a essa repartição uma base demográfica, voltou-se a um princípio mais simples e não limitador: uma escola central por departamento, geralmente na capital da comarca, mas nem sempre12. A lei do 11 floreal do ano X prevê limitar os estabelecimentos do Estado a um número ainda mais restrito. A alçada dos tribunais de recursos faz doravante referência ao lugar dos departamentos. Em 1811, nos limites políticos da França de Discours de Fourcroy devant le Corps législatif, du 30 germinal an X (20 abril 1802), RLR, t. 2, pp. 55-84. 11
Décrets des 7 ventôse et 18 germinal an III (25 de fevereiro e 7 de abril de 1795), et loi du 3 brumaire an IV (25 de outubro de 1795), RLR, t. 1, Paris, 1814, pp. 37-49. Cf. Dominique Julia (dir.), L’enseignement, 1760-1815, t. 2 de Serge Bonin, Claude Langlois (dir.), Atlas de la Révolution française, Paris, EHESS, 1987, p. 40. Paris faz exceção, com suas três escolas centrais (eram previstas cinco, inicialmente). 12
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1789, cada liceu substitui aproximadamente três velhas escolas centrais. O princípio de igualdade territorial não desaparece, contudo é encontrado no modo de recrutamento dos alunos do governo, cada departamento deve fornecer um contingente proporcional a sua população. Tais alunos são recrutados essencialmente nos estabelecimentos que a lei qualifica como escolas secundárias. São considerados como tais os estabelecimentos com status comunal ou privado onde se ensinam “as línguas latina e francesa, os primeiros princípios da geografia, da história e da matemática”. A definição é suficientemente frouxa para que o inspetor geral e o comissário do Instituto encarregados da criação do liceu de Moulins emitam reservas sobre a classificação efetuada pelos serviços da prefeitura13. Tais escolas são antigos colégios, pensões que sobreviveram à Revolução e estabelecimentos que floresceram desde então, aproveitando-se da desconfiança de várias famílias em relação às escolas centrais. Habituados a uma arquitetura institucional mais simples, temos hoje uma certa dificuldade para conceber a articulação entre as escolas secundárias e os liceus. Os liceus situam-se no mesmo plano ou por sobre as escolas secundárias? A denominação “escolas secundárias”, por si só, parece indicar que a lei de floreal instaura uma ordem de ensino secundário do qual os liceus seriam parte importante. Isso constituiria uma extrapolação prematura, bem como um anacronismo. De fato, embora os liceus e as escolas secundárias tenham em comum o fato de ensinarem letras e ciências e de recrutarem alunos da mesma idade, não são pensados como estabelecimentos do mesmo nível14. Os liceus têm Correspondência de Delambre e Villar, em missão no outono de 1802 em Cantal e Allier para selecionar os alunos nacionais, com Fourcroy, diretor da instrução pública. (AN, F17 7886). A qualidade da escola secundária é reconhecida pelo governo conforme o relatório dos prefeitos e sub-prefeitos. (Acórdão de 4 messidor ano X, RLR, t. 2, pp. 271-273). 13
Pretendeu-se, com as escolas secundárias, preencher o espaço, demasiado grande, deixado pela lei Daunou de 1795 entre as escolas primárias e as escolas centrais, os liceus ocupando, aproximadamente, o lugar destas últimas. Ver as 14
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aulas de gramática, como as escolas secundárias, mas o que é significativo na sua inscrição na hierarquia escolar, é a existência e o nível de suas aulas superiores. Assim como os primeiros colégios de humanidades, os da Universidade de Paris no século XVI, davam em suas aulas superiores um ensino dependente da faculdade de artes e acolhiam alunos versados em gramática - tal mistura é uma das características do modelo parisiense15, os primeiros liceus associam o alto nível de ensino ao da gramática latina (e aos elementos de aritmética). Esse paralelo torna-se explícito, a partir de 1808, com a criação da Universidade imperial, cuja ação estende-se a todo o território nacional: os bacharelados em letras e em ciências, primeiros graus das faculdades acadêmicas, preparam-se nos liceus e certas cátedras dessa faculdade de letras e de ciências são ocupadas pelos professores das classes superiores dos liceus. É preciso esperar os anos 1830 para que a noção de ensino secundário se imponha no vocabulário administrativo16. As relações entre os liceus e as escolas secundárias colocam-se, então, sob o signo de uma desigualdade de princípio. Tal desigualdade existe também entre os próprios liceus. Fourcroy reivindica tal princípio no seu discurso de apresentação, opondo-o a uma uniformidade inacessível e estéril. A hierarquia dos estabelecimentos constitui de fato uma das ações com a qual a lei de instrução pública pretende jogar para melhorar quantitativa e qualitativamente a oferta do ensino com poucos meios. Recebendo os melhores alunos das escolas secundárias, na qualidade de precisões enunciados por Fourcroy em seu discurso diante do Corpo legislativo de 20 floréal ano X (30 de abril de 1802), RLR, t. 2, pp. 235-247. 15
M-M Compère, op. cit., 19-30.
André Chervel, «De quand date l’enseignement ‘secondaire’ ?», in: Claire Blanche-Benveniste, André Chervel, Maurice Gross (dir.), Grammaire et Histoire de la grammaire. Hommage à la mémoire de Jean Stéfanini, Publications-diffusion de l’Université de Provence, 1988, pp. 105-118 (conforme A. Chervel, La culture scolaire..., op. cit., pp. 149-159). 16
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bolsistas, especialmente, os liceus devem, ao mesmo tempo, suscitar a emulação, servir de modelo e assegurar a promoção de uma elite escolar nacional, ainda que os serviços prestados à pátria e ao regime sejam o primeiro critério na distribuição das bolsas. Fourcroy, que foi um dos criadores da Escola politécnica, pode observar como a organização de concursos descentralizados de recrutamento tinham causado, por toda parte, o florescimento de escolas ou aulas preparatórias, inclusive nas escolas centrais. Esse é o fenômeno que ele afirma querer reproduzir com os liceus e, ao fazer isso, põe o dedo em uma ação essencial na dinâmica de desenvolvimento e de evolução da instituição escolar: a atração do nível escolar superior ou do exame de saída, que puxa e modela o nível inferior17.
A emergência do ensino secundário: um resultado do projeto de 1802? Os limites do dispositivo concebido em 1802 aparecem logo. Os liceus têm dificuldades para recrutar sua clientela pagante e, até mesmo, para alguns, como o liceu de Bruxelas, para encontrar candidatos bolsistas18. Sua suposta superioridade sobre os estabelecimentos privados revela-se mais difícil de demonstrar do que se previa. Tais dificuldades originam, por um lado, uma Bruno Belhoste, «Les caractères généraux de l’enseignement secondaire scientifique de la fin de l’Ancien Régime à la Première Guerre mondiale», Histoire de l’éducation, n° 41, janvier 1989, pp. 3-45. Um mecanismo do mesmo gênero – que intervém nas escolas de artes e ofícios, instituições criadas após os liceus e segundo o mesmo modelo de organização – determinou a evolução do ensino técnico industrial na França. Cf. Philippe Savoie, «L’enseignement technique industriel en France : l’influence des écoles d’arts et métiers», in: Gérard Bodé, Philippe Marchand (dir.), Formation professionnelle et apprentissage (XVIII-XX siècles), Villeneuve-d’Ascq-Paris, Revue du NordINRP, 2003, pp. 129-141. 17
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AN, F17 2484 (inspection générale de 1809).
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revisão do regime disciplinar dos liceus e, por outro, a criação da Universidade imperial. Quando da criação dos liceus, a antiga Universidade de Paris tinha manifestamente constituído um modelo de referência para a concepção do quadro institucional. Com a Universidade imperial, decretada em 1806 e organizada em 180819, recria-se, por analogia, tal quadro para estendê-lo a toda a França. Mesmo permanecendo dentro de uma lógica globalmente semelhante – trata-se ainda de organizar a dominação de uma rede de estabelecimentos do Estado sobre uma massa de estabelecimentos municipais e privados -, a criação da Universidade imperial marca a passagem de um regime semiliberal a um regime autoritário e monopolizador em seu princípio, embora mais leve em sua aplicação. Como as universidades medievais, a Universidade imperial é uma instituição corporativa. No nível ideal, a Universidade é o governo do corpo docente por si mesmo. No nível da realidade, tem-se uma instituição estreitamente controlada pelo poder político. Ela toma a forma antiga da corporação, com sua hierarquia própria, seus mecanismos de ascensão interna, seus tribunais e as garantias e privilégios conferidos por pertencer ao corpo. Esse sistema permite ligar todos aqueles que contam dentro da instituição escolar, incluindo os chefes de instituições e de pensões privadas, pela pertença comum ao corpo e pela submissão a seu sistema de graus e diplomas20. De fato, o princípio do monopólio exerce-se de forma muito diversa segundo os setores: praticamente nenhum no primário e de forma absoluta nos graus universitários. No ensino secundário, modifica as relações dos liceus com o que se chamava até então de escolas secundárias. Os estabelecimentos municipais tornam-se colégios comunais, cujos docentes são progressivamente integrados ao Loi du 10 mai 1806 et décret impérial du 17 mars 1808, RLR, t. 3, p. 144145 et t. 4, pp. 1-30. 19
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Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire... op. cit., pp. 31-36.
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corpo universitário21. Os estabelecimentos privados, denominados de pensões ou instituições, segundo o nível de estudos que propõem, submetem-se, por sua parte, a um controle estrito e a taxas que alimentam as caixas da Universidade. O regime universitário conhece, por sua vez, um endurecimento a partir de 1811 decorente de um contexto político tenso. As pensões e instituições devem doravante enviar seus alunos às aulas do liceu ou às do colégio vizinho. É, de fato, o retorno a uma prática que vigorava nas antigas universidades. Como naquela época, salvo os estabelecimentos autorizados a existir fora das cidades, o setor privado pode viver apenas, ao menos nas classes superiores, como um complemento aos estabelecimentos públicos. Ele apresenta, então, uma tendência para executar os mesmos serviços que o internato dos liceus. É pelo conforto da acolhida, pela disciplina menos rude, pela qualidade do ambiente, pelas repetições, pelas interrogações, pelas lições particulares que os professores dos liceus ministravam seguidamente, tais estabelecimentos podem se distinguir e atrair a clientela. Alguns o conseguem admiravelmente, em especial aqueles na área da preparação para os concursos das escolas especiais do governo, como o da escola politécnica.22 Quanto ao setor público, o governo pretende nessa época desenvolvê-lo à força, abandonando o modelo pragmático da época consular. O objetivo do decreto do 15 de novembro de 181123 é o de elevar o número de liceus a cem em todo o Império, ou seja, a mais do dobro do que havia. Mas os estudos feitos no fim do regime imperial para levar a cabo tal objetivo, especialmente Mas é preciso criar um fundo particular para conferir a essas pessoas o direito à aposentadoria, que marca a pertinência ao pleno direito à corporação. (ordem de 25 de junho 1823, ibid, pp. 188-191). 21
Bruno Belhoste, «La préparation aux grandes écoles scientifiques au XIX siècle: établissements publics et institutions privées», in: M-M. Compère, Ph. Savoie, L’établissement scolaire... op. cit., pp. 101-130. 22
23
RLR, t. 4, pp. 298-305.
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através da transformação de colégios comunais e da aquisição de estabelecimentos tão prestigiados como os pensionatos de Juilly, Sorrèze ou Pontlevoy, concluem, na maioria dos casos, pela viabilidade duvidosa dos estabelecimentos projetados. Cada qual permanecerá igual24. O decreto de novembro de 1811 pretende também regulamentar o funcionamento muito diverso dos colégios comunais. Nesse ponto, também se fica na letra morta: não podendo se comprometer financeiramente, o Estado é obrigado a fechar os olhos quanto aos tratamentos miseráveis dados à maioria dos regentes e quanto às mudanças na regulamentação25. A partir do fim da monarquia de Julho, o aumento da modesta subvenção do Estado aos colégios26 permite criar algumas novas cátedras para que estes possam seguir, na medida do possível, a evolução dos planos de estudos e a especialização disciplinar em curso, embora sem modificar profundamente a situação. A lei Falloux de 185027 põe fim ao regime universitário e ao que resta do monopólio após dois regimes, a Restauração e a monarquia de Julho, hostis a priori ao princípio, ainda que bem diferentes em seus comportamentos no relativo à Universidade. As conseqüências da lei Falloux são bem conhecidas no que se refere às relações do ensino privado com os liceus e colégios, colocados sob o signo da livre concorrência e não mais na complementaridade imposta. Doravante, não há mais ligação entre o ensino secundário público e privado a não ser a sua comum 24
AN, F17 9105.
Muitos pequenos colégios reagrupam as classes em duas, sob os mesmos regentes, preferentemente para reduzir seu currículo às aulas de gramática, como o impõe a regulamentação. Cf. O relatório Villemain que descreve uma realidade sem relação com os textos oficiais.. (Rapport au roi sur l’instruction secondaire, du 3 mars 1843, Bulletin universitaire, t. 13, pp. 52-57). 25
Charles Jourdain, Le budget de l’instruction publique et des établissements scientifiques et littéraires, Paris, 1857, p. 158. 26
Loi du 15 mars 1850, Bulletin administratif de l’instruction publique, t. 1, pp. 57-80. 27
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submissão ao monopólio dos graus universitários. Apenas os colégios comunais permanecem na órbita dos liceus. O artigo 74 da lei Falloux aplica-lhes um regime contratual que condiciona a ajuda do Estado a um compromisso das municipalidades em pagar o corpo docente e em assegurar a manutenção dos estabelecimentos por cinco anos. A primeira conseqüência deste novo regime é uma dolorosa clarificação. Muitos colégios fecham ou se tornam estabelecimentos confessionais. A longo prazo, o regime contratual vai constituir, para a instrução pública, um instrumento de nivelamento dos colégios. Mas para isso é preciso que o Estado se decida a engajar-se com mais rigor. Liceus e colégios são de fato estabelecimentos pagantes, supostamente devem se sustentar por si mesmos com os meios que lhes dão o Estado e as municipalidades. No início, tais meios consistem em prédios, em despesas subsidiárias e no pagamento de bolsas. A partir de 1817, uma parte dos liceus depende de uma subvenção permanente do Estado para pagar a totalidade das despesas com os professores28. Mas há dificuldades para se obterem créditos. Em 1853, uma ampla reforma do regime financeiro dos liceus tem por resultado o aumento do encargo das famílias, repartindo-se os gastos de forma mais eqüitativa29. Quanto aos colégios, raramente as municipalidades aceitam sacrifícios para manter uma estrutura escolar rica demais para os recursos do estabelecimento. Na realidade, elas o fazem essencialmente nos casos dos grandes colégios urbanos e para conseguir que se transformem em liceus, o que representa um grande empenho da população e aumenta o prestígio da cidade, ao mesmo tempo que transfere a responsabilidade do estabelecimento ao Estado. No fim
28
Ch. Jourdain, op. cit., pp. 146-147.
Décret du 16 avril 1853 (Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire... op. cit., pp. 322-331). 29
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do século XIX, essa perspectiva motiva os esforços de muitas municipalidades30. Para que o Estado se decida a abandonar o dogma do autofinanciamento dos estabelecimentos secundários e a se comprometer significativamente, é preciso esperar a Terceira República31. Tal compromisso financeiro implica, nos liceus, um formidável progresso nos vencimentos e nas carreiras, assim como a chegada de professores especializados aos pequenos estabelecimentos que não os tinham há décadas. Nos colégios, permite construir e fazer respeitar uma grade de vencimentos do corpo docente e valorizar a questão pedagógica. Mediante um sistema de assimilações, os vencimentos do corpo docente dos colégios se definem pouco a pouco em relação aos dos docentes dos liceus. Isso permite criar uma circulação de docentes entre os liceus e os colégios, tornada necessária pelo progresso no nível geral de formação e pelo bloqueio recorrente das carreiras32. Desde então, os liceus e colégios tendem a formar uma única rede, embora as diferenças continuem sendo consideráveis. Ocorre o mesmo no interior do recente ensino secundário feminino que está, naquela época, separado de seu homólogo masculino33. Esses progressos e a organização num sistema constituem, um século depois, um elemento importante para a realização do projeto de 1802, mas ao preço de um compromisso financeiro do Estado, que estava antes excluído. Graças a tal AN, F17 14088-14145. Le nombre des lycées de garçons est de 110 à la fin du XIX siècle. 30
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées: la réforme administrative de 1902 et ses origines», in: M-M. Compère, Ph. Savoie, L’établissement scolaire... op. cit., pp. 169-204. 31
32
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 61-85.
Ibid., pp. 73-85; Françoise Mayeur, L’enseignement secondaire des jeune filles sous la Troisième République, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1977, 488 p.
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esforço, o ensino secundário público começa enfim, embora modestamente, a se homogeneizar. No ensino privado, os estabelecimentos confessionais tinham se tornado preponderantes e o peso do bacharelado e dos outros graus universitários – vestígios muito significativos do regime de monopólio –, além dos concursos de admissão às grandes escolas públicas, atenuam o efeito centrífugo das leis que instauram a liberdade do ensino secundário e superior34. Mas, na construção desse ensino secundário relativamente coerente, a influência do liceu e de sua superestrutura institucional sobre os estabelecimentos municipais e privados não foi uma via de mão única. A criação oficial do ensino secundário especial em 1865, por exemplo, consagra os ensinamentos modernos e utilitários que se tinham desenvolvido muito cedo, ao lado ou no lugar do ensino clássico, nos colégios comunais ou nas pensões privadas. E, sob o Segundo Império, os maiores liceus inspiram-se nas instituições privadas em seus métodos de preparação para as grandes escolas35. Além disso, o ensino secundário público, do fim do século XIX, sofre uma crise de recrutamento – especialmente de alunos internos, o que é muito prejudicial financeiramente –, ao passo que os pensionatos confessionais não apresentam ainda problemas. Tal situação origina a convocação, em 1898, da comissão parlamentar presidida por Alexandre Ribot e da reforma de 1902, inspirada pelo que foi concluído na comissão. Ora, uma das conclusões mais importantes do relatório Ribot é a de que é preciso desenvolver a personalidade dos estabelecimentos e, para isso, restaurar sua autonomia, que o engajamento financeiro do Estado tinha contribuído para sufocar36. Na passagem do século Loi relative à la liberté de l’enseignement supérieur, du 12 juillet 1875, Bulletin administratif du ministère de l’instruction publique, t. 18, pp. 430-438. 34
35
B. Belhoste, «La préparation aux grandes écoles...», op. cit., pp. 125-128.
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 170-171 et pp. 185-188. 36
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XIX para o século XX, é o próprio modelo do liceu que está em questão na crise do ensino secundário.
A tensão entre o estabelecimento e a cátedra professoral Descrevemos acima a oposição fundamental que existe entre o modelo dos colégios de humanidades, protótipos do estabelecimento escolar, e o das escolas centrais, que não são nada mais do que a justaposição das cátedras professorais que as compõem. O nascimento do liceu constitui, evidentemente, um retorno ao primeiro dos modelos. Contudo, uma lógica da cátedra concorre com a do estabelecimento de modo muito mais nítido do que nos antigos colégios. Ela se integra tanto às características da carreira professoral quanto à evolução pedagógica. Durante meio século (1803-1853), os professores de liceu estão em uma situação que evoca os titulares de benefícios ou de ofícios sob o Antigo Regime: sua remuneração é determinada, não pelo seu trabalho, mas pela cátedra que ocupam37. Os liceus repartem-se em três classes às quais se sobrepõe a categoria superior dos liceus de Paris. As classes determinam o montante das pensões, o da retribuição paga pelos externos e os vencimentos dos diretores, dos censores, dos procuradores, dos professores e dos mestres de estudos. As cátedras professorais são elas próprias classificadas em três ordens. No total, o leque de vencimentos fixos dos professores vai do simples ao triplo. Ao vencimento fixo acrescenta-se um vencimento eventual, que consiste em uma parte da renda adiantada das famílias (retribuições e pensões) e que aumenta as diferenças38. É interessante notar que, na primeira regulamentação, esse vencimento eventual é calculado por aula, e M.-M. Compère, Ph. Savoie, «Temps scolaire et condition des enseignants...», op. cit., pp. 286-291. 37
38
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 29-30.
25
o número de alunos próprios influencia a remuneração de cada professor. Tudo ocorre como se fosse considerado que é o renome pessoal do mestre que faz vir os alunos. Tal concepção tem raízes muito antigas, mas tampouco é estranha aos modelos das escolas centrais onde cada cátedra existia quase que por si mesma. Nos primeiros anos da existência dos liceus, há um afastamento dessa lógica de individualização das cátedras. A personalidade do professor continua a orientar a escolha de um estabelecimento em certos casos, especialmente para a preparação dos concursos, mas é o estabelecimento como um todo que se torna normalmente o objeto de atração ou de repulsa. E é sobre o estabelecimento e sobre a disciplina interna que as autoridades escolares aplicam seus esforços, a partir de 1805, para ganhar a confiança das famílias. Em 1805, com efeito, a fraca reputação dos liceus em matéria de educação moral e religiosa é considerada como uma das causas da desafeição de que sofrem39. Desde então, tudo se faz para elevar sua reputação. O fechamento dos estabelecimentos, a segregação por idades e por sexos, a repressão das leituras proibidas e a regularidade da prática religiosa tornam-se objeto de vigilância minuciosa e ostensiva. Para seduzir as famílias, as autoridades escolares sonham com ancorar os professores em seus estabelecimentos e se esforçam, para tal, em reativar o espírito, suposto e idealizado, das comunidades educacionais dos antigos colégios congregacionistas. Mas a secularização do corpo professoral, iniciada com a Revolução, prossegue a despeito dos sonhos nostálgicos de seus chefes e acelera a dissolução das comunidades educacionais40. Um indício, entre outros, dessa evolução: vários professores casados ocupam, apesar dos regulamentos, apartamentos dos liceus com suas famílias, deixando seus colegas solteiros alojar-se na cidade e arriscar a A. Aulard, op. cit., pp 148-150. Entretanto, um capelão católico já está encarregado dos exercícios religiosos em cada liceu. 39
40
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 41-43.
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reputação do estabelecimento. Aliás, o projeto de enraizamento local do corpo docente opõe-se ao interesse de carreira dos funcionários, que lhes recomenda exatamente o contrário. Em síntese, o sistema de remuneração faz com que a única forma de progredir na carreira seja a de subir na hierarquia das cátedras e na dos liceus. Ao organizar a Universidade imperial, Napoleão aproximou-a da carreira militar. A incitação à mobilidade provoca a cada ano em Paris a corrida dos funcionários que vêm solicitar uma boa promoção. Tenta-se, a partir dos anos 1820, estabelecer complementos de vencimentos que recompensem a estabilidade do cargo; mas não se pode manter de forma duradoura os sistemas que penalizam a mobilidade, os quais permanecem como o modo essencial de avanço. A reforma do regime financeiro de 1853 começa a destruir essa fatalidade ao individualizar os vencimentos fixos. Será preciso, no entanto, esperar 1887 para que se estabeleça um regime salarial que não comporte nem vencimento eventual nem classificação dos estabelecimentos, embora os estabelecimentos parisienses fiquem acima dos outros. Contudo, como a hierarquia das cátedras e dos estabelecimentos guardam uma grande força simbólica, a mobilidade segue sendo um trunfo na carreira41. Uma outra dimensão do desenvolvimento de uma lógica da cátedra professoral é a diferenciação disciplinar que começa muito cedo no século XIX mediante a especialização dos ensinos a história desligando-se das letras e as ciências físicas, das matemáticas – ou pela promoção de matérias acessórias como as línguas vivas. Desde a criação dos liceus, a presença de professores de matemática tinha rompido o regime do mestre único que era o dos antigos colégios. A Restauração concilia o retorno momentâneo à arquitetura de estudos do Antigo Regime e o começo da diferenciação disciplinar. Hippolyte Fortoul, decidido a voltar atrás no que diz respeito a essa especialização, somente Sobre esta contradição entre enraizamento e mobilidade, cf. Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 171-177. 41
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consegue suspendê-la entre 1851 e 185642. A diferenciação disciplinar constitui o retorno do espírito enciclopédico a um ensino secundário dominado pelas humanidades clássicas. Tal retorno traz consigo uma contestação ao modelo pedagógico em vigor. Fundado sobre a memória, a imitação e a repetição, implica um uso intensivo do exercício escrito. A multiplicação das matérias acomoda-se há muito a esse modelo, mas não é estranha à evolução das práticas pedagógicas. O curso magistral, inspirado no ensino das faculdades, que visa a transmitir conhecimentos através da palavra, concorre com a aula tradicional, que é organizada em torno do trabalho pessoal dos alunos. Uma pedagogia da observação, da experimentação e da reflexão opõe-se aos métodos antigos43. Nesse novo quadro pedagógico, a divisão do tempo escolar entre a aula e o estudo perde o caráter de necessidade funcional. É, então, a própria organização do estabelecimento herdado dos antigos colégios que está em questão quando, a partir de 1880, os modernizadores do ensino começam a impor-se sobre os defensores das humanidades clássicas. Tal mutação coincide com a crise do internato, evocada anteriormente, que acentua seus efeitos. A crise do internato acaba por destruir o modelo segundo o qual o liceu vivera durante um século. Os repetidores, que foram por muito tempo um proletariado superexplorado, aproveitam a conjuntura para conquistar um status mais invejável. Com a reforma de 1902, sua função desliga-se do serviço noturno e horas de ensino completam os serviços de vigilância daqueles que dentre eles tomam o título de professores adjuntos. Mas tal promoção apenas acelera o declínio da função de repetidor, função essa que
42
Ph. Savoie, Les enseignants du secondaire...op. cit., pp. 36-56.
Antoine Prost, Histoire de l’enseignement en France, 1800-1967, Paris, Armand Colin, 1968, pp. 50-58 et 246-252. 43
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correspondia a um tipo de estabelecimento e a uma organização pedagógica ultrapassada e logo abandonada44 ************************* Com a reforma de 1902, o liceu inclina-se para um modelo de organização que corresponde à dominação de um novo modelo pedagógico, com finalidades novas, menos voltadas para a aquisição de uma cultura que marque a pertença a uma elite e, de forma geral, a um desejo por parte das famílias de não mais confiarem a educação e a instrução de seus filhos apenas aos estabelecimentos escolares. Não é a primeira vez que o liceu é mais ou menos profundamente reformado – o que lhe permitiu atravessar os regimes políticos e se adaptar às desordens institucionais -, mas a reinvenção de 1902 marca o desgaste de uma velha formula escolar de quatro séculos fundada sobre o primado do latim e da cultura clássica, sobre uma pedagogia do exercício, sobre o enquadramento do trabalho pessoal dos alunos e sobre o pensionato. Entretanto, não se pode dizer que o apagamento do velho modelo aponte para uma alternativa mais definida. O liceu de 1902 está à procura de sua identidade e seu corpo docente, desestabilizado pela nova pedagogia e pela promoção dos repetidores, está tomado pela obsessão da desqualificação45. O liceu está mais aberto ao mundo do que
Os adjuntos de ensino, categoria criada pelo decreto de 22 de dezembro de 1945 e hoje em via de extinção, foram os últimos representantes da função. A penúria dos professores dos anos 1960 levou-os a desviar de sua missão primeira, de responsáveis pelo estudo, para consagrá-los ao ensino magistral. 44
Ph. Savoie, «Autonomie et personnalité des lycées...», op. cit., pp. 199-201. Essas dificuldades não parecem ter sido superadas. Cf. Antoine Prost, Éducations, politiques et sociétés. Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos jours, Paris, Éditions du Seuil, 1997 (2° édition), pp. 156-184 et pp. 204-221. Os relatórios oficiais dos últimos trinta anos testemunham sua persistência. Cf. Philippe Savoie, «Éléments d’analyse historique de la littérature officielle sur les enseignants du secondaire», annexe n° 1 de Jean-Pierre Obin, Enseigner um 45
29
aquele de 1802, mas ao acentuar a desembaraço intelectual do aluno mais do que seu trabalho, a evolução pedagógica torna o acesso talvez ainda mais difícil às crianças dos novos meios sociais e culturais. O liceu moderno continua sendo o liceu de uma elite
Philippe Savoie, PhD, é diretor adjunto do Service d’histoire de l’éducation (Institut national de recherche pédagogique – École normale supérieure) em Paris. Estuda história da educação francesa do século XIX e XX. Suas pesquisas e publicações são sobre professores de escolas secundárias, história da educação secundária, o desenvolvimento da educação técnica e outros tipos de educação pós-elementar. Bem como a relação entre os níveis nacional e local na história da educação. Foi presidente do Comitê organizador do XXIV ISCHE. Suas publicações incluem : Les Enseignants du secondaire. Le corps, le métier, les carrières. XIXeXxe siècles. Tome l : 1802-1914 (2000); L’établissement scolaire. Des collèges d’humanités à l’enseignement secondaire, XVIe-XXe siècles, número especial da Histoire de l’éducation, 90, maio de 2001 ( ed. Com M.-M. Compère); L’Offre locale d’enseignement. Les Formations techniques et intermédiaires, XIXe-Xxe siècles, número especial da Histoire de l’éducation, 66, maio de 1995 (ed. com G. Bodé). É membro do comitê executivo da Conferência Internacional para a História da Educação (ISCHE), responsável tanto pelos membership (associação) quanto pelo website.
Recebido em: 12/04/2007 Aceito em: 20/07/2007
métier por demain, rapport au ministre de l’Éducation nationale, Paris, La Documentation française, 2003, pp. 119-135.
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UMA NOVA FORMA DE ENSINO DE DESENHO NA FRANÇA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX: O DESENHO LINEAR 1 Renaud d’Enfert Tradução: Maria Helena Camara Bastos
Resumo Inventado para as escolas mútuas, que se desenvolveram na França a partir de 1815, institucionalizado, mais tarde, na instrução primária, o “desenho linear” é uma forma alternativa de ensino do desenho que se distingue da tradição acadêmica. Este artigo coloca em evidência as condições e pretensões da popularização desse novo ensino que amplia, além do tradicional “ler, escrever, contar”, a gama de conhecimentos ensinados aos alunos. Procura também descrever as principais características desse novo modelo didático que se constitui e depois se normaliza no seio da instituição escolar em função das exigências pedagógicas e das finalidades que lhe são próprias. Palavras-chave: ensino primário; disciplina escolar; desenho; geometria; século XIX. THE LINEAR DRAWING AS A NEW DRAWING TEACHING METHOD IN FRANCE IN THE BEGINNING OF NINETEENTH CENTURY Abstract Linear drawing is an alternative drawing teaching method which is different from the one of academical tradition. It was created for mutual schools developed in France since 1815. Later, it was institutionalized in Elementary education. This article discusses popularization of this new teaching model’s conditions and intentions which enlarge students’learning, beyond to the traditional “read, write and count”. This work also seeks for describing this new
Originalmente esse artigo foi publicado em M. Grandière et A. Lahalle, L'innovation dans l'enseignement français, XVIe-XXe siècle, INRP/CRDP des Pays de Loire, 2004, pp. 77-98, com o título “Une nouvelle forme d’enseignemet du dessin en France au XIX e siècle: le dessin linéaire”. Artigo autorizado para tradução e publicação pelo autor e pelo Service des publications do Institutut National de Recherche Pédagogique. As figuras foram cedidas pela Bibliothèque Nationale de France (BNF) e autorizadas para publicação, pois são de domínio público. 1
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 31-60, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
didactic model main characteristics which become usual in the school institution as a result of its pedagogical requirements and peculiar ends. Keywords: Primary school; school subjects; drawing; geometry; XIX century UNA NUEVA FORMA DE ENSEÑANZA DE DIBUJO EN FRANCIA EN EL INICIO DEL SIGLO XIX: EL DIBUJO LINEAR Resumen Creado para las escuelas mutuas, que se desarrollaron en Francia a partir de 1815, institucionalizado, más tarde, en la instrucción primaria, el “dibujo linear” es una forma alternativa de enseñanza del dibujo que se distingue de la tradición académica. Este artículo pone en evidencia las condiciones y pretensiones de la popularización de esa nueva enseñanza que amplia, más allá del tradicional “leer, escribir, contar”, la gama de conocimientos enseñados a los alumnos. Busca también describir las principales características de ese nuevo modelo didáctico que se constituye y luego se normaliza en el seno de la institución escolar en función de las exigencias pedagógicas y de as finalidades que le son propias. Palabras-clave: enseñanza primaria; disciplina escolar; dibujo; geometría; siglo XIX.
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Inventado para as escolas mútuas da Restauração, o desenho linear é descrito por um dos seus primeiros promotores como “a arte de imitar contornos dos corpos e de suas partes com a ajuda de linhas simples, e sem o recurso de sombras nem de cores2”. Sua difusão, no campo da instrução primária, marca uma etapa importante na história do ensino de desenho, mas também na história da escola. Por um lado, coloca um fim ao monopólio exercido pelos artistas sobre o ensino elementar do desenho, rompendo radicalmente com as modalidades acadêmicas baseadas no estudo do corpo humano, em vigor nas escolas de desenho, a aprendizagem do desenho linear tem fundamento no traçado das figuras geométricas, sendo o desenho da arquitetura ou do ornamento sua principal aplicação. Por outro lado, opera uma mudança decisiva no cursus dos jovens estudantes que se dedicavam até então ao tradicional “ler, escrever, contar”. Chaptal afirma, em 1819, que a educação das crianças não “poderia se limitar a aprender a ler e a escrever, a conhecer as principais regras da aritmética, e a estudar o desenho linear”?3.
O desenho linear: um ensino para o povo Enquanto o Império se desinteressa da instrução primária para se consagrar à fundação da Universidade, assistimos sob a Restauração a uma renovação de interesse pela educação das “classes inferiores”. Essa renovação se traduz pelo desenvolvimento do ensino mútuo, promovido pela Société pour l’instruction Élémentaire (SIE) criada em 1815, por iniciativa de um grupo de filantropos liberais. Após a queda do Império, esses desejavam Louis-Benjamin Francœur, L'enseignement du dessin linéaire d'après une méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d'instruction qu'on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, p. 9.
2
Jean-Antoine Chaptal, De l'industrie française. Présentation de Louis Bergeron, Paris, Imprimerie nationale, 1993, p. 418 (1re éd. 1819). 3
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conciliar uma ordem social e política estável com os princípios de liberdade herdados da Revolução. Considerando a educação e a instrução públicas como um meio de regeneração política e social, sustentam a idéia que se pode instruir todas as camadas da sociedade, mesmo as mais pobres, sem risco de desordem social. Bem mais que um sistema de instrução, o ensino mútuo, que consiste, segundo um dos seus promotores, “na reciprocidade do ensino entre os alunos, o mais capaz servindo de mestre àquele menos capaz”4, aparece como um verdadeiro instrumento de educação política e moral fundado sobre a razão, visando a aprendizagem dos deveres futuros de homem e de cidadão. Essa ação recebe a adesão da grande maioria das elites intelectuais e políticas da Restauração. Particularmente, entre 1815 e 1820, os ministros do Interior, Lainé e sobretudo Decazes, dão seu apoio favorecendo a implantação de escolas mútuas na província mediante subvenções e envio de circulares aos prefeitos de departamento. O esforço fornecido pelo poder constituído assegurado pela SIE e suas filiais provinciais é importante, pois até fevereiro de 1820 pode-se contar (talvez de forma exagerada) em torno de 1.300 escolas mútuas, na França, atendendo 150.000 alunos5. Uma “extensão razoável” dos estudos primários A vontade de esclarecer os meios populares se traduz por um aumento do número de matérias além do tradicional “ler, escrever, contar”, que caracterizava até então a instrução primária. Novas matérias surgem nas escolas mútuas: a geografia, a gramática, mas também a ginástica e o canto. Mas é, sobretudo, Joseph Hamel, L'enseignement mutuel, Paris, 1818. Citado por Octave Gréard, no artigo «Mutuel (enseignement)», in: Ferdinand Buisson (dir.), Dictionnaire de pédagogie et d'instruction primaire, Paris, Hachette, 1887, 1re partie, tome 2, p. 1998. 4
5
Journal d'éducation, tome 9, 1820, p. 219.
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com a introdução do “desenho linear” nas escolas que a SIE se mobiliza desde 1818. Julgado indispensável à maioria das profissões, este é considerado como o “quarto ramo dos conhecimentos primários”6, equivalente à leitura, à escrita e à aritmética. De fato, o desenho linear vai simbolizar por muito tempo a “extensão razoável”7 que é possível atribuir aos primeiros estudos. Regenerar e moralizar as classes pobres, favorecer o progresso industrial e a prosperidade da nação, são os dois temas indissociavelmente ligados em torno dos quais se desenvolve a argumentação dos promotores do desenho linear. A moralização da classe operária é um argumento de peso. O ensino de desenho linear deve dar hábitos de ordem e de disciplina, o gosto pelo trabalho bem feito: tantas qualidades que fazem com que os antigos alunos das escolas mútuas sejam procurados pelos mestres-artesãos. Talvez estes promotores tenham em vista concorrer com as escolas de desenho, que oferecem somente um ensino em tempo parcial, seguido paralelamente da aprendizagem. Oferecer lições de desenho linear na escola mútua é, graças a um ensino reputado “útil”, prolongar uma educação moral iniciada desde as primeiras aprendizagens da leitura e da escrita, que as escolas de desenho não ofereciam realmente. Embrião da formação profissional, o desenho linear é igualmente visto como uma alternativa à aprendizagem precoce em ateliê onde os jovens correm os riscos de conviver com os operários cujas qualidades morais não são sempre comprovadas. Mantendo por mais tempo os alunos na escola primária, o ensino do desenho linear aparece conseqüentemente como uma forma “conservadora” ou de “regulação” social que responde plenamente ao projeto político da monarquia constitucional. Mas essa vontade conservadora não deve esconder as possibilidades de promoção 6
Ibid., p. 315.
Charles Boutereau, Géométrie usuelle, dessin géométrique et dessin linéaire sans instrumens, en cent vingt tableaux, Beauvais, Tremblay jeune, 1832, p. 1. 7
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social: o conhecimento do desenho, mas também mais geralmente a instrução, deve permitir a cada um revelar seus talentos e obter uma posição social em relação as suas competências. Além da moralização das “classes inferiores”, espera-se a popularização do desenho linear efeitos positivos para a indústria. Essa argumentação não evoluiu desde o Antigo Regime, defendido pelas mesmas fórmulas retóricas empregadas no século XVIII para mostrar a utilidade do desenho: o desenho linear contribui ao progresso das artes e da indústria, aperfeiçoa o “gosto” e a habilidade dos operários, conduzindo à prosperidade do país como de seus habitantes. Além de um discurso que pode parecer clássico, é preciso vincular as ambições industriais dos promotores do desenho linear às evoluções técnicas do momento. Impróprias para uma verdadeira educação moral dos operários, as escolas de desenho são igualmente desqualificadas quanto a sua capacidade de formar operários para a indústria, seu ensino é julgado muito “artístico”. Apesar de muitos autores insistirem sobre a educação estética inerente ao ensino do desenho linear, esse aparece sobretudo como a disciplina específica das artes mecânicas. Mesmo se o vocabulário da época não está claramente definido, seus promotores contribuem, às vezes apesar deles, para confrontar a figura do operário-técnico (o desenho linear) à do artesão-artista (as escolas de desenho). Esta especificidade ao mesmo tempo operária e técnica do desenho linear remete à precisão do grafismo, que se inscreve menos na perspectiva estética que caracterizava a segunda metade do século XVIII, com o combate contra o estilo rococó, do que em uma vontade de recuperar o atraso técnico em relação à Inglaterra na indústria do ferro como na construção mecânica. O desenho linear é interpretado como uma transposição, à escala do operário, da geometria descritiva de Gaspard Monge. Por detrás da linguagem gráfica elaborada por Monge, é o conjunto das relações entre os diferentes atores do processo de produção que está em jogo. Desde a Revolução, a geometria descritiva é o meio de comunicação das novas elites técnicas formadas na Escola 36
Politécnica. Os engenheiros, mas também os chefes de ateliês, devem se fazer compreender por seus operários: o desenho linear pode habituar esses últimos à linguagem das projeções, precisa e rigorosa. A partir do momento em que, desde 1825, Charles Dupin populariza seus cursos de geometria e de mecânica aplicados às artes, numerosos são os autores que não hesitarão mais em colocar o ensino do desenho sob a égide da ciência – uma ciência sinônimo de progresso técnico – e em dar exclusividade à geometria e ao desenho exato. A popularização do desenho linear Segundo o Journal d’éducation, órgão do SIE, a iniciativa da introdução do desenho linear nas escolas mútuas francesas deve-se ao ministro do Interior Decazes. No início de 1818, ele solicita à SIE a elaboração de um método de desenho que habilite os alunos a “copiar ou mesmo traçar de memória ou imaginando, as figuras e os ornamentos que são usados nas artes mecânicas, em arquitetura e nas construções”8. Uma comissão de cinco membros é logo reunida, cujos trabalhos levam à elaboração de um método de “desenho linear” por um de seus membros, o matemático e politécnico Louis-Benjamin Francoeur. Após testes conclusivos na escola mútua de Libourne (fundada por Decazes), depois na escola parisiense da rua Popincourt, a SIE decide sua generalização em Paris e na província. O método é publicado em 1819 com o título Le dessin linéaire d’après la méthode de l’enseignement mutuel9. Além do seu financiamento, o ministro Decazes assegura a sua promoção enviando uma circular aos prefeitos10. Le Dessin linéaire de Francoeur figura assim como Louis-Benjamin Francœur, «Rapport sur le dessin linéaire, fait à la séance générale du 3 février 1820», Journal d'éducation, tome 9, 1820, p. 282.
8
Louis-Benjamin Francœur, Le dessin linéaire d'après la méthode de l'enseignement mutuel, Paris, Colas, 1819.
9
Circular de 8 de agosto 1819. Esta circular está publicada em Renaud d’Enfert, L’enseignement mathématique à l’école primaire, de la Révolution à nos 10
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manual oficial, apesar da publicação no mesmo ano pelo pedagogo Alexandre Boniface do Cours élémentaire et pratique de dessin que apresenta inúmeros pontos comuns11. A SIE e suas filiais provinciais se mobilizam igualmente, organizando formações aceleradas para os monitores das escolas mútuas, cujos alunos são escolhidos entre os mais avançados a fim de ensinar os seus condiscípulos repartidos em pequenos grupos. Desde o final de 1820, uma centena de escolas mútuas, número ao menos equivalente ao das escolas de desenho do país, oferecem um ensino de desenho linear12. Principalmente urbanas, elas atendem um público masculino ligado ao mundo do artesanato. Para as moças, ao contrário, os trabalhos de costura, que oferecem uma iniciação às futuras tarefas femininas, tanto profissionais (atividade têxtil) que familiares (coser ou consertar roupas), são geralmente preferidas ao desenho linear. A SIE tenta igualmente exportar o método de Francoeur. Considerado como uma inovação tipicamente francesa, o desenho linear deve participar da expansão internacional do ensino mútuo. Vários países europeus são de acordo, como os Países Baixos (Bruxelas), a Dinamarca, a Suécia, ou a Suíça. Em contrapartida, sua adoção na Grã-Bretanha, pátria do sistema monitorial, se faz com dificuldade13. O manual de Francoeur foi traduzido para o inglês em 1825, mas com a finalidade de introduzir o desenho linear nos estabelecimentos de jours. Textes officiels. Tome 1: 1791-1914, Paris, INRP, 2003, pp. 61-62. Afim de facilitar as notas, remetemos o leitor para essa obra, onde estão publicados a maioria dos textos oficiais citados nesse artigo e onde se encontram referências mais precisas. Alexandre Boniface, Cours élémentaire et pratique de dessin, d'après les principes de Pestalozzi, suivi à Yverdun, sous les principes de M. J. Ramsauer, et publié avec de nombreuses modifications, Paris, Baudoin fils, 1819. 11
12
Journal d'éducation, tome 11, 1821, p. 269.
13
Journal d’éducation, tome 12, 1821, p. 34 et tome 13, 1821, p. 30.
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ensino mútuo da cidade de Boston nos Estados Unidos14. Enfim, a popularização do desenho linear aproveita o apoio da SIE aos países recentemente independentes, lhes fornecendo manuais e material escolar para que possam abrir escolas mútuas. Em 1824, decidem enviar um exemplar do Dessin linéaire de Francoeur para a escola mútua que foi aberta recentemente no Rio de Janeiro/Brasil. No ano seguinte, é a vez da Grécia, em luta contra a dominação do Império Otomano, de receber quatro manuais bem como instrumentos de desenho15. Além dessas indicações concernentes somente aos anos de 1820, é necessário realizar um estudo mais completo a fim de avaliar o verdadeiro impacto da difusão do desenho linear no estrangeiro e suas conseqüências sobre o ensino do desenho nos diferentes países. Após o período de reação ultra, entre 1820 e 1828, pouco benevolente em relação ao ensino mútuo, o retorno ao poder dos liberais abre um período favorável à consolidação da instituição primária, com o desenvolvimento, notadamente desde 1828, das escolas normais primárias (professores primários) e a criação em 1833 do ensino primário superior. Instituído pela lei Guizot de 28 de junho de 1833, que divide a instrução primária em dois graus – elementar e superior, a instrução primária superior deve ser, ao mesmo tempo, o prolongamento da escola elementar e uma preparação à vida profissional, oferecendo “a uma parte significativa da população uma cultura um pouco mais
L.-B. Francœur, An Introduction to Linear Drawing, Boston, Cummings, Hilliard and C. A obra traduzida por William Bentley Fowle, foi reeditada em 1828 et 1830. O ensino de desenho nos Estados Unidos da América foi estudado por Peter C. Marzio, The Art Crusade. An Analysis of American Drawing Manuals, 1820-1860, Washington, Smithsonian Institution Press, 1976. Ver igualmente Arthur D. Efland, A History of Art Education. Intellectual and Social Currents in Teaching the Visual Arts, Teachers College, Columbia University, New York and London, 1990. Essa última obra dá (p. 75) detalhes sobre o envolvimento de Fowle no ensino mútuo em Boston. 14
15
Journal d’éducation, tome 16, 1824, p.74 et tome18, 1825, p. 15.
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relevante que aquela dada pela instrução primária” 16. A lei Guizot torna obrigatório o desenho linear nas escolas primárias superiores (mas não nas escolas elementares), ao mesmo tempo em que institui o ensino de geometria compreendendo um componente prático, voltaremos a falar sobre isso. Uma extensão decorrente das formações gráficas será em seguida autorizada, com “a geometria descritiva e prática; o desenho aplicado a todas as profissões; a perspectiva; os elementos de mecânica; o traçado de plantas; o corte de pedras e carpintaria17”. A lei Guizot refere-se somente às escolas de meninos. Foi preciso aguardar um decreto de 28 de dezembro de 1836 para que fosse estendida ao ensino feminino. Mas enquanto o desenho linear é facultativo nas escolas primárias elementares de meninos, ele faz parte das matérias obrigatórias das escolas primárias femininas, sejam elas elementares ou superiores. Essa medida pode surpreender quando se sabe que o desenho linear é uma disciplina essencialmente masculina. Fazendo parte dos ‘trabalhos de agulha”, o desenho linear não é considerado como uma arte recreativa, mas visa sobretudo oferecer às moças modelos de referência em bordado e em confecção. Com a lei Falloux de 15 de março de 1850, que suprime a existência legal do ensino primário superior, o desenho linear fará parte das várias matérias facultativas do ensino primário masculino e feminino. As escolas normais de professores primários ocupam uma posição estratégica no seio da instituição primária. Assegurando a formação de mestres, elas permitem agir sobre o conjunto do sistema, e se constituem assim como uma alavanca essencial da política oficial. O regulamento de 14 de dezembro de 1832 obriga a ensinar aos alunos-mestres “o desenho linear, a Exposé des motifs du projet de loi sur l'instruction primaire, présenté à la Chambre des députés par M. le ministre secrétaire d'état de l'Instruction publique, 2 janvier 1833, Bulletin universitaire, tome 3, p. 249. 16
17
Circulaire du 28 décembre 1838.
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agrimensura e as outras aplicações da geometria”. Ratifica, em grande parte, um estado de fato, um grande número desses estabelecimentos oferecem há muitos anos esse ensino, articulando geralmente desenho linear e geometria prática. Dois diplomas de capacitação, elementar e superior, qualificam para ensinar em cada um dos graus de instrução primária: num primeiro momento, só os candidatos portadores de um diploma superior devem conhecer o desenho linear, assim como a geometria e suas aplicações usuais, tais como medida, agrimensura, traçado de plantas. Em 1841, o desenho linear faz parte finalmente das provas de capacitação elementar, favorecendo assim sua divulgação no primeiro grau da instrução primária18. Além da formação dos futuros mestres da instrução primária, as escolas normais se destinam igualmente aos professores em exercício organizando conferências pedagógicas. Elas desempenham um papel determinante na generalização do ensino de desenho na instrução primária. De mais a mais, no início dos anos de 1830, já existem em torno de 2.000 escolas primárias que oferecem lições de desenho linear19, e não mais uma centena como em 1820. É então nas escolas normais que o Ministério de Instrução Pública vai, com toda lógica, dirigir seus esforços até o final dos anos de 1840, a fim de uniformizar as práticas pedagógicas dos professores primários. Os manuais escolares representam igualmente um meio de tornar mais eficiente, mas também mais homogêneo, o ensino de desenho. Mas se os ministros Montalivet e Guizot mandam redigir uma série de cinco manuais elementares destinados à distribuição nas escolas primárias, o desenho linear não é levado em conta. Igualmente, sobre um total de mais de 700.000 livros Règlement du 19 juillet 1833; arrêté du 23 juillet 1841 et circulaire du 12 août 1841. O conhecimento do desenho linear é exigido para as futuras professoras primárias obterem o diploma elementar depois de 1836. 18
Segundo Alexandre de Laborde, in: Jérôme Madival et Émile Laurent, Archives parlementaires de 1787 à 1860, 2e série, tome 93, Paris, Paul Dupont, 1892, p. 245. 19
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distribuídos pelo ministério em 1832, somente 120 manuais de desenho linear são enviados às escolas francesas (talvez às escolas normais?), em partes iguais entre o manual de Francoeur e o de Louis Lamotte20. Sob a Monarquia de Juillet, todavia, um certo número de obras são oficializadas pelo Conselho Real de Instrução Pública. Uma primeira lista dos manuais autorizados é assim publicada em 1836, que divulga os “valores seguros” do desenho linear (Francoeur, Boniface, Lamotte, Bergery21) aos olhos da administração primária, e atesta sua vontade de introduzir este ensino a todas as séries da instrução primária não somente no nível das escolas normais ou primárias superiores22. O esforço empreendido em favor da formação dos mestres como a divulgação crescente dos manuais não deve mascarar a relativa lentidão com a qual se populariza o desenho linear nas escolas elementares. Sob a Monarquia de Juillet, a situação não evolui em relação aos resultados da enquête Guizot de 1833. Em seus relatórios, os inspetores primários raramente os mencionam, salvo para constatar a sua fraca implantação nas escolas elementares23. Os professores primários destacam as disciplinas obrigatórias – leitura e escrita, ortografia, cálculo -, ao passo que os inspetores incentivam o estudo da língua francesa e Louis Lamotte, Cours méthodique de dessin linéaire et de géométrie usuelle applicable à tous les modes d'enseignement; ouvrage destiné aux collèges, aux pensions et aux écoles primaires, Paris, Hachette, 1832 (2e éd.). Sobre isso, ver manuais, cf. Alain Choppin, Le pouvoir et les livres scolaires au XIXe siècle. Les commissions d'examen des livres élémentaires et classiques 1802-1875, Thèse de doctorat de 3e cycle de l’Université Paris I, 1989, p. 92. 20
Claude-Lucien Bergery, Dessin linéaire à vue pour les écoles primaires, 1re partie, Metz, Paris, Thiel, Bachelier et Chamerot, 1835. 21
Liste des ouvrages dont l'usage a été et demeure autorisé dans les établissements d'instruction primaire, 30 décembre 1836. (Lista das obras cuja utilização foi e permanece autorizada nos estabelecimentos de instrução primária) 22
AN/F/17/9306, 9307 et 9311. Rapports des inspecteurs primaires sur les écoles primaires, 1837-1838 ; 1839-1840 et 1845-1846). 23
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do sistema métrico, prioritários no quadro da unificação nacional: o desenho linear permanece acessório. Se juntarmos a isso a falta de formação dos mestres nessa área, veremos como foi difícil sua implantação nas escolas, sobretudo no meio rural: por um lado, as escolas normais não formam mestres em número suficiente e ninguém é obrigado a passar por elas para se tornar professor primário; por outro lado, a grande maioria dos professores é titular de um diploma elementar, para o qual o desenho linear não é exigido, lembremos, será exigido a partir de 1841. Quanto às escolas de meninas, o desenho não aparece realmente como uma prioridade. De fato, são sobretudo as escolas mútuas das grandes cidades que representam, tanto para as meninas quanto para os meninos, o lugar privilegiado do ensino de desenho linear no nível elementar.
O desenho linear, disciplina escolar? A historiografia assinala seguidamente o desenho linear ao desenho técnico porque emprega formas gráficas simples resultado das configurações geométricas regulares e representa “horizontalmente” produtos da arquitetura ou da indústria. Na realidade, o desenho linear engloba sobretudo um método de ensino elementar do desenho, isto é, um conjunto de procedimentos didáticos que fornece os “elementos”. Mas se, sob a Restauração, o desenho linear aparece como uma inovação, se distinguindo das modalidades acadêmicas em vigor nas escolas de desenho, o terreno já está bem preparado, não somente pela geometria descritiva de Gaspard Monge, mas também pelos métodos geométricos preconizados, no fim do século XVIII, por alguns artistas-professores que desejavam garantir, em uma perspectiva neoclássica, a predominância do contorno e do traço24. Cf. Renaud d’Enfert, «L'enseignement du dessin dans les écoles centrales (1795-1802)», Paedagogica Historica, volume 36, n° 2, 2000, pp. 601-629. 24
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É preciso igualmente contar com os métodos criados pelo pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi no seu Instituto de Yverdon, nas margens do lago de Neuchâtel, que são também muito representativos. Aperfeiçoar o olho e a mão As concepções de Pestalozzi, expostas em 1801 no livro “Como Gertrudes educa seus filhos”, inserem uma visão global da educação das crianças25. Para Pestalozzi, o conhecimento tem fundamento na percepção sensível da natureza, e, mais particularmente, nas sensações visuais. Mas o conhecimento dos objetos não deve resultar somente das impressões produzidas pelos sentidos. Ele repousa sobre um ABC da intuição ou ABC da percepção que, para uma “arte da medida”, leva à observação das formas e a sua comparação com as figuras geométricas elementares, e depois à sua representação através do desenho26. Para o autor, o estudo do desenho, e mais particularmente do desenho linear («Linearzeichnungkunst27»), não é senãoa realização dessa aptidão para perceber as relações que se adquire pela observação e identificação do nome e dos objetos. Consiste em exercícios de aplicação das formas geométricas a motivos de ornamento, de dificuldade graduada, inicialmente na lousa, o que
J.-H. Pestalozzi, Comment Gertrude instruit ses enfants. Un essai pour introduire les mères à l’art d’enseigner elles-mêmes, traduction, introduction et notes de Michel Soëtard, Albeuve, Castella, 1985; Wie Gertrude ihre Kinder lehrt; ein Versuch, den Müttern Anleitung zu geben, ihre Kinder selbst zu unterrichten, in Briefen. Herasugegeben von Prof. Dr. Albert Reble, Bad Heilbrunn/Obb, Klinkhardt, 1983 (1ère éd., Bern und Zürich, 1801). 25
26
Johann Heinrich Pestalozzi, ABC der Anschauung, Zürich, H. Gessner, 1803.
J.-H., Wie Gertrude…, op. cit., 1983, p. 88. Segundo Pestalozzi, op. cit., 1985, p. 154, a escrita não é “que um exemplo de desenho linear particular” («eine eigentliche Art Linearzeichnung», na edição alemã de 1983, op. cit., p. 90). É o que salientamos. 27
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constitui uma diferença notável com o ensino acadêmico, e em seguida no papel. Particularmente sensível às concepções de Pestalozzi, a SIE faz da prfeição do gesto a primeira das qualidades que permite desenvolver o desenho linear. Os exercícios sistemáticos de desenho geométrico à mão livre elaborados como uma ferramenta destinada a afinar os sentidos, levaando-os até mesmo ao mais alto ponto da perfeição, fazendo do corpo um instrumento próprio para traçar as figuras. O sucesso do novo ensino é avaliado especialmente pela destreza adquirida pelos jovens alunos, a custa de inúmeros exercícios, destreza que surpreende o público quando da entrega de prêmios de fim de ano. Mas o que encanta, não é tanto a qualidade estética dos desenhos realizados pelos alunos, mas a virtuosidade desses. Além do seu aspecto sensacional, esses exercícios de destreza não são desprovidos intenções educativas, bem ao contrário. Insistir sobre a habilidade manual equivale a eclipsar o aspecto “liberal” do desenho em proveito de uma visão mais utilitária, mas também à disciplinar o gesto e os comportamentos. Trata-se igualmente de aprender a ver bem. Em seu Cours élémentaire et pratique de dessin linéaire, Alexandre Boniface, discípulo de Pestalozzi, alterna assim os capítulos destinados à “formação do olhar” e aqueles verdadeiramente dedicados ao desenho, começando pela classificação de linhas de comprimento desiguais ou de inclinações diferentes, a fim de exercitar o julgamento dos alunos que, pouco a pouco, aprendem a reconhecer e a nomear as principais figuras geométricas. Tanto quanto a destreza manual, se a precisão do olhar é um elemento importante de qualificação profissional, o alcance pedagógico desses exercícios que servem para “formar, desenvolver, e exercer uma avaliação28” Journal d'éducation, tome 7, 1818, p. 174 ; Alexandre Boniface, Cours élémentaire et pratique de dessin linéaire appliqué à l'enseignement individuel, à l'enseignement simultané et à l'enseignement mutuel, Paris, Ferra jeune et Aimé André, 1823 (2e éd.).
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toma um grande sentido no contexto político da monarquia constitucional. Destinado a exercitar a visão e as mãos dos alunos, o ensino do desenho linear se desenvolve por meio de um método progressivo, analítico, retomando para isso os grandes princípios dos métodos de desenho em uso no século anterior. Mas, enquanto que os artistas do fim do século XVIII não detinham seus alunos nas preliminares geométricas, passando rapidamente ao estudo da figura humana, a pedagogia pestalozziana favorecia ao contrário sua sistematização, institutindo a graduação das aprendizagens em um corpo de doutrina. O caráter progressivo dos métodos aparece particularmente na organização dos exercícios de desenho geométrico. Geralmente, os alunos estudam o traçado (à mão livre) das linhas retas e das linhas retilíneas, antes de abordar as linhas curvas e as figuras curvilíneas, para chegar finalmente ao traçado de molduras e de ornamentos de arquitetura, que combinam as diferentes formas estudadas. Alguns autores inserem também representações em perspectiva de sólidos geométricos. Para Francoeur, por exemplo, o estudo dos poliedros dá continuidade ao dos polígonos ao passo que o desenho dos corpos redondos sucede o das linhas circulares. Outros autores desenvolvem sucessivamente o plano e depois o espaço: o desenho dos sólidos geométricos começa somente depois que os alunos estudaram o conjunto das linhas retas e curvas29. Cada aprendizagem é subdividida em exercícios elementares. Por exemplo, os primeiros exercícios de Dessin linéaire de Francœur consistem em fazer os alunos traçarem linhas retas distinguindo direção e tamanho, depois dividi-las a olho em duas, três, quatro partes iguais. Ele fornece uma formula “simplificada” do método empregado por Pestalozzi, cujos alunos Jean-Baptiste Henry (des Vosges), Cours élémentaire de dessin linéaire, d'arpentage et d'architecture, adapté à tous les modes d'enseignement, destiné aux maisons d'éducation des deux sexes, aux écoles primaires des villes et des campagnes et aux personnes qui s'occupent du dessin, Paris, Isidore Pesron, 1843 (3e éd.). 29
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deviam dividir as linhas até dez partes iguais30. O Cours élémentaire et pratique de Alexandre Boniface é particularmente exemplificativo dessa decomposição ao extremo inspirada nos procedimentos de Pestalozzi. Tomemos o exemplo do traçado de um semi-círculo à mão livre (fig.1): o autor manda construir inicialmente um ângulo reto de lados iguais que o aluno deve dividir em dois, depois em quatro ângulos adjacentes isométricos. Ligando para as extremidades, obtém-se assim um quarto de círculo. A reunião dos dois quartos de círculo, traçados segundo o mesmo procedimento, forma um semi-círculo. O aluno se exercita, em seguida, a traçar um semi-círculo, somente a partir de um diâmetro e de um raio perpendicular, depois a partir de um único diâmetro, após de um só raio e, enfim, unicamente do centro.
Amaury-Duval, Précis de la nouvelle méthode d'éducation de M. Pestalozzi, Paris, Panckoucke, an XII, 1804, p.44. Contra as divisões excessivas do método de Pestalozzi, Francœur afirma: «A metade, o terço, o quarto, são sá as frações as quais nossa visão pode se acostumar: não a mais que confusão, porque não podemos mais julgar as proporçõesLa moitié, le tiers, le quart, sont à peu près les seules fractions auxquelles notre œil puisse s'accoutumer : au-delà il n'y a plus que confusion, parce que nous ne pouvons plus juger des proportions» (L.-B. Francœur, op. cit., 1819, p. 69) 30
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Figura. 1. Formação de um quarto de círculo e de um semi-círculo, in Alexandre Boniface, Cours élémentaire et pratique de dessin linéaire appliqué à l’enseignement mutuel, à l’enseignement individuel et à l’enseignement simultané, d’après d d ncipes de Pestalozzi; suivi d’un traité élémentaire de perspective linéaire, Paris, Ferra, 1847 (4e d.), pl. 12. (Cote BNF: V32602 + atlas V 32603) O traçado do semi-círculo ilustra bem o caminho analítico que sustenta a progressão da aprendizagem.
Esse recurso sistemático ao desenho das figuras geométricas impõe uma nova progressão didática, já esboçada pelo matemático Lacroix no seu Essais sur l’enseignement 31. Nada mais natural do que, após esses numerosos exercícios preparatórios, desenhar entrelaçamentos ou um perfil de moldura compostos unicamente de linhas retas ou circulares, ao invés de iniciar imediatamente o estudo da figura humana. De fato, o desenho linear recompõe a aprendizagem do desenho segundo uma progressão que vai das figuras simples da geometria até as mais complexas da arquitetura e do ornamento (fig.2), conduzindo Sylvestre-François Lacroix, Essais sur l'enseignement en général et sur celui des mathématiques en particulier, Paris, Courcier, 1805.
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depois eventualmente à figura humana (fig.3). Essa constitui então a última etapa do estudo de desenho cujas dificuldades foram contornadas graças ao estudo prévio do desenho linear. Bem mais que os temas da arquitetura, o desenho de ornamento, considerado como uma aplicação da combinação e da junção das linhas retas e curvas, é revestido de uma importância particular na medida em que permite prolongar o princípio de progressão dos exercícios levando os alunos “insensívelmente e com prazer a copiar as formas as mais complicadas32”.
Figura 2. Louis-Benjamin Francœur, L’enseignement du dessin linéaire d’après une méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d’instruction qu’on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, cinquième tableau (par Achille Leclère) (Cote BNF: V2403 + atlas in folio V 4144). O desenho de molduras e de vasos, muito inspirado na arte antiga, combina linhas retas e curvas previamente estudadas. F.PB. (Frère Philippe Bransiet), Abrégé de géométrie appliquée au dessin linéaire, à l'arpentage, au nivellement et au lever des plans, suivi des principes de l'architecture et de la perspective, Tours, Paris, Mame et Poussielgue-Rusand, 1854, p. 267. 32
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Figura 3. Aplicação do desenho linear. Traçado de uma cabeça de perfil, in Bruno Renard, Cours de dessin linéaire à l’usage des écoles d’arts et métiers, des écoles de dessin et des écoles primaires, Paris, Lithographie d’Engelmann et Cie, 1828. (Cote BNF: V240) O desenho linear pode constituir uma preparação ao estudo da figura humana.
O primeiro método de Francoeur e seus limites Publicado em 1819, revisado em 1827 e depois em 1832, o método de Francoeur é um modelo para vários autores de manuais. Destinado primordialmente ao ensino mútuo, o autor o adequou à organização e às regras deste sistema de ensino, dando uma descrição minuciosa das modalidades didáticas e do material pedagógico necessário. A utilização do quadro negro e das lousas, mais econômicas que o papel, é privilegiada. Os alunos desenham com giz, só os mais avançados estão autorizados a desenhar no papel. Cada lição de acordo com os procedimentos habituais do método mútuo, como para a escrita e o cálculo. Sentados a sua mesa e munidos de suas lousas ou reunidos em semi-círculo em torno de um quadro negro, os alunos desenham seguindo um modelo ou conforme os “comandos” dados pelo monitor que os 50
corrigirá em seguida (fig.4)33: “Tracem uma linha reta e dividam em três partes iguais” (primeira classe); “dividam um círculo em oito partes iguais” (terceira classe); “desenhem um talão34, com filetes” (quinta classe). Se réguas de madeira são fixadas no alto dos quadros negros a fim de “fixar a vista”, a utilização de instrumentos matemáticos (réguas, esquadros, transferidores, compassos) é proibida, salvo para os monitores que os utilizam para verificar a exaditão dos traços realizados pelos seus alunos35. Antes da aula, o professor explica aos monitores, em uma sessão particular, a construção de cada uma das figuras e os conhecimentos teóricos correspondentes.
Figura 4. Louis-Benjamin Francœur, L’enseignement du dessin linéaire d’après une méthode applicable à toutes les écoles primaires quel que soit le mode d’instruction qu’on y suit, Paris, L. Colas et Bachelier, 1827, premier tableau. (Cote BNF: V2403 + atlas in folio V 4144) «Dividir um ângulo obtuso em seis partes iguais, fig. 28”: fig. 28»: na escola mútua, o desenho de cada figura corresponde a um “comando” particular. 33
Louis-Benjamin Francœur, op. cit., 1819, livret des moniteurs.
34
Moldura côncava (NT)
Ibid., p. 5 et 14; Alexandre Boniface propõe uso similar dos instrumentos de matemática. 35
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Desde meados dos anos de 1820 se expressa a necessidade de publicar novos manuais de desenho linear. Além da vontade de propor aos alunos um maior número de modelos (a primeira edição do manual de Francoeur comporta somente 5 gravuras), trata-se de desprender-se demasiadamente dos rígidos procedimentos do ensino mútuo e de propor um método que convenha a todos os métodos de ensino e, mais particularmente, ao ensino simultâneo. Inspirado na pedagogia dos Irmãos das Escolas Cristãs, o ensino simultâneo consiste em dividir os alunos em várias classes de nível graduado, cada uma sob a responsabilidade de um professor. Assim, a segunda edição do Cours élémentaire et pratique de Boniface (1823) se aplica “ao ensino individual, ao ensino simultâneo e ao ensino mútuo”, com um texto diferenciado segundo a prática do professor de um ou outro método de ensino. Do mesmo modo, a edição de 1827 do manual de Francoeur é “aplicável a todas as escolas primárias seja qual for o método adotado”. O jogo é tanto político quanto simplesmente pedagógico, pois as congregações ensinantes são favorecidas pelo poder depois de 1821. Por outro lado, alguns autores consideram importante fornecer uma certa dose de “verdade” geométrica no ensino de desenho linear. Os cursos de geometria e de mecânica, promovidos por Charles Dupin, não são estranhos a essa evolução: a partir do fim dos anos de 1820, alguns autores publicaram manuais excluindo pura e simplesmente o desenho à mão livre em favor dos traçados geométricos empregando a régua e o compasso. Eles questionam até mesmo o princípio dos primeiros métodos, os de Francoeur e de Boniface, e abrem o debate sobre a pertinência do desenho à mão livre quando se trata de formar simples operários, bem como sobre as relações mútuas entre geometria e desenho linear. Uma “aplicação usual” da geometria Pelas formas que são desenhadas e pelo vocabulário empregado, o desenho constitui uma introdução à geometria. Para 52
vários autores da época, que põem em destaque as afinidades naturais, a aproximação entre os dois ensinos parece quase evidente. Algumas escolas mútuas acrescentam ao desenho linear um ensino de geometria prática, agrimensura ou medição. Os manuais testemunham igualmente essa proximidade como o Dessin linéaire et géométrie pratique de Lancelot, 36 ou ainda o manual de Francoeur que compreende, e isso desde a primeira edição de 1819, uma série de problemas de geometria e de aritmética. Mas nesse ponto, as interações entre o desenho linear e a geometria são ainda fracas: trata-se unicamente de uma justaposição de conhecimentos com um certo número de pontos comuns. Assinalamos a mais alta importância da lei Guizot que, criando um ensino primário superior, inscreve o desenho linear junto às matérias da instrução primária. Na realidade, essa disposição se faz acompanhar de uma medida com alcance decisivo: no final de um intenso debate na Câmara dos Deputados, opondo membros da SIE e personalidades ligadas de perto ou de longe à Escola Politécnica37, um verdadeiro ensino de geometria, disciplina reservada até então ao ensino secundário, é instituído ao nível das escolas primárias superiores. Nessas escolas, o ensino deve compreender “os elementos de geometria e suas aplicações usuais, especialmente o desenho linear e a agrimensura38”. A contrapartida dessa extensão do campo matemático, próprio à instrução primária, é a perda da autonomia do desenho linear, doravante dependente da geometria, constituindo uma “aplicação usual”. A partir desse momento, a maioria dos autores não cessará de dizer, seja de forma explícita, seja pela organização interna das Lancelot, Dessin linéaire et géométrie pratique, suivi d'un tarif de réduction du bois carré et en grume, et de la concordance des calendriers grégoriens et républicains, Châlons, Boniez-Lambert, 1827. 36
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J. Madival et É. Laurent, op. cit., pp. 244-250.
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Loi sur l'instruction primaire du 28 août 1833.
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obras que publicam, que o desenho linear exige conhecimentos prévios de geometria. Igualmente, numerosos manuais tratam as noções de geometria necessárias para abordar em seguida o desenho à mão livre ou o traçado geométrico. Assim, a predominância da geometria sobre o desenho linear modifica as relações entre as duas disciplinas. À concepção defendida por Francoeur, que privilegia a dificuldade do desenho mais que a ordem dos teoremas, opõe-se uma maneira de exposição do tipo euclidiano, fundado sobre um encadeamento coerente de proposições matemáticas. Mas, embora alguns manuais se pareçam a ponto de se confundirem com os tratados de geometria, os autores se defendem de qualquer teorização excessiva: “Um curso de desenho linear não é um curso de geometria39”. A questão das finalidades então é colocada: trata-se de aprender a desenhar ou de bem compreender, mesmo intuitivamente, a geometria? Em todo caso, se o ensino de geometria deve ser precedido do desenho linear, deve ser por meio de noções úteis e diretamente aplicáveis, tanto na área da arquitetura ou da ornamentação quanto da representação dos objetos usuais. Várias vezes, as autoridades ministeriais marcaram sua vontade de conservar essa especificidade “primária”, a fim de evitar as rivalidades possíveis com o ensino secundário dos colégios que privilegiam estudos matemáticos mais teóricos e mais abstratos40. Os exercícios gráficos são destinados a simplificar a exposição teórica, mas também para gravar nos alunos os principais teoremas. Se o raciocínio não é totalmente excluído, a descrição das figuras e as aplicações práticas necessitam de desenhos rigorosos que levam vantagem sobre a demonstração. A. Bardon aîné, Cours élémentaire, pratique et normal de dessin linéaire, avec un atlas sur grand-raisin à plat, à l'usage des écoles primaires, Paris, Paul Dupont, 1838, p. vi. 39
Instruction du 8 décembre 1843. Cf. Igualmente Ambroise Rendu, Considérations sur les écoles normales primaires en France, Paris, Paul Dupont, 1838, p. 62.
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Aplicação “usual” da geometria, o desenho linear oferece um exemplo de ensino em que a prática, precedendo a teoria, deve esclarecê-la. Assim, na escola primária superior de Cherbourg, onde “o desenho linear, que no segundo ano deve se tornar uma aplicação usual da geometria, serve-lhe de preparação no primeiro ano41”. A afirmação do caráter indissociável das duas disciplinas, chamadas a se apoiar mutuamente, será um dos eixos do projeto de reforma do plano de estudos das escolas normais apresentado por Ambroise Rendu em 1847: no primeiro ano, o ensino da matemática compreenderia “ noções muito elementares de geometria, como preparação ao ensino do desenho linear”, compreendendo “o que é importante de ensinar a todos os alunos das escolas primárias” ao passo que os exercícios de desenho instrumental [...] seriam ligados ao ensino mais desenvolvido da geometria42” desde o segundo ano. Mas a lei Falloux, de 15 de março de 1850, que suprime todo o ensino de geometria no ensino primário, põe um fim a esta vontade de dar coerência as duas disciplinas, até mesmo de estabelecer entre elas uma união íntima. Desenho à mão livre ou traçado geométrico? Colocando o desenho linear no campo das aplicações geométricas, a lei Guizot impõe implicitamente o uso da régua e do compasso. Uso que pode parecer natural tendo em vista que se trata, para os escolares, de dominar os principais modos de representação em uso no ofício que terão. À visão pestalozziana, que caracteriza o ensino mútuo, opõe-se pois uma abordagem mais “politécnica”, que só vê no desenho linear uma forma de geometria AN/F/17/9821. Rapport du directeur de l'école primaire supérieure annexée au collège de Cherbourg pour l'année scolaire 1840-1841. 41
Ambroise Rendu, «Enseignement dans les écoles normales primaires. Rapport adressé au Ministre par M. Rendu, au nom de la commission chargée de la révision des programmes», Manuel général de l'instruction primaire, 2e série, tome 7, 1847, p. 238.
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descritiva elementar. Mas esse predomínio da régua e do compasso vai ao encontro das modalidades tradicionais do ensino de desenho herdadas do século XVIII, e dos fundamentos mesmo do desenho linear tais como foram estabelecidos sob a Restauração. Reduzindo o desenho à mão livre, não corremos o risco de perder um dos principais objetivos do ensino do desenho linear, que é o de educar o olho e a mão? Melhor que o afrontamento de duas concepções já bem instaladas, uma certa complementaridade vai se instalar entre um desenho linear à mão livre (ou desenho linear a olho, ou desenho linear sem instrumentos) e um desenho linear que se apóia no emprego da régua e do compasso (falamos então de traço geométrico com Francoeur, ou de desenho linear gráfico, ou desenho geométrico). Desde 1827, Francoeur esboça uma via intermediária que será seguida por numerosos autores: depois de ter desenhado à mão livre o conjunto de figuras geométricas, os alunos repetem, empregando a régua e o compasso. Se há complementaridade entre desenho à mão livre, de uma parte, e o desenho geométrico, de outra, são as primeiras finalidades do ensino do desenho linear que predominam, isto é, a aquisição de uma certa habilidade manual e visual através do desenho à mão livre. Apesar de ir ao encontro do espírito da lei Guizot, é essa posição que será adotada pelas autoridades ministeriais, exigindo das escolas normais o ensino do desenho linear a olho antes do desenho com a régua e o compasso43. Mesmo assim, não há unanimidade sobre a preeminência do desenho à mão livre. Encontram-se, em toda a parte, opositores, autores de manuais ou pedagogos, que são favoráveis a uma inversão da ordem das aprendizagens, até mesmo ao emprego exclusivo dos instrumentos de desenho. Particularmente, os Irmãos das Escolas Cristãs colocam o desenho com a régua e o compasso antes do desenho à mão livre, e dão 43
Décision du 28 juin 1839.
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assim prioridade à geometria. Mas o seu ponto de vista é fortemente contestado pelas instâncias encarregadas do controle pedagógico de seus estabelecimentos: em Paris, a municipalidade convida a congregação a seguir bem mais as práticas em curso nas escolas mútuas, e os obriga não somente a completar o manual com noções de desenho linear à mão livre, mas também a generalizar o desenho no quadro negro ou na lousa44. Podemos nos perguntar, aliás, se o antagonismo que reina no período entre o ensino mútuo propagado pela SIE, por um lado, e o ensino simultâneo, que caracteriza a pedagogia dos Irmãos das Escolas Cristãs, por outro lado, não se prolonga em uma oposição recorrente entre o desenho linear à mão livre e o traçado geométrico. Em outros termos, podemos proceder a uma identificação entre os métodos de ensino (mútuo ou simultâneo) e os procedimentos criados pelo ensino do desenho (mão livre depois instrumentos ou o inverso)? Um primeiro ponto se destaca, é que durante os anos 1830-1840, o ensino mútuo está em declínio ao passo que o ensino simultâneo, que Guizot e seus colegas promovem, tende a se desenvolver. Mas essa situação não parece ter conseqüência sobre a política oficial, pois o ministério é mais favorável ao desenho à mão livre. Além disso, alguns partidários do ensino mútuo invertem a ordem de aprendizagem preconizada por Francoeur e privilegiam o uso dos instrumentos de desenho. É o caso das escolas mútuas de Metz, no início dos anos 183045, ou ainda da Escola Primária Superior aberta em Paris, em 1839, onde o curso de desenho vai ao encontro das concepções da administração municipal46. Journal d'éducation populaire, tome 9, 1837, p. 306 et 2e série, tome 2, 1843, pp. 342-345. Cf. igualmente AN/F/17/9372. Rapport général de M. Lamotte sur l'état de l'instruction primaire dans le département de la Seine, janvier 1837. 44
Société d'encouragement de l'enseignement élémentaire suivant la méthode d'enseignement mutuel, Sommaire des leçons de dessin linéaire et de géométrie pratique, de l'école gratuite des garçons, Metz, Ch. Dosquet, 1832. 45
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Bulletin de la Société pour l'instruction élémentaire, tome 12, 1840, p. 413.
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Mais que a oposição mútuo/simultâneo, levar em conta a idade dos alunos pode explicar as diferenças de enfoques. O que se critica aos pelos Irmãos das Escolas Cristãs, é de não oferecerem um ensino adaptado aos alunos das escolas elementares: negligenciar o desenho à mão livre e, portanto, o desenvolvimento da percepção visual e da mão, é perder de vista o aspecto educativo do ensino de desenho. No caso de um curso para operários adultos, ao contrário, a formação profissional prima pelo aspecto educativo e é aconselhado aos professores “colocar imediatamente os instrumentos em suas mãos, pois o que é importante mostrarlhes é o traçado geométrico, que para eles é uma necessidade indispensável”47. A diferenciação se opera então primordialmente segundo a idade dos alunos ou segundo o grau de ensino. Mas isso corresponde exatamente ao mesmo, pois podemos encontrar alunos relativamente mais velhos na escola elementar, segundo o grau de ensino. Para os alunos mais jovens da escola elementar, o desenho à mão livre ensinado sem teoria explícita é privilegiado, a fim de exercer os sentidos e de se iniciá-los na geometria; para os alunos mais velhos, das escolas primárias superiores ou dos cursos de adultos, a ênfase é colocada no desenho linear “exato” e no uso dos instrumentos, às vezes, paralelamente ao curso de geometria. A lista de manuais autorizados pelo Conselho Real de Instrução Pública, tanto para o desenho linear quanto para a “geometria e suas aplicações usuais”, é particularmente revelador a esse respeito, evidencia a correlação entre os graus de ensino e o caráter “instrumental” e/ou “geométrico” das obras48.
Louis Lamotte, Alexandre Meissas et Auguste Michelot, Manuel des aspirants aux brevets de capacité pour l'enseignement primaire élémentaire et l'enseignement primaire supérieur, Paris, Hachette, 1842 (5e éd.), p. 312. 47
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Liste des ouvrages…, 30 décembre 1836.
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Conclusão No decurso da primeira metade do século XIX, a escola primária constitui-se, portanto, em um lugar privilegiado da elaboração de uma nova forma de ensino do desenho. O desenho linear é “inventado” para a escola, e é na escola que as práticas se definem e se normalizam, com suas regras e suas convenções, seus exercícios específicos por vezes desconectados das realidades profissionais. O sucesso dessa ação reside no fato que o ensino do desenho linear repousa quase que exclusivamente sobre uma aplicação rigorosa de um conjunto de procedimentos definidos previamente: a geometria oferece princípios seguros e modelos uniformes e o professor pode retrair-se detrás de um método que teoricamente pode ser ensinado da mesma maneira não importa em que escola. A uniformização dos métodos, conseqüência do desenvolvimento da formação de professores e uma certa estandardização dos manuais escolares, conduz a uma pedagogia onde as especificidades dos alunos contam menos que as do grupo, onde o coletivo sobrepuja o individual. Inaugurado por Francoeur, o princípio dos “comandos”, que permite realizar simultaneamente os mesmos traçados aos alunos de uma mesma “classe”, é talvez o indício o mais visível. Favorecendo a supressão da personalidade do professor em proveito do método que ele emprega, permitindo a passagem de um ensino fortemente individualizado para um ensino mais coletivo, a geometria assim participou de maneira substancial para a “disciplinarização” do desenho no século XIX.
Renaud d’Enfert – Maître de conférences à l’IUFM de l’académie de Versailles, membre du Groupe d’histoire et diffusion des sciences d’Orsay (GHDSO-Université Paris XI), chercheur associé au Service d’histoire de l’éducation de l’INRP. Page personnelle: http://www.inrp.fr/she/pages_pro/d_enfert.htm. Adresse mail: denfert@inrp.fr 59
Recebido em: 20/05/2007 Aceito em: 20/07/2007
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A CO-EDUCAÇÃO DOS SEXOS: APONTAMENTOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA1 Jane Soares de Almeida
Resumo O artigo analisa documentos publicados no Congresso da Instrução Pública do Rio de Janeiro em 1884, nas discussões levadas a efeito por alguns congressistas sobre a co-educação dos sexos. Geralmente confundido com o ensino nas classes mistas, desde os anos iniciais do século XX, o sistema co-educativo sempre foi acentuadamente debatido pelas feministas européias e norte-americanas como uma forma de conseguir maiores igualdades sociais às mulheres, por intermédio de educar conjuntamente meninos e meninas. No Brasil a prática foi severamente combatida pela Igreja Católica que via no sistema um sério risco aos costumes morais vigentes. Porém, intelectuais que participaram do Congresso, defenderam a coeducação e seus princípios, enumerando seus benefícios para a educação das crianças no País. Palavras-chave: co-educação, classes mistas, feminismo. THE CO-EDUCATION OF THE SEXES: NOTES FOR AN HISTORICAL INTERPRETATION Abstract The article analyzes documents published at the Congress of the Public Instruction of Rio de Janeiro in 1884, in the discussions developed by some congressmen on the co-education of the sexes. Generally confused with education in the mixing classrooms, since the initial years of the XX century, the co-educative system always was hardly debated by the European and North American feminists as a form to obtain greater social equalities to the women, educating jointly boys and girls. In Brazil the practice was severely fought by the Catholic Church who saw in the system a serious risk to the effective moral customs. However, intellectuals who had participated in the Congress had defended the co-education and its principles, pointing its benefits for the education of the children in the Country. Keywords: co-education, mixing classrooms, feminism
Artigo resultante de pesquisa financiada pelo CNPq na modalidade Bolsa de Produtividade em Pesquisa. 1
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 61-86, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
LA COEDUCACIÓN DE LOS SEXOS: APUNTES PARA UNA INTERPRETACIÓN HISTÓRICA Resumen El artículo analiza documentos publicados en el Congreso de la Instrucción Pública del Rio de Janeiro en 1884, en las discusiones llevadas a efecto por algunos congresistas sobre la coeducación de los sexos. En general confundiendo con la enseñanza en los grupos mixtos, desde los años iniciales del siglo XX, el sistema coeducativo siempre ha sido acentuadamente debatido por las feministas europeas y estadounidenses como una forma de lograr igualdades sociales a las mujeres, por medio de educar conjuntamente niños y niñas. En Brasil la práctica fue severamente combatida por la Iglesia Católica que percibía en el sistema un alto riesgo a las costumbres morales vigentes. Sin embargo, intelectuales que participaron del Congreso, defendieron la coeducación y sus principios, enumerando sus beneficios para la educación de los niños en Brasil. Palabras-clave: coeducación, grupos mixtos, feminismo.
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Introdução À exigüidade de fontes históricas sobre o regime coeducativo no Brasil se contrapõe o significativo número de fontes primárias e demais documentos sobre o assunto nos Estados Unidos e Europa onde existe vasta produção sobre o tema, tanto na área de História da Educação como na de estudos de gênero. Nesses países, pesquisadores de gênero e educação têm voltado sua atenção para o sistema escolar buscando construir vertentes interpretativas, elucidar práticas não sexistas, denunciar a discriminação sexual nas escolas e verificar o funcionamento das classes mistas. Com isso objetivam verificar se realmente existe uma educação escolar isenta de práticas que perpetuam os mecanismos de discriminação sexual existente na sociedade. Tal postura está alinhada com a incorporação do conceito de mulheres como sujeitos silenciosos na História e do gênero como construção social e cultural, além de considerar que sem a interrogação ao passado não se poderá compreender e explicar o presente, assim como projetar o futuro. A co-educação é, portanto, um tema que fala de perto aos estudos de gênero e sobre mulheres. Porém, antes de nos adentrarmos no temário da co-educação dos sexos do ponto de vista histórico e a forma como era definido no século XIX e anos iniciais do século XX, torna-se necessário clarificar esse conceito. No Brasil, obras que tratem da co-educação especificamente são difíceis de serem encontradas, tanto hoje como no passado histórico. Há algumas referências nos pareceres de Rui Barbosa (1947) sobre educação e o assunto foi abordado, embora não fosse o tema principal, nas Conferências Populares da Freguesia da Glória no Rio de Janeiro em 1883 e nas Atas e Pareceres do Congresso da Instrução do Rio de Janeiro em 1884. Na pesquisa realizada em 2000, em dois importantes periódicos nacionais indexados e de circulação nacional, os Cadernos de Pesquisa da 63
Fundação Carlos Chagas e a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos do INEP, não apontaram artigos que abordassem o assunto, embora se acredite que até momento devem ter surgido publicações sobre o tema e que uma nova revisão abrangendo maior número de periódicos se faz necessária. Pode-se, inclusive, considerar que muitos pós-graduandos e mesmo professores desconhecem o tema e seu significado histórico no panorama educacional brasileiro. Na internet como sistema de busca bastante utilizado há também poucas obras registradas. No entanto, a co-educação dos sexos e as classes mistas são importantes aspectos a serem estudados na área de História da Educação e Estudos de Gênero, principalmente, além de poderem ser também utilizados nas pesquisas em Sociologia, Antropologia, Demografia, entre outras.
O modelo co-educativo na perspectiva histórica Na primeira década republicana, a necessidade de formar professores para lecionar nas escolas que se expandiam nos maiores centros urbanos e no interior do território nacional exigiu que os liberais republicanos voltassem seus olhos para uma instituição capaz de fornecer os profissionais que o regime precisava. Assim, a escola normal surgiu como uma iniciativa onde a questão da educação conjunta deveria ser amplamente debatida. Nesse nível de ensino não mais se discutiria apenas a educação de crianças, mas de jovens em idade de contrair matrimônio, o que duplicava o perigo moral e higiênico. Mesmo aqueles que militavam em favor da escola pública não viam com bons olhos um sistema único de ensino para moças e rapazes : O conselheiro João Alfredo é contrário à reunião dos dois sexos na organização da Escola Normal. Não está de acordo com os nossos costumes e tem acarretado dificuldades para a boa ordem e disciplina escolar. Em notável documento do presidente ao inspetor geral há
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sugestões não levantadas ainda em relatórios oficiais; e entre elas a participação larga da mulher no ensino, e um verdadeiro programa de escolas-modelo abrangendo o jardim de crianças. (MOACYR, P. 1942, p. 60).
Posicionar-se contra as classes mistas não tinha origem apenas na orientação religiosa, era também uma questão de costumes e disciplina escolar. A reforma do ensino de 1886, mesmo propondo uma educação religiosa facultativa, coerente com os princípios da não ingerência da Igreja nos assuntos do Estado, revelava que a mentalidade vigente sobre as expectativas sociais quanto ao sexo feminino continuava atrelada às fronteiras do universo doméstico: “nas escolas do sexo feminino haverá mais: no primeiro grau, costura simples; no segundo grau, costura, crochet, corte sobre moldes e trabalhos diversos sobre agulha, bordados úteis e economia doméstica”. (MOACYR, 1942, p.61). Esperava-se, portanto, que as futuras professoras aprendessem aquilo que iriam desempenhar no lar, as prendas domésticas, o que impunha um paradoxo: se, de acordo com a ideologia de destinar as mulheres ao ensino de crianças, essas professoras fossem lecionar em classes mistas, haveria um problema de difícil solução sobre o que ensinar para os meninos, embora posteriormente isso fosse revisto. A co-educação nas escolas normais permitiria que as jovens aprendessem os mesmos conteúdos destinados aos rapazes já que também iriam ensinar em classes masculinas, defendiam os defensores do sistema co-educativo nesse nível de ensino, contrapondo-se e minimizando, em nome da necessidade de formar quadros profissionais para a educação escolar que se expandia, a nocividade dessa prática anunciada pelos defensores dos costumes tradicionais. No Estado de São Paulo, a idéia de formar professores e professoras pela Escola Normal fez que, além das escolas normais oficiais, surgissem estabelecimentos com essa finalidade depois que a Lei n. 130 de 25 de abril de 1880 exigiu a obrigatoriedade do 65
diploma de normalista para poder lecionar, exceção feita aos bacharéis em letras, direito e sacerdotes autorizados. No Seminário das Educandas, instituição destinada a educar órfãs sem dote, se abriu um curso de formação de professoras que foi fechado várias vezes por falta de verbas. Alguns anos depois se instituíram classes mistas, com bancos separados para alunos e alunas por uma divisão. Mas no curso preparatório anexo havia duas seções, masculina e feminina e na classe das meninas somente poderiam lecionar professoras. (RODRIGUES, 1962, p.158). A escola-modelo anexa à Escola Normal, após a Reforma Da Instrução Pública instituída em 1890 por Caetano de Campos, seria o reduto onde os futuros professores fariam seus exercícios práticos de ensino. Foi, portanto, dividida em seções feminina e masculina: “a escola de aplicação foi estabelecida para esse fim em um largo plano. Em primeiro lugar foram contratadas duas professoras largamente reputadas nas práticas de ensino elementar do primeiro grau, as quais haviam adquirido longa prática do magistério nos Estados Unidos. Sendo dupla a escola de aplicação em virtude da separação dos sexos, cada uma dessas professoras dirige uma escola”.(REIS FILHO, 1981, p.80). Essas escolas, criadas como pilares para o desenvolvimento de um ensino de qualidade funcionavam em turmas separadas por sexo. Se pensarmos que Caetano de Campos, e Rangel Pestana, o mentor intelectual da reforma de 1890, eram grandes admiradores dos norte-americanos e do seu sistema educacional e que este último reconhecia a igualdade intelectual entre os sexos, é de se admirar que tivessem mantido salas de aula separadas nas escolas normais e escolas-modelo. Porém, é possível que tivessem as mesmas dúvidas de Rui Barbosa quanto à aplicabilidade da co-educação no sistema de ensino brasileiro em vista dos costumes morais da população, em especial da oligarquia paulistana. Ambos liberais convictos não se aliavam nem se curvavam aos ditames da Igreja Católica, mas não se eximiram de manter as turmas separadas nos cursos de formação 66
de professores e mesmo de recomendar essa prática nas escolas primárias, o que evidencia a força ideológica da moral e da religiosidade se imiscuindo nas questões estatais.
A educação feminina e o sistema co-educativo Apesar de nas primeiras décadas do século XX as mulheres terem conseguido um maior acesso à instrução e, posteriormente, o direito ao voto e o ingresso no ensino superior, os ideais católicos e positivistas do século XIX continuaram a impregnar a mentalidade brasileira durante muito tempo. Mesmo com as inovações trazidas pelos missionários protestantes, essa mentalidade tinha a força das tradições longamente herdadas e não mudaria assim tão facilmente. Quando, pelas mudanças sociais, as classes mistas se tornaram uma realidade nas escolas públicas brasileiras, a maioria dos colégios católicos continuou com a tradição de educar os sexos em separado. A co-educação dos sexos, com seus princípios de propiciar a igualdade entre homens e mulheres num meio sóciocultural, no qual as relações de alteridade não eram isentas de conflitos, iria estabelecer um paradoxo com a destinação feminina, erigida no culto à domesticidade. Não é demais lembrar mais uma vez que a cultura portuguesa foi determinante para esculpir na sociedade brasileira os contornos definidos para o desempenho dos papéis sexuais, sendo também eficiente em construir uma mentalidade na qual o espaço feminino por excelência era o recesso do lar. Para a nação lusitana, tradicional e conservadora, a responsabilidade feminina nunca deveria transpor as fronteiras do lar, nem ser objeto de trabalho assalariado. A independência econômica das mulheres, obtida através do desempenho de uma profissão e sua autonomia intelectual representada por uma educação igual à dos homens, significava a ruptura com acordos estabelecidos desde outros tempos e poderia ocasionar desordem social. Mantida dentro de certos limites, a instrução feminina não 67
ameaçaria os lares, a família e o homem. Demasiados conhecimentos, de acordo com a imagética portuguesa, eram desnecessários, pois poderiam prejudicar a sua frágil constituição física e emocional, além de serem menores suas capacidades intelectuais. Nisso concordavam católicos brasileiros, não católicos e até mesmo as próprias mulheres em vista da força desse imaginário no mundo social em que viviam. A população seguia as regras ditadas pelas elites, aprofundando o fosso que separava homens e mulheres. Nos tempos pós-republicanos os discursos positivista e eugênico veiculariam a necessidade da educação feminina como forma de se manter a família e a pátria dentro de cânones desejáveis para o desenvolvimento. A corrente higiênica já havia plantado a idéia da mulher ser a principal responsável pela saúde de seu corpo e dos filhos. Os homens, por sua vez, eram os provedores da família e os guardiões da mulher. Portanto, a educação deveria encaminhar-se para os objetivos definidos quanto aos papéis sexuais: às mulheres, a reprodução; aos homens, a proteção. Esses valores se estenderiam a todas as áreas: no lar, na política, na economia, na sociabilidade, na religiosidade, nos hábitos e costumes, enfim na própria cultura do período, instalando uma imagética resistente a mudanças que se estendeu mesmo aos tempos atuais. A visão positivista de nomear as diferenças, sem atentar para as relações entre os sexos, impediu os educadores da época de captar o verdadeiro sentido da co-educação. Esse sentido definia-se por uma visão que não poderia ser excludente, pela qual as mulheres teriam o direito de obter conhecimentos próprios do mundo público, ou seja, acerca da política, das esferas produtivas, do trabalho e da ciência, normalmente transmitidos apenas aos homens. A cultura e as normas vigentes desenvolviam determinados tipos de homens e mulheres segundo sua natureza biológica, fazendo-os intérpretes dessa natureza e a transferindo para o social. Não se considerava a maleabilidade humana, as relações de poder, as relações de gênero, nem que o meio sócio68
cultural é o fator mais decisivamente determinante acerca das diferenças sexuais. Instalava-se assim uma ambigüidade de ordem moral e de fundo religioso que determinava ao sexo feminino as funções sociais relacionadas ao ato biológico da reprodução. As mulheres eram incentivadas a serem mães e para isso convergia sua educação. Porém, deveriam manter a pureza do corpo e da alma. Essa pureza estava essencialmente ligada à sexualidade, o que reprimia e canalizava o desejo feminino apenas para a procriação. Na esfera educativa, as propostas de ensino diferenciado para os dois sexos traduziam-se numa duplicidade segundo a qual, se expressava a aspiração social de se juntar homens e mulheres por toda a vida através do matrimônio, compartilharem os espaços da sociabilidade e do lazer, mas não poderiam ficar juntos nas salas de aula. As propostas co-educativas visavam manter meninos e meninas juntos desde a escola para poderem construir futuramente um destino em comum. Porém esse mesmo destino implicaria em diferentes atuações sociais, mantendo-se, pois a mesma ordem vigente.
A rainha do lar e a professora: destinos cruzados Dos finais do século XIX até a metade do século XX, a vida em sociedade, as expectativas sobre os papéis sexuais, as doutrinações da Igreja Católica, as implicações na sexualidade, o controle dos corpos e da mente, a inculcação moral, mostravam um país preocupado em construir uma sociedade que deveria se expandir sem perder valores tradicionais. As mulheres eram as principais destinatárias de uma ideologia que se centrava na vigilância e na profecia de destinos para cada sexo: ao homem, o espaço público, a política, a gerência de recursos, a liberdade; para a mulher, o espaço privado, a dependência financeira e emocional, a castidade. Nesse contexto, mesmo a educação na mais tenra idade deveria ser regulamentada para não pôr em risco o 69
desempenho dos papéis reservados a cada sexo. Conscientes dos receios da sociedade de que a mulher educada abandonasse a sagrada missão a ela confiada, a de dar filhos fortes para a Nação, e que isso interferisse na sua saúde e na da prole, mesmo as pioneiras feministas compartilhavam com os homens o ideal de manter a mulher no espaço que lhe foi reservado, o mundo da casa. Portanto, durante todo o tempo, o discurso social caracterizou-se dentro dos princípios da ideologia masculina, numa sociedade que se assumia androcêntrica e orientada no plano da religiosidade pelo catolicismo. Os movimentos feministas que se iniciaram desde os finais do século XIX abalaram parcialmente a visão medieval sobre a educação das mulheres contaminar sua consciência e comprometer a sanidade de seu corpo e de sua alma. As mulheres do período, oriundas de parcelas mais esclarecidas da população, mostraram que a saída para romper com os mecanismos que as aprisionavam no determinismo dos papéis sexuais seria uma educação qualitativamente igual à dos homens, compartilhando os mesmos espaços, iguais professores e conteúdos, apesar de não negarem que as noções essenciais para a domesticidade deveriam continuar sendo transmitidas. O regime republicano brasileiro instituiu um código civil em 1916, no qual o homem chefiava a família, administrava os bens, e autorizava o estudo e o trabalho feminino. O amparo legal era o que menos pesava nos comportamentos ditados pela herança portuguesa e derivados das tradições imutáveis desde os tempos da Colônia e que colocavam o homem no centro do universo social e doméstico. No século XIX, em São Paulo, o processo de urbanização promoveria alterações na posição social feminina, mas o domínio masculino continuou sendo determinante na organização vigente. Isso porque, apesar de ser considerada superior do ponto de vista moral, era natural que as mulheres que ocupassem um lugar inferior na escala social por conta das diferenças entre os sexos e que os homens detivessem as rédeas do poder. Na organização das escolas públicas, essa ideologia, ao não 70
atingir uniformemente toda a população, dado que se aceitava a não separação dos sexos também por medidas de economia, demonstra que por trás disso existia um problema de classe social, ou seja, o que é bom para o povo não o é para as elites. As idéias co-educativas no cenário da educação pública paulista acompanharam, com alguns anos de atraso, o debate norte-americano do século XIX acerca de meninos e meninas receberem a mesma educação. Porém, a insistência da Igreja em se opor ao sistema e o conservadorismo das elites impuseram a separação dos sexos nas escolas privadas de orientação católica e nas públicas, sempre que isso fosse possível. O ideal feminista norte-americano trazido pelas missionárias pelo qual ao se proporcionar idêntica educação para os dois sexos, se atingiria a igualdade social e familiar, caiu no vazio e as escolas públicas, apesar de estabelecerem meninas e meninos estudando juntos numa mesma sala de aula, separava alguns conteúdos e atividades por conta de raciocínios sexistas, mantendo-se assim a ordem vigente na sociedade. Também há que se considerar que os protestantes também não deviam estar assim tão convencidos da prudência de se implantar a co-educação num país com idéias tão arraigadas quanto à separação dos sexos. Muitas vezes, durante os primeiros anos da criação dos colégios e das escolas junto às igrejas, as classes mistas significavam um momento transitório enquanto não recebiam verbas para construção de classes separadas ou se aguardavam novas professoras. Nas escolas normais podemos supor que a introdução das classes mistas não foi um ato pensado para promover a igualdade, mas uma atitude movida pela necessidade de economia de recursos humanos e materiais. Juntar os dois sexos nas mesmas classes, aprendendo os mesmos conteúdos desafiava valores solidamente arraigados, pois o mesmo não aconteceria na sociedade e as mulheres continuaram destinadas ao lar e à maternidade enquanto os homens se ocupavam das lides do espaço público. A cultura lusitana tinha deixado raízes na sociedade 71
brasileira na definição dos papéis sexuais e em limitar a responsabilidade feminina às fronteiras domésticas. As idéias progressistas e libertárias dos protestantes norte-americanos, comungadas pelos republicanos não conseguiram romper com esse padrão. As complexidades inseridas nos debates co-educativos fizeram que essa discussão não ultrapassasse o espaço da instituição escolar – as propostas co-educativas eram republicanas e por conseqüência, de cunho liberal – e a intolerância religiosa com as teses do liberalismo colocariam a co-educação e religião católica como antípodas e até a metade do século XX a militância católica impôs sua vontade no cenário social e educacional. Se no século XIX havia na cultura brasileira alguns sinais favoráveis à disseminação dos ideais protestantes como uma alternativa ao catolicismo, em relação ao sexo feminino não houve avanços significativos. Não se pode esquecer também que a modéstia de recursos das Igrejas Presbiterianas dos Estados Unidos fez com que os missionários compartilhassem os mesmos problemas de verbas das escolas brasileiras. No país de origem dos missionários, a ideologia de delimitar espaços para cada sexo também era uma realidade. Com a posterior ofensiva católica, muitas escolas protestantes fecharam suas portas e a proposta de se estender uma educação igual para os dois sexos limitou-se a colocá-los em classes onde assistiam aulas juntos, com os mesmos professores, os mesmos métodos, sob a mesma direção. Quanto à projeção da futura vida social para cada sexo, não havia discordância entre católicos e protestantes. Fora da escola tudo permaneceu como antes: o homem mandava, a mulher obedecia. O homem cuidava, a mulher pertencia. Mediando essa relação, a educação escolar prosseguiria como uma forma de controle social e controle de gênero, mesmo embutindo em seu discurso a perspectiva da igualdade, da liberdade e da cidadania. Num país que durante décadas acreditou na superioridade masculina sobre a feminina, não seria assim tão fácil romper com essa pretensa supremacia. 72
As propostas co-educativas Nos finais do século XIX as propostas co-educativas surgidas no meio intelectual brasileiro, principalmente nos núcleos de maior desenvolvimento, como São Paulo e Rio de Janeiro, buscavam atender ao ideal de igualdade social pela via escolar por parte dos segmentos progressistas, além de medida de economia do Estado quanto à educação popular. Os positivistas e católicos se aliavam ao atribuir aos homens e às mulheres características físicas, psicológicas, intelectuais e emocionais diferenciadas. No entanto, apesar da propalada necessidade de se introduzir o sistema de classes mistas nas escolas, o que era defendido pelos liberais republicanos, essas diferenças naturais eram, em última análise, impeditivas para a implantação do regime co-educativo. Isso porque, juntar os sexos nas escolas se configura num procedimento que possuía prioritariamente um fundo moral, o que era reforçado pelo ponto de vista da Igreja católica. Nas escolas públicas paulistas e nas escolas protestantes, meninos e meninas às vezes se reuniam para instrução conjunta. Mesmo assim havia posturas diversas quanto aos fins últimos da tarefa educativa em razão dos diferentes destinos que eram reservados para homens e mulheres no mundo social e familiar, no espaço público e privado. Mesmo as escolas protestantes, com seus objetivos igualitários e democráticos, defensoras do sistema coeducativo, não se afastavam desse ideário, pois a sociedade brasileira não apresentava condições para implantar mudanças que realmente alterassem as expectativas sociais para ambos os sexos e os papéis que deveriam representar na vida adulta. A visão positivista de nomear as diferenças, sem atentar para as relações entre os sexos, impedia os educadores da época de captar o verdadeiro sentido da co-educação. Esse sentido definia-se por uma visão que não poderia ser excludente. Nesta, as mulheres teriam o direito de obter conhecimentos próprios do mundo público, representado pela política, as esferas produtivas, o trabalho, a ciência, normalmente transmitidos apenas aos homens. 73
A cultura e as normas vigentes desenvolviam determinados tipos de homens e mulheres segundo sua natureza biológica, fazendo-os intérpretes dessa natureza e a transferindo para o social. Não se considerava a maleabilidade humana, as relações de poder que se edificam nas relações de gênero, nem que o meio sócio-cultural é o fator mais decisivamente determinante acerca das diferenças sexuais. Instalava-se assim uma ambigüidade de ordem moral e de fundo religioso que determinava ao sexo feminino as funções sociais relacionadas ao ato biológico da reprodução. As mulheres eram incentivadas a serem mães e para isso convergia sua educação. Porém, deveriam manter a pureza do corpo e da alma. Essa pureza estava essencialmente ligada à sexualidade, o que reprimia e canalizava o desejo feminino apenas para a procriação. Na esfera educativa, as propostas de se diferenciar o ensino para os dois sexos traduzia uma duplicidade: expressava a aspiração social de manter unidos homens e mulheres por toda vida, pelos rituais do matrimônio, e compartilharem os espaços da sociabilidade e do lazer, mas não poderiam ficar juntos nas escolas. Em contraponto, as propostas co-educativas visavam mantê-los em contato direto desde a escola para poderem construir futuramente um destino em comum. Porém, esse mesmo destino implicaria em diferentes atuações sociais e se mantinha a mesma ordem vigente. Com a proximidade da República e a intensa disseminação dos ideais igualitários, o velho conceito de mundos separados para os dois sexos ainda vigorava no panorama educacional. Nisso a influência da Igreja católica, mais a mentalidade herdada desde os tempos coloniais e ancorada na tradição portuguesa de separar os sexos desde a infância para depois juntá-los na vida adulta, após o sacramento do matrimônio, contribuíram para que houvesse entre as oligarquias e nas famílias tradicionais, uma grande resistência à co-educação. As elites brasileiras, embora ainda atreladas ao modelo cultural europeu, mostravam uma certa tendência em adotar o estilo de vida e pensamento norte-americano, o que se acentuou 74
nas décadas seguintes. Os adeptos da co-educação dos sexos, inspirados no ideal americano, acreditavam que meninos e meninas estudando juntos nas escolas seria benéfico e acentuaria seus pontos positivos, preparando-os mais eficazmente para a futura vida em comum. Os defensores da educação pública insistiam na sua aplicação nas escolas primárias, secundárias e normais, apontando seus méritos e conveniências. Essas conveniências seriam em relação ao Estado, aos pais e aos próprios alunos, pela razão de que a freqüência nas escolas mistas produzia um estímulo apreciável para a convivência entre os sexos quanto aos costumes e maneiras, contribuindo decisivamente para amenizá-los. Isso foi defendido nas Conferências Populares da Freguesia da Glória no Rio de Janeiro em 1883 e nas Atas e Pareceres do Congresso da Instrução do Rio de Janeiro, em 1884. 2
Defensores e detratores da co-educação A co-educação dos sexos foi a 12 ª questão a ser abordada no congresso. O conferencista Dr. João Barbalho Uchôa O Congresso da Instrução do Rio de Janeiro havia sido convocado pelo conselheiro Leão Velloso, ministro do Império em 1882, o qual teria como Presidente o Conde d’Eu,. Em março de 1881, havia sido realizada uma conferência num salão de escola pública na Freguesia da Glória, onde se discutiu a vantagem de se reunir um congresso de instrução e uma exposição pedagógica de vários países. No entanto, o governo da província decidiu adiar a realização de ambos. Como essa atitude poderia ameaçar as relações com os países já convidados a participar, os organizadores do congresso ofereceram-se para fazer acontecer a exposição pedagógica por meio de donativos, o que foi aceito. As conferências que deveriam ser apresentadas no Congresso de Instrução foram traduzidas em Atas e Pareceres em 1884. O tema da co-educação era o de número 12. Os conferencistas citados Cavalcanti e Leão encontram-se nos registros, portanto abstive-me de cita-los nominalmente na bibliografia por não ser citação específica. (I Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, p. 7 a 28). 2
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Cavalcanti, inspetor da Instrução Pública, se posicionou muito favoravelmente ao sistema ao demonstrar várias razões para que esta fosse implantada nas escolas públicas do período. Atendo-se a razões de natureza psicológica defendia que a presença dos sexos nas escolas seria um excelente estímulo para a aprendizagem: Com a freqüência mixta, a emulação por mais que cresça não pode chegar à odiosidade, pelo influxo benéfico que se estabelece naturalmente entre as duas divisões d’aula. Naturalmente, digo, porque, como passo a mostrar, sem esforço, sem trabalho do professor, os alumnos do sexo masculino aprendem a ter pelas alumnas uma certa deferencia e attenções de que é digno o sexo a que ellas pertencem. E nisso assignalo o como aproveita o ensino mixto á amenidade dos costumes (CAVALCANTI, 1884, p.3).3
Além das razões psicológicas que justificavam a introdução das classes mistas, o inspetor realizou uma ampla incursão à possibilidade de serem atribuídas exclusivamente às mulheres as aulas nas escolas primárias. Afinal, estas eram as mães e futuras mães e as crianças, por as considerarem bondosas, cuidariam para que não se zangassem com elas no caso de apresentarem mau comportamento. Além disso, as mulheres possuíam ...mais facilidade, mais geito de transmittir aos meninos os conhecimentos que lhes devem ser comunicados. Maneiras menos rudes e seccas, mais affaveis e attrahentes que os mestres, aos quais incontestavelmente vence em paciência, doçura e bondade. Nella predominam os instintos maternaes, e ninguem como ella possue o segredo de captivar a attenção de seus travessos e inquietos ouvintes, sabendo conseguir que as lições, em vez de tarefa aborrecida, tornem-se-lhes como uma diversão, um brinco. Em vez da catadura séria,
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Mantive nas citações a grafia original.
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inflexível do mestre, e por isso mesmo pouco sympathica ás crianças, estas encontram na professora, a graça e o mimo próprio da mulher.(...) É por isso que não falta quem entenda que o ensino e educação dos meninos pertence de direito à mulher, chegando alguem a dizer que só por aberração e em prejuizo da infancia tem sido a instrucção desta confiada ao mestre. (CAVALCANTI, 1884, p. 3).
O conferencista ainda argumentou que as mulheres possuíam mais assiduidade às aulas do que os professores do sexo masculino, envolvidos em negócios e várias distrações em razão do baixo salário que recebiam. A professora, no entanto, dedicava-se mais ao magistério por se identificar com a escola e sentir verdadeiro afeto maternal pelos alunos, que eram sua família. Seria nesse sentido que a escola poderia contribuir para a amenidade dos costumes. Os pais dos alunos teriam maior economia e mais facilidade para levar os meninos e as meninas para uma só escola, em vez de ter de tomar caminhos diferentes, o que lhes ocuparia demasiado tempo e esforço. É mais fácil que um só portador conduza os alumnos, e os pais não terão necessidade de occupar nisso duas pessoas, ou de demorar os meninos e conduzil-os para outro lugar depois de terem as irmãs ido para a escola. Si as escolas tivessem de ser freqüentadas unicamente por filhos de classes abastadas e ricas, não seria tanto para mencionar-se como vantagem esta de que me occupo. Mas o grande effectivo das escolas é de filhos de pessoas que não contam entre os que vivem em abastança. (...) Ora, tudo o que fôr facilitar ás famílias o enviarem os meninos á escola é uma longa vantagem que não se deve desperdiçar (CAVALCANTI, 1884, p.4).
Portanto, as vantagens das escolas mistas, além de melhorar a instrução do povo e facilitar a vida de suas famílias, seria um grande proveito. O Estado também ganharia em economia, motivo por si só relevante para sua adoção nas escolas brasileiras. Além dos efeitos pedagógicos, morais e econômicos do 77
ensino misto, o Governo da Província ainda teria a satisfação de cumprir a incumbência constitucional de ministrar o ensino primário a todos os analfabetos e ampliar a escolaridade para mais cidadãos: Si temos necessidade de augmentar o numero de escolas, augmento que deve ser muito considerável, para que em toda localidade haja ensino primário, o systema mixto converte-se em expediente econômico; porque, para muitas dessas localidades, desherdados de instrucção até agora, uma só escola será o bastante. Em vez de dous mestres, duas escolas, duas casas ou dous aluguéis de casa, duas mobílias, uma aula mixta presta o mesmo e melhor serviço: e com a quantia poupada da creação e custeio, que assim se tornam desnecessários, de mais outra escola, proporcionam-se os meios para em outro logar terem os meninos o preciso ensino (CAVALCANTI, 1884, p. 4).
Cavalcanti considerava que, com essas medidas, o Estado poderia quase duplicar o oferecimento do ensino oficial primário, sem maiores sacrifícios para os cofres públicos e com melhor distribuição da educação elementar para todos, lamentando que o governo ainda não tivesse confiado o suficiente na eficácia desse sistema por motivos que poderiam ser respeitáveis, mas que não lhe pareciam bem fundados, referindo-se obviamente às razões de ordem moral e religiosa acatadas pela maioria da população. Em seguida, o inspetor passou a argumentar contra os detratores da co-educação dos sexos nas classes mistas discutindo a improcedência dos motivos alegados. O principal deles seria a repugnância das famílias em aceitar o sistema misto de ensino, rejeição fundada na desconfiança e no preconceito principalmente, classificando-os de infundados e adiantando que todas as inovações costumam ser objeto de oposição. Para evitar a desconfiança das famílias sugeriu que houvesse grande critério nas nomeações para as escolas primárias mistas, concentrando-se a preferência nas mulheres para reger as classes: 78
Escolham-se, para estas, as melhores professoras, austeras quanto aos seus costumes, de procedimento exemplar, práticas de dirigir as crianças. Redobre o governo sua vigilancia nessas escolas. Si conhecer que a mestra, com effeito, não se mostra em condições de inspirar a mais plena confiança ás famílias, o governo apresse-se em remover a professora e confie uma tão importante missão a alguma outra mais capaz e mais apta para conseguir captar essa confiança (CAVALCANTI, 1884, p. 7).
Quanto à instituição do sistema misto nas escolas normais, observou que os mesmos argumentos poderiam ser utilizados, com a diferença que nesse nível de ensino atuariam os professores, devido ao fato deplorável de não haver professoras em número suficiente para ocupar todas as cadeiras do ensino secundário e normal. O conferencista também se referiu à legislação em vigor para o ensino primário e normal da Província de São Paulo que instituiu as aulas mistas nesses níveis escolares, assegurando que, apesar dos adversários desse sistema, não existiam assim tantos inconvenientes conforme foram vaticinados. Acrescentou que os que se preocupavam com os abusos que poderiam acontecer nas escolas mistas, “têm hoje contra essa preocupação a experiência e ora acham-se reduzidos a argumentar com a possibilidade de taes abusos, argumento apto a condemnarse absolutamente tudo”. (CAVALCANTI, 1884, p. 9). Do ponto de vista da moralidade, duvidava que colocar juntos os dois sexos nas escolas representasse um perigo moral, pois, afinal, estes costumavam encontrar-se em muitos lugares que não o ambiente escolar, como nos teatros e passeios, parecendo que os seus detratores não haviam sido lembrados desse fato. Além disso, acrescentou, se houvesse abusos estes também se dariam em todos os lugares e não apenas nas escolas mistas: A innocencia e a honestidade certamente correm muitos perigos; mas não é na escola que mais há receial-os. Abusos podem tambem apparecer e – seguramente já se tem visto, - em escolas e institutos em que não se reunem
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os dous sexos; e por abusos taes não têm pedido a supressão dessas escolas e casas de educação de um só sexo! Nos collegios para um sexo sómente e até nos conventos, asylos de piedade e de virtude, tambem tem-se feito injuria ao pudor e á innocencia (CAVALCANTI, 1884, p. 9).
Ao referir-se às capacidades cognitivas dos dois sexos, posicionou-se contra a idéia de que as meninas não poderiam acompanhar os estudos com o mesmo ritmo dos meninos e que excessos intelectuais poderiam minar sua saúde. Isso porque, mesmo a esses, não se poderia aprofundar demasiadamente os estudos primários, o que deveria ser feito somente no ensino superior, pois “um ensino elementar, convenientemente ministrado, não pode ir até o ponto de ter-se receio de que por causa delle adoeçam alumnos ou alumnas” (CAVALCANTI, 1884, p.10). No entanto, colocou uma ressalva representativa da tendência da época de considerar as mulheres menos aptas intelectualmente ao referir-se ao ensino normal: “não posso em verdade assegurar que em todas as matérias o aproveitamento das alumnas seja inteiramente igual ao dos alumnos; mas é certo que ellas vencem as difficuldades, e não foi preciso ainda modificar, em favor das moças, o programma, que aliás contém muitas materias, pelo qual estudam os rapazes”.(CAVALCANTI, 1884, p. 10). O conferencista, seguindo um tipo de raciocínio educacional que tomava os Estados Unidos como exemplo, assegurou que nesse país a co-educação foi adotada em quase todas as escolas e que o aspecto moral da instituição do sistema misto não havia sido o determinante nessa escolha, mas sim que os debates foram mais aprofundados quanto às capacidades intelectuais do sexo feminino e à identidade da instrução conjunta. O arrazoado termina com a exortação: “que se adopte a coeducação dos sexos, assim nas escolas primárias, como nas de ensino secundário e normal” (p.11). 80
O outro parecer, bastante sucinto, pertence ao conselheiro Dr. Theophilo das Neves Leão que inicia seus argumentos observando que “a co-educação dos sexos implica a questão da emancipação da mulher, ente livre e inteligente, podendo viver só ou em sociedade íntima com seu companheiro natural o homem”. Apesar desse reconhecimento inicial, concluiria suas observações com o argumento que as escolas primárias e normais do município da corte ainda não estavam “devidamente organizadas para um nem para outro sexo” (LEÃO, 1884, p.2). Os detratores do sistema co-educativo consideravam que entre os sexos havia diferenças morais e intelectuais. Portanto, colocar meninos e meninas num mesmo local possibilitaria o risco de contaminação da pureza feminina e o perigo sempre presente de que os rapazes pudessem ser desviados do trabalho acadêmico pelo contato com colegas e professoras. O argumento era que a beleza, a sedução, a garridice do outro sexo seria uma constante tentação, mesmo no vetusto ambiente escolar. Além disso, por serem intelectualmente diferentes e com aspirações de vida distintas, não tinha sentido ministrar educação igual para meninos e meninas. Para as mulheres, era voz corrente que o excesso de instrução poderia prejudicar seu natural voltado mais para emoção do que para os dotes de inteligência. Destinadas que eram para a maternidade, deveriam ser poupadas para não prejudicar a saúde dos futuros filhos e nisso se incluía a parcimônia cognitiva. Nos pareceres de Rui Barbosa sobre o ensino, em praticamente todas suas proposições ele recorreu aos exemplos europeus e norte-americanos para confirmar suas idéias e demonstrar que muitas delas já eram uma prática nesses países. Para ele, a co-educação era um sistema que já se encontrava em funcionamento nos países, mas adiantados como Estados Unidos, Suécia, Dinamarca, Suíça, Escócia, Holanda, Áustria e mesmo no Japão. Porém, argumentou também que no Brasil sua implantação ainda não seria aconselhável por conta da moralidade, dos bons costumes e da higiene entre os sexos, aliando-se assim, 81
embora de forma diferenciada, aos opositores do sistema coeducativo. Quanto ao sexo feminino, observou que a mulher não era inferior aos homens, mas seu organismo funcionava de outra forma, o que fazia que em alguns dias do mês agissem mais lentamente, precisando assim de maiores cuidados. No entanto, não opunha obstáculos a que a co-educação se desse nas classes freqüentadas por crianças muito pequenas e nas escolas primárias. Asseverava, no entanto, que nos graus subsequentes, isso seria problemático, pelo menos no momento social que o país vivia. Nas palavras de Rui Barbosa, a não indicação do sistema co-educativo nas escolas brasileiras não era uma questão pedagógica, mas um procedimento de fundo moral e social. Mesmo elogiando os Estados Unidos afirmava que era enganoso pensar que lá não havia resistências quanto ao sistema, principalmente pelo problema moral que a co-educação acarretava. Sendo assim, nos limites da prudência não seria aconselhável, por enquanto, que essa prática fosse adotada no Brasil (BARBOSA, 1882, p.26). A Reforma Capanema de 1942 oficializou por algum tempo a separação dos sexos nas escolas, na esteira do movimento de recuperação de valores tradicionais que ganhou força próximo da segunda metade do século XX, e que viria a ser questionado pouco depois com a implantação irreversível do sistema misto nas escolas oficiais do país. No Brasil, a idéia de classes mistas funcionando em regime co-educativo, as concepções de vida, assim como os métodos americanos de educação e o papel representativo das missionárias educadoras seriam imitados na escola pública paulista e objeto de admiração dos meios intelectuais republicanos. Estava assim plantada no terreno educacional, a semente do liberalismo e do culto ao capitalismo, num estado que começava a se desenvolver mais eficazmente e de acordo com as expectativas dos meios políticos de colocar o Brasil entre as grandes nações do mundo. Nessas expectativas, a educação deveria ser estendida a todos, homens e mulheres, de diferentes classes sociais e raças, pois prosperar era a grande meta a ser atingida. Por sua vez, a co82
educação era uma prática que se difundia nos demais países ocidentais e seria a panacéia para remediar os vícios do sistema escolar que se estruturava lentamente e carregado de defeitos, inclusive o de não atingir igualmente a população. Esta seria natural, vantajosa, imparcial, econômica e desejável, pois nas classes mistas o ensino era mais fácil, permitindo trocas recíprocas entre os sexos. Considerava-se que as diferenças entre homens e mulheres, em contraponto aos ideais naturalistas, positivistas e católicos, eram adquiridas. Para isso deveria valer-se de idêntica premissa para as pessoas do mesmo sexo, também diferentes entre si, não havendo seres humanos perfeitamente iguais em todos os aspectos, dado sua natureza ser plural. Homens e mulheres não existiam por si próprios, nem um sexo se complementaria sem o outro. Alguns defensores do ensino igual para os dois sexos argumentavam que as idéias de fragilidade e inferioridade que atribuíam às mulheres aqueles que se posicionavam contrários à co-educação, significava uma postura arbitrária pois, há mais de um século, tal processo estava se revelando eficaz nos Estados Unidos, na França, na Suécia, e na Finlândia, entre outros. As mulheres possuíam suas faculdades intelectuais e criativas reprimidas devido à posição social que ocupavam e a uma educação tradicional que não desenvolvia sua inteligência e seu talento, retirando-lhes a possibilidade de se desenvolverem psíquica, intelectual e moralmente. Paradoxalmente, também se considerava que as diferenças naturais eram algumas vezes necessárias pelo fato biológico da reprodução. (MEYLAN, 1904, p.122). Portanto, apesar da separação da Igreja dos assuntos do Estado e da total proibição de ensino religioso nas escolas, há que se considerar a influência ideológica do catolicismo como a religião dominante entre a população brasileira. O matrimônio indissolúvel, os ritos do batismo, comunhão, crisma, extrema unção impregnavam há mais de três séculos o imaginário brasileiro e não seria o ato político de se depor um imperador português e instituir um regime republicano que ausentaria o povo desses 83
rituais e de sua influência. A educação escolar não fugia disso, pois quem ensinava nas escolas também pertencia à população e vivia na sociedade brasileira fazendo parte do intenso intercâmbio cultural que a urbanização proporcionava, incorporando a imagética social do período quanto aos papéis sexuais. Apesar do movimento feminista dos anos iniciais do século XX ter defendido um ensino não diferenciado para meninos e meninas, a co-educação dos sexos foi uma prática que se divulgou mais rapidamente após a segunda guerra mundial. No período pós-guerra, as reivindicações das feministas se concentraram no repúdio à educação diferenciada para meninos e meninas que se evidenciava na distinção de currículos, prática originada na crença que as mulheres possuíam menos habilidades intelectuais do que os homens, o que justificava um ensino pouco abrangente e aprofundado, mais voltado para as questões domésticas do que preocupado em fornecer uma boa instrução. A co-educação, segundo essa perspectiva, referia-se mais propriamente em atender aos preceitos psicológicos, higiênicos e morais de cada sexo, do que em princípios de igualdade de direitos. Sua implantação nas escolas nunca garantiu posteriormente maiores oportunidades para o sexo feminino no mundo social e do trabalho, assim como maior equidade na esfera do lar. Para fazer frente à ofensiva dos protestantes no campo educacional, (os quais, além de introduzirem o que denominavam co-educação dos sexos, também defendiam a profissionalização e independência financeira feminina e a educação isenta de proselitismo religioso, aberta à todas as classes sociais e às diferentes raças), a Igreja Católica, na tentativa de recuperar seu poder criou um sistema de internatos destinados às filhas das oligarquias e da classe média que já havia se delineado no cenário social e econômico do País. Esses colégios representaram a solução para alguns problemas básicos dos católicos: eram uma proposta educativa que não atentava contra suas idéias tradicionais; não havia comprometimento com os avanços modernos que tanto os 84
assustavam; significavam segurança para as famílias que desejavam que as filhas estudassem em bons colégios fora do seu local de residência; permitiam a instrução religiosa, um dos mais caros ideais familiares dos conservadores; preparavam-nas para o matrimônio e para a manutenção dos valores cristãos tradicionais, e não aceitavam a proposta de educação igual para ambos os sexos. Com isso, preservava-se a ordem e a moral social e não haveria riscos sociais de se libertar a mulher pela via da instrução, mantendo-se, pois, intocados os bons costumes cristãos. Os detratores do excesso de instrução para as mulheres e da co-educação dos sexos foram veementes em assinalar o perigo de lhes proporcionar demasiados conhecimentos. A profissionalização feminina e sua ida ao mercado de trabalho, a concessão de direitos cívicos como o voto e a inserção na política eram combatidos por serem considerados fatores de desestabilização social e um atentado às recomendações religiosas. Para estes, as leis naturais tinham estabelecido o lugar da mulher no lar, e o dos homens, na vida pública. Juntar dois seres tão diversos e com destinação tão diferente se constituía numa inobservância das leis divinas e da natureza. Subverter essa ordem seria desobedecer a Deus e uma educação diferenciada para meninos e meninas, de acordo com a herança do passado, não poderia ter seus princípios alterados por ser antinatural, sendo fundamental para a estabilidade social que a educação feminina fosse sempre diferente da masculina.
Referências ATAS e Pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1884. BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Obras completas. Rio de
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Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, v.10, tomo III, p. 26, 1947. MEYLAN, F. Th. La coéducation des sexes: étude sur l’education supérieure des femmes aux Etats Unis. Bonn, Charles Georgi, Imprimerie de l’ Université, 1904. MOACYR, P. A instrução pública no Estado de São Paulo: primeira década republicana – 1890/1893. São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Cia Editora Nacional, 1942. (Brasiliana, vol.213). REIS Filho, C. dos. A educação e a ilusão liberal. São Paulo, Cortez, 1981. RODRIGUES, L. M. P. A instrução feminina em São Paulo: subsídios para sua história até a proclamação da República. São Paulo, Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, Escolas Profissionais Salesianas, 1962. Jane Soares de Almeida – Mestre em educação pela UFSCar. Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP. LivreDocente pela UNESP. Pós-doutorado por Harvard University, Estados Unidos e Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha. Pesquisadora do CNPq. Membro do Corpo de especialistas do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp/Araraquara. Membro do Corpo Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Programa de PósGraduação em Educação – Universidade Metodista de São Paulo. janesoaresdealmeida@uol.com.br
Recebido em: 13/04/2007 Aceito em: 20/07/2007 86
ESCOLAS ANARCO-SINDICALISTAS NO BRASIL: ALGUNS PRINCÍPIOS, MÉTODOS E ORGANIZAÇÃO CURRICULAR Dagoberto Buim Arena
Resumo Em 1985, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo publicou edição fac-símile da coleção de edições do jornal A VOZ DO TRABALHADOR, editado pelos anarco-sindicalistas da Confederação Operária Brasileira (C.O.B.), entre 1908-1915, no Rio de Janeiro. Este trabalho destaca com base nesse material, as resoluções sobre educação adotadas no segundo Congresso de 1913, as ações a ele subseqüentes que criaram escolas, a sua organização curricular e pensamento do educador Florentino de Carvalho, defensor de métodos que considerava racionais e científicos. Para isso, o desenvolvimento deste artigo aborda o nascimento do movimento anarquista no Brasil, a fundação da Confederação Operária Brasileira; a criação do jornal A VOZ DO TRABALHADOR, de seus objetivos e de sua importância para a unificação dos anarco-sindicalistas do Brasil; e, por fim, comentários a respeito da organização curricular de escolas, a ação de educadores anarquistas e a importância da educação para o movimento. Palavras-chave: anarco-sindicalismo; escolas anarco-sindicalistas; Florentino de Carvalho ANARCHO-SYNDICALIST SCHOOLS IN BRAZIL: SOME PRINCIPLES, METHODS AND CURRICULAR ORGANIZATION Abstract In 1985, the State of São Paulo Official Press published a “facsimile” edition of the newspaper “A VOZ DO TRABALHADOR” (The Worker’s Voice), firstly edited by the anarcho-syndicalists of Confederação Operária Brasileira (COB) (Brazilian Labor Confederation), between 1908-1915, in Rio de Janeiro. Grounded on that material, this work underlines the resolutions on education adopted at the Second Congress of 1913, the following actions that created schools, their curricular organization and the thought of the educator Florentino de Carvalho, supporter of methods he considered rational and scientific. In order to meet these goals, this paper studies the emergence of the anarchist movement in Brazil; the foundation of Brazilian Labor Confederation; the creation of the newspaper “A Voz do Trabalhador”, as well as its objectives and História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 87-108, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
importance to the unification of anarcho-syndicalists in Brazil; and finally, some comments on the schools curricular organization, the actions of anarchist educators and the importance of education to the movement. Keywords: Union-Anarchy; union-anarchy schools; Florentino de Carvalho ESCUELAS ANARCO-SINDICALISTAS EN BRASIL: ALGUNOS PRINCIPIOS, METODOLOGÍAS Y ORGANIZACIÓN CURRICULAR Resumen En 1985, la Imprenta Oficial del Estado de São Paulo publicó una edición única de la colección de ediciones del periódico LA VOZ DEL TRABAJADOR, editado por los anarco-sindicalistas de la Confederación Operaria Brasileña (C.O.B.), entre 1908-1915, en Rio de Janeiro. Este trabajo destaca con base en ese material, las resoluciones sobre educación adoptadas en el segundo Congreso de 1913, las acciones a él subsecuentes que crearon escuelas, a su organización curricular y pensamiento del educador Florentino de Carvalho, defensor de los métodos que consideraba racionales y científicos. Para eso, el desarrollo de este artículo aborda el nacimiento del movimiento anarquista en Brasil, la fundación de la Confederación Operária Brasileña; la creación del periódico LA VOZ DEL TRABAJADOR, de sus objetivos y de su importancia para la unificación de los anarco-sindicalistas del Brasil; y, por fin, comentarios respecto a la organización curricular de escuelas, la acción de educadores anarquistas y a importancia de la educación para el movimiento. Palabras-clave: anarco-sindicalismo; escuelas anarco-sindicalistas; Florentino de Carvalho
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Introdução Em 1985, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo publicou edição fac-símile da coleção de edições do jornal A VOZ DO TRABALHADOR, editado pelos anarco-sindicalistas da Confederação Operária Brasileira (C.O.B.), entre 1908-1915, no Rio de Janeiro. Este trabalho procurará destacar com base nesse material, as resoluções adotadas no segundo Congresso de 1913, as ações a ele subseqüentes que criaram escolas, a sua organização curricular e pensamento do educador Florentino de Carvalho, defensor de métodos que considerava racionais e científicos. Para isso, o desenvolvimento deste artigo abordará o nascimento do movimento anarquista no Brasil, a fundação da Confederação Operária Brasileira; a criação do jornal A VOZ DO TRABALHADOR, de seus objetivos e de sua importância para a unificação dos anarco-sindicalistas do Brasil, e, por fim, comentários a respeito da organização curricular de escolas, a ação de educadores anarquistas e a importância da educação para o movimento. 1.1.O movimento anarco-sindicalista no Brasil O desenvolvimento industrial do país nas primeiras décadas do século, sustentado pela mão-de-obra européia, principalmente formada por portugueses, italianos, espanhóis e alemães, trouxe também a expansão do pensamento políticoeconômico contra o Capital, cujos representantes destacados eram os socialistas e os anarquistas. Entre os libertários, a influência do sindicalismo francês desencadeou a elaboração de um movimento conhecido como anarco-sindicalismo, cujo objetivo era a negação de cooperativas e partidos políticos, como estratégias de luta contra o Capital, e recomendar a organização dos operários em sindicatos que constituiriam a organização para a destruição do 89
Estado, do capitalismo, e âncora para a construção de um novo mundo (BIONDI, 2005; GHIRALDELLI, 1987). Um dos fundamentos do movimento era o que chamavam de ação direta, isto é, a promoção de greves, motins, rebeldias no interior das fábricas, dirigidas contra todos os que participam da organização burguesa de sociedade, tanto indivíduos quanto instituições. O movimento anarquista ao evoluir para o anarco-sindicalismo elaborou também as idéias a respeito das finalidades da educação operária; destacou o papel da propaganda no processo revolucionário contra o estado burguês, e, por essa razão, organizou eventos de natureza cultural e promoveu a expansão da circulação de jornais, panfletos, livros, revistas e outros materiais impressos. Nesse ambiente de cultura, de educação, de propaganda e de rebelião foram criadas as condições para a fundação da Confederação Operária Brasileira (C.O.B.) e seu jornal A VOZ DO TRABALHADOR. 1.2. A C.O.B. e A VOZ DO TRABALHADOR As disputas entre socialistas e anarco-sindicalistas, no Rio de Janeiro pelo controle do movimento operário e dos sindicatos resultou na negação, pelos últimos, dos congressos anteriores promovidos pelos socialistas, e a convocação de um grande encontro nomeado como Primeiro Congresso Operário, realizado em 1906. O artigo primeiro dos estatutos da Confederação Operária Brasileira, recém-fundada, aponta, entre outras finalidades, a de estudar e propagar os meios de emancipação do proletariado e defender em público as reivindicações econômicas dos trabalhadores, servindo-se para isso de todos os meios de propaganda conhecidos, nomeadamente de um jornal que se intitulará A Voz do Trabalhador (A Voz..., 01set. 1913, n. 38, p. 1).
A propaganda necessária para a expansão do movimento e da criação das condições para rebeliões demandava criação e 90
circulação de jornais, panfletos, revistas e livros, portanto, todos os meios conhecidos. Deste modo, a leitura desses materiais vincularse-ia ao segundo princípio defendido pelo movimento: a propaganda, e, articulada a ela, a educação. 1.2.1 A Educação em A VOZ DO TRABALHADOR O educador mais citado pelas páginas do jornal foi o espanhol Francisco Ferrer y Guardia, criador da Liga Internacional para a Educação Racionalista da Criança e que por ela publicou L`École Renovée, na França e a Scuola Laica, na Itália. Perseguido na Espanha, exilou-se na França. Posteriormente, de volta à Espanha, foi preso e fuzilado pela monarquia em 1909. O jornal publicou alguns artigos comentando a sua execução, como este, cujo trecho destaca que não [...] houve canto do mundo donde não saísse um grito de dor pela perda inesperada [...] dum homem que com vigor e inteligência difundia a instrução tão necessária à massa proletária e tão negada pelos governos, a quem interessa conservá-la na ignorância [...] (SANTOS, R.,1909, colunas 1-4, p. 1).
No mês seguinte, em novembro, a ação de propaganda estimulava a leitura de uma publicação sobre a vida desse educador, dirigida para todos os operários: Ferrer. A comissão contra a reação espanhola publicou um número único explicando a ação do saudoso camarada no campo da pedagogia moderna. É uma obra de valor, que ninguém deve deixar de ler. Por nosso intermédio podem ser feitos pedidos para este número (A VOZ..., 15 nov.1909, ano II, n. 20, coluna 1, p. 4).
Embora os intelectuais se preocupassem com a divulgação da leitura, havia o obstáculo do alto índice de
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analfabetismo entre os operários, como demonstra trecho de um artigo publicado no jornal A Folha do Povo, de São Paulo: Os artigos sociológicos, então, é o cúmulo: só uma pequena minoria os lê e se faz solidária [...] é triste que se perca tanta energia e dinheiro em propaganda que na maioria dos casos é perdida, ao passo que seria necessário juntar nossas energias em prol da instrução: ensinar a ler o operário analfabeto [...] (ANTUNHA, E. APUD GHIRALDELLI, 1987, p. 101).
A preocupação com a educação dos militantes e de seus filhos manifestava-se pela tentativa de criação de escolas do povo, como alternativa à escola para o povo, na tradição burguesa, cuja elaboração deu-se nas lutas entre operários e burgueses na segunda metade do século XIX. As experiências de formulação de escolas criadas, dirigidas e fundamentadas na produção de conhecimento necessário para a luta de classes aconteceram nas ruas e nas fábricas desse século, durante os processos revolucionários e, como afirma Foucambert (2004, p.6), investigador contemporâneo da área da leitura: Uma escola só pode exercer o papel que se espera dela, como instrumento de libertação, ao romper com o modelo que se desenvolveu explicitamente na Europa no final do século XIX para encerrar a era das revoluções e para concluir a domesticação de seu proletariado, modelo que ela impôs ao mundo através do empreendimento colonial e depois adotado pelas burguesias nacionais ao longo de seu processo de autonomia.
Apoiados neste princípio de entender a educação como instrumento de emancipação do trabalhador, os anarcosindicalistas organizaram suas próprias escolas, com a colaboração dos educadores cujas experiências tinham sido realizadas na Europa, para, de certo modo, alimentar o movimento iniciado na Comuna de Paris, em 1871, como sugere, atualmente, Foucambert (2004, p. 6): 92
É preciso retomar o trabalho no momento em que os proletários da Comuna de Paris (1871) perdem a esperança de uma escola do povo e têm que se submeter à escola para o povo que quer a burguesia. É desse ponto que é preciso recomeçar, da mesma forma que recomeçaram os pioneiros da nova educação e, sobretudo na França, Célestin Freinet.
Desde o século XIX, anarquistas e comunistas elaboravam programas educacionais com os quais pensavam, cada grupo a seu modo, desenvolver a educação entre os operários. Os grandes congressos operários europeus foram palco de acirrada batalha entre os dois movimentos a respeito dos princípios orientadores de uma verdadeira educação operária como contraponto aos valores da educação burguesa. Os imigrantes, ao virem para Brasil, trouxeram, em suas bagagens, o gosto pelo debate e as preocupações com a organização do movimento operário, razões que determinaram a realização de congressos no final do século XIX e no início do século XX, com embates entre marxistas e anarquistas.
3. Resoluções do Segundo Congresso Operário Brasileiro No período entre 8 a 13 de setembro de 1913, foi realizado no Rio de Janeiro, um Congresso Operário, considerado pelos anarco-sindicalistas como o Segundo Congresso Operário Brasileiro. Desde 1909, o jornal A VOZ DO TRABALHADOR, órgão oficial da Confederação Operária Brasileira, não circulava por causa das dificuldades financeiras e pelas dificuldades próprias da organização do movimento sindical. Como aconteceu durante o Primeiro Congresso, realizado em 1906, este outro procurava revitalizar o movimento sindical e fortalecer o domínio anarcosindicalista. Entre várias moções aprovadas, destaco a que se refere à critica à escola controlada pelo Estado e pela Igreja, por meio de 93
considerandos, e a proposta dos princípios filosóficos que norteiam a criação de escolas operárias para os operários. Educação e instrução das casses operárias Considerando que a instrução foi até época recente evitada pelas classes aristocráticas e pelas igrejas de todas as seitas, para manterem o povo na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade, para melhor explorarem-no e governarem-no; Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo, nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas, sabiamente invertidas pelos cientistas burgueses, os quais metamorfoseiam a ciência segundo os convencionalismos da sociedade atual e monopolizam a instrução, e tratando de ilustrar o operariado sobre artificiosas instruções que enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas escolas, desequilibrando-os com os deletérios sofismas que constituem o civismo ou a religião do Estado; Considerando que esta instrução é ministrada juntamente com a educação prática de modalidades que estão em harmonia com a instrução aplicada; Considerando que esta e instrução e educação causam males incalculavelmente maiores do que a mais supina ignorância e que consolidam com mais firmeza todas as escravizações, impossibilitando a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado e da humanidade; Considerando-se que este ensino baseia-se no sofisma e afirma-se no misticismo e na resignação ( A VOZ..., n.. 39-40, ano VI. 01.10.1913, p 4, coluna 3).
A esta escola oferecida aos operários, o movimento propunha uma outra, cujos suportes deveriam ser o que consideram método racional e científico, à semelhança das escolas racionalistas ou modernas fundadas por Francisco Ferrer (18591909) na Catalunha, com a finalidade de formar de modo integral os estudantes, como será possível verificar páginas adiante, sem 94
descuidar da formação técnica para o trabalho, conforme aditivo aprovado em complemento à menção apresentada pelos redatores. Este Congresso aconselha aos sindicatos e às classes trabalhadoras em geral, tomando como princípio o método racional e científico, promova a criação e vulgarização das escolas racionalistas, ateneus, revistas, jornais, promovendo conferências e preleções, organizando certames e excursões de propaganda instrutiva, editando livros, folhetos, etc., etc. João Crispim e Rafael Serrato Muñoz, da Federação Operária de Santos. Antonio Venosa, do Sindicato dos Pedreiros e Serventes de Santos. Artur Conde, do Sindicato dos Canteiros, de Ribeirão Pires. Pedro Vila, do Sindicato dos Trabalhadores em Tecidos, do Rio. Esta moção foi aprovada com o seguinte aditivo: “Propomos que, além de escolas racionalistas, seja aconselhada a criação de cursos profissionais de educação técnica e artística. José Romero, do Sindicato Operário de Ofício Vários, de S. Paulo. Astrojildo Pereira, de O Trabalho, de Bajé”( A VOZ..., n. 39-40, ano VI. 01.10.1913, p. 4, coluna 4).
Em atendimento a essas propostas, a edição de 1º. de dezembro de 1913, noticiava a oferta de aulas, em um centro operário, sem referência a uma organização escolar, mas, supõe-se, com a finalidade de formação intelectual e cultural. O aditivo atende a críticas de setores do movimento de que a educação anarquista preocupava-se apenas com a formação geral, mas não com a técnica, que prepararia o operário para o trabalho. Os temas, entretanto, respeitavam as disciplinas que normalmente são oferecidas em currículos escolares. Não há indicações se eram destinadas apenas aos jovens operários: Centro Cosmopolista Esta associação, com a cooperação do Centro de Estudos Sociais, organizou uma série de aulas, diurnas e noturnas, de acordo com o quadro abaixo:
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Diurnas Português, as terças e sábados, de 1 hora às 3; Aritmética, às terças e quintas, de 1 hora às 3; Geometria, às quintas e sábados, de 1 às 3; Pelo Dr. Orlando Correa Lopes Noturnas Francês, às terças e quintas, pelo camarada Honoré Cemili; Aritmética, às terças e sábados, por José Elias da Silva; Português, às quartas e sextas, por João Gonçalves da Silva; Geografia, às quartas, por Carlos de Lacerda; Inglês, às quintas, por Meyer Feldman ( A Voz..., 1.12.1913, ano VI, n. 44, p. 6, coluna 1).
São aulas de disciplinas escolares sem a organização formal de uma escola, com o intuito de criar as condições para o comparecimento dos operários, mesmo as oferecidas em período diurno, colocadas em horários que poderiam não impedir a realização de certas jornadas de trabalho cujo início poderia ser no início da tarde. Nota-se a ênfase ao ensino do português, e também de inglês e de francês, línguas não dominadas por portugueses, brasileiros, espanhóis e italianos que formavam o maior contingente de trabalhadores imigrantes. A edição de 1 de janeiro de 1914 traz duas matérias sobre a educação. Uma delas noticia a construção de prédio para uma organização sindical, no Rio Grande do Sul, em que, ao mesmo tempo, funcionaria um ateneu de ofícios, conforme recomendava a moção aprovada no congresso do ano anterior: Aproveitando-se de um terreno que fora doado à Federação Operária, na época em que seus diretores queriam adquirir simpatia da classe a troca de favores
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obtidos dos poderes públicos, está sendo construído no campo da Redenção o edifício do Ateneu Operário, destinado a ser a sede das associações operárias federadas e ao estabelecimento de uma escola de artes e ofícios e de instrução e educação. Esse edifício terá um vasto salão destinado a conferências, reuniões e espetáculos. As obras do Ateneu, já bastante adiantadas, até agora têm sido custeadas com o produto de donativos angariados, festas, kermesses, etc. Uma comissão especial nomeada pela Federação Operária encarrega-se das referidas obras (A Voz, ano VII, n. 46, p. 3, coluna 2).
A outra matéria, assinada por Florentino de Carvalho (1889-1947), então com 24 anos, traçava os princípios filosóficos e metodológicos das escolas que estavam sendo criadas pelo movimento, como a que ele próprio fundaria em São Paulo, cuja organização curricular está publicada em edições posteriores. Florentino de Carvalho era o pseudônimo de Raymundo Primitivo Soares, espanhol, nascido na Província de Oviedo em 3 de março de 1889, imigrado para a cidade de São Paulo, com seus pais e irmãos, aos dez anos de idade. Foi cabo da polícia militar até ler Piotr Kropotkin, ideológo anarquista russo. Entusiasmado com o pensamento anarquista, tornou-se operário e fervoroso militante. Frequentemente perseguido pela polícia, foi para a Argentina onde, entre outras ações, exerceu a função de professor conforme os princípios da Escola Moderna fundada por Francisco Ferrer na Espanha. Deportado da Argentina para a Espanha, foi retirado à força pelos operários quando o navio em que viajava fez escala no porto de Santos, em 1910, adotando, a partir desta nova entrada no país, o nome de Florentino de Carvalho. Posteriormente foi deportado com outros militantes, mas nenhum país o recebeu. De volta ao Brasil, com o arrefecimento do movimento durante o governo Vargas, Florentino procurou outros caminhos para sobreviver. Em carta endereçada a Alexandre Pinto, em 17 de dezembro de 1946, postada em Marília – SP, o velho militante 97
anarquista dizia viver, mesmo doente, como professor em escola rural na cidade de Oriente, SP. "Marília,17 de dezembro de 1946 Alexandre Pinto, Estimado camarada Acabo de chegar a esta cidade de Marília, procedente de uma fazenda distante daqui uns 40 quilômetros e tenho, com surpresa, a satisfação de receber a sua grata missiva, a qual veio a servir de início a novas e necessárias relações com o velho amigo e companheiro de ideal.[...] Atualmente estou lecionando em uma fazenda distante de Oriente uns 20 quilômetros, lugar denominado Monte Alegre.[...] Sem mais queira o camarada abraçar em meu nome, as pessoas da nossa grei, e receber um fraternal amplexo deste seu amigo e companheiro de ideal.[...] Primitivo Raymundo Soares Ao cuidado do Sr. José Oliveira Cruz Caixa Postal n.40 –Oriente- E.F.P.- Estado de São Paulo"
Em 24 de março de 1947, a imprensa noticiou o falecimento de Raymundo Primitivo Soares ou Florentino de Carvalho, com 58 anos. O artigo de Florentino de Carvalho, escrito em janeiro de 1914, em seu início, anunciava a necessidade de discutir princípios metodológicos, embora, segundo apontava o articulista, havia o pensamento de que essa discussão revestia-se de pouca importância, desde que as crianças aprendessem. Não seria este, entretanto, o ponto de vista do pensador anarquista, preocupado em definir com clareza esses princípios, porque orientariam a conduta docente e a organização curricular da escola:
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Há pessoas que ligam pouca importância aos métodos de ensino: o essencial é que os meninos aprendam...seja o que for. Se algum interesse os pais tomam pela instrução dos filhos é para prepará-los em materiais de leitura e contabilidade, a fim de adquirirem com menos embaraço uma colocação de preferência, ou um diploma de certa profissão, mais ou menos elevada. Estuda-se sempre com o fim de suplantar os semelhantes na luta pela existência; nunca com o fim de criar uma cultura racional. Este critério não predomina somente nas famílias ignaras. Alguns militantes do livrepensamento, e mesmo dos ideais mais ou menos libertários, afirmam que os indivíduos educados nos colégios dos jesuítas, quando passam para as nossas fileiras, vêm a ser os melhores elementos de nossa grei, porque agem com mais conhecimento de causa (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).
Carvalho contrapõe o que considera métodos de ensinar e de fazer ciência, próprios do movimento anarco-sindicalista, aos métodos e princípios educativos da educação patrocinada pelo Estado. Deste modo, entende que o racionalismo seria o princípio educativo que poderia se contrapor ao Estado de modo que a criança, particularmente filha de trabalhadores, pudesse receber uma educação integral. O método intuitivo, demonstrativo e objetivo é o tecnicismo pedagógico, que pode ser mais ou menos limitado, e aplicado de forma a não prejudicar o regime estabelecido. O método racional de analisar e conceber a natureza e a vida, é o que foi desprezado porque o Estado e as castas aristocráticas ou burguesas, não devem estar dispostas a abrir falência em benefício do bem estar e do desenvolvimento integral de todos os indivíduos que fazem parte de toda a colméia humana (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).
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Esses princípios metodológicos apoiar-se-iam no positivismo comtiano que, para Carvalho, forneceu as bases filosóficas para que o estado organizasse sistemas educativos diferenciados para a classe dirigente e para a classe operária. Mesmo nas democracias, onde se diz ser um fato a igualdade perante a lei, a instrução ainda é privilégio dos ricos. No entanto a coerência é patente: Augusto Comte na sua filosofia positivista estabeleceu um sistema de instrução e educação compatível com o regime capitalista. Diz, textualmente, que aos ricos deve ser dada uma instrução integral ou universitária, e aos operários uma instrução elementar e profissional (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 1).
Apoiada por essa filosofia discriminatória, a escola nas décadas iniciais do século XX, na perspectiva anarquista, contribuiria para formação de uma ordem moral contrária à solidariedade humana, princípio fundamental do pensamento anarquista. Entre outras mentalidades criadas pelo ensino imposto pelo Estado, Carvalho arrola o que considera como doenças ou vícios: O ensino oficial produz, entre outros, os seguintes vícios ou enfermidades: a - pessimismo; b – tristeza; c – temperamento irascível; d – orgulho exagerado; e presunção; f – ódio e desprezo ao estrangeiro; g – inclinação a ferir com gestos e com palavras a suscetibilidade de outrem, sentindo prazer em irritar e humilhar; h – inveja dos que gozam das melhores regalias; i – falsa comiseração pela extrema pobreza que reflete a diferença de condições (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 2).
A preocupação com a educação integral do homem, com o objetivo de promover a sua emancipação, era o pilar da educação anarquista, que, apoiada nos princípios do racionalismo, isto é, do uso da razão e do respeito à natureza humana, poderia criar as 100
condições para a visão crítica do mundo organizado pelo capital para os capitalistas: Quando estudamos um simples compêndio de geografia que nos descreve a flora e a fauna e outras riquezas dos diversos países, dando a entender que são desfrutadas por todos os seus habitantes, poderemos racionalmente deixar de explicar que essas riquezas beneficiam exclusivamente determinados indivíduos e que a imensa maioria se definha de miséria, ao pé de grandes depósitos, que produziram com o seu próprio trabalho? Não, a escola deve tender para a educação integral, não escondendo nenhuma das verdades demonstradas pela experiência; deve facilitar os meios para que os alunos possam adquirir os conhecimentos mais essenciais a fim de eles mesmos criem a sua educação. Para formar uma verdadeira cultura é preciso criar ao redor da infância um ambiente de justiça, de independência e de estética que a liberte dos vícios e dos preconceitos que adquire quando está em contato com os elementos de degeneração da sociedade presente. E não há dúvida de que com este método de educação se conseguirá formar homens mais equilibrados, mais sãos, mais racionais do que os que possam vir ao nosso campo, passando primeiramente pelas academias da corrupção e do fanatismo, cujos vestígios dificilmente desaparecem de uma forma radical (A Voz..., ano VII, 1.1.1914, n. 46, p. 2, coluna 2/3).
A edição de primeiro de fevereiro de 1914 noticiava a formação de uma escola em São Paulo, na rua Miller, 74, de acordo com o método racionalista. Uma outra matéria, de 7 de abril de 1915, anunciava a existência de uma outra escola, na rua da Alegria, 20, da qual fazia parte Florentino de Carvalho. Transcrevo as duas matérias, com o objetivo de destacar as disciplinas oferecidas, os princípios metodológicos defendidos por Carvalho no artigo já citado e a organização curricular, de modo geral, preocupada com a formação integral da criança. 101
O Ensino racionalista em S. Paulo Escola Moderna n. 2 O Comitê pró Escola Moderna distribuiu ultimamente o seguinte boletim, na capital do Estado de São Paulo: “Cientificamos às famílias que se acha instalada no prédio da rua Miller, 74, a Escola Moderna n. 2, criada sob os auspícios do Comitê pró Escola Moderna. Esta escola servir-se-á do método indutivo demonstrativo e objetivo, e baseia-se na experimentação, nas informações científicas e raciocinadas, para que os alunos tenham idéia clara do que se lhes quer ensinar. Educação artística intelectual e moral Conhecimento de tudo quanto nos rodeia; Conhecimento das ciências e das artes; Sentimento do belo, do verdadeiro e do real; Desenvolvimento e compreensão sem esforço e por iniciativa própria. Matérias As matérias a serem iniciadas, segundo o alcance das faculdades de cada indivíduo, constarão de leitura, caligrafia, gramática, aritmética, geografia, geometria, botânica, zoologia, mineralogia, física, química, história, desenho, etc. Para maior progresso e facilidade do ensino, os meninos exercitar-se-ão nas diversas matérias com auxílio do museu e da biblioteca que esta escola está adquirindo nas aulas. Na tarefa de educação tratar-se-á de estabelecer relações permanentes entre a família e a escola, para facilitar a obra dos pais e dos professores. Os meios para criar estas relações serão as reuniões em pequenos festivais, nos quais se recitará, se cantará e se realizarão exposições periódicas dos trabalhos dos alunos; entre os alunos e os professores haverá palestras a
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propósito de várias matérias, onde os pais conhecerão os progressos alcançados pelos alunos. Para complemento de nosso programa de ensino organizar-se-ão sessões artísticas e conferências científicas. Horário: 12 da manhã às 4 da tarde. A inscrição dos alunos acha-se aberta das 10 às 12 horas da manhã e das 4 às 6 da tarde. S. Paulo, 16 de agosto de 1913. A diretoria” (A Voz..., ano VII, 1.2.1914, n. 48, p. 8, coluna 2).
É interessante notar que a formação integral, objetivo da educação anarco-sindicalista, colocava já, no início do século XX, procedimentos que a escola oficial ainda procura operacionalizar no início do século XXI, no Brasil, como se fossem descobertas defendidas por tendências pedagógicas dos últimos tempos. Assim é que a relação escola-comunidade, por meio de reuniões, exposições e atividades artísticas; a utilização de laboratórios e bibliotecas; encontros de natureza artística e científica, apoiados sobre um conjunto sólido de conhecimentos, constituir-se-iam a base necessária para o processo de humanização. Esta escola utilizava o nome cunhado por Francisco Ferrer para colocar em ação as recomendações contidas nas moções aprovadas pelo Segundo Congresso e os princípios defendidos por Carvalho. A outra matéria, publicada em 7 de abril de 1915, divulga o funcionamento de uma escola em São Paulo. Não há indicações se se tratava da anterior, em nova sede: Escola Nova Na capital do estado de S. Paulo foi ultimamente instalado, em confortável prédio da rua da Alegria, 26 (sobrado) um instituto de instrução e educação para meninos e meninas, cujo título encima esta notícia, estando já funcionando as respectivas aulas diurnas e
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noturnas, a qual serve-se dos métodos racionais e científicos da pedagogia moderna. As matérias são: Para o curso primário – Português, aritmética, geografia, botânica, zoologia, caligrafia e desenho. Curso médio –Português, aritmética, geografia, mineralogia, botânica, zoologia, física, química, geometria, história universal, caligrafia, desenho, etc. Curso superior – Aritmética, álgebra, botânica, zoologia, mineralogia, geometria, física, química, história universal, geologia, astronomia, desenho. Idiomas: português, italiano, espanhol, etc. Os cursos primário e médio acham-se a cargo dos professores Florentino de Carvalho e Antonia Soares. O curso superior está sob a direção de pessoas de reconhecida competência, figurando entre elas o professor Saturnino Barbosa, dr. Roberto Feijó, Passos Cunha, A. de Almeida Rego e Alfredo Junior, os quais lecionam matérias de sua respectiva especialidade. Para outros esclarecimentos os interessados devem se dirigir à sede da aludida Escola Nova, à rua Alegria, 26, S. Paulo (A Voz..., ano VIII, 7.4.1915, n. 69, p. 2, coluna 3).
Destaca-se, neste anúncio, a preocupação com a definição da metodologia baseada nos pressupostos racionalistas e científicos defendidos por Florentino de Carvalho, que, com sua irmã Antonia, praticamente organizaram a escola, porque a eles estava a responsabilidade por ministrar aulas de várias disciplinas nos cursos que em 2006 equivaleriam às oito séries do ensino fundamental. Tais dados revelam a formação extraordinária de Carvalho que viria a se tornar professor em escola rural na região da Alta Paulista. Por outro, a preocupação com a educação levou os anarquistas a organizarem também cursos superiores, na área de exatas, biológicas e humanas, uma vez que a intenção seria a de formação integral do homem. Há, pela análise das disciplinas, 104
ênfase na área de exatas, por causa da preocupação em cuidar do que seria um aprofundamento científico do conhecimento, em oposição às idéias de natureza religiosa. Na área de humanas, o destaque é dado à história universal e não à do país, como supostamente deveria acontecer também com o ensino de Geografia. Idiomas e desenho completariam a formação nessa área. A educação desempenhava papel importante no processo de revolução social que os adeptos do pensamento libertário queriam opor a uma possível revolução de cunho político. A sociedade livre, ideal do projeto anarquista, não dependia apenas de mudanças nas relações sociais, mas precisava também de formar homens com novas mentalidades, sensíveis aos avanços científicos e culturais. A revolução social seria uma revolução integral cuja condição básica seria o rompimento com todo tipo de ignorância e crendices. À educação burguesa, condicionada pela organização política e econômica da sociedade, Bakunin (1814-1876) contrapunha a educação integral, porque inteligência alguma, por mais prodigiosa que seja, é capaz de abarcar todas as ciências em sua especialidade, e como, por outro lado, é absolutamente necessário para o completo desenvolvimento da inteligência um conhecimento geral de todas as ciências, o ensino se dividirá naturalmente em duas partes: a parte geral, que dará os elementos principais de todas as ciências sem nenhuma exceção, do mesmo modo que o conhecimento, não superficial, porém real do seu conjunto; e a parte específica dividida necessariamente em vários grupos ou faculdades, cada uma delas abrangendo em toda a sua natureza são especialmente destinadas a se completarem (BAKUNIN, 1989, p. 43).
Florentino de Carvalho havia se entusiasmado com as idéias de Kropoktin (1842 –1921) e é com base nelas que organiza a escola que funda em S. Paulo, com o foco dirigido para a formação científica, porque, 105
sobre o pretexto da divisão de trabalho separamos violentamente o trabalho intelectual do braçal. A massa trabalhadora não recebe mais informação científica do que seus avós e, ademais, se vê privada da pouca educação que poderia adquirir nas pequenas oficinas, enquanto que seus filhos, homens e mulheres, condenados a viverem na mina ou na fábrica desde a idade de treze anos, esquecem logo o pouco que aprenderam na escola. Os homens de ciência, por sua parte, desprezam o trabalho braçal. Quem poderia fazer um telescópio ou outro instrumento menos complicado? Muitos não são capazes nem mesmo de desenhar um aparelho científico, somente dão uma vaga idéia ao construtor e deixam a este o cuidado de inventar o aparelho de que necessitam (KROPOTKIN, 1989, p.51).
Carvalho colocava em prática, ao fundar as escolas, os princípios anarquistas de educação, apoiando-se em Ferrer e suas experiências com a Escola Moderna de Barcelona, e no pensamento de Kropotkin, ideólogo anarquista, do qual alimentou seu espírito revolucionário anarco-sindicalista, para, posteriormente, enveredar para a educação libertária, assentada firmemente sobre o conhecimento universal produzido pelo homem, mas orientada sempre pelos princípios de formação integral, apoiada na análise crítica, racional, objetiva e experimental desse conhecimento.
Conclusão O objetivo deste trabalho foi o de verificar as preocupações com métodos e organização curricular defendidos pelo pensamento educacional anarquista brasileiro veiculado pelo jornal A VOZ DO TRABALHADOR, editado entre 19081915, pela Confederação Operária Brasileira, sediada no Rio de Janeiro. Essas preocupações foram claramente expostas nas decisões aprovadas em moção do Segundo Congresso Operário, realizado em 1913, cujas bases também já tinha sido registradas 106
no anterior, de 1906. A partir de 1913, muitas escolas são fundadas, entre as quais se destacam as de S. Paulo, orientadas pelo pensamento de Florentino de Carvalho, defensor rigoroso das idéias educacionais anarquistas. A organização curricular das duas escolas direciona os alunos para formação geral, com ênfase em matérias das três grandes áreas do conhecimento, sem, contudo, oferecer aulas para a formação específica do trabalho operário, como também acontece com a oferta de disciplinas pelo Centro Cosmopolita, não definido como organização escolar. Por outro lado, o Ateneu Operário no sul do país ofereceria o ensino de artes, ofícios e instrução geral, ações que caracterizam a formação integral. Nesse período pós-congresso, a atuação de Florentino de Carvalho parece ter sido fundamental para a criação a partir de 1913, pelo menos em São Paulo, das escolas anarquistas, em cumprimento às decisões do Segundo Congresso Operário.
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Dagoberto Buim Arena - Departamento de Didática; Programa de Pós-Graduação em Educação; Grupo de Pesquisa: Processos de leitura e de escrita: apropriação e objetivação – UNESP/Marilia. e-mail: arena@marilia.unesp.br
Recebido em: 20/05/2007 Aceito em: 20/07/2007
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A PUC-CAMPINAS: AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS NARRADAS POR SEUS DOCENTES MAIS VELHOS Rogério Canciam Vera Lúcia de Carvalho Machado (co-autora)
Resumo O estudo realizado insere-se na área da Educação e articula à linha de pesquisa Universidade, Docência e Formação de Professores. A pesquisa realizada teve como objetivo recuperar, com base nos relatos de professores mais velhos em atividades docente na PUC-Campinas, informações que pudessem contribuir para a história dessa instituição educacional em tempos mais remotos. Com esse intuito, foram adotados procedimentos metodológicos derivados da História Oral, sendo efetuadas entrevistas com cinco docentes mais antigos. Palavras-chave: Educação Superior – PUC-Campinas – Universidade. PUC – UNIVERSITY OF CAMPINAS (BRAZIL): THE INSTITUTIONAL CHANGES NARRATED BY ITS OLDEST TEACHERS Abstract The carried through study is inserted in the Education area and is joined the University research line, Education and Teachers Formation The carried through research had as objective to recoup on the basis of the older teachers stories in teaching activities at PUC-Campinas, information that could contribute for the history of this educational institution in more remote times. With this intention methodological procedures derived of Verbal History had been adopted and five older professors have been interviewed. Keywords: Further Education; PUC-Campinas-Brazil; University. PUC-CAMPINAS: LOS CAMBIOS INSTITUCIONALES NARRADOS POR SUS DOCENTES MÁS ANTIGUOS Resumen El estudio realizado se inserte en el área de la Educación y articula a la línea de investigación Universidad, Docencia y Formación de Profesores. La investigación realizada tuvo como objetivo recuperar, con base en los relatos de profesores más antiguos en actividades docentes en la PUC-Campinas, informaciones que pudieran contribuir para la historia de esa institución educacional en tiempos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 109-120, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
más remotos. Con ese intuito, fueron adoptados procedimientos metodológicos derivados de la Historia Oral, siendo realizadas encuestas con cinco docentes más antiguos. Palabras-clave: Educación superior – PUC-Campinas – Universidad
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Introdução Desde os estudos desenvolvidos na graduação, nossa atenção esteve voltada para questões da formação e da prática docente no ensino superior, e mais especificamente para a situação daqueles docentes que, já há muito tempo exercendo suas atividades, ainda hoje em atuação em sala de aula, experimentavam as inúmeras transformações características de nossa época. Sociais, políticas, econômicas, culturais, tecnológicas, rápida e intensamente modificando as estruturas vitais na esteira da evolução e desenvolvimento do processo que conhecemos por globalização, certamente tais transformações repercutiam decisivamente na docência do momento contemporâneo. Assim, no interior desse quadro, decidimos investigar como os docentes, tal como caracterizados acima, observavam, consideravam, refletiam e reagiam diante dessa situação. Ao mesmo tempo, percebíamos que numa investigação assim orientada teríamos também a oportunidade de constituir elementos de natureza histórica suscetíveis de trazer informações a respeito da instituição em que esses professores eram docentes, assim como a propósito da Educação mesma. E, também elemento de relevância para nossa pesquisa, uma vez que era nosso propósito proceder por meio da adoção de recursos metodológicos advindos da Historia Oral, a utilização de entrevistas em que se possibilitasse aos docentes participantes elaborarem relatos nos quais pudessem se expressar livre e abertamente, ficavam também postas às condições para que muitos dados diversos aflorassem e vários aspectos reativos aos assuntos abordados pudessem ser correlacionados. Isto nos pareceu fundamental num trabalho acadêmico como o nosso – elaborar, tanto quanto possível, com base nas informações proporcionadas, elementos-chaves que pudessem ser dispostos como temas básicos, de modo que os 111
procedimentos de análise fossem orientados consequentemente, favorecendo o processo interpretativo e as observações de caráter mais conclusivas. Portanto, nossa pesquisa trabalhou com o objetivo amplo de verificar como os professores mais velhos, por longo tempo na mesma instituição e ainda hoje nela em sala de aula, estariam vivendo a experiências de ensinar, tendo como contraponto a sua docência em décadas anteriores. Objetivos mais específicos, já sugeridos precedentemente, como a promoção de informações a respeito da historia da instituição educacional em questão, acerca das contribuições possibilitadas com o recurso à rememoração e lembrança (e, assim, direcionar reflexões mais proximamente de caráter metodológico), a respeito da emergência de temas relevantes cujo conteúdo pudesse sinalizar orientações produtivas para a reflexão, e, enfim, a contribuição para futuras explorações, também nortearam a condução do trabalho. Todos os objetivos colocavam-se, no quadro das prospecções relativas ao interesse da pesquisa, como elementos legitimadores, induzindonos a poder justificar nossas pretensões com a obra realizada. A efetivação do trabalho iniciou-se, ao lado e após uma revisão bibliográfica, com a escolha dos professores que satisfizessem os requisitos decisivos, e cinco professores acederam em participar da pesquisa. Uma vez que alimentavam teoricamente nossas opções, foram revisitados em bibliografia pertinente aspectos diversos com relação à história da emergência da instituição universitária em nosso país; isso levou-nos também a investigar e sistematizar outras informações a respeito da evolução histórica das estruturas sociais políticas e econômicas do Brasil, desde a época imperial até os anos 1940, com incursões à época do movimento de 1964 e suas repercussões. No interior desse quadro, buscamos também estipular a influencia tanto de algumas posturas da Igreja Católica quanto de movimentos de pensadores católicos em relação à situação da educação e, mais particularmente, da implantação de cursos e instituições de nível universitário. 112
Dentre a valiosa bibliografia que nos auxiliou, merecem destaque Castanho e Castanho (2006), Castanho (2007), Cunha (1988, 1989, 2002), Cury (1986), Furtado (1967), Romanelli (2002), Sá (1984). Também nos foi imprescindível, sobretudo para dirimir questões e polemicas às quais não nos pareceu adequado assumir no âmbito de nossa investigação, contar com o aprofundamento do pensamento histórico a respeito do papel da memória e da historia oral, desde que, para fins da consecução do projeto em pauta, foi no interior de tal arcabouço teórico que fomos buscar recursos para nossas opções metodológicas; igualmente foi extremamente valioso rever com cuidado aspectos determinantes com relação à docência superior. Cumpre destacar, assim, as obras de Alberti (2005), Braga (2002), Bosi (2003, 2004), Fazenda (1992), Ferreira e Amado (2002), Masetto (2003), Meihy (2000), Nóvoa (1995), Park (2000) e Werle (2005).
Temas emergentes com os relatos dos professores entrevistados: análise e interpretação Os depoimentos dos professores trouxeram informações relevantes, e, com base nelas, foi-nos possível construir uma sistematização privilegiando quatro grandes temas, todos configurados a partir de uma perspectiva mais fundante – a das mudanças verificadas ao longo do tempo, tal como os docentes puderam percebê-la e julgar. Esses temas foram dispostos como: A. Mudanças nas formas de ensinar e mudanças que ocorreram na sala de aula. B. A estrutura da Universidade em relação ao ensino, pesquisa e extensão. C. A relação da Universidade com o município de Campinas e região. D. Movimentos dentro da Universidade. 113
Queremos destacar, agora, com relação a esses temas, aquilo que surge com maior evidência, aparecendo como determinante para a reflexão interpretativa cabível. Interessa notar que, não apenas aspectos de teor ou conteúdo dos dados apresentados e narrados, mas também aqueles evidentes nas narrações mesmas, que indicam um alto grau de elaboração e de consciência são determinantes, pois que mostram o desenvolvimento de um posicionamento teórico marcadamente decidido pela apropriação, em todos os docentes, da prática no interior de um processo de reflexão. Relativamente ao primeiro grande tema – Mudanças nas formas de ensinar e mudanças que ocorreram na sala de aula -, os vários relatos apontam para situações que podemos perceber como comuns; dentre elas, aquelas referentes à mudança nos quadros discentes no que toca à proveniência social, à presença de universos culturais diferenciados, com conseqüentes mudanças em atitudes, posturas e comportamentos, dos alunos, face à questão do conhecimento e com respeito ao próprio inter-relacionamento e à posição do professor. O papel do docente é avaliado como, em geral, não sendo adequadamente caracterizado, hoje, por confronto com épocas passadas. Maior profundidade e maior reflexão para o enfrentamento das atividades intelectuais são atribuídas às situações de aprendizagem para momentos anteriores, e varias advertências com relação ao desempenho investigatório dos alunos de hoje – como pesquisa bibliográfica – estão presentes nos relatos dos docentes. Várias são as causa aventadas pelos professores: desde as requisições estabelecidas pelo mercado de trabalho com referência à titulação exigida até a disponibilizacao de recursos tecnológicos e informacionais, na atualidade, mal e contraproducentemente utilizados. Ainda com relação à disposição dos mesmos recursos, a utilização pelos professores aparece julgada como bastante condicionada – de modo geral, são vistos como instrumentos de trabalho, cujo emprego deve ser justificado, sob pena de promoção de prejuízos para a aprendizagem quando adotados maciça e indiscriminadamente. Outro aspecto 114
recorrentemente indicado nas avaliações docentes diz respeito às situações de envolvimento e comprometimento social, hoje considerada nesses relatos como deficitárias. No tocante ao tema da estruturação universitária em torno à pesquisa, ensino e extensão, todos os professores relacionam diversos aspectos positivos relacionados às mudanças ocorridas; fica evidente que, para os docentes entrevistados, a situação atual aparece como orientada positivamente para cumprir com os tributos próprios à concepção de universidade. Desse modo, a avaliação elaborada nos relatórios coloca-se como extremamente favorável, uma vez que a estrutura atualmente adotada contribui decisivamente para estabelecer as condições necessárias ao trabalho científico, à divulgação do saber, e ao tratamento das questões relativas à formação docente mais adequada. Todavia, uma observação incisiva diz respeito à necessidade de se fazer acompanhar o desenvolvimento da estrutura universitária orientada por esse tripé de um trabalho em cima da integração entre cursos e do relacionamento humano. E, também, na medida em que transparece nos relatos a consideração de que uma vocação precípua da Universidade Católica continua a residir no ensino, aparece reforçada em vários depoimentos a noção de que tanto a pesquisa quanto o ensino em nível de pósgraduação ganham legitimidade desde que atuem no sentido de melhorar a formação docente, o próprio ensino e a participação social da Universidade. Todos os professores entrevistados apontaram um grande papel para a PUC-Campinas no relacionamento desenvolvido com a cidade e região. Com respeito a décadas anteriores, a participação da universidade aparece com maior relevância no que diz respeito a ações sociais de cunho religioso e assistencialista; a sua presença, marcante, na formação de professores e em atividades envolvendo escolas e colégios da cidade e da região também foi bastante acentuada. O desenvolvimento socioeconômico da cidade e do entorno foi indicado e historiado de modo a levar às considerações sobre o momento atual de transformação radical para a cidade 115
tornada sede de uma grande região metropolitana; nesse quadro, muitas das mudanças experimentadas pela Universidade, como por exemplo, uma retração nas licenciaturas em razão da emergência de muitos cursos, faculdades e instituições universitárias novas, foram comentadas para indicar a divergência de propostas e projetos – tendo a PUC-Campinas de acompanhar e satisfazer exigências estipuladas pela sociedade contemporânea, marcadamente às derivadas da preeminência do mercado; transparece ainda, nos comentários efetuados, o empenho, pela Universidade, pela manutenção de níveis satisfatórios para o ensino, o conhecimento e o desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades. Nesse momento, aponta uma crítica em relação àquelas instituições que se desviariam da relação primordial instituição – saber, atraídas, sobretudo pela satisfação de requisições mais propriamente mercantilistas. Outro elemento relevante nos discursos apresentados trata, com base nas considerações dos diversos tipos de movimentos e mobilizações, vivenciados na PUC-Campinas, da ação e participação de alunos e professores. A maioria dos relatos indica a ocorrência de movimentos reivindicatórios, de contestação, de greves, entre outros, que tiveram lugar nas ultimas quatro décadas. Vários aspectos e condições são introduzidos aqui, como à questão dos confrontos de opiniões e perspectivas, o âmbito democrático de encaminhamento de soluções para os conflitos, a relevância de situações e conjunturas políticas como o movimento de 1964 e suas conseqüências, a presença de elementos ideológicos e políticos na constituição e configuração da participação de alunos e de professores nos diversos momentos, dentre outros. A situação atual de apatia e descomprometi mento, relatada em alguns depoimentos, experimentada pela maioria dos alunos, aparecem explicadas como o resultado da permanência por um longo período de uma situação política de exceção e autoritária. Enfim, todos esses dados permitem a reflexão sobre pontos significativos como a historia da Universidade e da atuação de seus integrantes no interior de conjunturas diferenciadas, as 116
causas, motivações e razoes para atitudes mais ou menos compromissadas e combativas de seus grupos integrantes, a constituição de elementos simbólicos e emblemáticos preponderantes na caracterização do imaginário e das mentalidades atuantes, entre outras questões.
Algumas considerações conclusivas As informações, comentários e explicações que se apresentaram com os depoimentos nas entrevistam dos docentes mais velhos em atuação na PUC-Campinas possibilitaram procedimentos de análise e de interpretação que, conforme o olhar que nos orientava na investigação, levou a enfatizar algumas observações de caráter mais conclusivo. Pensamos ser importante mencionar a esse respeito, de um lado, todos os dados que permitem estabelecer, para o plano das alterações e transformações ocorridas e experimentadas, a apreciação, pelos docentes, das diversas configurações sóciopolíticos e econômicas transcorridas; dos resultados em relação à constituição e emergência de grupos culturalmente determinados e diversos no interior da Universidade, atualmente; da instalação de maior democratização para o acesso ao ensino superior; da necessidade, para a instituição, de promover ações no sentido de, atentando para o teor e a intensidade de tantas mudanças, preservarem as características do projeto que a anima. Por outro lado, também nos parece essencial destacarmos a existência, demonstrada nos relatos, de um alto nível de elaboração reflexiva, pelos entrevistados, para a constituição de sentidos que permitem o estabelecimento de narrativas integradas e articuladas; portanto, a constituição de perspectivas históricas cujo tratamento teórico, nestes professores, mostra-se firmemente fundado nas práticas e experiências. E, com esta observação, queremos ressaltar que, tal como efetivada com os relatos e com os procedimentos derivados da história oral, a posição assumida pelos entrevistados acaba por 117
nos conferir uma posição privilegiada na interlocução e na interpretação. Parece-nos que aos diversos campos do saber aproveita o tratamento de tais referências – a Educação, sua história, a das instituições e também a reflexão sobre a natureza delas, a própria historia, enquanto disponibilizacão de meios e de recursos de encaminhamento para a sua exploração e pensamento. Ficam, assim, abertas diversas alternativas sugeridas com a presente investigação. Com ela, temos a intenção de propor mais alguns elementos para reflexões e discussões que possam ser tomadas frutiferamente para todos aqueles que venham a se interessar pelas questões aqui trabalhadas.
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Rogério Canciam - Mestre em Educação pela PUC-Campinas Vera Lúcia de Carvalho Machado - Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Atua na docência em curso de graduação e em curso de pósgraduação stricto sensu. Publicou MACHADO, V. L. C.; MARAFON, M. R. C. Contribuição o pedagogo e da Pedagogia para a educação escolar: pesquisa e crítica. 1. ed. Campinas: Alínea Editora, 2005. v. 01. 87 p.
Recebido em: 14/06/2007 Aceito em: 20/07/2007
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JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO DE AUTORES CATÓLICOS1 Viviane da Costa
Resumo O presente estudo analisa o discurso educacional veiculado por seis obras de autores católicos publicadas no Brasil entre 1930 e 1960, época em que representantes do pensamento católico disputaram com os liberais o domínio do campo educacional. São apresentadas as falas dos autores a respeito das propostas educacionais da Escola Nova e, em particular, dos princípios filosóficos, sociais e pedagógicos de John Dewey. O objetivo é expor as estratégias discursivas utilizadas pelos autores para persuadir os leitores e encaminhá-los a práticas educacionais consoantes com os preceitos do catolicismo, garantindo assim o predomínio das idéias católicas em âmbito social. A metodologia é a análise retórica baseada nos trabalhos de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação, e Stephen Toulmin, Os usos do argumento. Palavras-chave: Discurso educacional católico; Escola Nova; John Dewey; Análise retórica THE WAY JOHN DEWEY’S IDEAS ARE USED BY CATHOLIC AUTHORS Abstract The present study analyses the educational speech through six works of catholic authors published in Brazil between 1930’s and 60’s during a time where the representatives of the Catholicism disputed with the liberals the dominion of the educational field. It shows the arguments of the catholic intellectuals in relation to the new pedagogical purposes and in particular of John Dewey´s philosophical, social and pedagogic principles. It aim is to show the strategic speech used by the authors to persuade the readers to practice the Catholic Pedagogy making sure, that way, the dominance of catholic ideas. This methodology is rhetorical analysis,
Neste artigo são apresentados alguns aspectos de nossa dissertação de mestrado, intitulada Argumentos católicos contra John Dewey: análise retórica do discurso de oposição à pedagogia nova, apresentada em maio de 2005 ao Programa de PósGraduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha. Pesquisa desenvolvida sob bolsa CAPES. 1
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 121-153, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
based upon the works of the Chaïm Perelman and Lucie OlbrechtsTyteca, Traité de L´argumentation, and Stephen Toulmin, The uses of arguments. Keywords: Catholic educational speech; New School; John Dewey; Rhetorical analysis. JOHN DEWEY EN LA ARGUMENTACIÓN DE AUTORES CATÓLICOS Resumen El presente estudio analiza el discurso educacional vehiculado por seis obras de autores católicos publicadas en Brasil entre 1930 e 1960, época en que representantes del pensamiento católico disputaron con los liberales el dominio del campo educacional. Son presentadas las opiniones de los autores respecto a las propuestas educacionales de la Escuela Nueva y, en particular, de los principios filosóficos, sociales y pedagógicos de John Dewey. El objetivo es exponer las estrategias discursivas utilizadas por los autores para persuadir los lectores y encaminarlos a prácticas educacionales consonantes con los preceptos del catolicismo, garantizando de esa forma el predominio de las ideas católicas en ámbito social. La metodología es el análisis retórico basado en los trabajos de Chaïm Perelman y Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado de la argumentación, y Stephen Toulmin, Los usos del argumento. Palabras-clave: Discurso educacional católico; Escuela Nueva; John Dewey; Análisis retórica
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Considerações iniciais O campo da educação brasileira no período de 1930 a 1960 foi marcado por disputas travadas entre intelectuais católicos e liberais. Ambos os grupos propunham uma reforma educacional sob a ótica da formação da nacionalidade e tinham como ideal a legitimação de uma educação que situasse o país dentro dos preceitos sociais modernos. Porém, para o grupo dos intelectuais católicos, em particular, esse ideal só poderia ser alcançado por uma política que estivesse sintonizada com os princípios religiosos (CARVALHO, 1998). Na busca pela legitimidade no controle da educação, o grupo católico efetivou, então, uma ampla campanha de divulgação de seu ideário pedagógico e de sua política educacional, abordando, também, aspectos do ideário de seus rivais (CARVALHO, 1994). Tendo como pressuposto que o ideário da Escola Nova definiu-se no calor dos argumentos críticos dos intelectuais católicos, neste estudo, analisamos, em específico, seis obras católicas voltadas para a formação do professorado, que trazem desde análises conceituais até comentários sobre realizações educacionais em diversos países.2 Por meio dessas fontes, buscamos expor os argumentos que faziam menção às propostas da Escola Nova e, sobretudo, ao pensamento filosófico e educacional de John Dewey e dos supostos vínculos desse pensador com a psicologia behaviorista e o ideário comunista. 3 Esses livros são : Ensaio da filosofia pedagógica, de Frans De Hovre (1969), Rumos da educação, de Jacques Maritain (1966), Noções de história da educação, de Theobaldo Miranda Santos (1951), A filosofia contemporânea, de Leonardo Van Acker (1981), A favor ou contra a educação nova?, de Suzanne Marie Durand (1956), Filosofia da educação, de John D. Redden e Francis A. Ryan (1973). 2
Em nosso estudo de Iniciação Científica, intitulado John Dewey no ideário educacional católico, desenvolvido em 2001/2002 sob a orientação do Prof. Dr. 3
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Seguindo o referencial teórico da análise retórica, em especial, os trabalhos desenvolvidos por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação, e Stephen Toulmin, Os usos do argumento, neste estudo procuramos expor as estratégias discursivas utilizadas pelos autores para persuadir os leitores e encaminhá-los a práticas educacionais consoantes com os preceitos do catolicismo. Na análise desse discurso, tomamos como base o fato de que os autores católicos tinham o objetivo maior de preservar a influência da Igreja na esfera social por meio da conservação e expansão de seus adeptos. Para isso, em contraposição às propostas da pedagogia nova, que no período eram consideradas pelo grupo católico como perniciosas ao ideal democrático por se fundamentarem na filosofia pragmatista de John Dewey, seus leitores deveriam ser convencidos da primazia da Igreja em nortear uma educação moderna. Desse modo, uma das estratégias efetivadas pelo grupo católico foi a de apresentar ao seu professorado as propostas educacionais dos liberais sob um olhar católico. Com essa campanha seria possível manter o professorado adepto dos princípios católicos e assim garantir o predomínio desse ideário em âmbito social (COSTA, 2004). De um modo geral, Dewey, nas obras que analisamos, é contextualizado como um filósofo cético por negar a existência de uma verdade absoluta e contrariar as bases filosóficas estabelecidas pela Igreja. No campo educacional, a inserção de seus pressupostos Marcus Vinicius da Cunha, mediante bolsa IC/FAPESP, analisamos as matérias publicadas no periódico católico A Ordem no período de 1930 a 1934. Nosso principal objetivo foi verificar o modo pelo qual os intelectuais católicos recontextualizaram e apresentaram ao professorado da época as concepções educacionais renovadoras e, particularmente, o pensamento filosófico e educacional de John Dewey, pensador norte-americano que exerceu poderosa influência entre os educadores denominados liberais. Verificamos, nessa pesquisa, que a principal e mais freqüente linha de argumentação seguida pelos católicos consistia em posicionar os liberais e Dewey no rol dos intelectuais adeptos do behaviorismo e do comunismo (CUNHA; COSTA, 2002).
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filosóficos causaria um distanciamento das bases seguras das ciências que, na opinião dos católicos, deveriam fundamentar as práticas pedagógicas.
Análise do discurso 1- Filosofia católica versus filosofia naturalista Um dos principais temas discursados pelos autores tratase da filosofia católica neotomista em contraposição à filosofia naturalista e suas respectivas conseqüências na educação. Para os católicos, somente a filosofia católica, o neotomismo, seria capaz de nortear a educação em busca do ideal democrático. Por isso, enquanto apresentam a filosofia católica como a única dotada de princípios capazes de conduzir a educação à democracia, por ser um pensamento sintonizado com os avanços científicos, a filosofia naturalista é aludida como uma concepção filosófica permeada por princípios que levam a equívocos no âmbito das ciências e da educação, sendo esta última representada pelas propostas da Escola Nova. A filosofia naturalista é, pois, caracterizada como uma perspectiva contrária ao ideário católico, uma vez que é fundamentada na noção de que a verdade não é eterna e nem imutável e de que só à experiência e à razão cabem julgar o verdadeiro e o falso. Para os autores, da concepção filosófica naturalista é que decorrem o ceticismo e o relativismo, por substituir a existência da verdade onipotente e absoluta pela idéia de natureza. No que tange a educação, os autores prescrevem ser a pedagogia nova uma educação fundamentada na filosofia naturalista e que por isso algumas conseqüências sociais seriam despertadas caso tal pedagogia fosse implantada pelos professores. Uma das principais críticas dos autores às propostas educacionais da escola nova deve-se ao fato dessas propostas serem laicas: a ausência dos princípios religiosos no currículo escolar, como assim 125
atestam os autores, acarretaria a formação de uma sociedade totalitária e comunista. Para explicar as razões pelas quais o naturalismo é uma filosofia equivocada, o argumento dos autores é, invariavelmente, o seguinte: tal filosofia diverge dos princípios católicos, e tudo o que diverge dos princípios católicos está errado. O mesmo raciocínio vale para indicar os méritos do neotomismo: o neotomismo é certo porque converge com a visão católica. Essas idéias formam os seguintes enunciados: “o naturalismo e a pedagogia nova devem ser recusados porque estão em desacordo com a filosofia católica” e “o neotomismo e a pedagogia tradicional devem ser aceitos porque concordam com a filosofia católica”. Esses argumentos podem ser descritos pela forma silogística em que A é a premissa maior, B é a premissa menor e C é a conclusão; dados A e B, então C. Em um argumento silogístico, a premissa maior é a que possui o termo de maior extensão, enquanto a menor contém o termo menos extenso, sendo que de ambas se deduz a conclusão, a qual se apresenta, então, como uma conseqüência das premissas. Assim, temos: A. Todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados; B. o naturalismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica; C. então, o naturalismo e a pedagogia nova são princípios errados. e A. Todos os princípios que concordam com a filosofia católica são princípios certos; B. o neotomismo e a pedagogia tradicional concordam com a filosofia católica; C. então, o neotomismo e a pedagogia tradicional são princípios certos. 126
Observa-se que os enunciados “o naturalismo e a pedagogia nova devem ser recusados porque estão em desacordo com a filosofia católica” e “o neotomismo e a pedagogia tradicional devem ser aceitos porque concordam com a filosofia católica” encontram-se estruturados de tal modo que omitem a explicitação das premissas maiores “Todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados” e “Todos os princípios que concordam com a filosofia católica são princípios certos”. A prática argumentativa, ao contrário da lógica formal, não precisa utilizar todas as implicações para ser considerada legítima frente ao auditório. Um argumento assim elaborado é denominado entimema, pois se apóia nas características dos ouvintes ou leitores, não necessitando, portanto, apresentar todas as premissas que levam à conclusão, uma vez que estas são dadas como admitidas pelo auditório. O entimema é uma dedução, uma demonstração que é construída com base nos valores e práticas próprias do auditório, cujas premissas podem não ser enunciadas ou explicitadas e, mesmo assim, favorecer a aceitação do argumento. Isso acontece porque o auditório reconhece no argumento aspectos e valores que considera reais e verdadeiros (WOLFF, 1993). Assim, os argumentos entimemáticos, caracterizados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.229230) como argumentos quase-lógicos, tiram sua força persuasiva de sua aproximação aos raciocínios incontestados pelo auditório: “ora o orador designará os raciocínios formais aos quais se refere prevalecendo-se do prestígio do pensamento lógico, ora estes constituirão apenas uma trama subjacente”. Os silogismos assim construídos podem ser colocados na forma ampliada proposta por Stephen Toulmin (2001, p. 153), para quem as formas aparentemente inocentes dos argumentos silogísticos podem ocultar alguma complexidade. Dada a natureza perspicaz dos argumentos, devemos levar em consideração a força das premissas quando consideradas como garantia, bem como o apoio de que dependem para sua autoridade. Assim, temos os 127
seguintes componentes adicionais: (D) são os “dados” que se apresentam sobre o objeto particular a respeito do qual se deseja concluir alguma coisa, ou seja, sobre a premissa menor; (W) é a “garantia” que dá fundamento à conclusão, isto é, à premissa maior; (B) é o “apoio” factual à justificativa, um elemento que está implícito no silogismo mas que é decisivo para a sustentação do argumento, uma vez que (W) não é nem factual nem categórica, mas hipotética e permissiva; e (C) é a conclusão. No silogismo sobre o naturalismo e a pedagogia nova, temos que o dado (D) corresponde à proposição “o naturalismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica”; a garantia (W) é “todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados”; e a conclusão (C) é “então, o naturalismo e a pedagogia nova são princípios errados”. Em outras palavras, (W) é o que garante (C), mas para que essa garantia seja válida é preciso haver algum tipo de apoio, designado (B), pertinente ao campo em que se dá o processo argumentativo. Em nossa análise do discurso dos autores pesquisados, vimos que esse apoio não se faz presente, pois todas as distinções estabelecidas entre o certo e o errado repousam exclusivamente na afirmação da garantia “todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados”. Esse modo de argumentar é chamado pelos lógicos de “petição de princípio” (COPI, 1978, p. 84), uma falácia em que a verdade que se quer demonstrar, isto é, a conclusão do raciocínio, é adotada como premissa do próprio raciocínio. A premissa maior está, explícita ou implicitamente, relacionada à conclusão do argumento. Seja no terreno da filosofia, seja no da pedagogia, a base dos julgamentos feitos pelos autores é a aceitação dos princípios católicos, aceitação que é afirmada sem necessidade de discussão, pois é uma premissa supostamente aceita pelo auditório, composto certamente por católicos. Em meios aos argumentos dessa natureza, pode-se extrair uma proposição que confirma o uso da petição de princípio: “a pedagogia nova pode ser aceita, em parte ou no todo, desde que 128
dela sejam expurgadas as afirmações que contrariam os princípios católicos”. Assim, uma mesma idéia que é apresentada como incoerente e inaceitável pode ser mostrada como válida e enriquecedora, desde que seja concordante com a premissa maior que estabelece o princípio católico como verdadeiro para reger o campo da educação e da filosofia. Com isso, os autores estariam admitindo que a pedagogia nova é neutra em termos religiosos, uma vez que o seu conteúdo pode ser preenchido pela religiosidade católica. Se for assim, podemos concluir que a afirmação de que tal pedagogia decorre do naturalismo fica comprometida, se entendermos, como fazem os autores, que o naturalismo é adversário da religião. Em outras palavras, a essência da nova pedagogia teria que ser buscada não no naturalismo, mas em outro campo de idéias – procedimento que até então não é contemplado no discurso dos autores. No campo da retórica, quando um argumento é regido pela petição de princípio, o que está em jogo não é a veracidade do argumento, mas sim a adesão do auditório a uma determinada tese. O emprego da petição de princípio, segundo explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 127), supõe que o interlocutor já tenha aderido à tese que o orador se esforça por fazê-lo admitir. No caso do discurso dos católicos, é isso o que garante o seu sucesso, pois os autores elaboram argumentos pautando-se nas crenças do auditório, isto é, na crença em Deus. Considerando tratar-se de um auditório composto de educadores católicos, a ênfase dada à premissa maior – “tudo o que discorda da filosofia católica é errado” – torna possível afirmar o erro da pedagogia nova, por ela ser naturalista e divergente dos princípios cristãos. A apresentação dessa mesma premissa permite, no entanto, que os autores também argumentem sobre a possibilidade de acolher algumas técnicas da pedagogia nova, sem se arriscarem a ver desqualificadas as suas afirmações depreciadoras dessa mesma pedagogia. Essa mudança nos argumentos torna-se possível porque 129
os autores fazem uso de outros termos modais, denominados por Toulmin (2001, p.145) “qualificadores modais”, esquematicamente indicados por (Q), e “condições de exceção ou refutação da garantia”, indicadas por (R). O uso desses modais permite que a mesma premissa – a maior, já aceita pelo auditório – garanta a veracidade de argumentos que, embora aludam a proposições do tipo “a pedagogia nova discorda da pedagogia cristã”, não inviabilizam a conclusão “a pedagogia nova pode ser aceita, em parte ou no todo, desde que dela sejam expurgadas as afirmações que contrariam os princípios católicos”. Quando esses modais são inseridos no discurso, seguidos da enunciação da premissa universal, o orador encontra subsídios para apresentar, em um mesmo silogismo, as razões e as condições para o auditório renunciar ou não a um determinado princípio. Seguindo o modelo ampliado sugerido por Toulmin, os argumentos dos autores analisados podem ser esquematizados da seguinte maneira: D. A pedagogia nova discorda dos princípios católicos, W. Já que se pode afirmar que todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados, Q. então, provavelmente, R. a menos que a pedagogia nova renuncie às suas afirmações anticristãs, C. pode-se afirmar que a pedagogia nova é um princípio errado. No âmbito do discurso que visa conquistar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, uma mesma premissa pode, assim, qualificar diferentes enunciados e conclusões, tais como procuramos exemplificar na postura dos autores frente às propostas educacionais da Escola Nova: se a pedagogia nova renunciasse à sua base filosófica naturalista e anticristã e alicerçasse na filosofia 130
católica, poderia, provavelmente, ser considerada um princípio educacional correto. No caso em estudo, para que a Igreja viesse a reconquistar o domínio sobre a educação, certamente ela deveria ser vista e reconhecida pelo professorado de formação católica como uma instituição condizente com o ideário da modernidade. Para isso, algumas mudanças na estrutura educacional deveriam ser efetivadas, tais com a implementação das técnicas educacionais escolanovistas, que ora são criticadas pelos próprios representantes da Igreja. Mas como justificar tais mudanças sem o risco de comprometer a filosofia católica, sem contradizer os argumentos críticos à pedagogia nova, por esta ser norteada pela filosofia naturalista, e sem que as teses dos autores sejam contestadas pelo auditório, por lhe parecerem contraditórias? O meio encontrado pelos autores para justificar tal prescrição se efetiva pela tentativa de perpetuar no auditório o sentimento de que a aceitação dos métodos propostos pela Escola Nova não promoveria qualquer alteração na pedagogia cristã, pois as principais técnicas dessa pedagogia poderiam ser absorvidas pelo professor católico sob a orientação única da filosofia cristã. Além do mais, essas mesmas técnicas, segundo atestam os autores, seriam legitimamente cristãs, por terem sido elaboradas por representantes da Igreja. Nesses termos, a justificativa de tal mudança é substituída, como explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 120), por uma tentativa de provar que não houve mudança real: “assim como o juiz que não pode mudar a lei, sustentará que a sua interpretação não a modifica, que corresponde melhor à intenção do legislador; a reforma da Igreja será apresentada como uma volta à religião primitiva e às Escrituras”. Em nossa análise, vimos também que os autores apresentam um enunciado que possui outra conformação: “a filosofia católica, bem como a sua pedagogia, são científicas”, o que se destina a mostrar que o neotomismo é uma filosofia sintonizada com certos avanços da modernidade, particularmente 131
a ciência. Esse argumento difere dos anteriores porque não parte da presunção de um auditório particular. Ele se dirige a um auditório que talvez não compartilhe da crença no catolicismo, ou seja, que talvez não aceite as premissas universais “tudo o que concorda com a o catolicismo está certo” e “tudo o que discorda da visão católica está errado”. É por isso que os autores apresentam alguns pensadores de reconhecida atuação na era contemporânea e que, segundo mostram, concordam com a visão católica. Muitos argumentos influenciam o auditório unicamente por causa do prestígio. O argumento de prestígio, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 348), é o argumento de autoridade, o qual utiliza a apresentação de “atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese”. Por meio da apresentação de pensadores contemporâneos prestigiados nas áreas da filosofia e da educação, os autores encontram uma maneira de sustentar suas afirmações, pois a figura de uma pessoa reconhecida no campo em que o auditório se localiza, e que, por sua vez, compartilha dos mesmos princípios, faz valer os argumentos pronunciados sem qualquer tipo de discussão. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 529) chamam a atenção para outra técnica discursiva, “a superestimação voluntária do orador da força dos argumentos”. Como vimos, nossos autores superestimam a força de seus argumentos; fazem isso, por exemplo, quando certificam os leitores de que somente a filosofia católica é capaz de nortear o campo científico e o campo educacional à verdade. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, essa é uma atitude que tende a aumentar a força dos argumentos, pois “apresentar uma conclusão como a mais do que é aos nossos próprios olhos significa comprometer a nossa pessoa, usar de seu prestígio, acrescentar desde então aos argumentos um argumento suplementar”. Vale destacar o uso de um outro mecanismo discursivo que visa conferir legitimidade a uma tese, em detrimento de outra. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 119), o 132
orador, a fim de concretizar a adesão a seu discurso, pode servir-se da “técnica da coisa julgada”, a qual consiste em realizar comparações entre enunciados opostos para indicar a veracidade de apenas um deles. Essa técnica também se encontra estruturada no discurso dos autores analisados: ao apresentarem a pedagogia nova e a pedagogia cristã, comparando-as, os autores o fazem de tal modo que induzem o julgamento dos leitores em prol da legitimação da pedagogia cristã, principalmente porque o tratamento dado a essa última traz a enunciação de valores próprios e característicos do auditório.
2 – Pragmatismo, socialismo e pedagogia nova No pensar dos católicos, a principal corrente filosófica derivada do naturalismo é o pragmatismo, considerado um princípio filosófico e científico inaceitável a qualquer adepto da filosofia educacional católica, por permear, como assim descrevem, “a descrença dos valores eternos e absolutos da fé cristã, e por pregar o princípio de que não há qualquer forma de valores fixados ou verdades eternas que não seja unicamente de natureza mutável, prática e material”(REDDEN; RYAN, 1973, p. 430). Os representantes da filosofia pragmatista, principalmente John Dewey, são apresentados como adeptos da filosofia naturalista e defensores de uma educação demasiadamente voltada para os bens sociais coletivos, “na qual não há fim absoluto, e tudo se torna relativo” (DE HOVRE, 1969, p.20). No discurso dos autores, certas conseqüências sociais são apresentadas como decorrentes da inserção em âmbito educacional dos princípios filosóficos do naturalismo e do pragmatismo. As correntes filosóficas de base naturalista são caracterizadas como veiculadoras de idéias que revelam uma tendência que favorece o socialismo. Os autores atribuem, então, à filosofia naturalista a responsabilidade pelo surgimento do pragmatismo e do socialismo, 133
bem como do modelo educacional daí decorrente, a pedagogia nova. Na forma silogística podemos expressar esse discurso do seguinte modo: A. Todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados; B. o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica; C. então, o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova são princípios errados. Da mesma forma, a pedagogia baseada nos princípios católicos é certa porque é coerente com a filosofia católica, que é, invariavelmente, certa. Colocando esse silogismo no modelo de Toulmin, temos: D. O pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica. W. Considerando que todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados, C. então o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova são princípios errados. A proposição que atua como garantia (W) para a conclusão (C) deveria receber um apoio factual (B), o que não ocorre no discurso dos autores analisados, ou seja, não há nenhuma informação que sustente a proposição “todos os princípios que discordam da filosofia católica são princípios errados”. Enfim, temos aqui, novamente, o recurso da petição de princípio, o qual, como já vimos anteriormente, encontra sua validade no auditório considerado, composto por católicos. A exposição feita até aqui permite que avancemos um pouco mais em nossa análise, destacando agora o enunciado “o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica”, que é uma das premissas do silogismo acima apresentado. Ao colocá-lo na qualidade de conclusão, podemos avaliar as razões empenhadas pelos autores para a sua afirmação. 134
O discurso elaborado na primeira parte deste capítulo permite identificar essas razões, ou seja, os dados (D). Podemos, também, tentar compreender as garantias (W) do argumento, como bem os elementos que constituem os seus apoios (B). O argumento pode ser assim formulado: D. O pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova apresentam a característica X. W. Todos os princípios que apresentam a característica X discordam da filosofia católica. B. É assim porque a filosofia católica possui o atributo Y, que é discordante de X. C. Então, o pragmatismo, o socialismo e a pedagogia nova discordam da filosofia católica. Cabe-nos, então, verificar o que é X, o elemento de discordância com a filosofia católica e seus atributos Y. Segundo o discurso dos autores, tal atributo pode ser localizado perante os seguintes enunciados: “o pragmatismo é uma filosofia da ação que despreza as coisas espirituais”; “o socialismo privilegia as exigências sociais em detrimento dos valores individuais”; “ambos, pragmatismo e socialismo, são nocivos à democracia e favoráveis ao estatismo”; “os princípios educacionais renovadores conduzem a humanidade à indagação sobre a existência de Deus, e à anarquia social”. Sendo todas essas características X discordantes da filosofia católica, tem-se a garantia (W) para a conclusão (C). Mas, conforme sugere o modelo de Toulmin, toda garantia necessita de apoios factuais B. É preciso que certos fatos sejam apresentados para que se possa afirmar que a filosofia católica possui atributos Y que não compactuam com as quatro características acima indicadas. Em suma, é necessário poder afirmar que a filosofia católica: “jamais despreza as coisas espirituais”, “não privilegia o social em detrimento do individual”, “é favorável à democracia e contrária ao estatismo”. 135
O discurso dos autores afirma tudo isso, implicitamente, é claro, como vimos, mas não apresenta quaisquer fatos em apoio a esses enunciados. Tais fatos deveriam ser buscados na história, nas relações da Igreja com seus fiéis e com o poder político estabelecido. A Igreja, como sustentáculo da filosofia defendida pelos autores, deveria ser por eles mostrada como instituição social que ao longo de sua existência reivindicou e sustentou, por meio do ensino religioso e outros instrumentos, o equilíbrio perfeito entre indivíduo e sociedade, favorecendo a democracia contrariamente ao estatismo. Os autores poderiam, ou deveriam, ser capazes de apresentar exemplos concretos de suas afirmações, no intuito de reforçar suas teses sobre as qualidades da instituição que sustenta a filosofia que defendem: a Igreja Católica. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 399-400), o exemplo é um recurso discursivo que, quando colocado em prática em argumentos voltados para um auditório particular, tende a fundamentar alguma estrutura do real que se quer legitimar. O orador que pretende qualificar seus argumentos por meio de exemplos deve levar em consideração os valores e as concepções características de seu auditório. Para que um exemplo sustente a tese que o orador quer legitimar é preciso que haja uma apresentação dos fenômenos de modo que estes não venham a ser considerados pelo auditório uma simples informação desvinculada da realidade. O emprego de exemplos, no entanto, ao mesmo tempo em que pode viabilizar generalizações a favor de legitimar uma tese, pode também sofrer algum tipo de rejeição por quem os recebe. Ainda segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 402), a rejeição do exemplo, “seja porque é contrário à verdade histórica, seja porque é possível opor razões convincentes à generalização proposta”, pode enfraquecer a adesão à tese que se deseja provar. Assim, a escolha de um exemplo, enquanto elemento de prova, pode comprometer o orador, pois pode ser interpretado de maneira contrária ao que se espera. No nosso caso 136
em estudo, acreditamos que o motivo pelo qual os autores não empregam exemplos para fortalecer suas afirmações sobre a Igreja Católica talvez seja esse: o desejo de evitar o risco de sofrerem algum tipo de contestação. Outro recurso discursivo empregado pelos autores é a inserção de definições. De acordo com Perelman e OlbrechtsTyteca (2002, p. 241), as definições possuem um caráter argumentativo, pois ora podem ser justificadas, valorizadas, com a ajuda de argumentos, ora podem elas próprias configurar-se em argumento. Na apresentação do discurso dos autores, vimos que o termo “pragmatismo”, por exemplo, é definido como “filosofia da ação”, princípio filosófico que prega a “substituição da inteligência pela ação”, que “tem a utilidade como único critério para determinação da verdade”, que “permeia a descrença nos valores eternos e absolutos da fé cristã”. O termo “experimentalismo”, caracterizado sobretudo como um aspecto imante do pragmatismo, recebe os seguintes significados: “ajustamento do indivíduo à sociedade em mudança”, princípio que “busca habituar a criança às práticas sociais universalmente aceitas como disponíveis pela sociedade”. Essas definições, que fazem parte dos atributos X, são expostas de tal modo que tornam desnecessária a explanação de Y, os característicos do catolicismo. Isto se dá porque as definições atuam, por si, como recurso argumentativo, ou seja, por seu intermédio o orador já estrutura na mente de seus ouvintes os elementos interpretativos condizentes com o seu objetivo. Vemos, novamente, o destacado papel do auditório na articulação da estratégia argumentativa dos autores, os quais recorrem às suas crenças e estruturas de pensamento para sustentar o seu discurso. Na busca pela consolidação de suas premissas, todo orador procura elaborar argumentos que possam ser considerados verdadeiros pelos ouvintes por conterem aspectos que lhes são familiares. Para cada auditório, explicam Perelman e OlbrechtsTyteca (2002, p. 131), “existe um conjunto de coisas admitidas que têm, todas, a possibilidade de influenciar-lhes as reações”, 137
conjuntos de ações e concepções que constituem um sistema de referência que serve para testar as argumentações. Toda argumentação, seguindo Perelman e OlbrechtsTyteca (2002, p.136), supõe uma escolha precedente das melhores premissas, dos dados a serem apresentados, e uma avaliação da mais eficiente técnica de enunciar raciocínios. Quem pronuncia um discurso visando à persuasão, complementam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 163), empenhou-se anteriormente em organizar bem seu tempo e sua técnica discursiva para garantir a atenção dos ouvintes. Para isso, para cada parte de sua exposição procura conceder um espaço proporcional aos elementos que deseja ver presentes na consciência de seus ouvintes, sejam valores já partilhados, sejam valores que o orador almeja ver estruturados nas concepções de seu auditório. Por outro lado, enunciados que possam propiciar uma indagação por parte do auditório não devem ser explicitados. No interesse de sua argumentação, o orador se esforça para situar o debate no plano que lhe parece mais favorável. Quando os argumentos são assim elaborados, como denominam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.119), a partir da “inércia psíquica e social” do auditório, o orador tem a possibilidade de conduzir modelos de práticas e concepções futuras que permitem a sustentação ou a continuidade de um determinado ato, ou a veracidade e aceitação de uma determinada tese. Isso ocorre porque o orador, ao enunciar seu discurso, recorre a premissas e valores compartilhados pelo auditório para garantir a validade das teses que busca legitimar. Assim, na busca pela adesão a uma tese, o orador pode contar, para suas presunções, com a inércia psíquica e social dos ouvintes. Pode-se presumir, com isso, “que a atitude adotada anteriormente pelo auditório – opinião expressa, conduta preferida – continuará, no futuro, seja por desejo e coerência, seja em virtude da força do hábito” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, 2002, p. 119). O emprego de aspectos familiares aos 138
participantes do auditório pode, assim, validar um argumento, por ser reconhecido ao menos em parte por eles. O que denominamos atributo Y na argumentação dos autores analisados trata-se, pois, dos valores inerentes à cultura católica, isto é, atitudes, práticas ou concepções vivenciadas no passado e/ou no presente pelos destinatários da mensagem. Esses valores, quando reverenciados pelo orador, tendem a fundamentar as concepções filosóficas e educacionais das teses que apresentam como legítimas, mesmo na ausência de apoios factuais.
3- O ceticismo de John Dewey Na filosofia deweyana, a verdade não é única e nem absoluta; ela é construída e válida para um determinado momento (AMARAL, 1990). Sua concepção filosófica apóia-se numa visão do mundo que se opõe ao que é fixo e imutável, beneficiando a noção de movimento e transformação (CUNHA, 2001). Na visão dos católicos, a filosofia deweyana, por não partilhar da crença de uma verdade absoluta e imutável, tornaria o processo educativo uma atividade deliberativa, incerta, que resultaria na consolidação da política do comunismo. As críticas dos autores a John Dewey se apresentam, especificamente, de dois modos. Em alguns casos, os argumentos são gerais, decorrentes de Dewey ser pragmatista, resultado de o pragmatismo ser uma concepção filosófica originária do naturalismo. Em outros, a argumentação busca sustentar que Dewey, por ser pragmatista, defende radicalmente o primado experimentalista, desenvolvendo sua filosofia sob os preceitos psicológicos e científicos do behaviorismo e do darwinismo, os quais, quando colocados em prática, poderiam levar à construção de uma sociedade comunista. De um modo geral, o pragmatismo é explicado pelos autores como uma corrente filosófica contrária aos princípios escolásticos por pertencer ao movimento filosófico do naturalismo, cujas bases negam qualquer elemento que não seja de 139
natureza material, como a fé, que não pode ser empiricamente verificado. Conseqüentemente, trata-se de uma visão que conduz ao ceticismo, uma forma de pensamento incompatível com a crença nos valores imutáveis, inerentes aos preceitos da Igreja. Os argumentos que atribuem a Dewey a identidade de principal precursor do “experimentalismo” no campo da filosofia e da educação recebem conotações diferentes dos diversos autores. Em certos contextos do discurso, o termo experimentalismo abrange o sentido de um mecanismo de comprovação e verificação de pressupostos científicos e filosóficos até então tidos como verdadeiros. Nessa perspectiva, a filosofia de Dewey teria como objetivo primeiro verificar, empiricamente, postulados filosóficos, até mesmo a religião, a fim de descaracterizá-los como princípios eternos, verdadeiros e/ou científicos. O experimentalismo deweyano, entretanto, também é definido como um conjunto de práticas sociais colocadas em ação por um determinado grupo tendo em vista o bem da sociedade em mudança. Na comunidade escolar, por exemplo, o experimentalismo resultaria na elaboração de práticas comuns entre os alunos. Mas tanto o primeiro significado quanto segundo, quando entrelaçados no discurso, dão margem a que os autores estabeleçam uma relação intrínseca entre o experimentalismo filosófico de Dewey e o seu ideal educacional e social. O “experimentalismo de Dewey”, ou a “filosofia da mudança”, é considerado pelos autores o resultado da fusão feita pelo próprio Dewey entre os princípios “do naturalismo, do evolucionismo e do behaviorismo” (REDDEN; RYAN, 1973, p.482). O pragmatismo naturalista, o experimentalismo, a psicologia behaviorista e a teoria evolucionista, são assim concebidos pelos autores estudados como as principais bases filosóficas e pedagógicas de Dewey. Essa interação de princípios assume dimensões nitidamente políticas, pois a filosofia deweyana é também apresentada como contrária ao ideal democrático. As bases filosóficas e pedagógicas de Dewey não seriam assim compatíveis com uma educação democrática: “O exclusivismo do 140
método experimental, a desconfiança no valor da razão, o desconhecimento prático das relações profundas entre a inteligência e a ação, o relativismo da verdade”, são tendências que, quando aceitas e inseridas na educação, levariam “à mais completa dissolução da vida intelectual e moral: o comunismo”(SANTOS, 1951, p.408). Pela apresentação feita até aqui, vimos que os autores, a fim de legitimarem seus discursos, desencadeiam seus argumentos fundamentados em diversas técnicas ou instrumentos discursivos sob o intuito de obterem ou fortalecerem a adesão do professorado às teses pedagógicas e filosóficas da Igreja Católica. Uma dessas técnicas corresponde ao modo de argumentar denominado “petição de princípio”, em que a conclusão apresentada se faz presente no silogismo como uma de suas premissas. Destacamos, também, os argumentos entimemáticos, e outros instrumentos discursivos, como o emprego do argumento de prestígio; a técnica da coisa julgada; o uso de exemplos e a inserção de definições. Esses recursos adquirem caráter persuasivo porque os autores levam em consideração o auditório que buscam persuadir, fundamentando suas teses em valores incontestáveis da audiência, como a crença nos dogmas da Igreja. Para que a argumentação retórica possa desenvolver-se, e assim conseguir aumentar a intensidade de adesão à tese apresentada, desencadeando nos ouvintes a ação pretendida ou criando neles “uma disposição para ação, que se manifestará no momento oportuno” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 50), é preciso que o orador dê valor às concepções em comum do auditório, “é preciso que aquele que desenvolve sua tese e aquele a quem quer conquistar já formem uma comunidade” (PERELMAN, 1999, p.70). Considerando todos esses aspectos já apresentados, que caracterizam o discurso dos católicos como persuasivo, nosso intuito, agora, é mostrar as bases dos argumentos que tornaram possível os autores expandirem a tese de que John Dewey, tido como o principal representante do pragmatismo no contexto da filosofia contemporânea e da educação moderna, é um pensador 141
pragmatista de princípios experimentalista e behaviorista, e idealizador de uma sociedade comunista. O pragmatismo, assim como o naturalismo, é considerado pelos autores uma filosofia falsa e equivocada por contradizer os princípios dogmáticos que os católicos defendem. As concepções que os autores elaboram acerca do pragmatismo, de ser uma filosofia de princípios equivocados, principalmente por negar a existência de uma verdade absoluta e apregoar somente a existência de uma realidade material, são, também, as que fundamentam as teses lançadas especificamente sobre a filosofia deweyana e seu ideal educacional e social. No conjunto de argumentações que os autores buscam evidenciar diante do professorado, Dewey é considerado o sustentáculo de uma filosofia cética e o idealizador de uma proposta educacional e social também condizente com o ceticismo, por desprover sua filosofia de quaisquer fins e valores que não sejam de natureza experimental e social. O pragmatismo deweyano, segundo argumentam os autores, é uma filosofia cética porque apregoa a idéia inaceitável aos católicos de que a verdade só pode ser legitimada por meio de experimentos e comprovações científicas, o que exclui a religiosidade como critério de verdade. Esse argumento pode ser descrito pela forma silogística, na qual, dadas uma premissa maior e uma premissa menor, obtém-se uma determinada conclusão. Assim temos: A. Toda filosofia que não aceita a crença em Deus como critério de verdade é cética. B. A filosofia deweyana, por ser pragmatista e naturalista, não aceita a crença em Deus como critério de verdade. C. Logo, a filosofia deweyana, por ser pragmatista e naturalista, é cética. Essa mesma alegação pode ser descrita na forma silogística ampliada proposta por Toulmin (2001). Esse 142
procedimento torna-se pertinente em nossa investigação porque permite verificar qual a garantia (W) empregada pelos autores em seus argumentos. No silogismo acima elaborado, pode-se tomar uma das premissas como garantia do argumento, relacionada à conclusão que se quer legitimar, o que caracteriza, mais uma vez, o uso da falácia de petição de princípio. Assim, o enunciado que atuava como premissa menor constitui o dado (D), ao passo que a premissa maior é a garantia (W) que busca legitimar a conclusão (C): D. A filosofia deweyana, por ser pragmatista e naturalista, não aceita a crença em Deus como critério de verdade. W. Já que se pode afirmar que toda filosofia que não aceita a crença em Deus como critério de verdade é cética, Q. então, certamente, C. conclui-se que a filosofia deweyana, por ser pragmatista e naturalista, é cética. Pelo esquema apresentado, torna-se possível visualizar as bases pelas quais os autores regem a conclusão de a filosofia deweyana ser cética. A principal causa do ceticismo de Dewey advém do próprio pragmatismo: segundo acreditam os autores, o pragmatismo resultou do princípio filosófico do naturalismo, que por desconsiderar a existência de valores e verdades imutáveis no tempo, é considerada uma filosofia cética e falsa pelos católicos. Além disso, a garantia “Toda filosofia que não aceita a crença em Deus como critério de verdade é cética” encontra-se estruturada em valores partilhados e já aceitos pelo auditório, os quais predizem ser a filosofia católica a única que possui conhecimentos certos por crer na existência da verdade absoluta. Sendo assim, a descrença pragmatista nos princípios dogmáticos do catolicismo é o que justifica e permite aos autores considerarem a filosofia deweyana cética. 143
No silogismo acima, na passagem do dado (D) à alegação final (C), faz-se presente, além da garantia (W) do argumento, um qualificador modal (Q) – “certamente”. Segundo explica Toulmin (2001, p. 145), os qualificadores modais servem para indicar a “força” conferida pela garantia na passagem do dado à conclusão. A escolha do qualificador modal depende da garantia e dos dados que são enunciados a favor da tese que se quer fortalecer. Assim, quando a garantia autorizar apenas um passo provisório dos dados à conclusão, um passo que só pode ser dado “sob certas condições, com exceções ou qualificações”, torna-se mais adequado aludir a qualificadores modais como “provavelmente” e “presumivelmente”. Em se tratando dos autores por nós pesquisados, pode-se empregar o advérbio “certamente”, porque seus dados encontram-se fundamentados numa garantia partilhada e incontestável pelo auditório, de onde advém o alto grau de persuasão e aceitação do argumento como um todo. Tendo em vista o fortalecimento dos argumentos que prescrevem ser Dewey o representante de uma filosofia cética, os autores também se ocupam em estruturar argumentos sobre o experimentalismo de Dewey, com os quais procuram demonstrar sua natureza cética e equivocada. Para isso, desenvolvem argumentos em que identificam a psicologia behaviorista e a teoria evolucionista de Darwin como as bases do pensamento experimentalista de Dewey. A razão apresentada pelos autores para essa alegação é a de que Dewey acredita ser o homem o resultado de sua adaptação aos estímulos que recebe do meio em que vive. Para provarem a veracidade desse argumento, os autores certificam ao professorado que o próprio Dewey deixa explícita sua adesão ao behaviorismo e ao darwinismo em algumas de suas obras. A respeito dessas obras, diga-se de passagem, os autores apenas as mencionam, sem fornecerem maiores detalhes; em troca disso, entretanto, oferecem suas palavras, seu prestígio perante a comunidade, e estruturam seus discursos em aspectos que comungam com o auditório. Nesse caso, empregam a técnica das “figuras de comunhão”, a qual, segundo explicam Perelman e 144
Olbrechts-Tyteca (2002, p. 201), é obtida por meio de referências a uma cultura, a uma tradição ou a um passado. Por essa razão, ao alegarem que o experimentalismo de Dewey nega a verdade absoluta, e assim, os princípios dogmáticos da Igreja, valores que certamente são compartilhados pela comunidade católica, os autores encontram as condições necessárias para afirmarem ser o experimentalismo de Dewey um princípio falso e também cético. Seguindo as teses de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 529), podemos ainda observar que os católicos também utilizam a técnica de “superestimação” de argumentos, que consiste em “estender os acordos particulares” já estabelecidos com o auditório durante uma discussão, “sem que o interlocutor tenha dado sua adesão explícita”, o que leva uma conclusão a ser “mais certa do que é”. Podemos visualizar esse mecanismo nos argumentos que entrelaçam a filosofia pragmatista de Dewey como o behaviorismo e o darwinismo, quando, em suas alegações, os autores levam em consideração que suas teses podem ser facilmente aceitas pelo auditório ao concluírem que Dewey é um adepto do behaviorismo e do darwinismo. A afirmação, esta sim demonstrada, de que Dewey quer uma educação vinculada às circunstâncias sociais vigentes, é imediatamente associada, desta feita sem demonstração, às idéias behavioristas e darwinistas. Mediante um pré-julgamento em benefício de seus próprios argumentos, os autores conseguem obter o veredicto que almejam a respeito de enunciados sobre os quais a audiência ainda não tem opinião formada. Assim, tendo como garantia a aceitação prévia de determinadas teses e a inércia psíquica e social do professorado de formação católica, os autores chamam a atenção de seus ouvintes sobre as possíveis repercussões do ceticismo deweyano em âmbito social. Essa mudança do foco das argumentações dos católicos caracteriza o uso de uma técnica discursiva, que também favorece a persuasão, denominada “argumento da direção”. Segundo explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 326), o uso dessa técnica permite que uma mesma alegação sirva de alerta 145
contra outros fenômenos, isto é, que uma tese já aceita dê fundamento a outras teses que o orador ainda se esforça em legitimar. É o que fazem os autores quando afirmam que a filosofia pragmatista, por ser cética, é contrária ao ideal democrático. Regidos pela garantia de que “Somente uma filosofia que crê na existência de Deus pode alcançar a democracia”, premissa que faz referência à cultura comum da comunidade católica, sua crença em Deus, os autores desenvolvem novas conclusões a respeito do pensamento educacional e social de Dewey. Os autores passam, então, a estruturar seus argumentos sobre o que acreditam ser o ideal educacional de Dewey, e também, sobre as possíveis repercussões desse ideal na sociedade. O apoio encontrado pelos autores para entrelaçarem seus argumentos de natureza filosófica com argumentos de especificidade sociológica e educacional se concretiza nos argumentos que explanam ser Dewey um partidário radical do experimentalismo em âmbito social, por considerar o experimentalismo como o único princípio válido para nortear a filosofia e as ciências em geral. Por tomar o experimentalismo como critério de sua filosofia educacional, Dewey poderia levar o seu ceticismo à estrutura social, com a conseqüência de promover o comunismo. A explicação que os autores oferecem sobre essa suposta adesão ao radicalismo é que Dewey apresenta uma característica em comum com os radicalistas: a descrença e ausência de sentimentos religiosos – o ceticismo. A descrença de Dewey nos postulados religiosos, aliada à sua adesão ao socialismo, vertente da sociologia que os católicos repudiam por discordar dos princípios da Igreja, são alegações que os autores utilizam para alertar seus leitores de que o pragmatismo deweyano é uma filosofia contrária à proposta social democrática e simpática ao comunismo. Pautados em argumentos desse tipo, os autores articulam seus discursos no terreno educacional, buscando difundir a idéia de que somente uma educação norteada pela 146
filosofia católica é capaz de concretizar o ideal democrático, uma vez que essa educação, como alegam, possui técnicas educacionais modernas e, mais do que tudo, o estabelecimento de um fim preciso à educação. Para os católicos, a finalidade da educação fundamenta-se na existência de uma verdade única, Deus, princípio esse que, segundo interpretam os autores, é desqualificado pela filosofia pragmatista de Dewey. Por reafirmarem ser a característica principal do pragmatismo deweyano o ceticismo, os autores encontram a garantia de argumentos pelos quais buscam mostrar a tese de que Dewey é o pregador de um sistema educacional também cético, cuja descrença na verdade absoluta desproveria a educação de condições para concretizar o ideal democrático, já que, para os católicos, esse ideal somente seria viável mediante a crença na verdade absoluta. Vejamos por quais dados e garantias os autores encontram condições para propagarem entre os leitores a alegação de que a filosofia educacional proposta por Dewey é “incapaz de viabilizar a democracia”: D. A filosofia educacional proposta por Dewey não aceita a crença em Deus como critério de verdade. W. Já que se pode afirmar que toda filosofia educacional que aceita a crença em Deus como critério de verdade é capaz de implementar a democracia, Q. então, provavelmente, C. pode-se concluir que a filosofia educacional proposta por Dewey não é capaz de implementar a democracia. Mesmo que apresentem como garantia de seus argumentos premissas compartilhadas pela comunidade católica, há nesse silogismo apenas uma presunção por parte dos autores de considerarem a filosofia educacional deweyana incapaz de conduzir a sociedade à democracia. Por essa razão, já não se torna viável inserirem o advérbio “certamente” como qualificador (Q) de apoio 147
à garantia (W) de suas teses (C), como fazem quando alegam a legitimidade da filosofia católica perante todas as outras que não crêem na verdade absoluta. O mesmo ocorre quando indicam haver proximidades entre o pensamento de Dewey e o ideal comunista: os autores apenas presumem essa circunstância, não lhes sendo apropriado, portanto, o uso do qualificador “certamente”, e sim do “presumivelmente”.Com base na presunção de que a proposta deweyana não é democrática, passam à de que Dewey pode ser – ou “é”, como afirmam – comunista. Na visão dos autores, por tomar as necessidades circunstanciais e experimentais da sociedade como único critério de verdade, e descrer na existência de Deus, Dewey não tornaria concreto o ideal democrático, mas sim contribuiria para estruturar uma forma de sociedade sem valores a serem seguidos por seus membros. O ceticismo apontado pelos autores como característica da filosofia deweyana, em âmbito social, resultaria na concretização de um ideal comunista, doutrina que é tida pelos católicos como a vertente mais radical do movimento filosófico do naturalismo. Esse raciocínio contém os seguintes enunciados: “a filosofia pragmatista, por não aceitar a crença da existência de Deus como critério de verdade, e por tomar como critério de verdade as condições sociais, encontra-se assentada em ideais arbitrários, o que, em âmbito social, pode conduzir a sociedade ao comunismo”, e a “filosofia católica, por tomar com critério de sua pedagogia a crença em Deus, está assentada em ideais fixos que, em âmbito social, levam à democracia”. Apresentando esses enunciados na forma silogística ampliada proposta por Toulmin (2001), temos: D. A filosofia educacional de Dewey não é uma pedagogia assentada na existência de Deus como critério de verdade.
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W. Já que se pode afirmar que toda pedagogia assentada na existência de Deus como critério de verdade pode atingir o ideal democrático, Q. então, provavelmente, R. a menos que se possa provar que ideais sociais podem conduzir a uma sociedade democrática, C. conclui-se que a filosofia educacional de Dewey não pode atingir o ideal democrático. Em sua crítica do silogismo, Toulmin (2001, p. 145) dá o nome de “condições de exceção ou refutação”, indicadas por (R), às circunstâncias que retiram a “autoridade geral da garantia” (W). No presente caso, o qualificador modal “a menos que se possa provar que a democracia pode ser obtida por meio de ideais sociais” retira a força do enunciado “somente a crença em Deus pode erigir a democracia”. Como a intenção dos autores é garantir a adesão do auditório à conclusão de que Dewey é contrário à democracia e favorável ao comunismo, tal qualificador é por eles omitido. Por fim, destacamos que o discurso dos autores analisados em nossa pesquisa exibe uma outra técnica discursiva que favorece a persuasão, denominada por Perelman e OlbrechtsTyteca (2002) como “dissociação das noções”. Trata-se de desenvolver o raciocínio por meio de pares conceituais opostos entre si, na forma “termo I x termo II”. Perelman e OlbrechtsTyteca (2002, p. 473) tomam como exemplo emblemático o par “aparência x realidade”, sendo o primeiro termo identificado como I, e o segundo, como II. No processo de dissociação, pela enunciação do termo II o orador busca evidenciar o que representa o real e verdadeiro, o correto, o desejável, ao passo que o termo I é invocado como “ilusão e erro”. Vários são os pares analíticos que podemos destacar no discurso aqui estudado, mas desejamos chamar a atenção para o par “ceticismo x dogmatismo”, que consideramos ser, talvez, o fundamento de todos os demais. Para os autores analisados, somente uma filosofia e uma pedagogia regidas por princípios 149
dogmáticos podem levar à democracia, uma vez que o dogma, aquilo que é inquestionável, constitui a verdade representada pela existência de Deus. O pensamento cético, por sua vez, por colocar em dúvida a existência de verdades absolutas, é mostrado como erro. Guiados por esse pensamento, os autores também empregam vários outros pares, sempre em busca de legitimar os respectivos termos II, como: “pragmatismo x neotomismo”, “pedagogia nova x pedagogia tradicional”, “comunismo x democracia”.
Considerações Finais Neste trabalho, chamou nossa atenção o fato de os católicos verem Dewey como descrente da existência de Deus, sendo por isso considerado um representante do ceticismo em âmbito filosófico e social. Foi a alegação de ceticismo o que justificou as aproximações do pragmatismo de John Dewey com o ideal comunista. Por pertencer a um movimento filosófico que desconsidera a existência de verdades absolutas, proposição essa inaceitável para os católicos, Dewey não teria bases suficientes para defender o ideal democrático, já que a ausência daquela verdade no plano social e educacional resultaria na falta dos valores necessários à sustentação da democracia. Ao pronunciarem seus argumentos sob a garantia de Dewey ser um filósofo avesso a princípios dogmáticos e representante do ceticismo, os autores tornaram plausível a afirmação de o filósofo norte-americano ser favorável a uma sociedade comunista, cujo ideal educacional seria adaptar os educandos a exigências políticas totalitárias. O principal apoio que os autores ofereceram a seus argumentos foi, de fato, a enunciação de valores e crenças já aceitos pelo auditório, que nada mais eram do que os princípios filosóficos do catolicismo, baseados na crença em Deus. Este estudo corresponde à nossa primeira tentativa de realizar um empreendimento desse tipo, mediante os recursos da nova retórica. Esperamos ter mostrado o quanto é amplo o campo 150
de aplicação dessa metodologia para a análise de discursos pedagógicos, e contribuído assim com outras investigações sobre as repercussões das idéias veiculadas pelos católicos no Brasil, em particular no período de desenvolvimento do ideário escolanovista.
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Viviane da Costa - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara-UNESP. Mestre em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara-UNESP. Principais publicações: COSTA, Viviane da. O discurso educacional católico como estratégia de dominação política e filosófica do campo educacional: uma abordagem sob a perspectiva de Pierre Bourdieu. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27., Caxambu, 2004. Anais...Caxambu:Anped, 2004. 1 CD ROM; CUNHA, Marcus Vinicius da; COSTA, Viviane da. John Dewey, um comunista na Escola Nova brasileira: a versão dos católicos na década de 1930. História da Educação, Pelotas, n.12, p. 119142, set.2002. Título da Pesquisa de Doutorado: O pragmatismo de John Dewey e os princípios filosóficos céticos. End: Av. Altino Correa Moraes, 490, Jd. Morumbi, cep. 14801-080- AraraquaraSP. Tel: (16) 3331. 3104. E-mail: vidacosta@bol.com.br
Recebido em: 15/04/2007 Aceito em: 20/07/2007
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EDUCAÇÃO E FILANTROPIA NA CIDADE DE SÃO PAULO, NO FINAL DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: UM ESTUDO DA OBRA DO CONDE JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO NO BAIRRO DO IPIRANGA Lincoln Etchebèhére Júnior Leonel Mazzali Rosemari Fagá Viegas
Resumo O objetivo deste trabalho é analisar o comportamento da elite católica paulista nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, diante da denominada “questão social”. As referências são a figura do conde José Vicente de Azevedo e a sua obra – educacional e filantrópica – no bairro do Ipiranga, em São Paulo. A metodologia adotada foi a pesquisa documental e a consulta em bibliografia especializada. A principal conclusão do trabalho é que, diante da “carência social” e da ação dos movimentos sociais revolucionários anarquistas, o Estado, não possuindo uma estrutura voltada para a implementação de políticas sociais, uniu-se à hierarquia da Igreja e à elite esclarecida para concretizar ações direcionadas a amenizar a “questão social”. Se essa parceria foi fundamental para deter os chamados “inimigos da Igreja” naquela época, deixou evidente a importância da Igreja Católica como fornecedora de conhecimentos e habilidades extremamente escassos no meio civil. Palavras-chave: Educação; elite paulista; filantropia. EDUCATION AND PHILANTHROPY IN THE CITY OF SÃO PAULO, IN THE END OF THE NINETEENTH CENTURY AND FIRST DECADES OF THE TWENTIETH CENTURY: A STUDY OF THE WORKMANSHIP OF THE COUNT JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO IN THE SUBURB OF IPIRANGA Abstract The goal of this work is to analyse the behavior of São Paulo’s catholic elite in the last decades of the nineteenth century and first decades of the twentieth century, before the so called “social matter”. The references are the figure of count José Vicente de Azevedo and his educational and philanthropic workmanship – in the suburb of Ipiranga, in São Paulo. The methodology adopted was the História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 155-181, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
documentary research and the consultations to specialized bibliography. The main conclusion is that, before the “lack of welfare” and of the action of the revolutionary anarchist social movements, the State, not owning a structure turned to the implementation of social polices, united to the Church hierarchy and to the clarified elite for actions directed to soften the “social matter”. If this partnership was fundamental to stop the so called “enemies of the Church”, at that time, left evident the importance of the Catholic Church as a supplier of knowledge and skills extremely scarce. Keywords: education; São Paulo’s elite; philanthropy EDUCACIÓN Y FILANTROPIA EN LA CIUDAD DE SÃO PAULO, EN EL FINAL DEL SIGLO XIX Y PRIMERAS DÉCADAS DEL SIGLO XX: UN ESTUDIO DE LA OBRA DEL CONDE JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO EN EL BARRIO DEL IPIRANGA Resumen El objetivo de este trabajo es analizar el comportamiento de la elite católica paulista en las últimas décadas del siglo XIX y primeras del siglo XX, delante de la denominada “cuestión social”. Las referencias son la figura del conde José Vicente de Azevedo y su obra – educacional y filantrópica – en el Barrio del Ipiranga, en São Paulo. La metodología adoptada fue la investigación documental y la consulta en bibliografía especializada. La principal conclusión del trabajo es que, frente la “carencia social” y de la acción de los movimientos sociales revolucionarios anarquistas, el Estado, no teniendo una estructura preparada para la implantación de políticas sociales se ha unido a la jerarquía de la Iglesia y a la elite esclarecida para concretizar acciones con el objetivo de amenizar la “cuestión social”. Si esa unión fue fundamental para detener los llamados “enemigos de la Iglesia” en aquella época, dejó evidente la importancia da Iglesia Católica como proveedora de conocimientos y habilidades extremamente escasos en el medio civil. Palabras-clave: Educación; elite paulista; filantropía.
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Introdução As duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX – transição do regime imperial para a implantação e consolidação da República – foram ricas em situações de natureza política, econômica, social e religiosa. Dentre essas situações de transição merecem destaque: a separação entre o Estado e a Igreja; a consolidação de uma Igreja romanizada, europeizante e ultramontana; o término do regime servil (13/5/1888); a grande imigração européia e, com ela, a chegada dos anarquistas que se fixaram principalmente na zona urbana. A cidade de São Paulo, a partir da chegada da Ferrovia Santos - Jundiaí (1867), expandiu-se, tornando-se progressista. Já não era mais o antigo burgo administrativo e estudantil. O crescimento urbano orientou-se para os bairros de Campo Redondo (Campos Elíseos), Luz, Brás e Campo do Arouche. Surgiram novas freguesias. Era o progresso da cafeicultura e da indústria nascente. Além do Gazômetro, na Freguesia do Bom Jesus de Matosinhos do Brás, a indústria já se fazia presente no Cambuci, na Mooca, no Belém e no Ipiranga. Nos bairros então periféricos instalaram-se os operários, mormente imigrantes — campo fértil para a ação anarquista. O desenvolvimento industrial aumentou o número do operariado urbano, pois São Paulo já possuía ferroviários, trabalhadores dos transportes urbanos e comerciários, que deram origem às associações de classe. Anarquistas editavam jornais, a maioria em língua italiana, e fundavam escolas de alfabetização noturna, veículos para as suas idéias. Igreja e Estado, separados oficialmente desde 15 de novembro de 1889, uniram-se diante da “questão social”, termo que implicava a luta entre o capital e o trabalho. No período,
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surgiram várias instituições1 para amparar a população de menor poder aquisitivo e os desprovidos – antigos trabalhadores livres, imigrantes e ex-escravos. Na cidade de São Paulo, as mantenedoras dessas instituições, na maior parte das vezes, eram Irmandades Religiosas: Santa Casa de Misericórdia, Irmandade do Santíssimo Sacramento, Venerável Ordem Terceira do Carmo, Venerável Ordem Terceira de São Francisco, associações religiosas compostas e dirigidas por leigos2. Além disso, surgiram instituições sem vínculo religioso, como o Instituto Ana Rosa, voltado ao amparo a órfãos, mantido pela família Souza Aranha (barão de Limeira) e Asilo Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga, mantido pela família do Dr. José Vicente de Azevedo. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar e analisar, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, o papel da elite católica paulista, tendo como referências a figura do conde José Vicente de Azevedo e sua marcante atuação nos campos educacional e filantrópico no bairro do Ipiranga. O foco de análise se justifica, de modo particular, a partir da consideração do perfil do conde – católico convicto, monarquista que aceitou a República como fato consumado, deputado provincial pelo Partido Conservador, aristocrata oriundo do vale do Paraíba, senador e deputado estadual, advogado e professor – o qual sintetiza a visão e comportamento da elite paulista no período que interessa a este trabalho. O trabalho está estruturado em cinco seções. A primeira apresenta o processo de urbanização da cidade de São Paulo entre o final do século XIX e início do século XX. A segunda discute as relações entre a Igreja e o Estado, a partir das mudanças políticas advindas da Proclamação da República e da emergência da Sposati, Aldaíza de Oliveira. Vida Urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez, 1988. 1
Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 2
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denominada “questão social”. Após analisar as transformações no ensino oficial e a expansão do ensino protestante, respectivamente, terceira e quarta seções, a última seção aprofunda o estudo da obra educacional e filantrópica do conde José Vicente de Azevedo. Finalmente, a conclusão retoma os pontos centrais e aponta para novas pesquisas.
O processo de urbanização da cidade de São Paulo entre o final do século XIX e início do século XX: a economia cafeeira e o processo de industrialização Em 1872, segundo Juarez Rubens Brandão Lopes3, existiam no País quatro cidades com mais de cinqüenta mil habitantes – Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo –, nesta ordem. Somente as três primeiras possuíam uma população maior do que cem mil habitantes e nenhuma alcançara o marco de meio milhão. Em 1900, havia quatro cidades com mais de cem mil habitantes; o Rio de Janeiro, a maior delas, atingia o marco de 811.443 habitantes, e São Paulo chegava a 239.820 habitantes. O que motivou o crescimento da cidade de São Paulo foi a economia cafeeira, à qual estavam intimamente ligadas uma estrutura bancária, comercial e ferroviária, o estabelecimento das primeiras indústrias e a introdução do trabalhador assalariado de origem européia. O desenvolvimento de uma estrutura creditícia/financeira e o florescimento de uma vasta estrutura comercial, baseada no comércio de importação e exportação, propiciaram, além da diversificação do emprego urbano, a criação de uma rede de distribuição para produtos industriais. A abolição da escravidão e a imigração européia foram decisivas para a formação de um mercado especial, o da força de trabalho. Por sua Lopes, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social: Formação da Sociedade Urbano Industrial no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. 3
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vez, o incentivo à imigração viria a se transformar em fator acelerador do processo de urbanização do final do século XIX e da mudança dos padrões de consumo. O imigrante trouxe novas técnicas e novos hábitos, responsáveis, em boa parte, pelo crescimento da cidade, reflexo do desenvolvimento da então província e posteriormente Estado de São Paulo. O comércio exportador, segundo Lincoln Etchebèhére Júnior4 : (...) favorecia o surgimento de novos grupos numa população urbana que se dedicava a diferentes atividades: profissionais liberais, operários, funcionários públicos, empregados do comércio, etc. Crescia a população citadina aberta à modernidade, que acreditava no “progresso”.
Em decorrência do florescimento do mercado urbano apareceram as primeiras indústrias alimentares – massas, biscoitos, doces, cerveja e carnes salgadas. É importante assinalar que se tratava de uma indústria tipicamente regional, onde não se faziam sentir as economias de escala, e a proximidade do mercado consumidor era de grande importância. O capital era predominantemente nacional, salvo as incursões do capital inglês no ramo de moinhos de trigo e no transporte ferroviário. Os ingleses iniciaram a construção de ferrovias nas regiões cafeeiras de então. A mais importante era a São Paulo Railway Company, Limited, que ligava o porto de Santos a Jundiaí, e desta localidade penetrava nos distritos cafeeiros. Vinculavam-se às ferrovias quase todo o processo de exportação e importação, navios, seguros, comissões, dividendos provenientes das operações financeiras, enfim, os lucros estavam em mãos inglesas em sua grande parte.
Etchebèhére Júnior, Lincoln. A dessacralização toponímica dos municípios paulistas. Tempo e Memória. Ano 2, n.3, ago/dez, 2004, p. 54. 4
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A influência inglesa ultrapassava o âmbito econômico. Conforme Lincoln Etchebèhére Júnior 5: A penetração inglesa ocasionou mudanças nos hábitos urbanos, que procuraram aproximar-se dos costumes europeus no seu cotidiano, quer na indumentária, na alimentação, quer em medicamentos e em artigos sanitários, símbolos da modernidade. O uso de transportes coletivos, a água encanada, o gás e, posteriormente, a energia elétrica, trouxeram igualmente um desenvolvimento urbanístico. Introduziu-se nessa época a prática desportiva – já em 1886 organizou Charles Miller os primeiros quadros futebolísticos de São Paulo. Surgiram os piqueniques, os cafés, as casas de chá, enfraquecendo-se velhos hábitos coloniais, como as concorridas procissões.
A industrialização trouxe consigo a modernização e, em decorrência, transformações econômicas, sociais e políticas. São Paulo possuía uma elite que buscava a sua modernidade; surgiram, então, a Associação dos Engenheiros e o Liceu de Artes e Ofícios, com o objetivo de formar mão-de-obra especializada para a incipiente indústria. O comércio paulista, geralmente na mão de europeus, tinha sua base em artigos de luxo importados para atender à aristocracia da cafeicultura. Nesse período, apareceram os novos bairros aristocráticos, como Campos Elíseos, antigo Campo Redondo, e Vila Buarque, e a Avenida Paulista. A aristocracia imitava as construções européias, e assim ergueram-se os palacetes. Na região central da cidade, os velhos edifícios coloniais deram origem a um novo estilo – Art Noveaux. Entretanto, os imigrantes foram habitar o outro lado do Tamanduateí, além da Várzea do Carmo (atual Parque Dom Pedro II), compreendendo os bairros operários do Brás, da Mooca, do Belém, do Belenzinho e do Ipiranga, redundando em uma
5
Idem, p. 55.
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população carente de assistência em todos os seus níveis, quer educacional, quer sanitário.
Igreja, Estado e “questão social” O golpe de 15 de novembro de 1889, que estabeleceu a República Positivista, trouxe inicialmente problemas para a Igreja; mas esta, ferida com a “questão religiosa”, não execrou o novo regime. Embora os primeiros tempos não tenham sido amigáveis, a não-hostilização do novo regime pelo clero foi favorável a uma posterior reaproximação. A República, ao conceder a liberdade de culto às Igrejas, foi responsável pela entrada, no Brasil, de grande quantidade de congregações religiosas européias: povoaram-se os conventos, mosteiros, abadias, criaram-se novos bispados, abriram-se colégios masculinos e femininos, dirigidos principalmente pelo clero europeu. Foi o período da romanização — a europeização que se fazia presente na nova mentalidade, tão contrária ao velho catolicismo luso-brasileiro. A hierarquia católica, diante do avanço da educação protestante, buscou professores nas ordens religiosas. D. Antonio Joaquim de Mello entregou o Seminário Episcopal da Luz aos frades capuchinhos. As irmãs de S. José de Chambery fundaram o Colégio do Patrocínio, em Itu, e de lá estabeleceram outros colégios. Na mesma cidade, os jesuítas fundaram o Colégio São Luís (1867), transferido para São Paulo no início do século.6 O ultramontanismo ocasionou, no Brasil, a chamada “questão religiosa”, eclipsando o catolicismo liberal, fato que ocasionou a aliança entre as lojas maçônicas, o protestantismo, os republicanos e os espíritas, que viam no ultramontanismo um inimigo comum. Ultramontanos e não-ultramontanos lutaram até a implantação da República, pois o Império possuía uma religião 6
Hoje esse estabelecimento dedica-se também ao ensino superior.
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oficial: a Católica Apostólica Romana, vinculada ao Real Padroado, herança colonial. A Igreja ultramontana desenvolveu novas diretrizes de conduta, que se fizeram refletir no campo da filantropia. À caridade dos avoengos paulistanos, os ultramontanos somaram iniciativas educacionais destinadas a preparar os indivíduos para enfrentar desafios trazidos por uma sociedade em mutação. O Estado e a Igreja, com as relações amenizadas pelo banimento dos “radicais”, necessitavam resolver a “questão social”. Para isto uniram-se contra os anarquistas, considerados um inimigo comum. A Igreja, além dos protestantes e positivistas, deparava-se com novo inimigo: os anarquistas, inimigos também do Estado. No início do século XX, já os jornais noticiavam greve ferroviária, o que levou a Companhia Paulista a fundar uma associação beneficente para os seus empregados. Igreja e Estado, separados oficialmente desde 15 de novembro de 1889, uniram-se diante da “questão social”, termo que implicava a luta entre o capital e o trabalho. O papa Leão XIII, por intermédio da encíclica Rerum Novarum, convocou à harmonia capitalistas e trabalhadores, e instou os católicos a auxiliarem a hierarquia nessa questão. A elite católica, em parte monarquista, cessado o período radical do anticlericalismo republicano e positivista, aderiu à República, pois republicanos positivistas, irmãos de avental e irmãos de opa, pertenciam a uma mesma camada social.
O ensino oficial na Província de São Paulo A educação em São Paulo surgiu com os padres da Companhia de Jesus, quando da fundação do Colégio de São Vicente. Logo depois, os padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta galgaram o planalto de Piratininga, fundando o Colégio de São Paulo (1554). Este foi o pólo irradiador de outros estabelecimentos jesuíticos, como São Miguel, Conceição de 163
Guarulhos e Carapicuíba. A educação jesuítica continuou até a expulsão dos padres da Companhia, em 1759, após 210 anos de permanência no Brasil. O marquês de Pombal, responsável por essa expulsão, criou as “escolas régias”, mantidas pelo subsídio literário cobrado sobre o uso das carruagens, da cachaça e do tabaco. Porém, as novas escolas, regidas por mestres desmotivados pelos baixos salários, tornaram-se de nível muito inferior às do ensino jesuítico. O príncipe regente D. João, que chegou ao Brasil em 1808, tinha interesse pelo desenvolvimento da educação. Esse interesse, entretanto, beneficiou apenas o Rio de Janeiro e a Bahia, restando para São Paulo algumas “aulas régias”. Com a Independência, a Constituição de 1824 determinou em seu artigo 179 que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Esta medida foi confirmada pela Carta Imperial de 15 de outubro de 1827, que mandava criar escolas de primeiras letras para meninos e meninas em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, determinando ainda os vencimentos para mestres e mestras, o concurso público de ingresso, a vitaliciedade dos cargos, e o conteúdo programático: “... os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções gerais de geometria, a gramática da língua nacional e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e História do Brasil”.7 Quanto às mestras, o texto magno observava as diferenciações de gênero: “... além do declarado no art. 6º, com exclusões das noções de geometria e limitada a instrução da Aritmética só às quatro operações, ensinarão também as que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos Presidentes do Conselho aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida 7
Carta Imperial, 15/10/1827, Art. 6º.
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honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames na forma do art. 7º”.8 Portanto, a admissão de professores e professoras privilegiava a “dignidade” ao saber propriamente dito, o que acarretava a contratação de mestres dotados de conhecimentos precários. Contudo, cidades, vilas, freguesias e povoações possuíam aulas de primeiras letras, pelo menos para meninos, em toda a Província, se bem que algumas criadas não foram providas9. Em 1º de outubro de 1828 foi estabelecido o Regimento das Câmaras Municipais, criando Câmaras Municipais em todas as cidades e vilas do Império, que tinham entre as suas atribuições a aplicação das rendas, determinando: “...nas Cidades e Vilas onde não houver Casas de Misericórdia, atentarão principalmente na criação dos Expostos, sua educação, e dos mais órfãos pobres e desamparados”.10 O Ato Adicional de 1834 deu competência às províncias para legislar “sobre instrução pública e estabelecimentos próprios e promovê-las”.11 Por conseguinte, houve a descentralização do ensino: as províncias ficaram incumbidas dos ensino primário e secundário, cabendo o superior à Coroa.12 A Escola Normal Provincial foi criada pela Lei nº 34, de 16/3/1846, e instalada em 9/11/46. Seu professor e diretor era 8
Idem, art. 12º.
9 Cf. in: MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo Ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. Publicado em 1838. Informações corroboradas por Azevedo Marques, em Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo — 1876.
Regimento das Câmaras Municipais do Império, Art. 76, in ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Constituições do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1963. 10
Ato Adicional à Constituição do Império, Art. 10, in ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). op cit. 11
12
Com a República, a competência passou a ser do governo federal.
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o Dr. Manoel José Chaves, bacharel em direito, professor de filosofia do curso anexo à Faculdade de Direito, e tesoureiro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé. O curriculum escolar era semelhante às escolas primárias, acrescentando-se noções elementares de pedagogia. Era uma tentativa de melhoria do ensino, porém, o grande desenvolvimento do ensino normal deu-se com a implantação da República. Homens públicos, bem como literatos e outros profissionais de renome foram professores antes de ocuparem posições mais altas, e outros continuaram no exercício da docência, como José Vicente de Azevedo. Em 1825 foi criado o Seminário de Educandas Nossa Senhora da Glória, graças aos esforços do presidente da Província, barão de Congonhas do Campo, objetivando socorrer as meninas órfãs. A instituição era dirigida por senhoras da sociedade paulistana, sendo sua primeira diretora Elisária Cecília Espínola. Na segunda metade do século XIX, o estabelecimento passou a ser dirigido pelas irmãs de São José de Chambery. A chegada das freiras francesas foi responsável por uma relevante melhoria do ensino. Suas ex-alunas tornavam-se professoras após prestarem concurso público. O Seminário da Glória funciona atualmente no bairro do Ipiranga, e tornou-se uma escola oficial comum com o nome de Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus Seminário Nossa Senhora da Glória, sendo, portanto, o estabelecimento de ensino mais antigo de São Paulo, que ainda conserva o aspecto profissionalizante, pois dele saíram mestras, governantas e damas de companhia da antiga aristocracia paulista. Na Casa de Correção, instalada em 1852, existiu uma escola para sentenciados, sendo seu professor o almoxarife do estabelecimento, capitão Joaquim Mariano Galvão Bueno, que em 1874 passou a desempenhar o cargo de diretor da referida casa. A fundação de estabelecimentos religiosos teve início com a chegada das irmãs de São José, que se estabeleceram em Itu, uma das cidades mais prósperas da época, e terra do bispo de São Paulo, D. Antonio Joaquim de Mello. O retorno dos jesuítas também contribuiu para esse desenvolvimento. 166
O advento da República ocasionou grandes mudanças no ensino oficial. Os líderes republicanos — a grande maioria ligada ao positivismo e às Lojas Maçônicas — introduziram o ensino laico, que por vezes, em determinadas ocasiões e locais, tomava a cor de anticlerical e anti-religioso. O positivismo tornou-se a nova religião do Estado, na afirmação de Eduardo Prado13. O ideário positivista prometia banir a superstição e a ignorância por meio da instrução. No lançamento da pedra fundamental da nova Escola Normal de São Paulo (1890), futura Escola Normal Caetano de Campos, tem-se um exemplo dessa declaração de princípio: a escola serviria “de templo Matriz da Instrucção popular deste Estado de São Paulo”.14 De fato, porquanto da Caetano de Campos surgiram as escolas normais do interior paulista: Itapetininga (1895), Pirassununga (1913), São Carlos do Pinhal (1913), Piracicaba (1913), Botucatu (1913), Guaratinguetá (1918), Campinas (1919) e Casa Branca (1919).
O ensino protestante na Província de São Paulo São Paulo, logo após a Independência, recebeu imigrantes alemães que se estabeleceram em Santo Amaro (1827), fixando-se posteriormente na capital da Província e em outras regiões. Parte desses imigrantes era evangélico luterana, mas os seus adeptos não praticavam o proselitismo, por força da Constituição vigente. Em Petrópolis e outras colônias alemãs, a Igreja Luterana era subsidiada pela Coroa, numa espécie de Real Padroado. O culto em língua alemã prejudicava a expansão do protestantismo. A expansão teve início por intermédio dos missionários norte-americanos — sobretudo presbiterianos, Eduardo Prado, jornalista católico, monarquista, pertencente à elite paulista, escreveu duas obras: Fastos da ditadura militar no Brasil e A ilusão americana, ambas confiscadas pelo governo republicano. 13
14
Ribeiro, José Jacinto Chronologia Paulista, v. II, p. 209. São Paulo, 1904
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metodistas e batistas —, que aportaram no Brasil a partir de meados do século XIX. Em 1868 fundou-se uma sociedade de estudantes na Faculdade de Direito de São Paulo, para combater o protestantismo. Seu líder era Joaquim Nabuco, filho do senador José Thomaz Nabuco de Araújo, um dos defensores dos acatólicos. A sociedade promoveu debate público entre missionários presbiterianos e estudantes, estes provavelmente orientados pelo corpo docente do Seminário Episcopal de São Paulo — reduto ultramontano fundado pelo bispo D. Antonio Joaquim de Mello15. Imigrantes americanos, antigos confederados, espalharam-se em pequenos grupos pela Província, concentrandose em Santa Bárbara, região de Campinas, que se tornou um dos centros de atividade missionária norte-americana. O proselitismo missionário buscou na educação um dos pilares para a sua ação. Abrir escolas era uma maneira de conseguir adeptos, como ocorria com a pregação doutrinária itinerante e a distribuição de bíblias. Em 1866 tentou-se abrir uma escola noturna em São Paulo, mas a iniciativa não se concretizou por falta da licença necessária. Em 1870, George W. Chamberlaine fundou a Escola Americana, estabelecimento que planejava desde 1868. Essa escola funcionou inicialmente na Luz, e em 1872 mudou-se para a Rua Nova de São José, no centro da cidade. Quatro anos depois instalou-se na cidade nova, Freguesia de Santa Ifigênia, esquina das Ruas Ipiranga e São João. Nesse local recebeu a visita de D. Pedro II, em 1878. Nessa ocasião, o imperador teria ofertado dez contos de réis para a compra do terreno onde hoje está instalada a Universidade Presbiteriana Mackenzie. Lecionaram na Escola Americana ilustres brasileiros: o jornalista e romancista Júlio Ribeiro Vaughan, o matemático Foi professor deste seminário frei Vital Gonçalves de Oliveira, nomeado em 1871 bispo de Olinda e Recife. A Questão Religiosa teve origem com este prelado. 15
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Antonio Trajano, o gramático Eduardo Carlos Pereira, e também não-protestantes, como o jornalista Rangel Pestana, ligado ao jornal Província de São Paulo, porta-voz dos republicanos paulistas,16 e o poeta Teófilo Dias. Em Campinas, cidade paulista que a cafeicultura tornara rica e aristocrática, surgiu a Escola Internacional em 1871, fundada por um ex-confederado, o reverendo George Nasch Morton (1841-1904), e mais “cinqüenta cidadãos de projeção”, entre os quais o coronel-comendador Joaquim Egídio de Souza Aranha e João Brás da Silveira Caldeira, além de membros do Partido Republicano, como Manuel Ferraz de Campos Salles, futuro presidente da República, Francisco Glicério de Cerqueira e Francisco Rangel Pestana. Na Escola Internacional integravam o corpo docente americanos e brasileiros notáveis, como Rangel Pestana, Júlio César Ribeiro Vaughan e o latinista e gramático, ex-padre português Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva (1834-1900). A Gazeta de Campinas, em 17/12/1871, anunciou os três princípios “fundamentais e concomitantes indispensáveis da educação: 1) moralidade e religião; 2) inteira liberdade religiosa; 3) escola franca a estudantes de todos os credos e de todas as nações”.17 A colônia alemã de São Paulo fundou a Escola Alemã, instalando-a modestamente na Rua da Constituição. Essa escola foi mais tarde transferida para um vistoso prédio de estilo normando, na Freguesia da Consolação, próximo ao Colégio Mackenzie, e se tornou uma das melhores escolas de São Paulo.18
16
Hoje, O Estado de S. Paulo.
Vieira, Daniel Gueiros O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil. Brasília: Universidade de Brasilia,, 1980, p. 262.
17
Trata-se do atual Colégio Visconde de Porto Seguro, funcionando no bairro do Morumbi. 18
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Os metodistas fundaram o Colégio Piracicabano, também modestamente instalado na Rua da Boa Morte, e atualmente Universidade Metodista de Piracicaba. Os estabelecimentos protestantes passaram a concorrer com os estabelecimentos católicos e oficiais na formação religiosa de crianças e jovens. No presente, essa concorrência limita-se quase que exclusivamente aos campos pedagógico e econômico.
A obra educacional e filantrópica de José Vicente de Azevedo no bairro do Ipiranga São Paulo era uma cidade em franco progresso e de grandes transformações, advindo, com elas, graves problemas sociais. Ao operariado urbano de origem européia — em especial italianos, portugueses e espanhóis — juntavam-se trabalhadores urbanos já existentes e ex-escravos, todos com necessidade premente de atendimento social. José Vicente de Azevedo (1859-1944), criado no tradicional catolicismo luso-brasileiro, conheceu a caridade cristã que se manifestava nos meios familiares e públicos, por intermédio das tradicionais irmandades, particularmente a da Misericórdia. O conde ingressou na Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé de São Paulo, da qual foi provedor por 22 anos. Nesse cargo procurou, além das obrigações ligadas diretamente ao culto eucarístico, que fazia questão de honrar dignamente, dedicar-se às questões sociais. Impregnado pelos ensinamentos cristãos, ressaltados nas encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII (18781903), e Quadragésimo Anno, de Pio XI (1922-1939),19 José Vicente de Azevedo desenvolveu a sua filantropia e a de seus colaboradores, que podia ser vista como um exemplo da prática assistencialista da elite católica paulista. No bairro do Ipiranga Encíclicas que objetivavam a solução da questão operária a partir dos princípios da caridade cristã, unida à justiça distributiva. 19
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surgiram, assim, obras educacionais, assistenciais e religiosas, tais como: 1. Asilo das Meninas Órfãs N.S. Auxiliadora do Ipiranga; 2. Orfanato Sagrada Família; 3. Orfanato Cristóvão Colombo; 4. Grupo Escolar São José; 5. Seminário Maior Imaculada Conceição; 6. Clínica Infantil do Ipiranga (Hospital D. Antonio Cândido Alvarenga); 7. Instituto Padre Chico (primeira instituição educacional para cegos de São Paulo). A primeira obra iniciada pelo conde Dr. José Vicente de Azevedo, no bairro do Ipiranga, foi, segundo Maria Angelina Franceschini 20, o Internato Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga, responsável (indiretamente) pelo surgimento do Educandário Sagrada Família, do Grupo Escolar São José e do Noviciado Nossa Senhora das Graças. O Internato Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga foi inspirado no Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória – único estabelecimento gratuito existente na Paulicéia, fundado em 182521, de caráter oficial, posteriormente dirigido pelas irmãs de São José de Chambery22. Franceschini, Maria Angelina V. de A et alii. Conde José Vicente de Azevedo, sua vida e sua obra. São Paulo: Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga, 1996.
20
Azevedo Marques, Manuel Eufrázio. Apontamentos históricos, geográficos, estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo (1876). São Paulo: Edusp, 1980, v. II. 21
As irmãs de São José de Chambery iniciaram seus trabalhos educacionais no Brasil ao estabelecerem o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, na então “Fidelissima Cidade de Itú”, uma das principais da Província de São Paulo. Estabeleceram-se posteriormente na capital da Província, com o Colégio São José, situado na Rua da Glória, propriedade da Irmandade de Misericórdia de São 22
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O Dr. José Vicente de Azevedo fundou o Asylo de Meninas Órfãs e Internato de Nossa Senhora Auxiliadora, cuja pedra fundamental foi lançada em 26 de outubro de 1890. A finalidade da obra era ministrar instrução primária, educação, prendas domésticas e profissionais gratuitamente a órfãs desvalidas, de preferência filhas de famílias brasileiras outrora abastadas. Amparo que se estendia, segundo Lincoln Etchebéhère Jr.23, às órfãs e às irmãs que cuidassem das mesmas, caso viessem a falecer no referido asilo. As obras foram projetadas graciosamente pelo Dr. Francisco de Paula Ramos de Azevedo, indicando para executá-las o arquiteto Guilherme Krug, que com seu filho as concluiu. O asilo foi inaugurado, após muitas dificuldades, aos 22 de novembro de 1896. A administração interna do referido asilo ficou sob a assistências das irmãs de Maria Auxiliadora ou salesianas. A manutenção do asilo ficou sob a assistência da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé, da qual o Dr. José Vicente de Azevedo era irmão provedor. Em 1911, a referida irmandade deixou de ocupar-se daquela instituição e a administração coube, então, ao Dr. José Vicente de Azevedo, que recebera, desde 1892, grande doação destinada ao asilo feita pelo Sr. Joaquim Floriano Wanderley. Em 1924, as irmãs salesianas deixaram a direção do asilo. Dona Leonor de Campos Salles, filha do presidente Campos Salles, auxiliada por outras senhoras dirigiu o estabelecimento. Em 1933, regressaram as irmãs salesianas, permanecendo até 1952, quando a direção passou a dona Maria José Meira de Vasconcelos. No ano seguinte, 1953, a direção passou às mãos
Paulo, e ainda como enfermeiras no Hospital de Misericórdia da mesma cidade. Na capital paulista ainda passaram a dirigir o Colégio Sant’Ana. Etchebéhère, Lincoln Jr. Apontamentos Históricos da Universidade São Marcos. São Paulo: Universidade São Marcos, 1995.
23
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das irmãs da Congregação das Filhas de Nossa Senhora do Sagrado Coração, que lá permanecem até a presente data. O Dr. José Vicente de Azevedo não se lembrou apenas das órfãs desvalidas de famílias outrora abastadas, lembrou-se também dos ex-escravos e das crianças filhas dos mesmos. Surgiu assim a Instituição da Sagrada Família, através do educandário de mesmo nome, cuja origem remonta ao final do século XIX, quando existia uma capela em honra à Sagrada Família em terras de sua propriedade. Em 1900, um grupo de paulistas dirigiu-se ao bispo de São Paulo, dom Antonio Cândido de Alvarenga, solicitando apoio a fim de erguer as Casas da Providência, que compreendiam, segundo Maria Angelina Franceschini24, um Instituto de Agricultura Prática, Artes e Ofícios para ensino de menores, filhos ou descendentes dos antigos escravos, bem como um asilo para velhos ex-escravos ou seus descendentes. O Dr. José Vicente de Azevedo ofereceu para a obra um terreno na colina histórica do Ipiranga, e em 29 de setembro de 1901 foi lançada a pedra fundamental no local da Capela da Sagrada Família. As irmãs da Providência receberam a obra por escrito e foram autorizadas a receber esmolas para mantê-la. Solicitou-se também verba para sua manutenção, oficiando ao então presidente do Estado, conselheiro Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves. Em 1902, alegando insegurança no local e não tendo o necessário para sua manutenção, as irmãs da Divina Providência comunicaram à superiora que não continuariam a obra e se retiraram para o bairro da Mooca.25 Em fevereiro de 1903, chegou a São Paulo, procedente de Nova Trento, Santa Catarina, o padre Luiz Mária Rossi, pertencente à Companhia de Jesus, que assumiu o cargo de 24
Franceschini, Maria Angelina V. de A et alii, op. cit.
Brida, Sabina Della. Educandário Sagrada Família 80 anos. São Paulo: s.c.p, 1983. 25
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superior da Residência dos Jesuítas de São Paulo. Padre Rossi aceitou e acatou a sugestão de trazer as irmãs de Nova Trento para administrar a Capela da Sagrada Família, procurando o Dr. José Vicente de Azevedo para doação de terreno e ajudar no pagamento da viagem das irmãs para São Paulo. Assim, a chamado do padre Rossi, duas irmãs e uma postulante partiram de Nova Trento em 17 de julho de 1903, e após cinco dias chegaram a São Paulo. O Dr. José Vicente de Azevedo, em 1905 dou à Instituição da Sagrada Família, confiada às irmãs de Nossa Senhora da Conceição, com diretoria própria, o quarteirão onde se encontra atualmente o prédio Sagrada Família. O objetivo da instituição era socorrer os ex-escravos e seus descendentes, principalmente inválidos. As fundadoras da Sagrada Família foram: madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus 26, superiora; as irmãs Serafina da Santíssima Trindade, Luiza de Jesus Crucificado e a postulante Josefina Pereira Gonçalves. 27 Em janeiro de 1961, o Colégio Sagrada Família foi transferido para junto da Via Anchieta, Vila Nossa Senhora das Mercês, com o nome de Regina Mundi. O prédio das colegiais passou a ser casa de formação da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, posteriormente ocupado pelas orfãzinhas, e a partir de 1989, pelo Centro de Encontros Sagrada Família. Diante da situação socioeconômica das crianças das famílias de baixa renda e inspirado no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, o conde José Vicente de Azevedo comprometeu-se a construir o Liceu de Artes e Ofícios São José, no bairro do Ipiranga. A pedra fundamental foi lançada em 31 de março de 1891, e as obras do liceu para instalações de escolas profissionais foram entregues ao irmão-coadjutor salesiano Dr. Domingos Cadorin, Célia B. Ser para os outros: Perfil Biográfico de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus. Trento: Argentarium, 1989. 26
Idem, Madre Paulina Fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. São Paulo: Loyola, 1986, v. I. 27
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Delpiano28. O falecimento de dom Luiz Lasagna, a 6 de novembro de 1895, determinou a paralização das obras, pois seu sucessor não manteve o acordo firmado anteriormente. No ano de 1895, a obra foi entregue ao padre José Marchetti, pertencente à Congreção de São Carlos Borromeu ou Scalabrinos. A Congregação fundada por monsenhor Scalabrino tinha por finalidade dar amparo – espiritual e material – aos imigrantes italianos que imigravam para a América e para a Austrália.29 O padre José Marchetti – que chegara a São Paulo com um grupo de imigrantes italianos – trazia consigo órfãos cujos pais haviam falecido durante a viagem, em virtude de uma epidemia que grassara a bordo. O padre Marchetti tomou a direção da obra, cuja inauguração foi realizada em 1895, e a seu pedido, o Dr. Vicente de Azevedo mudou o nome do liceu para Instituto Cristóvão Colombo, cujo objetivo era ensinar ofícios aos órfãos de imigrantes, principalmente italianos. Os trabalhadores imigrantes italianos, não-anarquistas, auxiliaram na construção do prédio. Ensinavam-se os ofícios da época – marceneiro, chapeleiro, celeiro, sapateiro e alfaiate. Posteriormente, foi um dos primeiros estabelecimentos a ensinar datilografia.30 Assistindo ao crescimento do bairro do Ipiranga, e conseqüentemente ao seu aumento populacional, onde crianças necessitavam estudar, o dr. José Vicente de Azevedo resolveu fundar o Grupo Escolar São José. Para isso, por volta de 1920, procurou dona Carolina Ribeiro, notável educadora que o auxiliou, e assim, em 1° de outubro de 1924 abriu-se o Grupo Escolar São Paladino, Patricia. Domingos Delpiano: o engenheiro arquiteto. Universidade de São Paulo (Faculdade de Arquitetura) Trabalho de Graduação Interdisciplinar, São Paulo, 1989. 28
Rizzardo, Redovino. João Batista Scalabrini, Profeta da Igreja Peregrina. Petrópolis: Vozes, 1974. 29
30
Franceschini, Maria Angelina, op. cit.
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José, numa dependência do Asilo das Meninas Órfãs Nossa Senhora Auxiliadora, hoje Internato Nossa Senhora Auxiliadora. Foram feitas as adaptações necessárias, e em 1924 foram matriculados vinte e nove alunos; no ano seguinte, cento e oitenta. O número de alunos crescia a cada ano e foi necessário construir um prédio próprio. Surgiu um prédio com três pavimentos, dezesseis salas de aula, todas as dependências necessárias para abrigar oitocentos alunos. O número de alunos atingiu, em 1944, mil. Era um estabelecimento modelar e o curriculo estava de acordo com o ensino oficial, ao qual fora acrescentado o ensino da religião. Durante vários anos funcionou anexo ao Grupo Escolar São José um curso de corte e costura, com muitas alunas matriculadas. O Grupo Escolar São José, durante trinta e cinco anos foi mantido pelo conde Vicente de Azevedo, embora, em determinada época, as professoras fossem designadas pelo governo do Estado. Em 1959, o grupo deixou de funcionar por ingerência do governo do Estado, que providenciou outro grupo escolar para o bairro do Ipiranga. Durante o seu funcionamento, mais de três mil e quinhentos alunos receberam o diploma do curso primário. O conde pretendia fundar um hospital semelhante à Santa Casa de Misericórdia, construindo doze pavilhões hospitalares em honra dos doze apóstolos. Entretanto, a sua obra não se concretizou. Uma parte do terreno foi doada à Arquidiocese de São Paulo, com a finalidade de formar um clero sábio e santo, surgindo assim o Seminário Maior da Imaculada Conceição. A outra parte do terreno, com alguns pavilhões, em 1928, graças à intervenção da baronesa de Serra Negra, deu origem ao Instituto Padre Chico. 31 Finalmente, a Clínica Infantil do Ipiranga (Hospital D. Antonio Cândido Alvarenga) surgiu no começo do século XX. Dona Maria Carmelita Vicente de Azevedo, filha do conde Entrevista com a professora Maria Gabriela Franceschini Vaz de Almeida (neta do conde Vicente de Azevedo), realizada em dezembro de 2005. 31
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Vicente de Azevedo, preocupada com a situação da saúde dos operários do bairro do Ipiranga, juntamente com um amigo médico, instalou um consultório que oferecia graciosamente, duas vezes por semana, atendimento a essa população. Posteriormente, solicitaram ao Dr.Vicente de Azevedo um terreno para a criação de uma clínica infantil para dar assistência às crianças. Nesse local surgiu um hospital que, a pedido do conde, passou a denominar-se Dom Antonio Cândido de Alvarenga, bispo de São Paulo e amigo do conde. Homenagem ao amigo que morreu assistindo pestilentos. Foi o primeiro hospital da cidade de São Paulo a dar assistência pré-natal, graciosamente, às mães do Ipiranga.32
Conclusões No final do século XIX e início do século XX, a expansão da cafeicultura foi responsável pelas transformações sociais, econômicas e culturais da cidade de São Paulo. A imigração européia e a industrialização, ao acelerar o ritmo de expansão capitalista, tornaram a cidade o segundo centro urbano do Brasil, dando-lhe ares de metrópole. A arquitetura colonial cedia paulatinamente espaço à arquitetura européia, nos seus edifícios públicos, igrejas e palacetes. Junto com essas mudanças, o operariado urbano aumentou, oriundo de imigrantes brasileiros natos, muitos deles libertos ou ex-escravos. Grande parte dessa população era constituída de pessoas carentes, que necessitavam de assistência pública ou particular. O poder público percebia a necessidade de resolver essa questão. O Estado republicano laico, diante da situação social e da ação dos anarquistas, estendeu a mão à Igreja para que ela o auxiliasse na política social. Diante dos perigos anarquista e socialista, da adesão dos antigos monarquistas à República e da não-hostilização da Igreja ao novo regime, cessou a “Kulturkampf 32
Idem.
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tupiniquim”; o catolicismo ultramontano conviveu com a República Positivista, porque seu objetivo era o de restaurar tudo em Cristo, e a República aparentemente não lhe criou obstáculos, o que não aconteceu no regime imperial. Diante da “carência social” e da ação dos movimentos sociais revolucionário- anarquistas, o Estado – não sustentando uma estratégia e uma estrutura voltadas à implementação de políticas sociais – uniu-se à hierarquia da Igreja e à elite esclarecida para a efetivação de ações direcionadas a amenizar a “questão social”. Coube então à sociedade civil da época, em particular à elite católica integrada por irmandades religiosas, e à elite não-católica ligada à Maçonaria e a outras instituições similares, desempenhar o papel do Estado. Da união do Estado com a hierarquia católica surgiram ações voltadas à população carente: alfabetização, profissionalização e assistência social.. José Vicente de Azevedo foi um modelo da elite católica no campo educacional e filantrópico, responsável em parte pelo sucesso dos empreendimentos da hierarquia da Igreja. O estudo da sua obra no bairro do Ipiranga deixa patente a importância da atuação conjunta elite-hierarquia da Igreja. Nesta parceria, a Igreja Católica fornecia o “capital humano” – padres e freiras com conhecimentos e habilidades para o ensino elementar, para a filantropia e a assistência hospitalar. Daí a ênfase a institutos que preparassem os internos profissionalmente, além da parte assistencial. A Igreja conclamou o clero europeu, como foi dito acima, para os seus objetivos ultramontanos. E conclamou a elite católica para seus objetivos assistenciais. A filantropia retardou o aniquilamento das velhas irmandades, pois nela estavam os meios humanos e materiais necessários para o atendimento a carências e a carentes da sociedade brasileira da época. O Estado, não possuindo ainda um serviço social, auxiliava a obra filantrópica eclesiástica, na qual se incluía a educação. O apelo da Igreja resultou na construção de vilas operárias, hospitais, orfanatos, asilos, escolas profissionalizantes e outras obras filantrópicas. 178
Não se pode esquecer que a Igreja Católica, nesse tempo, estava incorporada à cultura do povo, por meio da fé e da confiança no clero. A educação, orientada pela Igreja, explícita ou implicitamente foi também um meio de deter os chamados “inimigos da Igreja” naquela época, a saber, protestantes, anarquistas, socialistas e livres pensadores, que circulavam livremente entre a elite paulista. A Igreja, desembaraçada do Real Padroado, pôde agir contra a protestantização do País e contra o positivismo oficial. Deve-se levar em conta que a hierarquia buscou o apoio necessário na elite católica da época, que ainda fornecia membros às tradicionais irmandades e ordens terceiras. Nesse sentido, a obra do conde José Vicente de Azevedo revelou a importância do apoio de padres e de freiras na sua consecução. Este fato ficou mais evidente na criação e implementação dos asilos e orfanatos – Asilo das Meninas Órfãs N.S. Auxiliadora do Ipiranga; Orfanato Sagrada Família e Orfanato Cristóvão Colombo. Caberia aos gestores religiosos não só o amparo, mas a educação e a iniciação na formação profissional. Não menos importante foi a inciativa no âmbito do atendimento à saúde, expressa na criação da Clínica Infantil do Ipiranga, com o foco no pré-natal às gestantes e aos recémnascidos. Nesse âmbito, revela-se também o papel da ação dos religiosos. Finalmente, o estudo levanta a necessidade de pesquisas capazes de completar a historiografia dedicada a verificar as complexas relações entre a Religião, a Educação e a Assistência Social no Brasil, tendo como pano de fundo o Estado, suas políticas e estruturas de atuação.
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Lincoln Etchebèhére Júnior. Universidade São Marcos. Professor doutor do Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação. Educação e Práticas Educativas no Brasil. Rua Dr. Martinico Prado, 142, Apto. 95, Santa Cecilia – São Paulo – CEP 01224010. lincoln.e.jr@hotmail.com.br Leonel Mazzali. Universidade São Marcos. Professor doutor do Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação. Políticas Públicas e Administração no Brasil. Rua João Antonio de Campos, 40, Jundiaí-SP, CEP 13209280. leonel_mazzali@uol.com.br Rosemari Fagá Viegas. Universidade São Marcos. Professora doutora do Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação. Cultura e Identidade. Rua João Carlos Mallet, 175 – Planalto Paulista – São Paulo – CEP 04072040. viegas@fecap.br
Recebido em: 10/04/2007 Aceito em: 20/07/2007 181
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ENTRE O CURA E O MÉDICO: HIGIENE, DOCÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL IMPERIAL1 José Gonçalves Gondra
Resumo Neste artigo analiso a forma escolar que a doutrina higienista pretendeu legitimar junto aos professores primários, com base no exame de quatro conferências pedagógicas apresentadas pelo Dr. Gallard aos professores primários franceses, na Sorbonne, em 1867, por ocasião da Exposição Universal de Paris. Este conjunto de conferências foi traduzido (e adaptado) para o português por Machado de Assis, sob a chancela do Dr Homem de Mello (Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte) e publicado nas colunas do hebdomadário “A instrução pública”. Por fim, para observar mais um espaço de difusão das mesmas, em 1873, tais conferências foram publicadas em um opúsculo intitulado “Hygiene para uso dos mestres-escola”, destinado “ás administrações das escolas do Império” e para onde conviesse “a prática do que ensina”. Com o exame deste material e de suas formas de circulação é possível observar a capilarização da doutrina da Higiene que procura definir um estatuto para o professor primário, a idade da escola e um modelo de educação integral. Palavras-chave: Higiene, Instrução Pública, Escolarização BETWEEN THE CURI AND THE PHYSICIAN: HYGIENE, TEACHING AND SCHOLARSHIP IN IMPERIAL BRASIL Abstract In this article, I analyze the school way hygienist doctrine which was thought to be legitimated among elementary teachers. Such analysis is based on Dr. Gallard’s four pedagogical conferences to French elementary teachers in Sorbonne. They took place in 1867, on the occasion of Paris Universal Exposition.This conference collection was translated (and adapted) to Portuguese by Machado de Assis, by Dr. Mello (General Inspector of Elementary and Secondary Teaching of the Court) and published in the weekly “A instrução
Uma versão deste texto foi apresentada no VII Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, ocorrido em Quito, Equador, em 2005. 1
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 183-204, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
pública”. Finally, these conferences were also published in an opuscule named Hygiene to master-school use, destinated to imperial schools administration, and to those who work with teaching procedures. This material and its circulation provided observing the hygiene doctrine capillarity which seeks for defining a primary (elementary) teacher statute, the school age and an integral education model. Keywords: Hygiene; public education; schooling ENTRE EL CURA Y EL MÉDICO: HIGIENE, DOCENCIA Y ESCOLARIZACIÓN EN BRASIL IMPERIAL Resumen En este artículo analizo la forma escolar que la doctrina higienista ha pretendido legitimar junto a los maestros primarios, con base en el examen de cuatro conferencias pedagógicas presentadas por el Dr. Gallard a los maestros primarios franceses, en la Sorbonne, en 1867, por ocasión de la Exposición Universal de Paris. Este conjunto de conferencias fue traducido (y adaptado) para el portugués por Machado de Assis, bajo la aprobación del Dr Homem de Mello (Inspector General de la Instrucción Primaria y Secundaria de la Corte) y publicado en las columnas del semanario “La instrucción pública”. Por fin, para observar más un espacio de difusión de las mismas, en 1873, tales conferencias fueron publicadas en un opúsculo intitulado “Higiene para uso de los maestros-escuela”, destinado “a las administraciones de las escuelas del Imperio” y para donde conviniera “la práctica de lo que enseña”. Con el examen de este material y de sus formas de circulación es posible observar la difusión de la doctrina de la Higiene que busca definir un estatuto para el maestro primario, la edad de la escuela y un modelo de educación integral. Palabras-clave: Higiene, Instrucción Pública, Escolarización
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Durante muito tempo a instrução foi representada nas aldêas apenas por dous homens: o médico e o cura... Direi melhor: o cura e o médico, porque devo respeitar a ordem de precedência, que acho legítima e é geralmente adoptada. Ao pé delles e entre elles, puzeram as nossas actuaes instituições o professor primário. Não penseis que neste trio intelectual, seja o vosso papel menos bello ou mais obscuro.” (Dr. Gallard, 1873, p. 5)
Saber constituído como ramo especializado da medicina e constituinte de um vasto conjunto de práticas, a Higiene2, para se legitimar, empregou dois grandes vetores. Um voltado para o interior da própria ordem médica, desdobrável na criação de disciplinas de formação; na importação, tradução e redação de manuais e compêndios; na organização de sociedades científicas e também na produção de discursos endereçados a um público mais amplo, na forma de dicionários, jornais, revistas e da própria literatura. O outro vetor foi apontado para várias instituições da sociedade como quartel, cemitério, prisão, bordel, igreja, família e escola, por exemplo3. Apontado para a escola, a heterogeneidade das formas de legitimação também se fez presente, visível na definição das regras para constituir uma família higienizada, na definição de uma física das escolas, compreendendo sua localização, arquitetura, iluminação, aeração e metrificação dos espaços e também na Para o Dr. Devay “L’Hygiene n’est autre chose que la raison appliquée” (p. VIII). In Traité spécial d’higyène des familles. Paris: Labé – Libraire de la Faculté de Médecine, 1858. 2
A esse respeito, cf. Machado et ali. Danação da norma. Rio de Janeiro: Graal, 1978; Costa, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1989; Rocha, Heloisa H. P. A higienização dos costumes – educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1981925). Campinas: Mercado das Letras, 2003 e Gondra, José. Artes de civilizar – medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004, dentre outros. 3
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normalização dos professores e das ações pedagógicas. Uma evidência deste último dispositivo acionado pelos higienistas se encontra presente na circulação de manuais de higiene voltados para o mestre-escola, alguns vertidos para a língua portuguesa. Na tentativa de analisar a forma escolar que a doutrina higienista pretendeu legitimar junto aos professores primários, examino a circulação de quatro conferências pedagógicas apresentadas pelo Dr. Gallard aos professores primários franceses, na Sorbonne, em 1867, por ocasião da Exposição Universal de Paris. Conjunto de conferências traduzido (e adaptado) para o português por Machado de Assis4, sob a chancela do Dr Homem de Mello5 (Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da 4 Jornalista, contista, cronista, poeta e teatrólogo (21-06-1839 a 29-09-1908), Assis também foi funcionário público da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, função exercida a partir de 1873. É fundador da Academia Brasileira de Letras (também conhecida como a Casa de Machado de Assis), instituição que presidiu por mais de uma década. Ao longo de sua vida, teve relação próxima com o mundo editorial, atuando como auxiliar de tipógrafo, auxiliar de tradução (auxiliou Charles de Robeyrolles na tradução de O Brasil Pitoresco, em 1858) e tradutor (traduziu, em 1870, Oliver Twist de Charles Dickens para o Jornal da tarde), p. ex. Para compreender algumas das atividades de Machado de Assis, cf., dentre outros, Chalhoub, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Para acesso a vasta produção, arquivo e estudos sobre Machado de Assis, consultar http://www.machadodeassis.org.br/, portal da Academia Brasileira de Letras. Acesso em 26/05/05.
Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello (1-5-1837 a 4-1-1918) foi nomeado Inspetor Geral da Instrução Pública Primária e Secundária do Rio de Janeiro em 19 de janeiro de 1873, foi agraciado com o título de Barão Homem de Mello em quatro de julho de 1877, em reconhecimento aos relevantes serviços prestados ao Império. Eleito Deputado Geral, representou a província de São Paulo na Assembléia Geral do Império, na legislatura de 1878 a 1881, integrando o Gabinete Saraiva (José Antonio Saraiva), como Ministro do Império e da Guerra. Conselheiro do Império, participou ativamente da campanha abolicionista. Em 1878, foi nomeado presidente da província da Bahia e a 27 de julho de 1882, diretor da Biblioteca Nacional, tendo sido também Lente de Geografia e História no Colégio Militar do Rio de Janeiro, era major honorário do Exército Brasileiro, dentre outras funções por ele exercidas.
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Corte) e publicado nas colunas do hebdomadário “A instrução pública”6. Em 1873, as conferências foram publicadas em um opúsculo intitulado “Hygiene para uso dos mestres-escola7”, destinado “ás administrações das escolas do Império” e para onde conviesse “a prática do que ensina”. Valendo-se desse duplo dispositivo de difusão, via imprensa pedagógica de traçado oficial e na forma de opúsculo, visava-se ensinar os professores primários alguns dos princípios elementares da doutrina que reivindicava para si o estatuto de ciência-mestra, via de acesso aos segredos da civilização8. Assim, modelando mestres, a higiene buscava submeter a população aos seus cânones. Esta, segundo o médico francês, não mais deveria apenas ficar sob a direção do cura e do médico. Ao defender o rearranjo na forma de instruir o povo, a higiene escavava um ponto bem marcado para o professor primário, definido por uma obediência rigorosa às suas exigências. Deste modo, ao produzir o professor como aliado estratégico nas disputas com a fé, a higiene prometia um novo tempo, civilizando a população que ela mesma representava como rude e impura por meio de uma escola higiênica e higienizadora.
A Instrução Pública. Rio de Janeiro: Typographia Cinco de Março, 1872-75 e 1887-88.
6
Dr. Gallard. Trad. Machado de Assis. Hygiene para uso dos mestre-escolas. Rio de Janeiro: Typographia 5 de março, 1873. Outra reflexão acerca deste material pode ser conferida no estudo de Rocha, Heloisa H.P.. Discurso higienista e educação: fontes para o estudo da Higiene Escolar no século XIX. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998 (mimeo) 7
Um estudo mais detalhado acerca das características da Higiene no século XIX pode ser conferido em Gondra (2004). 8
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As Conferências Pedagógicas Em um total de quatro, as Conferências do Dr. Gallard podem ser compreendidas como expressão de um dispositivo acionado pelo Estado no sentido de favorecer e patrocinar a emulação dos professores, esta espécie de arte da superação. Postos frente a temas e problemas da vida e do trabalho, os mestres seriam estimulados na busca de soluções, aperfeiçoando, assim, os modos como interferiam na vida de seus alunos, configurando parâmetros que deveriam presidir as práticas desses sujeitos. Esse método de formação tem características transnacionais, visto sua adoção, por exemplo, na Corte brasileira, desde 18549. As instruções de 1854 indicam, de antemão, os temas ao determinar que os professores seriam reunidos “a fim de conferenciarem entre si sobre todos os pontos que interessão o regimen interno das escolas, methodo do ensino, systemas de recompensas e punições para os alumnos, expondo as observações que hajão colhido de sua pratica e da leitura das obras que hajão consultado”. O regulamento de 1872 repete a observação e prossegue nas orientações, prevendo que, durante a organização do programa, o presidente deveria propor que os professores indicassem temas. De preferência sobre quaesquer dos seguintes assumptos: 1º capacidade actual e eventual da casa das escolas, seus commodos e utensis necessários; 2º Estudo, exame e aplicação dos methodos e systemas de ensino; 3º Apreciação dos livros usados nas escolas e dos que convirá adoptar; 4º Finalmente, tudo quanto se considerar necessário e profícuo em relação ao melhor e mais
A respeito das Conferências Pedagógicas da Corte, cf. Borges, Angélica. Governo dos professores primários na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Educação, 2005. Monografia de graduação e Gondra, José. A emergência da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, especialmente o capítulo 3, escrito com Angélica Borges. 9
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prompto desenvolvimento da instrução e educação primária.
Com isso, pode-se perceber que, embora adotada como método, a consulta se fazia acompanhar da definição de uma espécie de agenda, composta por três preocupações caras aos homens que auxiliavam no governo da instrução: arquitetura e material escolar; os métodos e livros. As normas também prescreviam o tipo de participação dos professores na organização dos programas, sendo que o emprego da metodologia da indicação dos temas por parte do professorado vinha acompanhada da manutenção de antigas regras, como o fato de o poder de consolidação das questões a serem debatidas permanecer concentrado na figura do presidente da Conferência e do Conselho Diretor, em cumprimento ao inciso 3º do artigo 4º, do regulamento de 1872: “Recolhidas estas indicações o Presidente ficará só com o conselho diretor para assentarem nos pontos ou quesitos que devem constituir o programa, pontos que serão determinados com toda a individuação, simplicidade e clareza, ficando assim encerrada a conferência”. Desta forma, a palavra final caberia a um grupo seleto de indivíduos, representantes do governo imperial, restringindo o espaço para rediscussão das escolhas, visto que o anúncio dos novos pontos consistia no último ato relativo à organização do evento. As discussões, respeitando as normas preestabelecidas, também deveriam se dar de forma restrita e controlada. O conjunto de regras apresentadas em 1872 definia diversas estratégias de controle disciplinar ao exigir, por exemplo, que os professores guardassem “cortesia e urbanidade”, evitando expressões e gestos que pudessem ofender tanto quanto o desvio da discussão para outro assunto; ao não consentir discursos divagantes e extensos como argumento para tornar a reunião “proveitosa”. Do mesmo modo, determinava a presença do Inspetor Geral investido na função de convocar e presidir a reunião, bem como manter a ordem, “podendo não só fazer sahir 189
da sala os que não se portarem convenientemente, mas suspender os trabalhos, quando não possa conter os indivíduos que de qualquer modo os perturbarem”. De modo assemelhado, o regulamento de 1884 registra: “As discussões estranhas aos fins indicados no artigo anterior deverão ser rigorosamente prohibidas”. Como se pode perceber, a arte da superação deveria se dar frente a uma regulamentação precisa, que definia o funcionamento geral das Conferências da Corte Imperial, o período em que deveriam se realizar, sua periodicidade, as condições de participação, os lugares a serem ocupados por cada um dos participantes10 e, também, um sistema de recompensas e penalidades. Esta regra incidia, de modo especial, sobre aqueles descritos como os mais despreparados, os desequipados intelectual, moral e higienicamente: os professores primários. Regra homóloga ao caso francês. As Conferências do Dr Gallard, difusor da Higiene, se volta para os professores das aldeias, espaço afastado da urbanidade e civilidade que se pretendia instituir em toda a França, mas não só neste País, como indicado nestes apontamentos iniciais11. O Dr. Gallard, nesta tarefa de irradiador de uma certo padrão de urbanidade e civilidade não estava só, como deixa transparecer no início de seu discurso, na quarta Conferência:
O Regulamento de 1872 determina também os lugares onde os participantes deveriam se acomodar: o secretário ficaria ao lado direito do inspetor, tendo do seu outro lado o secretário da repartição da instrução pública; os membros do conselho diretor teriam seu lugar no estrado da mesa do presidente; os professores públicos e particulares convidados tomariam “promiscuamente” assento em cadeiras colocadas em frente da mesa do presidente e os delegados e espectadores ficariam nos lugares que lhes fossem destinados. 10
Para o caso português, cf. os estudos de Ferreira, António Gomes, especialmente Gerar, criar, educar: a criança no Portugal do Antigo Regime. Coimbra: Quarteto, 2000. 11
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Tomando a palavra depois do orador que acaba de sentarse, só me é dado esperar attrahir a vossa attenção com um discurso que seja breve. Não devo pretender outro mérito, mas esse há de ser apreciado por uma assembléia que, reunida e attenta há mais de duas horas, deve de algum modo assustar-se ao ver a terceira pessoa levantar-se para fallar (1873, p. 69)
Com isso, se pode perceber aspectos do funcionamento das Conferências Pedagógicas na França que, reunindo os professores das aldeias, em Paris, no âmbito de uma Conferência Universal12, procurava colocá-los em contato com autoridades bem determinadas, durante um certo tempo, no qual ouviam suas preleções No conjunto das quatro Conferências, traduzidas e publicadas no Brasil, em 1873, sob o título “Hygiene para uso dos mestre-escolas”, cabe analisar o que foi elevado ao estatuto de matéria a se fazer conhecida pelos professores das aldeias francesas, bem como o modo como tais matérias foram representadas em um discurso marcado pela perspectiva de “formação em serviço” para esse tipo específico de trabalhador.
Uma descrição do professor primário A instrução nas aldeias francesas, segundo o Dr. Gallard, durante muito tempo foi representada apenas por dois homens: o cura e o médico13. Como assinalado na epígrafe deste artigo, ele propõe o reconhecimento da existência de um trio intelectual, reservando para o professor primário uma função bem A respeito da dimensão pedagógica das Exposições Universais, cf. o estudo de Khulmann Junior, M., As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as exposições universais (1862-1922). Bragança Paulista, 2001. 12
Essa ordem é apresentada como uma forma de respeitar a precedência, sinal de um reconhecimento de que a ordem religiosa antecedeu a ordem médica no regime das prescrições voltadas para o conjunto da população. 13
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destacada de fazer a mediação entre os dois que lhe antecederam, como forma de mediar um conflito derivado das ordens religiosa e médica, descrito como um conflito entre o espírito e a matéria, que terminava por reduzir o homem a uma ou outra dessas duas dimensões. O desafio posto e a tarefa delegada ao professor era integrar “essas duas partes indispensáveis: a alma e o corpo” (1873, p. 6). Tarefa que classifica como fácil, dado o não pertencimento do professor a qualquer uma das duas ordens. Portanto, inscrito em outro domínio, o professor primário poderia zelar por uma formação integral, como o médico assinala: Tanto mais indispensável é isto, quanto que intelligencia, a alma, a parte immaterial sem a qual a creatura não existiria, e que vos cumpre desenvolver, nem o estado, nem a mãe de família, que vos confia seus filhos, podem vel-a senão atravez do grosseiro e material invólucro do corpo; assim que é exigência delles que vigieis com a máxima solicitude o que respeita a esta ultima parte. Com os cuidados iguaes que derdes a esses pequenos corpos e a essas intelligencias infantes é que formareis homens úteis à família, e cidadãos úteis ao estado. (p. 6)
O discurso que define um papel a ser exercido pelo professor primário é o mesmo que institui um lugar para si, a “minha missão”, a do higienista. Esta consistia em ensinar14 como o desenvolvimento da inteligência, a cultura da alma não deveria impedir que se velasse pelo corpo, de modo que a nova civilização pudesse ter homens bem constituídos física e intelectualmente, com uma inteligência sã em um corpo são e vigoroso: mens sana
O caráter de dispositivo de ensino/formação é, por vezes, matizado como estratégia para fazer o discurso deslizar para pontos variados. Com essa intenção assinala que as Conferências teriam menos o caráter de um curso solene que o de uma simples conversa, em que se podia ir de um assunto a outro, sugerindo não haver um plano prévio para sua intervenção. (p. 10) 14
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in corpore sano15. No entanto, esse esforço supõe um regime descritivo que também recobre as crianças. Esta descrição, por sua vez, vem apoiada em outra preleção das referidas Conferências. Trata-se nesse caso das recomendações da Sra. Pape-Carpantier16. Segundo ela, para dirigir as crianças e vencer as inumeráveis dificuldades derivadas do desempenho de “tão importante e nobre missão” o grande segredo era amar, amar muito e amar com todo o coração. No entanto, tal amor sem medidas, vinha subordinado ao conhecimento dos “cuidados delicados” que deveriam anteceder (e se manter durante) a instrução das crianças, particularmente da criança pobre, da aldeia. Cabe indagar a que cuidados ele se refere, na ordem em que os mesmos são abordados: parto17, hemorragias, respiração do recém-nascido, crítica ao enfaixamento, defesa do uso de fraldas, aleitamento materno, combate ao comércio do leite, crítica aos andadores, defesa de uma aprendizagem natural e da vacina, descrição da nosografia e das formas de lidar com o quadro das doenças mais comuns. Ao lado disto, também Ao fazer a citação em latim, pede perdão ao seu auditório, prometendo não fazer nenhuma outra. Sinal, mais um, de uma descrição dessa assembléia, que precisava aprender com o higienista. 15
A Conferência da sra. Pape-Carpantier ocorrera no dia anterior à do higienista. Mme. Pape-Carpantier (1815-1878) inspirou-se largamente em Froebel na organização das salas-de-asilo. Como ele, defendia o ensino baseado na natureza da criança. Proclamava que a educação deveria ter por base a afeição e o respeito: “A criança deveria viver no meio de impressões frescas e suaves. Não há uma criança que não se deixe prender pela afeição que se lhe demonstre. Amai cada uma das que são confiadas aos vossos cuidados. Só valemos tanto quanto amamos. O amor é a chama que atrai a chama.” (apud Riboulet, L. História da Pedagogia. São Paulo: Francisco Alves, 1951, p. 499). Aspectos da difusão do modelo das salas-de-asilo em Portugal podem ser conferidos em Fernandes, Rogério. Orientações pedagógicas das Casas de Asilo da infância desvalida. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 109, pp. 89-114, março 2000. 16
Ainda que afirme não pretender revelar todos os mistérios do parto, ele oferece um conjunto de informações, autorizando o socorro em situações limites e emergenciais, indicando os procedimentos a serem adotados. 17
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prescreve uma idade da escola e uma série de prescrições para o trabalho com as crianças, que merece ser detalhada.
A idade da escola18 No que se refere à idade da escola, defende que aos 4-5 anos a criança estaria apta a freqüentar a escola. Para ele, a antecipação consistia em um erro posto que não se deveria obrigar a trabalhar a inteligência nimiamente infantil porque prejudicaria o desenvolvimento do físico, retomando e reforçando o princípio da integração e do equilíbrio entre o físico e o intelectual, entre o corpo e a alma, afirmando com uma certa dose de ironia que sempre desconfiara “da saúde desses prodigiosinhos” que começavam “os seus estudos aos dous ou três annos” (p. 16). Chegada a idade da escola, uma série de cuidados deveriam guiar a rotina das crianças, como a garantia de uma atividade física, impedindo que os meninos fossem obrigados a uma prolongada imobilidade: A criança é activa, deixai que se mova; tem uma actividade exuberante, mas essa actividade é vida, é condição de seu desenvolvimento physiologico: ella mal soffre constrangimento; por esse motivo deveis variar-lhe os trabalhos de tal maneira que, depois de uma occupação relativamente curta, raramente mais de uma hora, haja logo, não recreio, (pois o alumno passaria o tempo a
Uma reflexão acerca da cronologia da vida pode ser encontrada em manuais de higiene que, dependendo da tradição a que o autor se vincula, institui etapas da vida bem diferenciadas. A respeito deste debate, cf. Ariès, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981; Becquerel, A 3ª edição (com adição e bibliografia feita por Beuagrand). Traité elementaire d’hygiene privée et publique. Paris: P. Asselin, 1864. e Gondra & Garcia. Arte de endurecer miolos moles e cérebros brandos – racionalidade médico-higiênica e construção social da infância. Revista Brasileira de Educação. Campinas: Autores Associados, n. 26, pp. 69-84, 2004. 18
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brincar), mas um exercício qualquer que lhe descanse o espírito e o corpo19. (p. 20)
No esforço de diagnóstico de uma aula, de suas emergências e das práticas em uso, também aborda a questão do silêncio, discutindo o “prolongado silêncio” das aulas. Para ele, tal procedimento também deveria ser eliminado na medida em que a respiração sofria com a adoção de tal medida. Cabem, então, observar a cadeia de causalidade que organiza para alterar a rotina das aulas. Para ele, o prolongado silêncio funcionava como elemento causal e forma explicativa da alegria e gritos das crianças quando chegava a hora do recreio. Em suas palavras: Obedecendo instinctivamente à necessidade imperiosa de respirar largamente, põem, em jogo, ruidosamente, é certo, mas de um modo efficaz, todos os músculos que favorecem o acto respiratório. Não quero aconselhar-vos que os deixeis gritar assim na aula, cuja ordem não pode consentir semelhante gymnastica vocal, mas podeis fazer com que elles cantem no passeio executado na sala, ao passar de um a outro exercício. Pouco importa que cantem bem ou mal; o que eu desejo é que os seus músculos se movam, tanto os do peito como os das pernas, e até os dos braços que naturalmente acompanharão o movimento da cadencia. (p. 20)
Segue insistindo no benefício dos passeios, desde que feitos de modo a deixar livres os movimentos das crianças, olhando livremente para diante de si “como convem a quem sente a consciência quieta e tranqüila” (p. 21). Mantendo a defesa da liberdade dos movimentos do corpo, Dr. Gallard vai se aliar aos que combatem o fim dos castigos corporais em favor de sua substituição pelos castigos morais, descritos como mais humanos e A recomendação geral vem acompanhada de um modelo, um exemplo: “Há um meio simples que podeis pôr em pratica, e que aliás já é empregado no ensino mútuo, é fazer executar um pequeno passeio em volta da aula, na occasião de passar de um estudo a outro” (p. 20) 19
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mais eficazes. Nesta linha, o combate também recobre o que designa de “atitudes forçadas”, mais cruéis, às vezes, que as pancadas. Segundo ele, colocar uma criança de joelhos e deixá-la assim, por longo tempo, é maior tortura que um “carolo” dado em um momento de cólera; por um livro em cada mão e fazer estender os braços em cruz é um suplício inimaginável20. Como alternativa, recorre aos mecanismos da disciplina. Para ele Entre os castigos, os que se dirigem á intelligencia, os castigos de algum modo morais, ao os que devereis sempre preferir, porque esses não alteram a saúde, e parece-me que são mais efficazes. Marcai na aula um logar destinado especialmente aos maus alumnos; não é necessario que seja o mais escuro ou o menos arejado; bastará que seja o logar das crianças punidas, e é quanto basta para que nenhuma criança queira occupal-o. Podese imaginar castigo mais simples e innocente? (p. 21)
Na seqüência, propõe formas alternativas de constrangimento da criança “indisciplinada”, fazendo combinar preocupações comportamentais e zelo com a saúde. Nesta lógica, os mais quietos e fracos deveriam ser castigados com os “brincos” que exigiam força. Os de “vitalidade exuberante” deveriam ser obrigados a jogos tranqüilos. Com isso, prometia a obtenção de um grande efeito, sem que nunca o professor pudesse ser acusado de excessiva severidade. Em 1896, decorridos mais de duas décadas da tradução do Dr. Gallard, Machado de Assis publica “Várias Histórias” 21, coletânea de contos na qual há um intitulado “Conto de Escola22”. A substituição dos suplícios pela disciplina, visando um governo de si, uma autodisciplina é objeto do estudo de Foucault e que pode ser conferido em Foucault, Michel. Vigiar e punir. 9ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. 20
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Assis, Machado. Várias histórias. São Paulo: Globo, 1997.
Apoiado em Diderot, Assis justifica sua opção pelo gênero do “conto”, ressaltando que o tamanho reduzido dos mesmos não é o que fazia mal a este gênero de histórias. Para ele, a questão era a da sua qualidade, havendo “sempre 22
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Neste conto, o tradutor se aproxima de algumas teses do traduzido ao descrever formas da violência contra as crianças presentes na casa e na escola; esta última situada na Corte, em um “sobradinho de grade de pau”, nos idos de 1840. Para escapar da violência do espaço privado, Pilar, o aluno imaginado, se refugia na escola de primeiras letras para meninos do Prof. Policarpo. Opção que o leva a se arrepender, contrastando a imobilidade da aula (e de seu corpo) com a liberdade da rua: “Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios (...) E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos” (Assis, 1997, p. 138139). Como se pode perceber, há sinais de desdobramento das recomendações do Dr. Gallard no modo como o arrependimento do menino é descrito, estratégia do tradutor para criticar a forma escolar que aprisiona e paralisa seus alunos. Essa espécie de linguagem desdobrada também se manifesta na denúncia dos castigos físicos, simbolizado pela presença e emprego da palmatória: ”O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada no portal da janela, à direita, com seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca” (idem, p. 140) Quanto aos usos desta ferramenta de supliciar, seu emprego se dava em situações heterogêneas, com foco voltado para uma espécie de normalização das práticas. Neste sentido, servia para instituir um modelo bem determinado de desempenho intelectual, punindo os que dele se desviavam, como também para punir atitudes julgadas incompatíveis com o ambiente escolar. Neste caso específico, o objeto a ser combatido era a corrupção, submetida ao regime da penalidade-punição que, neste caso, vai se uma qualidade nos contos, que os torna superiores ao grandes romances”. (Advertência, in Varias Histórias, 1997)
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realizar com base em uma espécie de amálgama entre o castigo físico e o constrangimento de ordem moral. Combinatória que pretendia banir da pequena sociedade escolar um comportamento tido como indesejável na grande sociedade. Neste registro, a escola também ensina o que considerava como “boa delação”. Ensinamentos que fizeram com que o menino “sem virtudes” (idem, p. 137), a caminho da escola, no dia seguinte às duas grandes lições recebidas no que se refere à corrupção e delação, tivesse, desta vez, se desviado não apenas da rotina da escola de primeiras letras do prof. Policarpo, mas da própria escola, tendo preferido marchar junto a uma companhia do batalhão de fuzileiros, ao ritmo do rufar dos tambores. Assim, no conto machadiano, a escola da mobilidade, da rua, representa uma dupla vitória em relação à escola da paralisia e da violência. Não seria isto mais um efeito da linguagem do traduzido, desdobrada na do tradutor? Por fim, ao concluir sua primeira conferência, o traduzido se desculpa pela quantidade de assuntos abordados, o que fez com que os tivesse tratado com uma “rapidez vertiginosa”. Ao encerrar, em um esforço de síntese, formula seu conselho final: Vigiai com igual solicitude a alma e o corpo dos vossos alumnos: com igual cuidado deixai-lhes desenvolver as forças physicas e as forças intellectuaes,por que em cada um desses meninos que o estado vos confia deve elle ir buscar mais tarde uma eleitor e um soldado, isto é o poder moral e o poder material de que o nosso governo terá sua força e que fazem hoje a nossa França tão quieta e unida no interior, tão grande e respeitada no exterior. (p. 22)
No conselho final, retoma pois uma determinada representação deste integrante do trio intelectual responsável pela instrução e formação dos camponeses. Cabe, nesta representação, o reforço à função de agente integrador, articulador da dimensão moral e intelectual dos futuros eleitores e soldados. 198
Por uma educação higiênica ou integral As Conferências do Dr. Gallard também pretenderam funcionar como dispositivo para fazer circular e legitimar um modelo de educação integral, partilhado por grande parte da ordem médica no século XIX23. Trata-se do modelo hexagonal que supõe observar as seguintes dimensões na organização e funcionamento das instituições privadas e públicas: circumfusa (os arredores), applicata (proteção e limpeza corporal), ingesta (nutrição e hidratação), gesta (exercícios corporais), excreta (eliminação dos resíduos do corpo) e percepta (educação dos órgãos do sentido). Modelo que, de modo condensado, se encontra presente e estrutura as 3 últimas Conferências do higienista francês para os professores primários do interior da França e, posteriormente destinadas aos que administravam as escolas do Império do Brasil. A segunda Conferência é aberta com uma observação referente à educação dos adultos nas escolas noturnas. Sendo assim, as prescrições higiênicas dilatam seu raio de cobertura, aplicando-se tanto às crianças como aos “homens feitos”, ou seja, tratava-se de um saber que deveria se fazer presente durante toda a vida. Saber que recobria as regras do asseio pessoal, passando pelos banhos (regularidade e temperatura), as roupas (inclusive “as de baixo”), cuidados com a construção e localização das casas, alimentação (tipos, carnes, bebidas), relação entre boa digestão e repouso. Essas prescrições, como as demais, também vêm apoiadas em autoridades, recolhendo exemplos que recuam até a antiguidade ou mesmo de autores que lhe são contemporâneos. Neste caso, recupera o livro do Dr. Motard, Ensaio de Hygiene Geral, de 1841. Um dos destaques extraídos desse livro reforça a instrução como remédio para os males do campo que, então, descreve. Apoiado no colega, afirma que o remédio é a instrução longamente disseminada nas aldeias, reconhecendo que a 23
A esse respeito, cf. por exemplo, Becquerel, A., 1864. e Gondra, 2004.
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dificuldade não consistia em sua indicação, mas em sua aplicação. Deste modo, volta sua face para o aparelho do Estado, reclamando uma efetiva política de instrução que revolucionasse a sociedade francesa, sem convulsão. Deste modo, o diagnóstico médico também se apresenta como instrumento para uma ação de governo: Será eterna honra do ministro que preside aos destinos da instrucção publica (o Sr. Duruy24) o ter comprehendido como essa applicação deve ser feita. Árdua, atrevida e bella era a empresa de renovar completamente a sociedade franceza, sem revolução nem abalo, é só com a diffusão da instrução (p. 32)
Como se pode perceber o discurso técnico-científico comparece associado a um projeto de intervenção “pacífica” na sociedade francesa. Repõe-se, deste modo, uma dimensão redentora da razão-educação, atualizando uma representação missionária do professor que, ainda que não fosse mais um apóstolo de uma determinada fé, era instituído como um apóstolo civil, cujo trabalho-missão deveria ser presidido pelas “luzes” impostas pela racionalidade médico-higiênica25. A terceira Conferência reafirma o saber médico como guia da sociedade, desferindo ataques aos curiosos, comadres e curandeiros. É a mais longa das quatro, na qual vai se afirmando Victor Duruy (11-09-1811 a 25-11-1894) nasceu em Paris, foi normalista, mestre de conferências na Escola Normal, professor de história na Escola Politécnica e inspetor geral de ensino secundário. Foi ministro da Instrução Pública entre 1863 e 1869 e membro do Conselho de Instrução Pública de 1881 a 1886. 24
Não defendo uma exclusividade desse saber-poder na modelação da sociedade e de suas instituições, até porque sua afirmação e legitimidade supõem o reconhecimento de articulações variadas e polimorfas com outras ordens de saberpoder, como a religiosa, militar e jurídica por exemplo. Percepção que nos obriga a trabalhar com a tese de que a própria ordem médica se organiza e funciona de modo heterogêneo. 25
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claramente os limites das concessões feitas aos professores primários, ainda que equipados com os saberes difundidos no âmbito das Conferências. A eles caberiam medidas emergenciais, de primeiros socorros, cuja continuidade deveria estar subordinada à figura do representante da racionalidade médico-higiênica: Vou dizer-vos o que, nessas circunstâncias urgentes, podeis e deveis fazer antes de chegar o médico. Notai bem que as minhas instrucções não podem ir além disso, nem pretendem supprir os conhecimentos que só a experiência e estudos especiaes podem dar. Ainda com esta prudente reserva, ser-vos-há possível intervir muita vez de maneira a fazer-vos uteis a vossos vizinhos e a prestar auxílios aos médicos do logar, auxilio tanto mais efficaz quanto que o fareis com reserva e discrição. (p. 34)
O tom imperativo dá a medida da concessão, marca os espaços do saber-poder, delineando o raio de atuação desses dois representantes da intelectualidade, raio cuja medida é dada pelo médico: “Os cuidados que podeis prestar, e que vou indicar, applicam-se a moléstias ou a feridas”. Segundo esta divisão, o higienista aborda a questão da inanição, sangrias, epilepsia, embriagues, asfixia, vômitos, envenenamentos, epidemias e endemias, por exemplo. No regime da repartição, se esforça em acentuar a linha que distingue os dois ofícios. O médico, representado como sempre modesto e muito instruído, passava os dias e, muitas vezes, as noites, a correr pelos campos, ora a cavalo, mais comumente a pé, raramente em um mau tílburi, que não o protegia nem do frio, sol, nem da chuva e vento. Ao mesmo tempo em que afirma ser o ofício do professor primário, sem dúvida difícil, reconhecendo, mais do que ninguém a abnegação dos mestres-escolas, também assinalava que não podia ser comparado às dificuldades encontradas pelo médico no exercício de sua função. Mais sofrido, mais modesto e muito instruído, cabia, portanto, ao médico, por uma qualidade ou combinatória delas,
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definir o que deveria ser executado por cada um dos membros da referida trindade intelectual. A quarta Conferência é dedicada ao corpo e à ginástica, fornecendo um guia mais completo para a ação dos professores, de modo que pudessem mediar as relações entre o corpo e alma. Neste domínio, as atividades corporais são descritas como a possibilidade de aumentar o vigor corporal, bem como os limites em que conviria prosseguir ou restringir o desenvolvimento das forças físicas. O princípio operatório é assemelhado ao empregado nas demais conferências. Faz uso de uma erudição, recorrendo a exemplos da antiguidade e de outros países como estratégia para reafirmar que o princípio da moderação também deveria ser regra na seleção dos exercícios corporais. Com essa chave, estrutura um discurso em que aponta o que deve ser eliminado e o que deve ser estimulado nas aulas, configurando o que nomeia como “a boa, a verdadeira e sã gymnastica” (p. 79) Assim, por exemplo, combate o pugilato, os exercícios artificiais dos ginásios, indicando a bola, barra, equitação, natação, trabalhos agrícolas, exercício militar, manejo de espingarda e a caça. Como vantagem adicional do uso higiênico dos exercícios corporais, lembra que os mesmos também funcionavam como um eficaz remédio contra “as paixões nocivas”. Ao concluir sua última Conferência, faz questão de relembrar a missão dos professores primários: Cabe-vos fazer com que nos vossos alumnos o equilíbrio se estabeleça de um modo regular, para que elles sejam dotados de uma alma forte e de um corpo vigoroso. Vossa missão é formar homens, na máscula acepção da palavra, e dignamente desempenhareis essa nobre tarefa se conseguirdes que os vossos alumnos sejam, ao mesmo tempo, capazes de servir a nossa pátria com a intelligencia e defendel-a com animo e vigor (p. 83)
Nas palavras finais, a pátria comparece como argumento que orientaria a adesão ao saber-poder da Higiene. Como se pode perceber, trata-se de uma racionalidade que se aproxima do 202
aparelho do Estado, estratégia que apresenta um duplo efeito; expandir-se por meio das instituições que o Estado cria e mantém e, com isso, expandir-se enquanto discurso primeiro de uma sociedade e população que se queria higiênica e higienizadora. A título de conclusão, cabem alguns comentários, tomando por base o percurso e as formas de difusão do discurso traduzido. O interesse do poder público na medicina de caráter social, essa razão aplicada, já vinha se manifestando em outras medidas, como é o caso das sucessivas reformas pelas quais o curso de Medicina passou ao longo do Império, no apoio à sociedade científica dos médicos, na criação de juntas de higiene, na inclusão da disciplina de higiene nos cursos normais e também na tradução de livros que abordavam esta questão. Na ordem médica, este é um ramo que vai disputar uma orientação na formação e direção da própria ordem, enfatizando a perspectiva da prevenção, contra a do par doença-cura. Na ordem escolar, se observa uma vasta produção de discursos voltados para configurar uma escola higiênica. Dois exemplos para concluir. O primeiro refere-se ao livro Hygiène Scolaire – influence de l´école sur la santé des enfants, de A. Riant26, em sua 6ªedição, de 1882, integrante do acervo da biblioteca na Escola Normal de São Paulo, atestando a circulação de obras francesas focadas nesta problemática e sua presença em uma escola de formação de professores primários. O segundo exemplo é o livro Noções de Higiene, do médico brasileiro, Afrânio Peixoto27 que, em 1925, se encontrava na 3ª edição (revista e adaptada para as Doutor em medicina pela Faculdade de Paris, professor de higiene na Escola Normal do Departamento do Sena, encarregado do curso de higiene no Liceu Charlemagne e oficial de instrução pública. Sua obra foi admitida pela Comissão de exame das bibliotecas escolares e das bibliotecas pedagógicas, tendo sido premiada pela sociedade livre de instrução e de educação populares. 26
Formado na Faculdade de medicina da Bahia, foi professor de Medicina Legal e Higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e professor de Medicina Pública na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Também foi diretor da Escola Normal e Diretor-Geral de Instrução Pública do Distrito Federal, dentre outras funções por ele exercidas. 27
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escolas normais, aos cursos de farmácia e odontologia, às escolas profissionais, aos ginásios e liceus). No prefácio à 1ª edição, é apresentado como o primeiro do gênero que se publica no Brasil. Dois pequenos exemplos que indicam que a preocupação com a difusão da higiene para o uso dos mestres-escolas não pode ser vista como algo incidental, tampouco como algo fixo. Essa forma de intervir na sociedade e na vida das pessoas teve vida longa, formas variadas de institucionalização e legitimação, forjando uma tradição que é preciso conhecer.
José Gonçalves Gondra/UERJ. Rua Olegário Mariano, 276. Tijuca – Rio de Janeiro – RJ. CEP: 20510-210. e-mail: gondra@oi.com.br. Tels. 21- 2238-7760 ou 88745703
Recebido em: 12/05/2007 Aceito em: 20/07/2007
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RESENHA
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AGÊNCIAS MULTILATERAIS E A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL BRASILEIRA Manoel José Porto Júnior Giana Lange do Amaral
Resenha do livro: OLIVEIRA, Ramon de. Agências multilaterais e a educação profissional brasileira. Campinas: Editora Alínea, 2006.
O livro de Ramon de Oliveira, recentemente publicado pela editora Alínea, trata da influência das Agências Multilaterais – sobretudo Banco Mundial e CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) – nos rumos das políticas públicas educacionais implementadas no Brasil, bem como, nos demais países da América Latina. O tema é de enorme importância principalmente por dar ênfase aos discursos de combate à pobreza e desigualdades sociais presentes nos documentos dessas agências que, na prática, priorizam a lógica reprodutora do capital com graves efeitos sociais nos países sob sua influência. O trabalho desenvolvido por Ramon de Oliveira explicita, com notável profundidade e rigor científico, as observações já realizadas por vários pesquisadores que apontam o caráter subserviente da inserção dos países chamados “em desenvolvimento” na economia globalizada, problematizando os receituários e as imposições apresentados para o Brasil pelos representantes do capital internacional. O autor apresenta o livro em três capítulos. O primeiro, trata da relação da CEPAL com a Educação: seus objetivos e a sua relação com o Brasil, o desenvolvimento econômico, assim como sua proposta educacional. O segundo capítulo, que aborda a respeito do Banco Mundial e a Educação, levanta questões sobre a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 207-214, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
atuação do Banco Mundial no combate e mercantilização da pobreza, enfatizando suas propostas educacionais, sobretudo para o ensino profissionalizante. Dessa forma, o autor parte da descrição de cada instituição – CEPAL e Banco Mundial –, caracterizando suas estratégias de ação mais globais para, então, analisar as políticas propostas, quando não, impostas, para a área da educação. Através da análise dos documentos produzidos tanto pela CEPAL, como pelo Banco Mundial, estabelece aproximações e discrepâncias entre ambos, além de analisar criticamente os resultados obtidos a partir dessas políticas. No terceiro capítulo, é abordada a influência das agências multilaterais na educação profissional brasileira. O autor apresenta os resultados decorrentes da aplicação das proposições/imposições das agências em questão, incluído o BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento – junto às políticas públicas para a Educação Profissional, que resultaram na Reforma advinda com o Decreto 2.208/97, financiada pelo PROEP – Programa de Expansão da Educação Profissional – iniciativa do Ministério da Educação em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego e com o BID.
A CEPAL e a Educação A CEPAL foi criada pela ONU em 1948. Possui 41 países membros e 7 associados, tendo como objetivo assessorar os governos da América Latina e do Caribe nas políticas de desenvolvimento social, com vistas a garantir o desenvolvimento econômico com maior eqüidade social. Para tanto, defende – sobretudo a partir da década de 90 – a idéia de reestruturação dos processos produtivos nos paises em desenvolvimento, buscando a competitividade industrial, baseada em estudos do modelo asiático. Para que isso aconteça, propõe uma concertación estratégica que seria a articulação entre o Estado e os principais 208
atores políticos e sociais, visando ações que alavanquem o progresso tecnológico e, por conseqüência, a competitividade das economias latino-americanas no mercado internacional. Dessa forma, a formação da mão-de-obra ganha papel de destaque, tanto para a referida competitividade industrial, como para a distribuição de renda. O discurso cepalino defende a necessidade do desenvolvimento para que ocorra a diminuição das desigualdades sociais. Mas para que isso ocorra de fato, o Estado deve garantir o apoio à pequena e média empresa, com a formação profissional de seus trabalhadores, bem como, de jovens, de desempregados e de trabalhadores informais urbanos e rurais. A partir de uma melhor educação para a população, somada ao esforço da concertación nacional em estimular o desenvolvimento econômico competitivo, diminuiria o número de desempregados, bem como, aumentaria os salários. O autor desnuda o caráter ideológico de tal discurso, visto que a competitividade do capitalismo globalizado, onde a tecnologia serve à acumulação do capital, tem levado à diminuição dos empregos. Além disso, avalia que o discurso da CEPAL esquiva-se da análise das relações que se estabelecem entre os países periféricos e os países altamente industrializados, que submetem os primeiros à eterna dependência tecnológica, bem como, que as indústrias estrangeiras pagam, na periferia, salários muito mais baixos em comparação com seus países de origem. Para a educação profissionalizante, a CEPAL propõe a descentralização da gestão, com vistas a uma maior aproximação dos centros formadores com a iniciativa privada, inclusive buscando, com isso, formas de financiamento, através de convênios e venda de serviços. Defende ainda que a iniciativa privada interfira no currículo e avalie o processo de formação dos trabalhadores. A CEPAL mantém um discurso privatizante para o ensino superior, defendendo que o Estado limite-se à concessão de bolsas para alunos merecedores. Considera importante, também aqui, a relação íntima com a iniciativa privada e a cobrança de 209
mensalidades, como forma de garantir financiamento. Oliveira aponta a contradição dessa posição privatizante em relação à idéia de eqüidade defendida pela CEPAL, visto que a concentração de renda é muito grande, sendo inconcebível uma política de bolsas para dar conta de tamanha disparidade. Para o autor, apesar de ficar claro que a CEPAL defende, em seus documentos, a superação da dualidade entre ensino profissionalizante e ensino propedêutico, fica claro, também, que seus receituários para a educação profissional – não existe uma proposta sistematizada por parte dessa Agência – são de cunho ideológico, baseados na ultrapassada Teoria do Capital Humano, tão largamente desmascarada a partir das transformações que ocorrem nas relações de produção.
O Banco Mundial e a Educação O Banco Mundial foi criado em 1944, com o objetivo de auxiliar as economias das nações no pós guerra. Seu capital é composto de recursos de mais de 170 países, contudo a presidência e a maioria dos cargos do Banco são ocupados pelos americanos, que, junto com Japão, Alemanha, França e Reino Unido, detêm pouco mais de 37% do capital votante. Possui grande vinculação com o FMI – Fundo Monetário Internacional – o que torna suas proposições praticamente imposições para os países endividados que buscam seus recursos. Segundo Oliveira, durante a guerra fria – clima de tensão bélica entre o bloco capitalista e o bloco socialista, formados no pós-2ª Guerra – o Banco Mundial inseriu-se nas economias do terceiro mundo para, a partir de um discurso desenvolvimentista, conter as tensões sociais que poderiam levar ao comunismo. Com o aprofundamento da crise social, novos discursos ideológicos foram desenvolvidos – globalização da economia, tecnologização e competitividade internacional – com vistas a justificar as desigualdades internas e entre as nações. 210
Assim, aumentaram os recursos disponibilizados para as áreas sociais e a educação passou a ser tratada como remédio para a pobreza. Tais ações visam garantir, mesmo com as graves conseqüências sociais, o processo de reprodução do capital e representam uma reedição da ideológica Teoria do Capital Humano. O receituário proposto/imposto pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento, baseado no consenso de Washington, previa a diminuição do Estado, através: da redução dos gastos públicos, da privatização de empresas e de serviços públicos e da abertura para o capital estrangeiro. Os documentos do Banco Mundial analisados por Oliveira – o autor optou pelos documentos produzidos entre 1990 e 1997 – apontam para uma maior participação da iniciativa privada nas áreas de educação e saúde, devido às carências financeiras dos países em desenvolvimento. Isso permitiria o investimento do Estado nos setores mais empobrecidos da população. Além disso, a partir de pesquisas pontuais desenvolvidas por técnicos vinculados àquela instituição, tais documentos salientam a melhor qualidade da educação privada em relação àquela prestada pelo poder público, pelo comprometimento e cobrança que o pagamento gera. Tais pesquisas desconsideram aspectos como renda familiar e acesso à informação diferenciados que interferem na diferença de rendimento dos alunos. Para Oliveira, o Banco Mundial, baseando-se nos ideais de competitividade e eficiência, sintetiza a problemática educacional em questões meramente gerencias, desconectando-a de fatores políticos e sociais determinantes da própria impossibilidade de o sistema educacional atender, com maior igualdade, aos vários setores da sociedade. A partir da década de 90 verifica-se um deslocamento dos recursos disponibilizados pelo Banco Mundial da educação profissionalizante para a educação fundamental. Defende, também, a privatização tanto do ensino superior, como de parte do ensino secundário. Com a defesa da descentralização da gestão 211
educacional, tal instituição pretende a retirada da responsabilidade de financiamento estatal da educação. Na lógica de melhorar a eficiência escolar com menores custos, o Banco Mundial incentiva a distribuição de livros didáticos em detrimento da formação dos professores e da assistência estudantil. O autor demonstra os vários equívocos dessa opção, inclusive no que tange ao desperdício de dinheiro público devido às formas de escolha de tais livros. O Banco Mundial admite a importância da educação profissionalizante como instrumento de readequação da economia das nações em desenvolvimento frente às mudanças que ocorrem no mundo do trabalho. Defende um modelo flexível, desvinculado da educação regular e preponderantemente privado, visto que as escolas públicas não conseguiriam a recolocação dos trabalhadores no mercado devido à rigidez de suas estruturas. Portanto, suas proposições/imposições defendem a diminuição do período de formação dos cursos; sua modularização, que permitiria saídas intermediárias e conseqüentemente um retorno mais rápido do trabalhador desempregado para o mercado; maior vinculação curricular com as necessidades imediatas no mercado e a educação profissional complementar e separada da educação regular. Quanto ao financiamento, defende a cobrança de taxas, bem como a venda de serviços pelas instituições formadoras, como forma de subsidiar a formação dos alunos carentes. O autor aponta, através de números do próprio Banco Mundial, como a adoção de tal receituário tem contribuído para o agravamento da crise social e econômica nos países da América Latina e no Brasil. Além disso, critica as proposições homogeneizantes, que desconsideram as situações específicas dos países, e que levaram à destruição de experiências exitosas, como a da rede federal de escolas técnicas, agrotécnicas e centros federais de educação tecnológica.
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A Influência das Agências Multilaterais na Educação Profissional Brasileira Nesse terceiro e último capítulo, Ramon de Oliveira demonstra como a Reforma da Educação Profissional realizada através do Decreto 2.208, bem como as ações do Ministério da educação e do Ministério do Trabalho e Emprego do governo Fernando Henrique Cardoso, buscaram atender aos ditames do Banco Mundial, da CEPAL e do BID, este último bastante atuante nesse processo. Dessa forma, a descentralização administrativa, a desvinculação da educação profissionalizante da educação regular, a diminuição da duração dos cursos e sua modularização, uma maior participação da iniciativa privada na definição curricular e na avaliação da formação profissional e o aumento de vagas no ensino privado, mesmo que por justificativas diferenciadas – existem várias contradições entre o discurso cepalino e o do Banco Mundial – atenderam às proposições/imposições destas agências. Finalizando, pode-se afirmar que o livro de Ramon de Oliveira traz uma importante contribuição para os pesquisadores que buscam analisar a natureza das transformações nas políticas públicas para a educação brasileira. Permite desnudar os aspectos ideológicos, de mascaramento da realidade, presente nos discursos assumidos por governantes submissos aos interesses do grande capital, que utiliza-se das agências financiadoras e de assessoramento para garantir a continuidade do processo de acumulação de capital, apesar das crises sociais crescentes provocadas pelo mesmo. No entanto, considero que exista uma única lacuna, justificada pela opção expressa pelo autor de trabalhar com os textos anteriores à reforma da educação profissional de 1997, que seria a análise do Decreto 5.154/04, que é citado na obra. Alguns autores como Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos (2005), classificam-no como um empate e único passo possível devido à correlação de forças que existe na sociedade 213
brasileira. Já os movimentos sociais ligados ao Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública apontam que a timidez reflete a manutenção da submissão aos ditames e aos acordos existentes com o BID. Por fim, esta obra possibilita, pelo resgate histórico e riqueza de análise que apresenta, uma melhoria qualitativa do debate sobre as políticas públicas para a educação profissional frente às profundas transformações que ocorrem nos processos produtivos.
Obra Citada: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria e RAMOS, Marise. A gênese do Decreto n. 5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria e RAMOS, Marise. Ensino médio integrado: Concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005, p. 21- 56.
Manoel José Porto Júnior, professor do CEFET/RS. Giana Lange do Amaral, professora da UFPel.
Recebido em: 10/04/2007 Aceito em: 20/07/2007
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DOCUMENTO
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REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)
ENSINO DE MORAL E RELIGIÃO I – Até o começo do presente século a cultura moral e a cultura religiosa andavam tão íntima e indissoluvelmente ligadas nas leis, nos programas e nos regulamentos da instrução da mocidade, que mutuamente se absorviam e verdadeiramente se consubstanciavam, constituindo na escola um ensino idêntico, uno, indivisível. Nas suas relações com os cultos o poder civil então não reconhecia direitos senão os da crença oficial, e conseqüentemente desde a escola até os tribunais de justiça não compreendia, nem aceitava outra moral que não a da religião privilegiada. Hoje a secularização do Estado, dos seus interesses, e portanto de suas leis, de sua competência, e portanto de suas instituições, já não significa simplesmente, como então, um postulado da ciência e da política abstrata, mas revela-se como o resultado culminante e o maior dos fatos incorporados à civilização prática. Para com infinitas manifestações da liberdade do pensamento, assim as ciências e nas letras, como em toda a ordem de conhecimentos, o Estado moderno tem por supremo dever a tolerância; ante todas as possíveis divergências da consciência humana a sua garantia única e simultaneamente a sua primeira obrigação é a neutralidade. Ao influxo desse preceito, que a nossa idade recolheu como o derradeiro e grande sopro do último século, remodelaramse os códigos e as legislações. Ora, como em todas as instituições civis, e antes que nenhuma outra, cumpria que a escola se transformasse à lei desse movimento generoso e irresistível. E transformou-se, e História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 22, p. 217-279, Maio/Ago 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
transforma-se, pactuando cada dia os espíritos em uma nova solução, mais próxima da solução extrema, tendendo as legislações a alargar constantemente as aplicações do princípio novo, transigindo os ânimos hostis com alvitres que cada vez os avizinham mais do resultado final encarecido e almejado pelos amigos da organização racional e liberal do ensino. O antigo tipo da escola puramente confessional ou sectária, com o seu programa e suas lições do culto oficial, para mestres e discípulos, indistinta e forçadamente, pode-se considerar de todo extinto no quadro das legislações atuais, sendo que nos rarissimos países onde ele permanece (a Espanha, por exemplo), além de que na execução da lei busca-se atenuar o exclusivismo de suas disposições, cuida-se nas regiões competentes de reformar estas últimas em harmonia com as bases liberais das legislações peregrinas. Está entendido que, assim exprimindo-nos, não queremos referir-nos senão aos países, e tal é o caso do Brasil, onde a escola só conseguiu medrar e frutificar ao impulso que lhe imprimiu o poder civil, e onde destarte figura como uma criação exclusiva do Estado, porquanto, para dizermos com o Sr. Michel Bréal, "naqueles países onde a escola se criou e desenvolveu sob proteção e com os auxílios do clero, não é para se admirar que este ainda conserve sobre ela a sua influência. Aí os meninos dividemse por tantas escolas quantos são os cultos existentes, e o mestre, aconselhado e encaminhado pelo ministro do culto, reparte com este os cuidados da direção religiosa"1. Esta, porém, é uma situação peculiar dos estados protestantes da Alemanha, onde a escola e a religião se mostram como duas irmãs gêmeas, nascidas da Reforma. Aí mesmo, não obstante, a corrente da secularização já abriu o álveo. Mas, como quer que seja, nada tem comum com essa a situação de todos os outros povos modernos, sem distinção 1
Quelques mots sur l´instructions publique en France, p. 145
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de raças, onde a escola, havendo invariavelmente surgido como um produto da iniciativa secular, e onde não soe reproduzir-se e medrar senão por virtude das dotações com que o Estado queira aviventá-la, entretanto a inércia, a imprevidência, o preconceito ou a simples força das circunstâncias deixaram que dela se apoderasse o exclusivismo das seitas privilegiadas, até de todo usurparem, aqui pela simples obrigação de ensino, ali pela cessão absoluta da cadeira do mestre aos ministros do culto, um domínio que, sendo de origem meramente civil, cumprirá, sob pena de desvirtuar-se de todo, que se torne absolutamente estranho às distinções de fé. Semelhante estado de direito era incompatível com uma civilização que repousa no espírito de tolerância, e que da igualdade perante a lei, da liberdade de consciência, do livre exame, da repartição do imposto proporcionalmente às recompensas e serviços em cujo nome ele é solicitado, fez as suas supremas leis. Ora, sendo tal a situação em que tiveram de invariavelmente talar, sem outra exceção, os estados modernos, estudando os diversos alvitres a que elas têm chegado para que se desvencilharem do regime antigo nas relações da escola com o culto, seremos levados, aproveitando a lição estranha e seguindo a evolução histórica, a descobrir o expediente no momento atual mais propício a tornar possível, entre as aspirações e os interesses opostos, que entre nós, como alhures, se debatem neste terreno, um acordo que além pode conciliar, respeitando-os os legítimos escrúpulos de ambos os lados. Neste intuito, posto de parte, porque dele já começou a separar-se a nossa legislação, e porque até de seus últimos redutos tende a desaparecer, o antigo modelo da escola com o ensino religioso obrigatoriamente professado a todos os alunos, sem distinção, pelo instituidor civil, as legislações vigentes oferecemnos os três expedientes seguintes: Iº. O ensino da religião oficial como parte integrante do programa da escola é matéria obrigatória da missão do professor, mas facultativo para os alunos; 219
2º. A instrução religiosa excluída do programa escolar, porém ministrada, fora das horas de aula, no edifício da escola, pelos ministros dos diferentes cultos, aos alunos que quiserem recebê-la; 3º. O ensino religioso excluído do programa e da casa escolar. Ao primeiro desses regimes filiou o decreto de 19 de abril de 1879 as escolas do município da côrte. É também o que vigora em Portugal e na República Argentina. O segundo, que cabe à Holanda a glória de haver inaugurado em 1806, é, salvo modificações e diferenças acidentais, o regime comum à Inglaterra, pelas leis de 1870 (ministro liberal de Gladstone) e de 1877 (gabinete conservador de Beaconsfield), à Bélgica, pela lei de 1 de julho de 1879, aos Estados Unidos, por sucessivos e vários atos da legislação federal e das dos Estados2, à Áustria, à Suíça, à Itália, finalmente em várias de suas principais cidades. Neste ultimo país, cumpre notá-lo, a lei vigente é a de 15 de julho de 1877. Deixando ao arbítrio dos municípios conservarem ou suprimirem o ensino religioso, essa lei ficou aquém das vistas até dos mais moderados estadistas da península, como o Sr. Minghetti. No seu livro – A Igreja e o Estado – já antes ele escrevera (p. 128): "É uma conseqüência do que estabelecemos que, se o Estado é verdadeiramente incompetente em matéria religiosa, não lhe cabe fazer ensinar nem o catecismo, nem a teologia. E quando digo o Estado, compreendo as províncias e as comunas, que, neste particular, podem ser consideradas como pequenos estados". Com tal disposição (a lei de 1877), diz outro escritor italiano, "querendo-se contentar a todos, acabou-se por não satisfazer ninguém, porque deixou-se aos municípios a solução Buisson. – Rapport sur l’ instruction primaire à l’ exposition universalle de Philadelphie, em 1876. 2
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dum problema, talvez o mais árduo e difícil, que só o parlamento era competente para resolver"3. Assim, a corrente de opinião neste país encaminha dia a dia a escola para o regime a que foi intento da lei subordiná-la, embora ao legislador haja faltado a coragem de estabelecê-lo franca e uniformemente. Finalmente, ao terceiro e último dos sistemas que enumeramos só um país, a França, conseguiu até agora, chegar, pela lei de 28 de março de 1882; ainda assim porém, quanto à escola primária restritamente, pois no que concerne ao ensino secundário, o regime vigente, do decreto de 24 de dezembro de 1881, é o da Holanda, da Inglaterra, da América respectivamente às suas escolas elementares, permitindo aquele decreto que nos estabelecimentos de ensino secundário a instrução religiosa seja distribuída, fora das horas de aula, mas no interior dos estabelecimentos, pelos ministros dos diferentes cultos. Conseqüentemente temos que, quanto ao lugar da religião nos programas do ensino público, o assentimento dos mais esclarecidos povos produziu-se no sentido de retirá-la das obrigações do mestre, não simplesmente exonerando-se este do encargo de ensiná-la, senão ainda fazendo-a desaparecer da atmosfera da escola, e impondo-se ao professor o dever de abster-se com o máximo escrúpulo, no exercício do magistério, de tudo aquilo que mesmo de longe seja susceptível de parecer relacionado com a instrução religiosa ou de implicar preferências de seita que possam melindrar a liberdade de consciência dos alunos e dos pais de família. É o que explica que até o uso da leitura bíblica, sem comentários, e os simples exercícios religiosos, anteriores ou subseqüentes às classes, estejam em via de desaparecer inteiramente naquelas onde já não tenham inteiramente desaparecido, das escolas americanas e inglesas4; é o que revelam 3
(2)Aw. F. Natoli. – La Scuola e lo Stato, se condo la moderna sociologia.
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Buisson, - Op. cit, pag. 459
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os últimos e sucessivos atos, leis, decretos, regulamentos e instruções da Suíça, da Áustria, da Bélgica, da Holanda, quando neste particular trazem continuamente avivada a consciência e a responsabilidade dos instituidores, em ordem a que de suas escolas não seja lícito supor que elas conservam o mínimo vestígio das antigas características confessionais porque se distinguiram. Desta maneira, se os estados modernos tem afirmado o seu dever de proteger as religiões, o que não importa, antes repele, a obrigação de ensiná-las diretamente; se manifestam reconhecêlas, respeitá-las, e garanti-las, ao ponto de concederem aos respectivos ministros o domínio secular da escola para o ensino formalístico da fé; de outra parte tem assim caminhado a resguardar da tirania odiosa das tendências e hábitos monopolizadores do sectarismo religioso os seus supremos deveres de neutralidade e a sua reconhecida incompetência de jurisdição nos assuntos do pensamento individual e da consciência humana. Eis porque, apreciando esse regime, um publicista tão conhecido, quanto insuspeito de radicalismo, e que poderíamos chamar o publicista conservador da terceira república, o Sr. John Lemoine, foi levado a dizer no dia seguinte ao da votação da lei belga de 1879: "Esta lei não realiza as aspirações do partido liberal: é uma lei de transação". Efetivamente, o grande orgão da imprensa do Reino Unido, o Times, exprimia-se quase ao mesmo tempo nestes termos: "É certo que pela nova lei o clero não será expulso da escola: pelo contrário, a lei reconhece-lhe o direito de aí entrar para ensinar o que quiser. Sua presença, pois, na escola é permitida. Somente, sobre ele não exercerá a menor superintendência, quer na escolha dos livros, quer no que respeita aos deveres profissionais e seculares do mestre. Se o clero quiser mais do que isso, poderá fazê-lo nas suas escolas, mas não no Estado". Ora, um regime que assim conserva abertas aos cultos as portas da escola para que nesta, lado a lado da instrução científica dos programas leigos, possam os cultos ensinar o que quiserem, não pode ser deveras senão um regime de transação. Com o 222
movimento de secularização que domina os espíritos, as leis e as instituições; com os princípios de igualdade jurídica e de livre exame que caracterizam o nosso tempo, é, em rigor lógico, compatível o sistema da escola primária francesa, qual a criou a lei de 28 de março de 1882, e de que outros países já também oferecem o tipo em algumas de suas escolas livres ou particulares: para exemplo a Escola modelo de Bruxelas, admirável criação da Liga do Ensino nesse país. O futuro, em todos os povos, reserva à escola esse regime. Com a liberdade que os pais de família e as coletividades religiosas têm de ministrar o ensino religioso, por meio de seus naturais representantes, no lar, no templo, ou nas escolas por sua iniciativa fundadas, e aonde seria lícito aos alunos dirigir-se a receber aquelas lições, e reservado o acesso da escola pública exclusivamente aos representantes da autoridade secular, que a criou, sem preocupação de seita, para a instrução universal das gerações, sem distinção de crenças, até a possibilidade dos conflitos na área da escola terá desaparecido, logrando-se de outra parte que assim sejam satisfeitas todas as condições de verdadeira liberdade para o padre, para o mestre, para os alunos, para os pais de família, que são os quatro fatores interessados na solução desse problema. Efetivamente, pergunta o Sr. Paul Bert5 defendendo o sistema da lei francesa: "Onde e como sob tal regime poderiam os conflitos suscitar-se? Não sobre as ciências, a literatura e a história, reservadas ao mestre, nem sobre as verdades religiosas reservadas ao padre. Seria sobre a moral? Impossível ainda, porque mestre e padre encontrar-se-ão de acordo para louvar ou censurar os mesmos atos, e não é licito admitir que um deles faça, com grande indignação do outro, a teoria da mentira e do roubo. Não; em moral o padre aceitará tudo o que houver sido ensinado pelo 5
(I) L’instruction dans une démocratie.
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mestre; simplesmente, dará aos mesmos princípios outra base, outra sanção, eis tudo, e a isso ajuntará prescrições especiais relativas aos dogmas e aos ritos de sua igreja particular". Ora, como veremos em pouco, o ensino do que se tem convindo chamar das bases da moral não cabe na escola, pelo menos na primária, e quanto ao dos dogmas e dos ritos a sua sede verdadeira é o templo ou o lar. Mas, diante das dificuldades práticas, as quais não importa explicar, e cuja origem não se faz mister expor, que a adoção imediata desse regime no estado atual dos espíritos encontraria, a razão do estadista e a do legislador, e disso ainda oferece prova a própria França na organização do seu ensino secundário, tem sido levadas, embora com sacrifício da lógica, a pleitear simplesmente pelo alvitre, e a contentar-se com o sistema, da escola leiga na pessoa do mestre, nos capítulos do seu programa e no espírito do seu ensino, mas livre e aberta aos ministros dos diferentes cultos, fora das horas de aula, para aí distribuírem o ensino religioso. Até agora, somente em França a luta ainda travou-se entre este e o alvitre extremo do ensino religioso excluído do programa, como do edifício escolar. Esquecem-se deste fato os que entre nós (e seja-nos lícito recordá-lo, porque em debates públicos semelhantes gêneros de prova vimos invocado), amigos do argumento de autoridade dos nomes próprios, a este propósito lembram sem nenhum propósito o nome do Sr. Jules Simon, que tão caro foi já ao liberalismo deste século entre os povos de nossa raça. Na questão do ensino em suas relações com o culto, o Sr. Jules Simon de feito representa hoje na opinião francesa o espírito reacionário: mas é que nesse país o espírito reacionário já não está neste assunto senão em nada pretender além do que é o máximo liberalismo prático nos povos vizinhos, e em contentar-se com este, submetendo-se-lhe às exigências. Haja vista como, na sessão do Senado de 12 de março de 1880, exprimia-se, discutindo o projeto de lei, o Sr. Jules 224
Simon: "Às razões da Convenção, que vos inspiram, poderia eu ajuntar outra, a saber: que é difícil a um leigo ministrar o ensino religioso. Dado o estado presente dos espíritos, não concordo em que os mestres leigos da Universidade sejam incumbidos desse ensino, e não concordo por amor deles. Desse encargo advir-lhesiam dificuldades contínuas, que embaraçariam o exercício de suas funções". E em seu recente livro, Deus, Pátria e Liberdade: "Digam-nos, pois, de que espécie de neutralidade cuidam. A que consiste em fazer ensinar cada religião por seus próprios ministros, parece-nos muito aceitável. Reconhecemos a incompetência do leigo em matéria de ensino religioso. Católico, não concordaríamos em que fossem ensinados aos nossos filhos os dogmas e os mistérios do católico por outro mestre que não o cura. Admitimos, pois, a separação das atribuições. Cada religião positiva será direta e exclusivamente ensinada por seus discípulos. Mas, chegar ao ponto de não admitir esse ensino senão fora do local escolar, eis o que se nos afigura puerilidade, e talvez também ódio". Ora, é contra a escola secularizada em maneira tão semelhante conciliadora dos interesses confessionais, que esses interesses reclamam, que eles levantaram-se em toda a parte onde ela logrou estabelecer se, prometendo dar combate em toda parte onde ela ainda não se introduziu. Tal o caso da Bélgica antes e depois de 1879, quando, segundo refere o Sr. Le-Hardy Beaulieu, no relatório apresentado acerca do inquérito mandado proceder sobre os resultados da lei do ano passado, a pressão do clero sobre os resultados da lei do ano passado, a pressão do clero sobre os mestres, os alunos, os pais e as mães de família tocou, mediante ameaças de todo o gênero, inclusive a recusa dos sacramentos e ofícios espirituais, os últimos limites do escândalo, com o fim de que as escolas civis se tornassem desertas; tal o exemplo na Inglaterra, quando a palavra de Cobden e de Bright, de Forster e de Disraeli, coube defender a escola secularizada contra a eiva de impiedade e imoralidade, com 225
que os amigos do monopólio batisavam-lhe a tolerância e o espírito de igualdade; tal o fato na América, quando, como refere o Sr. Buisson, depois de haverem os católicos reclamado, em nome da igualdade dos cultos, contra a escola sectária, onde se praticava a leitura da Bíblia na versão que lhes era suspeita, volveram, alcançada a eliminação desse uso e constituídas em perfeita igualdade as condições confessionais, a clamar contra a escola pagã. É que o espírito dos cultos ou as pretensões das seitas natural e forçoso é que não possa contenta senão a escola ou pessoalmente dirigida pelo ministro da fé, ou positivamente enfeudada aos intuitos confessionais, convertido o dogma em matéria integrante do programa da escola, e constituído o instituidor na obrigação de ensiná-lo. Este último alvitre, salvo aos alunos acatólicos a faculdade de não freqüentarem a aula de instrução religiosa, é, segundo já vimos, o que implantou entre nós o decreto de 19 de abril de 1879, que reformou o ensino secundário no município da corte e o superior em todo o império. Esta disposição, que respectivamente ao estado anterior de nossa legislação representa um movimento progressista, mais não significa do que um verdadeiro contra-senso se a encaramos diante das legislações mais cultas da atualidade e dos mais elementares preceitos da pedagogia hodierna. Em resumo, ela mira respeitar a liberdade do aluno desobrigando-o de receber um gênero de instrução que em consciência ele repele, mas atenta contra a justa soma de direitos e benefícios que a escola deve com igualdade precisa e absoluta repartir pelos discípulos, desde que em proveito de uns mantém uma espécie de lições que a outros recusa. Nem se diga que essa distinção provém de ser o catolicismo a religião constitucional do Estado. Oficial é também a religião anglicana na Grã-Bretanha, e nem por isso a ortodoxia inglesa tem nas escolas esse monopólio humilhante. 226
Depois, o nosso decreto, que não esqueceu, embora com tamanha avareza, uma vez que não tornou-a igual para todos, a liberdade de consciência dos alunos, injuria a liberdade de consciência, quiçá mais digam de respeito, no mestre, mantendo essa espécie de capitis diminutio, em que, impondo-se ao instituidor público a obrigação de lecionar determinado culto, vem a incorrer todo o cidadão que, tendo a desventura de não compartir a crença oficial, e repugnando coerentemente à vileza solene e contumaz da apostasia ou da hipocrisia, assim vê fechada diante de si a porta desta mais liberal de todas as carreiras, a do professorado. Evidentemente a mantença dessa incapacidade política, de que a Constituição não cogitou, significa um atentado cada dia repetido contra a lei fundamental do Império. Aliás, se não é precisamente com o placet da lei constitucional que essa desigualdade odiosissima persiste, nem ao menos em benefício da crença, e para atenuá-la com esse proveito, é lícito argumentar que ela se destina, por que, se há um conceito mil vezes repetido e mil vezes justo é que tão competente como o padre ninguém há para ministrar o ensino da religião, e conseqüentemente que muito melhor será esse ensino distribuído por ele do que pelo professor. Com esse alívio das ocupações profissionais, quem, pois, tem que lucrar não é senão o culto; mas, se esta sobrecarga pesasse aos seus ministros, sinal era então de que o santo ardor da fé não os inspirava. Como quer que seja, porém, não é aos funcionários do Estado que incumbe o ensino da fé. Esse ônus pertence ao ministério do clero, nas várias igrejas, a respeito das quais o papel do poder público se resumirá exclusivamente em protegê-las nas suas relações espirituais com as consciências livremente adhesas a cada culto. Ao sacerdote, pois, a tarefa de ensinar o dogma, os ritos, o catecismo, a fé: ao mestre a missão, que lhe é própria, de instruir os alunos, com a plena liberdade que a probidade da profissão e o interesse da verdade requerem, nas verdades morais e 227
científica que constituem o patrimônio e a glória da inteligência humana. Ou consistia na explicação aprofundada dos dogmas, ou a simples lição do catecismo, e é desta maneira que se costuma praticá-lo, o ensino religioso é estranho à missão do instituidor: no primeiro caso, é superior à competência do mestre à inteligência do menino; no segundo é inferior a um tempo ao entendimento da criança e ao dever do professor. Em ambos os casos, é incompatível com a vocação do mestre-escola, tal como se esmeram em cultival-a e formal-a os métodos e processos de pedagogia contemporânea, que não reconhece direitos de cidade senão à instrução adquirida à custa da observação do alombo e do mestre, combinadas em descobrir as causas e as leis do fenômeno e de suas relações em toda a ordem de fatos sujeitos à inteligência humana, e assim condemna por absurda a instrução puramente de memória, que mediante um trabalho puramente mecânico dessa faculdade, cujo resultado é equivalente, se imponha à criança o suplicio de guardar. Em definitiva, bem o sentiu o gênio observador de Bain, e diremos com ele finalizando esta parte: "Há talvez sem dúvida um elemento intelectual na religião; entretanto ela é essencialmente emocional, e o ensino ordinário da escola não é favorável à cultura das emoções. O sistema que melhor convém ao elemento intelectual não é o mais próprio para o elemento emocional. A regularidade das lições, o método, a ordem, certa severidade de disciplina, tais são as condições de todo o progresso na instrução; mas, para produzir e desenvolver uma afeição vivam ou um sentimento profundo, cumpre aproveitar circunstanciais ou acontecimentos que raramente se apresentam na vida da escola. Nas circunstâncias mais favoráveis, este desenvolvimento exige longos anos para adquirir a força necessária a grande influência moral. Esta é a verdade particularmente quanto aos sentimentos religiosos, os quais deverão ser muito poderosos para contrabalançarem todos os males da vida. Erramos, encarregando deste dever o mestre-escola. O pai ou a mãe, a igreja, a individualidade do alombo, o espírito do tempo, tal como a 228
sociedade e a literatura o manifestam, eis as influencias que contribuem para determinar a presença ou a ausência das disposições religiosas, e entre estes factores a escola é o que menor influencia exerce"6. É, pois a psicologia, pela voz de um de seus mais autorizados mestres, quem adverte ao culto que ele ao demais se engana, quando conta, como o mais eficaz, com o concurso da escola para a elaboração do sentimento religioso. Decididamente, não é aí onde melhor ele se forma. Em prova, basta citar o exemplo daqueles países onde, não se incluindo o ensino religioso no programa da escola e entre os deveres do mestre, a religião floresce no coração da infância, das famílias e do povo como o sentimentos mais puro, mais enérgico, senão também até o mais temeroso, da alma nacional: a Inglaterra, a América do Norte, a Holanda. É que aí a religião não se aprende como uma lição de cor, mas cultiva-se e zela-se como agrande tradição e a suprema esperança da vida. Eis o que explica que, ao lado dos milhares e milhares de escolas absolutamente leigas que cobrem, como as suas mais vigilantes atalaias, ou os seus melhores fortes de defesa, a superfície do território norte-americano, uma estatística do ano recente (1876)7 assinala a existência de 69.871 escolas de domingo, nas quais se empregam 753.060 mestres e que freqüentam 5.790,683 alunos! E’ aí onde os cultos distribuem, e a mocidade recebe, o ensino religioso. Quando, pois, anatematizando a escola leiga, os inimigos do ensino secular pretendem injuriá-la com a qualificação de escola atéia, é antes de tudo a evidência dos fatos quem se levanta para infligir-lhes o mais eloqüente dos desmentidos! Esta fórmula – o Estado ateu, a escola atéia, diz Buisson, "é o que os americanos chamam liberdade de consciência, igualdade de todos perante a lei, 6
(I) Bain. – La science de l´éducation.
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(I) Buisson. Op. cit.
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neutralidade do governo entre as seitas e os partidos. Quem lhes propusesse dar oficialmente a uma escola do Estado ou da comuna uma qualificação religiosa qualquer, não encontraria maior número de votos do que aquele que lhes pedisse para intitularemna, ao contrário, escola atéia ou anti-cristã". Certo igualmente, quando à Holanda, à Áustria, à Bélgica, à Inglaterra estabeleceram que o ensino da religião fosse exclusivamente confiado aos ministros do culto, não pensaram em fazer profissão de impiedade ou de ateísmo, mas em deixar a quem de direito uma missão para que o Estado é perfeitamente incapaz e à qual é inteiramente estranho. Eis porque o Sr. Lemoine escreveu algures: "Cremos que quem disse – a lei é atéia – professou uma doutrina espiritualista. Nunca se pode sustentar que desta forma o legislador negava a existência de Deus e rejeitava todas as religiões: o que se quis dizer é que a lei não conhecia senão cidadãos, e não lhes pedia conta de sua religião particular. É uma locução de que se pode servir o magistrado mais cristão, nunca significou que a lei faça profissão de ateísmo, o que seria a expressão de uma religião, mas simplesmente que não pode ter opiniões dogmáticas em matéria religiosa e aplica-se imparcialmente a todos os cidadãos sem distinção de igrejas". Como, de feito, inverter essa fórmula contra a lei, que ao mesmo tempo que dá ingresso no recinto de suas escolas aos sacerdotes de todos os cultos, para o ensino da revelação, terminantemente impõe ao mestre o máximo respeito às crenças gerais, constituindo-o na obrigação de abster-se de tudo quanto possa ofende-las, limitando o seu ensino ao da verdade reconhecida pelo consenso universal? Pretendesse a lei a demais o contrário, e orçaria pelo maior dos ridículos e pela mais colossal impotência e insensatez. Na razão do homem a idéia de Deus é ainda, e tem sido sempre, a idéia capital dominadora do seu ser; e verdadeiramente fora loucura nutrir como plausível o intento de desarraigar do coração e do entendimento humano, como um simples artigo da 230
lei, essa isolável convicção, de que se alimenta a humanidade, quanto à suprema causa do universo e suas leis. Na atmosfera da escola, pois, livre esta embora do espírito sectário que o ensino religioso lhe soprava, ou precisamente por isso, nada obsta a que paire como inspiração superior esse espírito eminentemente teista e cristão, de que fala Bain, e que, enquanto for aquele a cuja luz a humanidade caminha, tenderá a exercer fatalmente em todas as grandes manifestações da vida social inevitável influência. O mais, o ensino particular desta ou daquela seita, desvirtuaria o papel da escola, cujo recinto perderia daquela paz serena e fecunda que deve constituir-lhe o ambiente, desde que fosse permitido ao exclusivismo desta espécie penetrá-lo com sua ação maléfica e irritadora. Eis, pois, a escola leiga, que nenhuma susceptibilidade ofende, que nenhuma crença viola, que a todos os direitos respeita, que não deixa de acatar nenhum sentimento bom e nenhuma convicção sincera. Ela oferece, além disto, o mais seguro abrigo a todas as consciências retas, e em seu seio podem viver harmonicamente todos os cultos, a cujas distinções se mantêm superior e inacessível. Não é uma profissão de fé religiosa o que praticam os que a reclamam, e todas as comunhões podem indistintamente e devem com igual esforço defendê-la. Em realidade, pois, os debates apaixonados que nos livros, na tribuna, nas academias, a sua simples enunciação basta para suscitar, não provêm senão dos ódios de partido e da cegueira dos interesses empenhados no pleito mais estranhos à vista clara da verdade dos fatos. II – Se a instrução religiosa é assim alheia à missão do mestre, a educação moral pelo contrário deve ser a preocupação culminante e o resultado superior do ensino da escola. Quem contestará a necessidade de que o ensino tenda a frutificar na consciência do aluno e a desenvolver-lhe no afã esses grandes sentimentos da honra, do desinteresse, da benevolência, do patriotismo, da lealdade, da caridade, do amor ao trabalho, do 231
dever em suma, e da fraternidade humana, em todas as suas formas? Estes altos princípios são as grandes condições fundamentais da paz, da ordem e da felicidade nas sociedades humanas. Formam o patrimônio comum da experiência dos povos, acumulada pelos séculos. Superiores às distinções de fé, às diferenças de teorias, aos conflitos de sistemas, são o ponto de mira de todas as escolas, que assim se confundem quando se trata de apregoá-los. Não sendo privilégio de nenhuma crença, constituem, pois, a tarefa comum de todos os mestres, e sua missão primordial na escola. São verdades estas que não exigem demonstração. Somente, como há de a escola exercer a sua função educadora, como deve promover a cultura moral? Reduzindo-a à lição didática dos deveres, a um curso teórico de ética, a um programa escrito de obrigações, ou fazendoas derivar da ação diuturna dos fatos na escola, do influxo continuado do regime escolar, da vida, da comunicação, da prática, dos estudos, dos exemplos desenvolvidos na classe? Toda a cultura moral que se não baseie no segundo destes processos será coisa sem nome e eficácia; e mais não fazem senão esterilizar o tempo e sobrecarregar de inútil e onerosa bagagem a memória do aluno as escolas onde toda a educação moral das crianças se prepara, obrigando-se a decorar os preceitos abstratos e as fórmulas consagradas do catecismo ou do compêndio. Não; à primeira idade, pelo menos, não convém os conhecimentos do dever senão intuitivamente ministrado, adquirido nos exemplos que cercam o menino, ou para que se lhe provoca a atenção, fazendo-o querer a virtude e o bem como um hábito, a que cumpre afeiçoá-lo, e a cuja regra benéfica ele desse modo seja espontaneamente levado a obedecer. Como bem observa o Sr. Jules Simon, "cumpre proporcionar cada ensino à idade e à força dos espíritos, e quando 232
nos dirigimos aos meninos, o ensino moral da escola deve ser exatamente semelhante ao que eles no lar doméstico recebem de seus pais ou de suas mães, que nunca terão a idéia de falar-lhes da doutrina de Kant ou da de Spencer"8. A autoridade deste último e prodigioso pensador seria aliás a primeira que o Sr. Jules Simon poderia invocar em favor de sua tese. É, pois, dirigindo o ensino, aproveitando, em bem da cultura moral, a ação geral dele e valendo-se de todas as oportunidades infinitas que em cada classe, a propósito de cada lição, a pretexto dos mil fatos da vida da escola, se oferecem, que o mestre há de promover a educação moral do aluno, fazendo germinar-lhe no coração e crescer-lhe no espírito a idéia do dever, o sentimento moral, a vontade de praticar o bem, que o aluno será assim compelido espontaneamente a conhecer, a sentir, a querer. Da vocação do mestre, do espírito de seu método, da ação de seus exemplos pessoais em última análise, é que depende soberanamente a educação moral do aluno das escolas elementares. Eis, pois, que aí não deve ter cabida o ensino de moral senão intuitivamente, diretamente, praticamente. Cumpre que seja um resultado de todo o ensino e convém penetrar em todo o programa. É isto o que a lição dos mestres ensina e os preceitos da legislação positiva começam a impor. Na América, atesta o Sr. Buisson, é neste sentido que se exprimem e que obram as mais competentes autoridades, sendo que nas melhores escolas elementares americanas o ensino da moral não figura nos programas como um curso especial. O Congresso Pedagógico de Paris, reunido em 1881, resolveu em sentido idêntico que: "o ensino da moral seja independente do ensino religioso, que se ligue a todas as lições da classe elementar sem formar curso especial; que seja feito em harmonia com os princípios da sociedade moderna".
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(I) Dieu, Patrie et Liberté.
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A lei holandesa de 1878 já não incluíra o ensino moral entres as matérias do curso; e ainda antes, as instruções redigidas pelo Sr. Tempels, a 1º de outubro de 1877, para o uso dos professores da Escola Modelo de Bruxelas, começando por consignarem que a cultura moral é a parte principal da cultura geral, acrescentam que entretanto a moral não figura entre as matérias do programa que deve ser ensinado na escola, porque para as crianças não é uma matéria científica, mas deve ser o resultado de sentimentos e hábitos, importando, sim, neste particular, à escola, submeter o menino a um regime que tenha por fim produzir uma moralidade efectiva que o aluno realmente possua as virtudes que são objeto da moral. É visto que, subindo o aluno com a idade, na escala do saber, o concurso do professor no ensino direto da moral tende a diminuir. "Para os meninos de mais de doze anos, diz por isso Bain, podemos afirmar que as lições diretas de moral não convém senão como meio de disciplina. Nas grandes escolas e universidades tem-se renunciado de comum acordo fazer entrar no plano de estudo o ensino direto da moral". É a idade em que as portas do ensino secundário se tem aberto para o aluno; aí, chegado aos últimos círculos do curso, oferece-se ao discípulo, segundo com razão estatuem ainda em geral os melhores programas dos países adiantados, o estudo científico da teoria moral e de suas origens e sistemas, como parte do curso filosófico. Quanto às escolas normais, desenvolvendo-se sem pausa no aluno o senso pedagógico, imbuindo-o solidamente da instrução integral do programa, habilitando-o praticamente no exercício da vocação a que é chamado, habituando-o desde o mais cedo possível ao ensaio da profissão, criando-o assim no amor desta, eis como se terá melhor preparado a exercer na escola, que for chamado e reger, a influência moral do seu ministério. Rodolpho E. de Souza Dantas
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REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.3, março de 1884, p.57 a p. 84)
Sumário. – O ensino secundário do sexo feminino, pelo Conselheiro Rodolpho E. de Souza Dantas. – O ensino superior no Brasil, pelo Dr. Luiz Couty. – Crônica. Rio de Janeiro, 31 de Março de 1884.
O ENSINO SECUNDARIO DO SEXO FEMININO I – Ainda não são decorridos cinco anos que fazendo o balanço das estatistícas do ensino em França, e perscrutando-lhes as advertências, escrevia o Sr. Michel Bréal: "Custa a crer que uma grande, inteligente e liberal cidade como Paris ainda até agora não haja fundado uma escola secundária para as moças!9". Estendido a toda a França, na época em que foi pronunciado, nada perderia a verdade do conceito. Ora, este angustioso testemunho de abatimento, proferido na pátria, e contra a pátria, de Fénélon, de Mme. de Maintenon, de Mme. de Lambert, de Condorcet, de Lakanal, de Mme. de Campan, de Guizot e de Duruy, por um espírito digno de emular com esses na vasta intuição e no profundo zelo dos princípios e dos interesses da educação, seria para diminuir o amargor da confissão a que fossemos obrigados quanto ao estado do nosso ensino público, quando, entre as mil e enormissimas lacunas que o agorentam, carecessemos de não occultar que a instrução da mulher tem aqui por limite as primeiras letras de nossas pobres escolas elementares, sendo que até na capital do império, apesar de toda sua população e riqueza, era ainda desconhecida uma escola secundária do estado 9
Excursions pédagogiques, p. 282.
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ou do município para o sexo feminino. Da França, porém, já Voltaire disse que a tudo ela chega tarde. Aliás, a julgar pelo ardor com que, uma vez definitivamente compenetrada dessa falha imensa na obra de sua história, da sua legislação positiva e do engrandecimento de sua educação, pos empenho em repará-la, não é senão justo acrescentar que a tal respeito soube a França ressarcir generosamente o tempo perdido e os esforços desaproveitados. De feito, apenas cinco anos são passados depois de escritas as desalentadoras palavras do seu eminente filólogo e pedagogista Bréal, e já orçam por dezenas de milhões os gastos feitos pelo estado, os departamentos e as comunas de França com a aquisição dos terrenos e edifícios para os liceus de mulheres; e já sobem a setenta os colégios e liceus de moças, criados, projetados e em via de ser contratados; e já em uma escola normal de primeira ordem formam-se professoras para as escolas secundárias de mulheres; e já atinge este ano a 85:000 francos, no orçamento da instrução pública, o algarismo de despesa anual do estado com a manutenção do ensino secundário do sexo feminino. Se, pois, e já o vimos feito, na lembrança de um passado, cuja distância é apenas de um lustro, poderíamos, no confronto de uma nação que a tantos respeitos permanece, para tantos povos, como a metróple verdadeira da inteligência, do progresso moral e da riqueza, procurar atenuantes a tamanha deficiência no plano do nosso ensino público, muito mais útil e urgente fôra agora a imitação daquele exemplo, se se deliberassem os encarregados da verdade da educação pública entre nós a iniciar com firmeza e critério o empreendimento desta obra de justiça, de interesse social e de segurança do futuro nacional. A natureza, disse uma vez o professor Huxley, reclamando a propósito do nosso tema – o desenvolvimento da instrução das mulheres – a natureza tem a sua velha lei salica, que
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não será abolida: no governo da humanidade não ha por isso temer que se produza alguma mudança de dinastia10. Conseqüentemente, desinçado assim o problema da instrução do sexo feminino, já dos erros e dos ridículos de um sentimentalismo exorbitante nos excessos de suas exigências, como dos vãos temores de uma rotina supersticiosa e estéril, considerada a mulher simplesmente na verdade de sua natureza, de suas tendências, de suas aptidões, de seu destino em suma, o sistema da instrução que lhe é relativo, e que convem garantir-lhe, apresenta agora uma face por forma tal positiva, que poderia em todos os estados constituir hoje um dos capítulos mais práticos da administração interior, tendo já entrado em muitos em larga fase de progressivo desenvolvimento. Reconhecendo e sancionando desde o princípio, pela coeducação, a verdade e a necessidade prática da igualdade dos sexos perante a instrução geral, foi como o bom senso americano conseguiu, comparativamente aos estranhos sistemas, prodigiosas vantagens de dinheiro, de tempo e de vigor intrínsico para o seu regime escolar, e a garantia da vida moral e do progresso commum na república. A coeducação, porém, nem só não basta às exigências crescentes e a todas as necessidades do ensino que nos ocupa, e em prova não é preciso recordar senão o próprio exemplo da União Americana com os seus inúmeros estabelecimentos especiais, que cada dia se levantam ao lado as escolas comuns ou mistas; mas ainda revela-se como a mais arriscada das soluções do problema, em toda a parte onde, desde a origem, não constituiu, como ali, um princípio geral, preponderante, fundamentalmente orgânico da constituição moral do ensino. Daí as escolas especiais, as instituições independentes, o conjunto de estabelecimentos à parte, que na generalidade dos países se destinam à instrução do sexo feminino, formando na organização material do ensino larga Les sciences naturelles et les problémes qu’elles font surgir (Lay sermons). P. 35.
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seção especial, paralelamente às instituições consagradas à educação do outro sexo. II – Coerente a esse fato, um decreto do poder geral na côrte, e nas províncias os poderes locais, por virtude das respectivas leis, asseguram a instrução primária ao sexo feminino, em escolas elementares a ele exclusivamente destinadas. Desgraçadamente, porém, a significação destes dois últimos vocábulos entre nós quase por todo o país é tal, que, na prática, a realidade, o objeto e os resultados que pareceria deverem exprimir resumem-se na mais contristadora das mistificações. É o vazio organizado, regulamentado, com todas as honras e solenes custos de uma verdadeira instituição. Tudo o que de invariável e universalmente constitue hoje a essência, a área, o proveito e a eficácia da instrução primária permanece como uma aspiração remota para a escola popular brasileira, condenada ainda até este dia à mesquinha trajetória da qual a taboada e o catecismo são os dois lúgubres polos esterilissimos. De métodos não há de falar, em tratando-se de programas cuja matéria é aquela. E nisso cifra-se a soma de instrução em nossas escolas populares ao alcance do maior número. Assim é que ainda persiste a nação em supor que tem bastantemente instruído nos deveres morais e profissionais, que respectivamente lhes incumbirão, as que amanhã no seio do povo serão as mães de família e os que depois, na elaboração da riqueza pública, serão desta os operários anônimos e inumeráveis. Não há também admirar depois disto que a escola popular entre nós seja quase tão somente o receptáculo dos deserdados da proteção da fortuna, sob qualquer das suas formas, derivando para os colégios particulares, e para os estabelecimentos criados afora do estado, ou acima e contra ele, a grande corrente da infância de ambos os sexos, à qual meios apenas menos minguados favorecem. Como quer que seja, entretanto, à criança que fez o curso primário da escola pública do sexo masculino pode ainda sorrir a esperança de vir a completar algum dia, mediante retribuição efectivamente módica ou nenhuma, em estabelecimento público, a instrução cujo esboço imperfeitissimo 238
lhe foi uma vez revelado. Obterá isso, embora sem a prévia preparação que nas primeiras aulas não recebeu, e, pois, quebrada a lei da proporção entre a cultura adquirida e a por adiquirir; mas, emfim, obterá. Ainda assim, obterá – quer dizer, na côrte e em algumas províncias, porquanto somente na primeira, e não em todas as segundas, existem estabelecimentos públicos de ensino secundário. O que importa, porém, é que na côrte e onde tais estabelecimentos existem eles são privativamente, de fato e de direito, reservados ao sexo masculino, donde resulta que até este momento a administração do país, geral e local, está dominada da convição de que para a instrução do outro sexo há feito tudo desde que a tenha limitado à que a escola de primeiras letras distribui; e mais, que o seu intento, traduzido nos fatos, é assinalar em relação à cultura geral a subalternidade de um dos sexos, precisamente daquele ao qual a natureza e as necessidades da vida social constituíram na tarefa augusta e arduíssima de ser o primeiro educador da infância e o fator primordial e insubstituível na formação do carater moral e na direção primária do espírito do homem. III – Com as suas próprias estatísticas em mão teria entretanto o estado, entre mil outros argumentos, o aviso e a prova irrefragável do erro e da injustiça que assim comete. Efetivamente, tomando do último trabalho oficial deste gênero, anexo (D) ao relatório do ilustrado ex-ministro do Império conselheiro Leão Velloso, aí encontramos alguns dados interessantes ao ponto que nos ocupa. Entre os estabelecimentos consagrados pelo estado e as províncias ao ensino parcial de cada sexo, muito de indústria, não nos referimos às escolas normais. Primeiramente, elas também entram no plano do ensino primário, cujo professorado se destinam a preparar para a tarefa que já vimos ser a da nossa escola elementar. Depois, as escolas normais são institutos antes consagrados à cultura profissional, à cultura pedagógica, partilha de um limitado número, do que à cultura geral, que neste momento é apenas a que nos interessa. 239
Mas, o que é certo é que, embora lastimosamente incompleto e defeituosissimo, o currículo da escola normal, comparativamente às aulas da escola elementar, representa nos seus resultados e nos seus fins uma realidade muito mais séria do que as segundas significam. Aí, se revelam notavelmente superiores, em relação às do outro sexo, a matrícula, a assiduidade e o aproveitamento nas escolas do sexo feminino. Quanto à matrícula, os números podem dizer. Assim, a começar pela Escola Normal da côrte, escola mista, o relatório citado assinala que, emquanto no ano a que alude, a matrícula de homens na primeira série do curso não passou de 45 alunos, matricularam-se na mesma série 125 moças; quanto à 2ª série, inscreveram-se 16 alunas e nenhum homem. O inteligente professor Sr. Borges Carneiro, comisionado pela congregação da Escola para relatar os sucessos do ano letivo, exprime-se nestes termos, sobre o aproveitamento comparado dos alunos e alunas: "Não pode também passar despercebido o fato da atitude preponderante que as senhoras tem assumido no aproveitamento escolar: são elas que mais concorrem às aulas e melhores notas conquistam nos exames" (annexo C). Nas províncias, a julgar pelo anexo a que primeiramente aludimos, o mesmo fato, por via de regra, pode ser observado. Aliás, grande número de nossas províncias não possuem escolas normais, sendo que naquelas onde, em virtude de resoluções provinciais recentes, se criaram estabelecimentos com esse nome, até à data da ultima estatística ainda se não haviam inaugurado tais estabelecimentos. De todas as escolas existentes, porém, as únicas (sempre conforme à última estatística oficial) que apresentam diferenças decididamente vantajosas para a matrícula dos alunos do sexo masculino são as de Minas Geraes e Sergipe. Na Bahia, a província onde o ensino normal entre nós é melhor organizado, e que conta uma escola desse gênero para cada sexo, a última estatística assinala a matrícula de 68 alunos na de homens, para a inscrição de 125 discípulas na de mulheres. Nas principais das outras escolas normais provinciais, todas mistas, registra a estatística: na do Pará, a inscrição de 18 homens e 101 mulheres; 240
na de São Paulo, 26 alunos de 32 alunas; na do Rio Grande do Sul, 44 matriculados para 69 matriculadas. Neste fato, que não é peculiar ou exclusivo da escolaridade em nosso país, mas que em muitos casos, no ensino de todos os graus, pedagogistas e observadores dos mais autorizados têm conseguido assinalar em muitas instituições do estrangeiro, a nossa administração deveria rastrear tesouros de aptidão e de curiosidade científica, que, na carência do terreno onde naturalmente se expandiam, se esterilizam e fenecem com incalculável detrimento dos mais nobres interesses da educação pública. IV- Em resultado, a instrução das filhas-famílias do país está dependente dos meios de que porventura disponham os seus progenitores, ou os encarregados de velar-lhes pelo futuro, para conservá-las nos colégios particulares, à lei do acaso constituídos, ou sob a direção de mestras (privilégio dos ricos), que se incumbam de ministrar-lhes o ensino no domícilio paternal. E o número sem conta das que nesse caso não estão? E a multidão imensa de todas as demais que da escola primária pública, única que podiam pretender, saíram sabendo apenas rezar, contar e ler? E aquelas, quer dizer quase todas, a cujos pais a pobreza e mesmo a mediana dos recursos não consentem, ou só consentem a preço de sacrifício, por assim dizer do próprio sangue, a despesa do colégio ou do mestre que venha à casa? E a filha do empregado público, do militar, do artífice, em relação às quais a vocação, o estímulo, as necessidades morais e materiais da existência, o gênio quiçá, requeriam a extensão da cultura, a ampliação das faculdades, o desenvolvimento do saber? Estas são o grande número, são quem forma propriamente a família brasileira. E para sentir a extensão da dívida em que com elas está, bastaria que a administração atentesse no espetáculo que a seu lado oferece este admirável e glorioso instituto que se chama Lyceu de Artes e Officios do Rio de Janeiro. É mais do que uma escola, já se disse, é um templo. As aulas, que abriu para o sexo feminino, em poucos meses 241
povoaram-se de alunas. Perguntai aos beneméritos professores, que, em cada noite que passam no cultivo daquelas inteligências delicadissimas, juntam novas bençãos à nobreza do desinteresse, do civismo e da abnegação com que se empenham nesse incomparável apostolado; perguntai-lhes se estão contentes dos resultados do ensino que tem distribuído, e certo eles vos responderão que se acham seguros de haverem aberto uma escola no lar da família de cada aluna que preparam. É o que ja sentira o gênio profundo de Condorcet: instruir a mulher é, além de tudo, o mais seguro meio de perpertuar entre a espécie humana os conhecimentos adquiridos. Carecemos assim de chegar aos últimos e mais recentes períodos desse fecundissimo instituto, para ver empreendida e realizada a primeira das tentativas sérias que no país ainda foram feitas afim de proporcionar-se ao sexo feminino largo ensino público e gratuito. Também estender-se-ão até o infinito as irradiações desse foco de luz purissima, de súbito aberto em meio a profunda noite, largamente acumulada em torno deste vasto domínio da nossa educação pública. É aí somente que a mulher brasileira desde hontem pode, é aí onde apenas até hoje podia entrar, segura de encontrar sem ônus, nem entraves, nem preocupações de qualquer sorte atenuadoras do estímulo ou da confiança, uma soma de instrução criteriosamente distribuida e sistematicamente organizada por forma a compensá-la das usuras do ensino do estado. Com ser tão amplo, excelentemente ministrado o curso do Liceu, todavia não se criou com o fim expresso o ensino secundário do sexo feminino, entendido este em harmonia com o objeto, os limites e a organização que respectivamente lhe atribuem hoje o sistema escolar a ciência e a experiência do ensino. O curso do Liceu de Artes destina-se a mais e menos do que isso: a mais, porque tem um lado técnico e um fim superior profissional, que o ensino secundário propriamente tal não comportaria; a menos, porque não mira em toda a extensão a cultura geral, cujo desenvolvimento é o objeto peculiar deste. Constituindo em todo caso um manancial perene e opulentissimo 242
de instrução sólida e ao alcançe geral, extremamente relacionado além disso, por aderências comuns, com as instituições que é o nosso propósito especial estudar hoje, era de rigor registrar-lhe aqui a gloriosa iniciativa, inclinando-nos ante a magnitude do exemplo que abriu, dos estímulos que fomenta e dos resultados que neste particular tem alcançado na obra grandiosissima da educação das classes trabalhadoras. Alguma ou algumas instituições congêneres, e dignas também do mais elevado apreço público e do constante aplauso e favor geral, preparam-se agora, ao que ultimamente lemos, a concorrer com o Liceu nessa tarefa nobilissima. Oxalá os recursos de toda a sorte e de toda a procedência as auxiliem, multipliquem-se, não cessem! E na capital do império ter-se-á então assentado na mais larga base o futuro do trabalho e a educação da família nas classes operárias. Em definitiva, porém, ficamos sempre em que, salvo tão esplêndida criação, isolada no meio do largo deserto que a nossa indiferença tem mantido em torno deste magno interesse social, a instrução do sexo feminino permanece limitada, pelo estado, ao nada da escola pública elementar, e pelos particulares, indivíduos ou corporações, ao que possam dar de si, e em bem de limitadissimo número, ainda assim o arbítrio e os recursos dos colégios especiais, sem inspeção eficaz, sem programas claramente conhecidos, organizados em geral sem plano nem sistema previamente concebidos, e, em suma, quase sempre alheios, por isso, à compreensão exata e inteira dos interesses superiores e do objeto verdadeiro da cultura que se comprometem a desenvolver. V- Excelente sintoma é, pois, o que se traduz na generosa iniciativa que congregou em torno do ilustrado vice-reitor do Externato do Colégio de Pedro II, Dr. José Manoel Garcia, o numeroso grupo de distintos professores, à frente e com o auxílio dos quais aquele honrado cidadão conseguiu fundar o curso noturno gratuito de ensino secundário para o sexo feminino, estabelecido no referido Externato. Para a causa dos interesses da instrução pública, este fato ficará sendo provavelmente o fato capital do ano. 243
Às saudações com que a imprensa de todos os matizes o consagrou seja nos permitido unir também as nossas. E porque no recenseamento das tentativas que se tem feito no país para a constituição do ensino secundário do sexo feminino deve consistir hoje o nosso estudo, mencionemos desde já, a par do curso instituido na côrte, o curso de letras e ciências para o sexo feminino que, desde o 1º de maio do ano passado, se inaugurou e funciona na capital da província da Bahia. Um eminente colaborador desta Revista, que é ao mesmo tempo alta dignidade e merecido orgulho do funcionalismo do ensino entre nós, lamentava há pouco nestas colunas11 a falta de solidariedade política e literária que, até para com os povos da América Latina nos conserva tão deploravelmente ignorantes das produções, dos successos e dos esforços úteis ou brilhantes, devidos ao gênio das nações vizinhas, nas variadas manifestações de sua atividade. Pelo que diz respeito à ausência de solidariedade literária, esta tanto mais é para sentir-se quando vemos que permanece como a lei das relações morais entre as próprias circunscrições do império reciprocamente, passando despercebidos e jazendo de todo ignorados muitas vezes, fora dos limites do município ou da província onde se realizaram, fatos do mais salutar alcance para os interesses comuns do progresso e da ciência do país. Assim é que, embora de todo o ponto ignorado da côrte e talvez da própria administração geral, o curso de letras e ciências para o sexo feminino, criado na capital da Bahia, nem por isso deixará de ficar com a instituição primeiro levantada no país para a missão que o seu título indica. Devido à esclarecida iniciativa de um sacerdote, ao qual igualmente caracterizam a piedade das tendências liberais do espírito, o padre Romualdo Maria de Seixas Barros, digno portador do veneradio nome de D. Romualdo, e investido há alguns anos nas funções, que exerce com o máximo zelo, de diretor da instrução pública naquela província, o ensino V. a Revista de janeiro de 1884. As leis do ensino, pelo Dr. Souza Bandeira Filho. 11
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secundário do sexo feminino professa-se ali desde o ano passado. Com o curso do Externato de Pedro II, em boa hora aberto o mês último na côrte, temos assim no país duas instituições, que, precedendo a ação dos poderes públicos neste ramo importante do ensino geral, ao qual eles ainda se conservam alheios, aos demais possuem o merecimento de demonstrar como mais instante cada dia a necesidade de concorrer a administração na solução do problema em que lhes cabe a glória de se haverem empenhado. Temos realmente diante dos olhos as leis de cada um desses institutos: o regulamento orgânico do curso fluminense, e os estatutos do curso baiano. Na economia íntima de seu plano, o primeiro apresenta relativamente aos segundos certas vantagens que ele ainda não assinala: assim, enquanto a distribuição do ensino no curso da côrte atravessa uma série gradativa de anos, instituídos em obediência às necessidades evolucionistas da cultura mental, nos estatutos do curso baiano essa ordem ainda não se observa. Depois, no que refere aos exames de admissão e finais, às certidões e diplomas do curso, o regulamento da côrte já revela um sistema acabado, do qual não sabemos se está em posse o curso bahiano, mas de que os seus estatutos primitivos não cogitaram. Uma diferença fundamental em certo ponto caracteriza ao demais os dois estabelecimentos, e é que, enquanto no da côrte a direção e o professorado formaram-se de um pessoal exclusivamente masculino, no curso bahiano, salvo o diretor, todo o pessoal docente compõe-se de senhoras. Quanto às mais importante das questões, a dos programas, o curso da côrte compreende as seguintes matérias: português, italiano, francês, inglês, alemão, latim, matemáticas elementares, geografia, história geral, cosmografia, chorographia do Brasil, história do Brasil, retórica e poética, história literária, literatura nono-latina, literatura nacional, gramática histórica da língua portuguesa, filosofia racional e moral, ciências físicas e naturais, higiene, economia doméstica, legislação usual, pedagogia. E o curso instituido na Bahia menciona estes: língua nacional, compreendendo noções de literatura, língua francesa, 245
língua italiana, língua inglesa, geografia e cosmografia, história pátria e elementos da história universal, aritmética e geometria, elementos de física, química, botânica e zoologia com a aplicação aos usos da vida, higiene e noções de economia doméstica, noções de direito usual nas suas relações com a família12, desenho de imitação, prendas domésticas. Ora nesta questão fundamental do programa das matérias afigura-se-nos que, em sua simplicidade relativa, o do curso bahiano consultou melhor as necessidades e os fins da instrução secundária. Se apresenta talvez algumas deficiências, estas se nos revelam menos sensíveis do que as lacunas, e sobretudo do que constituem o programa do curso do Externato de Pedro II. Com os direitos e os intuitos da simpatia fervorosa que nos inspiram a generosa iniciativa dos fundadores dos dois cursos e a causa a que eles tão devotada e patrioticamente se consagraram, vamos entrar na apreciação daqueles programas. Que em nossas palavras, pois, eles não vejam senão o interesse e a liberdade conscienciosa de uma crítica de amigo. VI – O numero crescidissimo de matérias que fazem objeto do programa de ensino do curso estabelecido no externatode Pedro II, parece-nos tanto mais exorbitante, quanto do estudo, do exame e da aprovação em todas essas matérias torna o regulamento irremissivelmente dependente a obtenção do diploma que instituiu como prova e prêmio dos estudos secundários. Na sua obra magistral, que ficará clássica, acerca do ensino secundário das mulheres, o eminente vice-reitor da Academia de Paris sr. Gréard, enumerou assim as matérias do programa que faz em toda a parte o objeto comum do ensino secundário do sexo feminino: religião, moral, língua nacional e línguas vivas, literatura antiga e literatura moderna, história, geografia, aritmética, elementos de de geometria, ciências físicas e naturais, economia doméstica e direito usual, desenho, música, Segundo informação que devemos á obsequiosidade do ilustrado director, ainda não funciona esta cadeira. 12
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ginástica. Tal é o conjunto de conhecimentos mais ou menos desenvolvido, segundo o grau de sua utilidade, que entre todos os povos constituem o objeto comum deste ensino. A lei de 21 de dezembro de 1880 em França, acresenta o ilustre escritor, mais não fez do que adotar esse tipo13. Cotejado com esse plano, como se revela aqui sobrecarregado, ali defectivo, o programa lecionado no Externato de Pedro II?! Antes de tudo, a inclusão do latim como disciplina obrigatória do curso chama-nos a atenção. Somos dos que pensam com Herbert Spencer que nove vezes sobre dez o grego e o latim são hoje úteis a um homem na maior parte das carreiras14. Como quer que seja, considerado como instrumento da cultura geral e especialmente do conhecimento dos tesouros literários e científicos da antigüidade clássica, o estudo daquelas duas línguas persiste ainda em toda a parte ocupando sempre largo espaço no ensino dos liceus de homens. Vemo-lo, é certo, figurando também em algumas escolas superiores de mulheres na Inglaterra15, e no programa do ministério da instrução pública na Rússia para as escolas secundárias de mulheres16, e no ensino superior de duas grandes instuições suecas17. Mas, o assentimento quase unânime dos pedagogistas e das legislações produziu-se no sentido de serem estas duas línguas retiradas do programa dos estabelecimentos do sexo feminino. Assim é que a resolução de 14 de janeiro de 1882, que, aliás ampliando a lei, fixou a distribuição das matérias do ensino secundário das mulheres em França, não consigna o estudo dos elementos da língua latina senão nos cursos 13
L’enseignement sécondaire des filles, 3ª edição, pag. 114.
14
Da Educação intellectual, moral e physica, pag. 3.
De l’enseignemnt superieur des femmes en Angleterre, en Ecosse et en Irlande, par M. Buisson (Revue Internationale de l’Ensoignement, ns. de janeiro. março e maio de 1883). 15
16
L’enseignement secondaire des filles, par Oct. Gerárd. Appendice n. 11.
Les E’coles superieures de filles en Suéde, par le Dr. Gustave Sgolberg (Reuve Internationale de l’Enseignement), 1882. 17
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facultativos do quarto e quinto ano do segundo período de estudos18. Assim é que os programas das escolas alemãs de mulheres, tão vastos e especialmente tão preocupados do ensino de línguas, que se os incriminam de serem simples cópia dos ginásios, com a diferença de que estes cultivam as línguas antigas, enquanto que as primeiras preferem exclusivamente as línguas modernas19, não mencionam nem o grego nem o latim. Igualmente procedem os programas italianos, suíços, belgas e holandeses20. Voltando à França, refere o Sr. Gréard: "Mestres competentes pretenderam introduzir nos programas aplicados à lei de 1880 o estudo das línguas antigas. Que idiomas mais próprios para exercitar o espírito na análise das formas da linguagem e para nutri-lo da excelência moral das idéias que tiveram por fim exprimir! Era além de tudo, supunha-se um novo meio de aproximar as mulheres dos maridos, as mães dos filhos. Entretanto foi preciso resistir a esses impulsos generosos. Compreendeu-se que os segredos dessas línguas seletas e fortes não eram dos que se deixam aprehender em algumas horas de aplicação e que, supondo que nesse intuito o auxílio das mães pudesse ser verdadeiramente útil aos filhos, os exercícios de conjugação e de declinação que com eles balbuciassem não valeram o tempo que elas houvessem empregado em aprendê-los. Considerou-se ao demais que o estudo das línguas modernas, comparadas com a língua francesa, bastava para iniciar a moça na filosphia da gramática; enfim, que as traduções abriam a todas as inteligências sérias os tesouros dessas literaturas sem iguais, e que melhor era ler e reler correntemente uma boa versão da Economia de Xenophonte, do que soletrar-lhe o texto, Foi como auxiliares do estudo do francez, e simplesmente neste sentido e limite, diz o Sr. Gréard em a nota 1ª, pag. 144, de sua obra, que a resolução citada no texto inscreveu estas noções na serie das materias do curso facultativo do 4º e 5º anno dos lyceus e collegios de moças. 18
Lés écoles superieures de filles en Allemagne, par le Dr. W. Noeldeke. Reuve Internationale de l’Enseignement, janeiro 1881. 19
20
Camille Sée – Rapport sur l’enseignement secondaire des filles.
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penosamente, com o auxílio de um dicionário. Não lastimemos estas decisões, conclui o eminente escritor. Elas não impedirão o nascimento de uma Mme. Dacier; e obviando ambições impotentes, em outras concorrerão para salvar a graça sólida do espírito francês. É de resto um erro querer abarcar todos os estudos no trabalho de alguns anos da mocidade. A educação é obra da existência inteira. Colocar a aluna na posse de si mesma; acender em seu espírito e em seu coração o foco da vida intelectual e moral, não é isto tudo o que se pode, tudo o que se deve exigir de um bom sistema de estudos para moças, confiando quanto ao mais nelas próprias, em suas faculdades disciplinadas e avigoradas?"21. Pois para iniciar as alunas na filosophia da gramática, uma vez que afinal não é senão disto que pretendeu cuidar o curso do Externato, com o ensino do latim, não bastava, além do estudo das línguas vivas, a cadeira da gramática histórica da língua portuguesa, que, como cadeira especial, também nos repugna em um plano de ensino secundário do sexo feminino? Aliás, ainda no capítulo das línguas quizeramos que a obtenção do diploma do curso não dependesse do estudo obrigatório dos quatro idiomas estrangeiros, que, além do latino, figuram o programa. Houvesse embora todas estas cadeiras de línguas, mas com o caráter de facultativas algumas. Dest’arte o estudo obrigatório da língua portuguesa e da história literária do francês e inglês, abertas facultativamente as aulas de italiano e alemão, deveria constituir, a nosso ver, esta parte do plano do curso. E ainda assim muito mais larga sería essa parte do que aquela que por exemplo nas escolas francesas cabe a semelhante gênero de ensino. Finalmente, nesta ordem de idéias eliminaríamos a cadeira de retórica e poética, reduzidas a uma só, embora como matéria distribuida por todos os anos do curso, as que no programa se inscrevem com os títulos de história literária, literatura novo-latina, literatura nacional e gramática histórica da 21
(I) Op. citada, pgs. 144-145.
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língua portuguesa, que todas poderiam filiar-se à primeira, considerado com mais latos desenvolvimentos o que particularmente dissesse respeito à língua nacional e à sua literatura e história. E o tempo por tal forma ganho com a supressão da freqüência forçada em tantos cursos tão profusamente disseminados, aproveitá-lo-íamos no ensino de uma disciplina, esta sim, fundamental e essencial, como nenhuma mais, à aquisição dos conhecimentos, ao desenvolvimento das faculdades e à extensão e segurança da cultura geral – o desenho. Depois, o ensino da música, que se não contém no plano do curso do Externato, mas que é inseparável de qualquer programa de instrução do sexo feminino, teria também a parte que lhe cabe. A ginástica e às prendas de agulhas deixaremos de referir-nos: de um curso que funciona à noite fora injusto e talvez impraticável pretende-las. Mas a omissão do desenho entre as matérias do programa é inexplicável e dolorosa; e quando consideramos que os distintos organizadores do curso a excluiram em holocausto talvez ao latim ou à retórica e poética, não nos sentimos em nós que lhes não clamemos suplicantes pelo termo e reparação dessa inconcebível anomalia. Este século poder-se-ia talvez chamar hoje o século do desenho, tais e tão prodigiosamente bemfazejas e fecundantes são as transformações e as revoluções que à luz dessa admirável disciplina hão conseguido operar as indústrias, as ciências e as artes. No programa de todas as escolas o ensino do desenho deve ter, pois, o seu lugar soberano, imprescritível, e, se em uma escola destinada à cultura geral das mulheres, não encontrou um abrigo sem reservas, cuidados particulares e o mais sólido cultivo, ficai certos de que essa escola falhará aos seus fins, por mais generosas que sejam, como em nosso caso são, as intenções dos fundadores. Para que não continue deploravelmente incompleto nos seus resultados, e meio anulado em seus efeitos, antes produzam-se todos os bens que são de esperar do elevado tentamen dos ilustrados organizadores do curso, fazemos votos por que quanto 250
antes preencham esta imcomparável lacuna do programa que se propõem seguir. Basta-lhes refletir em que nenhuma escola do mundo, digna desse nome, e consagrada ao fim que eles têm em vista, sejam essas escolas públicas ou particulares, chamem-se colégios ou pensões, cursos ou liceus, nunca consumou essa mutilação sacrílega no seu plano de estudos. A distribuição do ensino científico no programa fornecer-nos-ia talvez ensejo para desejarmos uma repartição de cadeiras mais equitativamente feita, e mais em harmonia, a nosso ver, com os limites do ensino secundário, destacando a higiene da história natural e anexando-a talvez à economia doméstica; reduzindo a de filosophia racional e moral a esta última parte; finalmente, limitando a uma só a de história do Brasil e história geral, considerado que o estudo desta sería o dos elementos e se faria sobre os fatos e as leis fundamentais que dimanam dela. Não é, porém, nosso propósito mais que lançar uma vista geral sobre o programa que se traçaram os dois cursos. E neste passo, não demorando além disso a nossa crítica, repetiremos que afigura-senos mais consentânea à natureza e aos fins do ensino que trataram de organizar a simplicidade e a parcimónia do programa do curso bahiano. É mais simples, mas é também mais preciso; é mais sóbrio, mas presta-se a tornar-se muito mais intenso. Efectivamente, escreve o Sr. Gréard: "Duas coisas áa que considerar na educação: a aquisição dos conhecimentos e o desenvolvimento das faculdades. Não se concebe uma sem outra. Entretanto diferem até certo ponto entre si, conforme se trata dos homens ou das mulheres. Independentemente de um espírito bem formado – ao qual nada supre – o homem carece de uma soma de saber solidamente estabelecida, conservada, com solicitude, frequentemente renovada, que aplique às suas funções, à sua indústria, aos negócios públicos, à toda a direção da própria vida. Não sucede o mesmo em igual com a mulher. O que mais útil lhe é, a si mesma e aos outros, o que mais vale nela, não é o que mais útil lhe é, a si mesma e aos outros, o que mais vale nela, não é o que lhe possa ficar do saber adquirido, qualquer que seja a sua 251
valia, seguramente muito apreciável sempre: ainda mais que isso, é o espírito mesmo que esse saber contribuiu para formar. O escopo principal de uma educação bem dirigida deve, pois, consistir em assegurar-se à moça essa alta cultura moral que cria a personalidade humana; em inculcar-lhe esse respeito da verdade e esse amor da sinceridade, que fazem a probidade da inteligência e do coração; em constituir-lhe, enfim, como o mais precioso dos dotes que a instrução possa fornecer, o que se chama vulgarmente um são critério ou um juízo seguro, capaz, nas conjuncturas graves ou melindrosas, de decidir-se rapido e bem22". "O defeito da educação moderna", contina adiante o lucidissimo pensador, "está porém em sacrificar o espírito aos conhecimentos. E sem contar que, uma vez excedida a medida, obtem-se tanto menos quanto mais se exige, é de temer que essa sobrecarga de ciência não faça estalarem ou enfraquecerem as molas que se cuida de fortificar. O mal nada tem que nos seja peculiar. É o efeito universal do desenvolvimento da civilização, efeito tanto mais temível quanto, à medida que os programas do ensino se dilatam, restringem-se o período de aplicação que lhes é consagrado. A criança tem cada vez menos tempo para aprender cada vez mais coisas. Se do perigo que daí resulta convém prevenir os rapazes, com a maioria de razão cumpre contra ele prever as moças, que não têm o mesmo temperamento, nem os mesmos deveres, nem as mesmas necessidades. É quanto a elas principalmente que a educação deve ser uma obra de discrição e discernimento. Não é que intentemos deste modo suprimir de seus estudos o esforço, que só é fecundo; quiseramos melhor utilizá-lo, concentrando-o mais. Ainda menos trata-se de organizar para as moças uma ciência menos exata, uma ciência para uso delas, ad usum puellarum, mas simplesmente de tornar-lhes a ciência, a verdadeira ciência, mais acessível e mais assimilável, desligando-a de tudo que não fôr indispensável à educação do espiríto. Muita 22
Op. cit. p. 140.
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coisa que é a minúcia do saber e o pormenor dos fatos pode lhes ser poupada. Nada lhes adiantam as curiosidades. O que queremos para elas é um ensino sóbrio, bem despojado, por assim dizer, um ensino de resultados e conclusões, que coloque os sentimentos, as idéias, as invenções, as descobertas, as grandes conquistas da civilização humana em plena luz"23. Ora, esta precisamente é a tarefa do ensino secundário, e, se no interesse da unidade e da igualdade moral no seio da família e das nações, convém que nas escolas do sexo feminino se distribua paralelamente à extensão com que é professado no liceu de homens, de outra parte isso deve ser feito até certo ponto, com as imperiosas reservas fatalmente resultantes da diferença natural dos sexos, do vário destino social de cada um e das condições naturais intrinsecamente diversas que respectivamente os assinalam. Ante essa ordem de idéias é que se nos afigura que o programa do curso instituído no Externato contém os accrescentamentos e denuncia as omissões que já perfunctoriamente notamos. VII- Honrado o elevadissimo cometimento a que se abalançaram os esclarecidos fundadores dos cursos secundários do sexo feminino, fazendo justiça aos serviços que se propuseram prestar e ao largo progresso relativo que já conseguiram iniciar no país, devemos finalmente almejar que na obra em que eles se empenharam deliberem se a tornar os poderes públicos, gerais e locais, a parte que lhes incumbe. Só a administração está entre nós na posse dos meios necessários à realização desse desideratum, tal como ele deve ser entendido e satisfeito. Ée ste um dever dela. O que a iniciativa dos professores acaba de dar na córte é o mais que poderia dar, e o mais que tinhamos o direito de pedir-lhe. Não basta, porém, as necessidades do ensino a que se destina servir. Este só poderá possuir a precisa eficácia, tomar os desenvolvimentos que lhe são próprios, e produzir os benefícios por
23
Op. Cit. p.143
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que soe assignalar-se, quando organizado normalmente, sistematicamente, como as demais instituições públicas do ensino. Dos cursos fundados sob o enérgico impulso de Duruy, em França, disse o ilustre e falecido sábio Paulo Broca, no seu relatório ao senado sobre o projeto de lei Camille Sée, que a experiência provou que eles eram insuficientes e sem estabilidade, tendo ouvintes antes que discípulos, constituindo um ensino, mas não uma escola. Cumpre também não exigir mais da dedicação dos nossos mestres. Professando à noite, em horas tão generosamente arrancadas por eles ao descanso, aos lazeres do trabalho diário, e às necessidades da própria cultura, dos cursos que instituiram ou instituem não é lícito além disso esperar. Faltará aí forçosamente o tempo, a coerência, o sistema, a harmonia, em suma, o espírito e a ação que fariam a força e o brilho de uma escola secundária verdadeiramente tal. Antes de tudo a educação física, que cumpre ser promovida no mesmo grau que a cultura moral e intelectual, além do mais por bem destas mesmas, será ali impossível. Depois terão construído no ar, desde que não podem manter calsses elementares onde comece a educação e que desenvolva gradativamente a cultura das futuras alunas até que elas possam pretender ingresso nas aulas do ensino secundário. A frase não é nossa, é do Sr. Gréard. Um estabelecimento de ensino secundário sem classe elementares que lhe sejam próprias, diz ele, é como um edifício sem alicerces. "A escola superior de moças, que tem consciência do valor do ensino elementar, escreve por sua vez o Dr. Noeldeke, diretor da escola de Leipzig, administra-o em suas classes preparatórias, com o mesmo empenho que as escolas elementares propriamente ditas". Para o ensino preliminar, refere ainda o Dr. Gustavo Sgolberg, a maior parte das escolas de mulheres na Suécia possuem uma divisão chamada preparatória, que em seu desenvolvimento completo compreende três classes para as meninas de seis a nove anos. Eis porque, observa ainda o Sr. Gréard, na generalidade dos países os estudos secundários das moças se estendem por um período de oito a dez anos em regra, de sete pelo menos. 254
Eis, porém, pela razão oposta, por que, por exemplo, o regulamento orgânico do curso do externato fixou em um mínimo, que deve forçosamente exceder a dez anos, a idade das suas alunas. No Brasil, entretanto, menos do que em outra parte fora lícito contar com a preparação alcançada na escola primária pública, ou no seio da família, como prova de capacidade para a iniciação no ensino secundário, além de que, quando assim não fosse, tão funesto seria ao liceu receber alunos que não houvesse preparado, quanto à escola tomar meninos que não fossem feitos para ela, porquanto o que importa antes de tudo é que a aluna permaneça sob a direção a que foi primeiro confiada, que perceba diante de si claramente e sem impaciência o caminho que tem de percorrer; que de seu lado o mestre possa contar com os anos, ganhar terreno, regular sua marcha segundo se tornar preciso, semear no momento oportuno, dar ao germe o tempo de frutificar, e não ter pressa de fazer a colheita24. E não falamos na formação de pessoal necessário ao novo curso, e em outras questões essenciais à sua organização e desenvolvimento desta. Eis, porém, como compreenderiamos um plano útil e verdadeiro de estudo num estabelecimento secundário de mulheres, e nesse pensamento foi que nos inspiramos, quando na sessão parlamentar do ano de 1882, nos coube a honra de apresentar um projeto destinado a iniciar a fundação do ensino secundário do sexo feminino no país, convertendo em liceu de moças o Internato do Imperial Collegio de Pedro II. Enquanto a administração geral ou local não se resolver a fundar paralelamente aos liceus de homens, existentes no país, estabelecimentos do mesmo gênero, vasados nos moldes que descrevemos, para o ensino das mulheres, a instrução do sexo feminino permanecerá entre nós como uma aspiração cada dia mais instante e de atualidade sempre crescente.
24
Gréard, Op. Cit.
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Oxalá os sucessos que alcançar a ultissima iniciativa dos dignos professores que entretanto hão procurado preceder o estado nessa bela obra, e os resultados a que esforço deles revelar-se impotente e inferior possam determinar a administração a consagrar-se ao mesmo fim com a compreensão nítida e o passo seguro que a magnitude do assumto e a grandeza de tais interesses reclamam. Rodolpho E. de Souza Dantas
O ENSINO SUPERIOR NO BRAZIL Em 1882 começamos com este título uma memória destinada a uma revista francesa; porém não a terminamos, naturalmente receioso de tornarmo-nos desagradável sem utilidade. Os estrangeiros no Brasil, se dizem as coisas tais quais se lhes afiguram, são acusados de injustiça e de prejudicar o Brasil; se as dizem tais com elas semelham existir, são talvez aprovados; mas, cedo ou tarde, os fatos se encarregam de desmenti-los. Poderiamos como tantos outros estrangeiros (alguns dos quais são homens ilustres) discorrer sobre os edifícios, as faculdades, o título das cadeiras, um pouco sobre os programas, e no mais limitar-nos a algumas frases breves; ou ainda poderiamos cingir-nos a descrever algumas recentes instituições ou certos trabalhos úteis. Mas julgamos melhor e mais sincero considerar o conjunto, e, já que nos achamos no seio de uma sociedade cuja fundação importa o reconhecimento das lacunas do ensino, vamos dizer o que não quisemos publicar na Europa. Ninguém por certo negará que o ensino superior tem feito neste país, sobretudo de dez anos a esta parte, consideráveis progressos. A Escola Politécnica do Rio de Janeiro, reorganizada em 1874, contém numerosas cadeiras, ensinos mui diversos, entres os quais alguns suficientemente dotados. Os difíceis trabalhos de vias férreas, executados em toda a parte por antigos alunos, apresentam 256
sob este ponto de vista, prova suficiente. A Escola de Minas de Ouro Preto, estabelecida em 1875, encetou digna e seriamente uma carreira de grande utilidade, pois deve determinar o aproveitamento do sub-solo do Brasil, tão pejado de riquezas. Escolas especiais reorganizadas também há alguns anos – A Escola Militar, a Escola de Marinha – realizaram a separação completa dos estudos civis e militares, que muitos espíritos eminentes desejariam ver adotada em França, e com as escolas e os serviços práticos anexos, instituidos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, fornecem para a defesa do pa´s homens capazes e instruídos. Enfim, pela última reorganização da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, criaram-se laboratórios, quase duplicou se o número das cadeiras e completou se do melhor modo o ensino das clínicas. A Faculdade da Bahia recebeu também melhoramentos reais. Não conhecemos suficientemente as Faculdades de Direito de S. Paulo e do Recife para ajuizar delas como merecem; por isto limitamo-nos a reconhecer a parte importante que nos seus programas ocupam as ciências sociais. Conhecemos o Museu, e dele falaremos, pelo menos de uma de suas seções. Quanto ao Observatório, seus trabalhos mostram que se acha regularmente organizado e é dirigido com seriedade. Emfim, devemos mencionar o início da Escola Veterinária de Pelotas e as Escolas Normais fundadas nas capitais de algumas províncias. Como se vê, ainda não se inauguraram, ou não estão inauguradas de modo cabal diversas escolas especiais, mas todos os orgãos indispensáveis ao ensino superior já existem: em menos de meio século o Brasil ultrapassou as instituições análogas da América do Sul, e talvez da América do Norte. Este progresso é do melhor augurio para provir, e é de toda a justiça reconhecer que a maior parte dele deve ser atribuida ao Chefe do Estado, pela sua constante e frutuosa intervenção. Cumpre agora examinar se os orgãos do ensino prestam todos os serviços que é lícito exigir deles. Para responder com 257
exatidão a este quesito, em nossa qualidade de biologista limitarnos-emos a discutir o que diz respeito ao ensino das ciências biológicas, as quais estão tão intimamente ligadas à vida do homem, pois seus rápidos progressos trazem cada dia novas soluções aos mais graves problemas da medicina, da higiene e da sociologia. O ensino das ciências biológicas é dado no Brasil pelas duas Faculdades de Medicina, pela Escola Veterinária e por diversas cadeiras: de zoologia, botânica, biologia industrial, na Escola Politécnica; na história natural, nas Escolas de Minas, Marinha e Militar; de zoologia, botânica, paleontologia e fisiologia experimental, no Museu. Este elenco é suficiente; não se pode exigir que o Brasil despenda, como a Alemanha, vinte milhões com o ensino superior, ou igual a França, a qual luta neste terreno para não ser mais vencida em outro. Quanto à Inglaterra possui somente trinta e oito cadeiras destinadas ao ensino das ciências biológicas, o Brasil pode ufanar-se de já ter atingido quase o mesmo número. Sob outro ponto de vista, o dos meios materiais, o Brasil parece-nos ter necessário. Encontram-se já no Museu, na Escola Politécnica e sobretudo na Faculdade de Medicina vastas salas, cheias de instrumentos especiais; e vários laboratórios, principalmente os de terapêutica, de higiene, de histologia, de fisiologia, estão abundantemente providos. Muitos particulares doaram avultadas quantias para algumas destas fundações científicas, e as verbas necessárias à sua conservação e utilização foram votadas pelas câmaras legislativas. Os meios de estudo estão pois constituídos, mas os estudos achar-se-ão suficientemente organizados? Para responder a esta pergunta, é necessario advertir que as ciências biológicas não se aprendem nos livros: cada uma delas exige longo aprendizado intelectual e manual. O botânico deve examinar milhares de plantas, decompor centenas de flores, de folhas ou de hastes, antes de poder classificar à primeira vista. O zoologista deve dissecar grande 258
cópia de animais, aprender a injetar-lhes os vasos, colorir-lhes os tecidos, corta-los em delgadas lâminas; finalmente o médico, além dos indispensáveis conhecimentos de química e de botânica, de zoologia e de fisiologia, deve principalmente aprender, mediante a prática quotidiana a auscultar o coração ou o pulmão, a apalpar um abcesso, e também a reconhecer um parto vicioso; e isto só é que importa ao doente, porque o diagnóstico impõe o tratamento. Como se vê, os laboratórios não constituem a única condição prática dos estudos: os museus e os viveiros para os zoologistas, as herborizações ou os jardins de plantas para os botânicos, o hospital para o médico são ainda mais indispensáveis, porque fornecem os materiaes de estudo. O ensino médico pode reduzir ao mínimo o laboratório, mas não pode passar sem o hospital; na Inglaterra, por exemplo, os hospitais são ainda hoje as únicas escolas médicas úteis e sérias. Nem Bichat, Magendie, e até 1865 Pasteur e Claude Bernard, tiveram verdadeiros laboratórios. Drawin trabalhou quase sempre no campo, com os materiais mais singelos e meios mais simples ainda; e, convém dize-lo, os meios materiais que o Brasil possui já se equiparam aos de Ranveir, Marey, Brown-Sequard ou Vulpian. Devemos então censurar as nações que consagram parte de seus recursos a reunir nas melhores condições os meios e os materiais de estudo? Certamente não: na luta industrial e econômica que a ciência resume e dirige, e que se torna cada vez mais viva entre as nações cultas, a vitória não caberá somente ao povo mais ativo ou mais inteligente; caberá também àquele que tiver coligido melhores elementos de trabalho. O Brasil procedeu portanto muito bem, principiando com largueza a disposição dos meios práticos científicos. Com a sua fauna tão curiosa, a sua fauna tão rica e tão variada, as suas raças tão diferentes, as suas moléstias tão especiais, que representam condições de estudos biológicos talvez únicos no mundo, parece estar preparado para rápido adeantamento. Entretanto resta examinar o que é mais importante, a educação e os trabalhos científicos. 259
Todas as ciências, particularmente as ciências biológicas, exigem, como já dissemos, sério aprendizado. Pelo que temos observados estudantes brasileiros aprendem bem rapidamente, quando são dirigidos com cuidado nos primeiros passos da prática. Temo-lo dito muitas vezes, aqui, como na Europa: causa-nos admiração a rapidez com que os estudantes aprendem e executam pequenas operações relativamente difíceis, como são a observação, pelo Kymographo, da tensão arterial, a abertura de um crânio para descobrir o cérebro, a extração dos gases do sangue, a análise da urina, etc. Nossos assistentes no Museu aprenderam em menos de dois anos tudo quanto costumam saber os melhores preparadores de Paris; e confessamo-lo, consumimos pela nossa parte mais de dois anos para conhecer este a b c das pesquisas fisiológicas. A educação manual é, pois, fácil no Brasil, e será alcançada de modo rápido e completo por todos aqueles que a ela queiram dedicar-se. Mas, devemos dize-lo, são poucos os que têm feito. Em vez de esperar dois ou três anos em um laboratório, trabalhando regularmente para aprender a trabalhar, frequentemente procede-se de modo contrário; e a publicação torna-se, senão o fim, pelo menos a manifestação quase imediata do esforço. Semelhante circunstância nos tinha impressionado logo depois de aqui chegarmos; indicamo-la em um artigo que a Revista Brazileira publicou, e, apesar de louváveis exceções, os fatos confirmam a nossa primeira impressão. Poderiamos citá-los sem receio de ser acusado de recorrer a personalidades, pois nunca intervimos em discussões às vezes pouco científicas, salvo quando, muito contra a nossa vontade, o nosso nome era nelas envolvido; mas preferimos não insistir em um estado de coisas transitório, cujas causas são múltiplas, ou, mais exatamente, o que queremos é estudar essas causas. O gosto das pesquisas fáceis ou das exibições pseudocientíficas, nocivas à estima e ao adiantamento do país, parece-nos em princípio poder explicar-se pelo pouco desenvolvimento do meio científico; mas esta causa tem pouca importância. 260
O interesse pelas coisas científicas existe já no Brasil: as publicações periódicas, as sociedades multiplicam-se; e as descobertas demasiado prontas acham no Rio censores severos, assim como, sabemo-lo por experiência própria, reconhecem-se a apreciam-se trabalhos menos ruidosos. Mas existem outros obstáculos menos palpáveis e muito mais graves: tais obstáculos são a má organização administrativa científica e a dificuldade com que lutam os mestres para formar discípulos. Esta má organização oferece aspectos diversos. Assim o ensino médico é baseado, como já vimos na clínica, e podem-se invejar à Faculdade do Rio de Janeiro os dois eminentes professores que durante dez anos se consagraram a este ensino. Na qualidade de médicos práticos e de lentes já fizeram suas provas; mas quanto trabalho e quanto tempo despenderam para darem, por si sós, a suficiente instrução prática a 800 alunos! Por vezes assistimos à clinica do Dr. Torres Homem: afim de poder cumprir as obrigações da sua cadeira, este lente é forçado a subdividir as visitas, mostrando em certos dias aos alunos como se ausculta, se apalpa, se examina um doente, e a restringir aos outros dias as lições magistrais, que em toda a Europa constituem o único encargo do professor de clínica. Desde muitos anos em França, por exemplo, os alunos são exercitados nos diferentes serviços dos hospitais, em turmas de 15 a 20; todas as salas de homens e mulheres são franqueadas, e ao professor de clínica incumbe simplesmente completar o ensino prático largamente principado pelos numerosos médicos dos hospitais e pelo pessoal adjunto de internos e externos. Na Alemanha, na Áustria, a organização pouco varia. Mas no Rio de Janeiro ainda hoje a maior parte dos serviços conserva-se inacessível aos estudos; e até 1883 todos os médicos tinham o direito de vida e morte, sem nunca haverem examinado, nem sequer visto, uma mulher doente. Na presença de tais fatos, aqueles que não conhecessem este país tão democrático, tão rápido no progresso, julgariam que ele está ainda em plenaiedade média. 261
Mais outras provas desta má organização. Durante seis meses servi na qualidade de médico, no hospício de D. Pedro II. Nenhum asilo do mundo pode apresentar igual variedade de doentes de tão diversas nacionalidades e raças. Mas o hospício não é utilizado para o ensino, e além disto os médicos tem tudo a seu cargo: a visita, o livro de farmácia, as operações de pequena cirurgia, o exame das urinas; e depara-se-lhes nas salas, onde não exercem autoridade direta, uma confusão de doentes de todas as espécies, meninas orfãs, velhos, aleijados, cegos, etc., confusão prejudicial a todos os respeitos. Posto que eu seja sempre odioso, como nunca se conhece bem senão o que se passa conosco, permita-se-nos aduzir ainda alguns fatos pessoais. O conselheiro Sinimbú, quando ministro da Agricultura, determinou em 1879 o estabelecimento de um laboratório de fisiologia experimental no Museu, e alguns meses depois o senador João Alfredo obteve do Senado a votação do crédito preciso. Assim provida tão útil instituição com os convenientes meios de trabalho, pensavam os nossos colaboradores e nós que só nos restava trabalhar; mas tivemos de gastar muitos meses para redigir e conseguir que fosse aceito um regulamento; depois tivemos de fazer relatórios, ofícios, pedidos, emfim de encher o papelório próprio de uma repartição administrativa. Sendo absolutamente gratuitas as funções de director com que fomos honrado, abstivemo-nos, a contar do segundo ano, de ordenar qualquer despesa, porquanto ao sub-director incumbia, como na Europa, a parte, para assim dizer, administrativa. Parecia que, passado o período de difícil começo, esta modesta instituição poderia funcionar regularmente; entretanto eis alguns dos fatos do último ano. Em junho de 1883, importante parte dos recursos do laboratório foi-lhe tirada, sem aviso prévio, para cobrir o déficit de serviços orçamentariamente distintos. Os trabalhos do ano de 1884 ficaram assim comprometidos, porque suportam parte da despesa do ano passado, e não se pode levar a efeito uma útil 262
publicação que já estava preparada – a reunião, em volume, dos trabalhos do laboratório. Depois, no mês de julho ordenou-se que se realizasse, por hasta pública, o fornecimento de animais e sua nutrição, como se fosse possível prever o número de porquinhos da Índia, coelhos, galinhas, que seria necessário em cada dia, e o modo pelo qual deviam ser nutridos tais animais. Para concluir, referiremos um último incidente. Este laboratório, como os da Europa, tinha entre o seu pessoal médicos que, exercendo clínica limitada, buscam em múltiplas ocupações científicas os meios de existência; mas um decreto sobre a acumulação dos empregos veio perturbar tudo. Há quatro meses este decreto foi considerado sem aplicação ao subdiretor, e todavia subsiste quanto aos assistentes. Daí a desorganização do pessoal. Perguntamos a todos os que sabem o que são pesquisas científicas se é possível trabalhar com proveito no meio de semelhantes embaraços, e de que serve organizar meios práticos se pois são quase inutilizados. Estamos pronto a reconhecer que estes fatos não dependem de ninguém, e os citamos como exemplos de um antigo sistema que convém modificar. Nossos colegas brasileiros fazem as mesmas queixas; mas talvez ainda sofram mais, porque a maior parte de seus laboratórios não tem verba especial. Entretanto, se compararmos o orçamento de que dispõem Vulpian, Brown-Sequerd, Ranvier, com o custeio médico de um laboratório da Faculdade de Medicina ou da Escola Politécnica, veremos com admiração que ao Brasil ainda neste ponto pertence a primazia. Aqui gasta-se com instrumentos, aquisições diversas, organizações sucessivas; mas sendo obrigado em cada experiência nova a assinar papelada e a fazer pedidos especiais para a compra de um animal, de um pequeno instrumento, de um reativo esgotado, cuja necessidade em regra é urgente, e por outro lado, além de poderem estes pedidos ser aceitos ou recusados e devendo ser submetidos à congregação sempre que excederem determinadas quantias, ocorre 263
muitas vezes que o professor, diante da dificuldade de preencher sua missão, desanima e cinge-se ao mais simples: a lição oral. Na Europa tudo isto é diferente. O laboratório tem às vezes poucos recursos, mas esses recursos pertencem-lhe exclusivamente: cada professor dispõe deles conforme lhe parece, quanto é necessário, e unicamente cumpre-lhe justificar as despesas. E então o laboratório torna-se um verdadeiro centro de trabalho, onde os armários às vezes não se acham na melhor ordem e os livros e papéis administrativos são muito reduzidos, mas onde se formam discípulos e de produzem obras úteis ao país. Os professores do ensino superior devem não somente mandar nos seus laboratórios, mas também ter autonomia nos seus cursos e no que respeita aos programas. Velhos regulamentos que se poderiam citar, (na França, por exemplo), caíram absolutamente em desuso. Na Faculdade de Medicina de Paris, como no Museu ou no Colégio de França, os direitos das congregações não vão até ao ponto de serem por estas embaraçados os direitos de cada um dos seus membros no modo de compreender o programa do curso, e entretanto tais congregações são poderosas e respeitadas. Duas palavras resumem o que fica dito: descentralização dos laboratórios, liberdade dos lentes na escola. Eis o que se deve realizar no ensino superior do Brasil, se se quiserem aproveitar proficuamente os recursos já existentes. Mas, para dar aos lentes a necessária liberdade e para inspirar emulação aos alunos, outra questão, a das facilidades da vida material, deve ser resolvida. R. Lankester, presidindo recentemente a grande associação das ciências britânicas, observava que "em toda a parte o público toma interesse cada vez maior pela opinião dos sábios sobre questões da indústria, de economia comercial ou de higiene pública; entretanto, o mesmo público admira-se de que se proponha uma remuneração que permita a tais sábios viver decentemente, enquanto consagram a vida e as forças às pesquisas científicas". 264
Disse muito bem o sábio inglês que as descobertas mais importantes da biologia, como as da natureza da tuberculose ou da ação os antisépticos, não podem vender-se no mercado, e que os vulgarizadores e os autores de livros ordinariamente acabam por deixar de ser investigadores. Por conseguinte, para que as cadeiras sejam úteis, é necessario dotá-las convenientemente. R. Lankester cita como modelos as cadeiras alemãs, onde os ordenados progressivamente aumentados podem chegar a 18.000 francos; poderia ter citado as cadeiras de Paris, onde um professor da Faculdade percebe 15.000 francos, e deplora que os honorários que se pagam em Oxford (17.500 a 20.000 francos) não sejam comuns a todas as cadeiras superiores do Reino, em uma época em que pequenos negociantes ou industriais adquirem facilmente grandes cabedais. Que diria este professor, se tivesse conhecimento de que no Brasil, onde a vida é carissima, os ordenados dos lentes do ensino superior são de 4:800$000, o que equivale a 8.000 francos na Inglaterra ou na Alemanha? Se alguns dos professores contratados, que as dificuldades administrativas não desanimaram, têm prestado serviços no Observatório, na Escola de Minas, na Escola Politécnica, e em geral ao país, deve-se isto em grande parte a terem eles honorários que lhes permitem consagrar-se exclusivamente às indagações científicas, e é fora de dúvida que, enquanto estiverem tão mal retribuídos, os lentes de que tratamos descurarão o ensino para procurarem em ocupações não oficiais os meios de vida complementares, que seus conhecimentos lhes permitem obter. Não falamos assim por espírito de classe ou por preconceitos profissionais. Os interesses dos sábios ou mesmo de cada ensino pouco valem por si próprios, mas não se deve esquecer que eles tornam-se capitais, quando se referem ao estado de adiantamento moral, higiênico e industrial de toda a nação, e a questão pecuniária deve ser considerada sob o mesmo ponto de vista geral que as outras questões. 265
Assim, porque em todos os países os hospitais são tão largamente franqueados a todos os médicos? Certamente porque a multiplicidade e a combinação dos ensinos asseguram ao doente tratamento mais completo; mas sobretudo porque importa a todos os habitantes das cidades e dos campos, ricos e pobres, que o médico tenha aprendido, no tempo de estudante, a tratar os doentes. Por exemplo, se devemos deplorar que no Brasil as clínicas de moléstias de mulheres e de partos não estejam suficientemente organizadas25, não é tanto por causa do ensino dos médicos, o qual acabará sempre por aperfeiçoar-se na prática, mas sim por causa da saúde das milhares de mulheres que vivem nas fazendas, nas povoações, sem meios de comunicação, e que forçosamente são confiadas aos médicos principiantes, aos quais não foi dado adquirir a prática necessária durante o tirocinio acadêmico. Nestes casos, a vida da doente ou a do filho poderá ser comprometida, por não se ter deixado que mestres hábeis ensinassem sem perigo para ninguém, em hospitais cuidadosamente organizados. Este exemplo prova exuberantemente a utilidade prática das ciências biológicas: vamos citar outros que, conquanto menos diretos, são igualmente convincentes. Quando em um laboratório se fazem pesquisas sobre a febre amarela, o beribéri, a tuberculose; quando se procuram determinar as propriedades de diversas plantas medicinais, algumas das quais, como a ipecacaunha e o jaborandi, já constituem produtos de exportação; quando se perscrutam as propriedades dos venenos animais ou as funções fisiológicas e psicológicas do cérebro, os biologistas trabalham para o bem geral, do mesmo modo que os químicos e os médicos, sem terem com eles a
O presente artigo foi escrito antes da recente decisão do ilustre provedor da Santa Casa de Misericordia do Rio de Janeiro. Em presença deste ato, lembramos mais uma vez que não criticamos uma ou outra administração, mas sim um inveterado estado de coisas. 25
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perspectiva, mais ou menos imediata, de uma remuneração industrial ou clínica. Não é, portanto, somente com a mira no progresso moral, é tambem com o fito mais direto de progresso econômico, que todos os grandes países devem proceder por si mesmos ao estudo das questões científicas. Quanto ao Brasil, seria extensa a lista dos problemas de paleontologia, de botânica industrial, de antropologia, de cruzamento raças, de criação, de aclimação e de colonização, os quais tão diretamente lhe importa resolver, e exigem observações científicas sérias e seguidas. O caminho está aberto. Todos devem ter interesse em torná-lo mais largo e mais fácil. Já se fez muito; é preciso fazer ainda mais, e sobretudo é necessário progredir com a ordem e o método; depois de ter dotado os laboratórios, cumpre animar os professores, e dar-lhes os meios de tornarem-se úteis. A missão da Liga do Ensino é de propaganda e quase de fiscalização. Pela nossa parte, no desempenho do modesto papel que nos cabe no seio desta associação, procuramos dizer que se nos afigura ser a verdade. Luiz Couty
CHRONICA A 9 do mês que hoje finda celebrou a Liga do Ensino a primeira sessão do corrente ano, sob a presidência do sr. dr. Ruy Barboza. Em sentidas frases memorou ele a perda que sofrera a associação com o passamento do 2º secretário bacharel José Pedro da Silva Maia, a quem nestas mesmas colunas26 já procurámos pagar o nosso tributo de profunda saudade; e, por proposta do sr. Fausto Barreto, resolveu-se mencionar na ata as condolências que em todos despertara tão triste sucesso. 26
V. a Revista de fevereiro de 1884. nº 2 – Chronica.
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Para preencher a vaga de sócio-diretor, ocasionada pelo ôbito do bacharel Silva Maia, foi eleito o dr. Joaquim Pelino da Costa Guedes, a cujo cargo se acha na Escola Normal da Côrte o ensino da pedagogia. A vaga de 2º secretário ficou preenchida pelo sr. Joaquim Borges Carneiro. Na constituição da Liga figura, entre os meios de estudar e melhorar as condições do ensino entre nós, a nomeação de comissões, conforme a inscrição dos sócios para os trabalhos da sociedade. Por competir ao presidente tal nomeação, coube-lhe providenciar afim de que tenha começo aquele importante inquérito. Formulados os quesitos que pareceram mais urgentes, fez-se a designação dos sócios, consultando-se em geral as aptidões especiais. Eis os quesitos, diante dos quais se declaram os nomes dos comissionados: 1º Quais as condições presentes das escolas primárias do município da côrte, em relação à higiene escolar. Membros da comissão: drs. Hilario de Gouvêa, João Paulo, Couty, Moncorvo de Figueiredo e Silva Araujo. 2º Quais os processos pedagógicos da escola primária do município da côrte; circunstâncias e causas do domínio da rotina no ensino elementar. Que aplicação e desenvolvimento tem tido entre nós os métodos modernos de cultura na escola? Quid acerca do uso do método intuitivo e lições das coisas? Membros da comissão: dr. Souza Bandeira Filho, dr. Menezes Vieira e Silveira Caldeira. 3º Estado e vícios atuais do ensino da leitura nas escolas primárias do município da côrte. Membros da comissão: dr. Zeferino Candido, dr. Ferreira Jacobina e Hilario Ribeiro. 4º Condição atual do ensino do desenho na escola primária. Em que proporções se distribui. Inconvenientes da sua falta na educação comum, verificados pelo exame das circunstâncias entre nós. Será o chamado desenho que entre nós se ensina em algumas escolas aquele a que as idéas do nosso tempo 268
assinalam uma importância fundamental na escola elementar? Membros da comissão: comendador Bethencourt da Silva e dr. Ferreira Jacobina. 5º Ensino do catecismo nas escolas primárias desta capital; descrição dele; livros por onde se faz; suas relações e resultados para com a formação do caráter, a primeira orientação da inteligência e a fisiologia do cérebro na idade decisiva do seu desenvolvimento. Membros da comissão: drs. Ferreira de Araujo e Couty. 6º Estado do ensino moral no município da côrte: caracteres e causas de sua imprestabilidade. Membros da comissão: drs. Sancho Pimentel, Souza Bandeira Filho e Pelino Guedes. 7º Do ensino secundário do sexo feminino no município da côrte. Status quo. Desiderata. Apropriação das idéias contemporâneas às condições da nossa sociedade. Membros da comissão: conselheiro Dantas Rodolpho, Fausto Barreto e Carlos Jansen. O sr. dr. Ruy Barbosa tomará parte nos trabalhos da 4ª e da 5ª comissão. Os comissionados procuram habilitar-se com os meios necessários afim de instituirem o exame que lhes foi cometido, e brevemente terão de proceder às diligências indispensáveis, para o que a associação confia não só que as autoridades, como os diretores dos estabelecimentos particulares e os professores públicos, lhes proporcionem todas as facilidades, auxiliando-os no que respeita à exata verificação das condições do ensino. Reconhecidos os males que desnaturam e atrofiam a instrução, poder-se-á por uma propaganda sincera e esclarecida, fundada na verdade, conseguir que se conserve o que efectivamente há recomendável em nossas instituições; que se lhes supram as lacunas e se lhes extirpem os vícios; finalmente que sejam dotadas com os melhoramentos que as tornem profícuas. Não faremos a ninguém a injustiça de supor que os esforços neste útil empenho sejam embaraçados pela má vontade, ou pela vã pretensão de ocultarem-se os defeitos existentes. Não é 269
possível que as classes e os indivíduos a quem mais diretamente cabe promover o melhoramento do ensino criem empecilhos a tão prometedora empresa; ao contrário, só nutrimos a esperança de que todos cumprirão o seu dever, colocando acima de condenáveis vaidades e interessiculos o magno interesse que se liga à honra e à prosperidade nacional. De não menor alcance foi a providência que tomamos em cumprimentos do art. 5º do nosso estatuto. Referimo-nos à nomeação de delegados nas províncias, para nos auxiliarem no conseguimento de informações sobre as coisas da instrução e diligenciarem nas localidades respectivas os mesmos cometimentos a que nos abalançamos. Assim foram nomeados: na província do Ceará, o dr. Joaquim Catunda; na de Pernambuco, o dr. José Hygino Duarte Pereira; na da Bahia, o dr. Antonio Pacifico Pereira; na de S. Paulo, o dr. Rangel Pestana; na de Minas Gerais, o dr Henrique Gorceix, na do Rio Grande do Sul, o dr. Apolinário Porto Alegre. Estas escolhas, que recaíram em homens de notáveis talentos, exprimem o reconhecimento das suas idéias adiantadas e concordes com as que determinaram a fundação da nossa sociedade; da sua competência em matéria de instrução, e dos serviços que lhes deve a causa do ensino, a qual em toda a parte iliga os homens de melhor vontade e mais capazes de aturado labor e fervorosa dedicação. Não é lícito duvidar de que a resolução a que aludimos seja fecunda em preciosas contribuições e interessantes resultados para os nossos fins. Os que entre nós se votam ao estudo das condições da pública intrução e das questões que se lhe prendem lutam com invencíveis dificuldades para conhecer o estado de coisas nas diferentes províncias. Neste particular manda a justiça reconheçamos que só possuímos o que se encontra nas publicações oficiais, embora lacunosas e destituídas de continuidade, além de outras imperfeições provenientes da incompetência daqueles a quem de ordinário cabe a execução de tais trabalhos. Mas é certo que quase tudo nos falta: as estatisticas do ensino raro figuram nos 270
documentos oficiais; as que existem, incompletas e deficientes, não infundem confiança; o próprio conhecimento das instituições é difícil; e quanto aos programas e aos métodos, é absoluta a ausência de dados e informações. Se, graças aos trabalhos dos nossos colaboradores nas províncias, alcançarmos, de par com a satisfação dos nossos intentos gerais, obviar a todos esses inconvenientes, nos daremos pressa a divulgar tão proveitosos subsídios, e teremos assim cumprido um dos nossos mais veementes anelos, o de substituir à incerteza e ao indefinido, de que se resentem os negócios relativos à instrução em todo o Império, o conhecimento assim das necessidades, como dos progressos que se verificarem mediante exame circunspecto e competente. Não foram os fatos que ficam relatados os únicos que à reunião do dia 9 imprimiram caráter verdadeiramente importante. O artigo que sobre as leis do ensino, a propósito dos Apuntes para um curso de pedagogia do sr. F. A. "Já antes, com grande satisfação me havia ocupado dos trabalhos legislativos do dr. Ruy Barboza, destinados a reformar a instrução pública no Brasil, e tinha experimentado o receio de que tão plausíveis tentativas se malograssem, em parte por falta de um povo preparado para realizá-las na vida prática do ensino. Ao lado das leis reformadoras, que se fundam somente na opinião e no saber de poucos, há dois perigos: 1º que não se executem à míngua de aptidões e convições; 2º que sejam derogadas antes de muito pelo natural influxo que exercem no parlamento as maiorias não preparadas para sustentá-las. Essas tentativas de reforma estão condenadas a um futuro precário, sempre que não as precede ou, pelo menos, acompanha, uma propaganda ativa no seio de todas as classes populares, porque é o povo que deve levá-las a efeito e apoiá-las eficazmente quando se manifestam intentos reacionários. A Liga do Ensino vem desempenhar no Brasil este grande papel. Era absolutamente necessária, desde que entraram na Câmara dos Deputados os notáveis projetos do dr. Ruy Barboza. Sa a Liga fôr feliz na sua empresa, dir-se-á com justiça 271
no futuro: que ao honrado deputado se deve a iniciativa da reforma e o seu êxito. Autorizam-me a formular este prognóstico o exemplo do que fizeram análogas instituições em países como a Bélgica, a Inglaterra, a Itália, a França, a Espanha, o Uruguai, etc. Aqui a reforma escolar foi começada e preparada, com exíguos recursos, pela Sociedade de amigos de educação popular, em meio de um público indiferente. Dentro de poucos anos, formou opinião nas classes instruídas; pouco depois impôs as suas idéias ao governo, e mais tarde assistiu várias vezes à victoria da opinião popular contra os retrógrados, que, a começar pelo parlamento, ameaçaram destruir em um instante a obra tão laboriosamente levantada. "Faço votos para que os seus compatriotas compreendam desde logo a significação altamente civilizadora da Liga do Ensino, e porque os trabalhos desta benemérita instituição dêm depressa os mais lisonjeiros resultados. "Se me fosse permitido, faria uma indicação: é que se robusteçam as relações que se criarem por meios da Revista com as sociedades análogas do Rio da Prata. Como fundamente insinua em seu artigo sobre as leis do ensino, o isolamento restringe a ação dos indivíduos. Não só a dos indivíduos, como também a das associações científicas e literárias, acrescento eu. As mútuas relações enriqueceriam as aptidões e a experiência de cada uma com a experiência e as aptidões das outras, e poderiam adquirir tal desenvolvimento estes vínculos, que seria possível adotar regras de proceder uniformes em relação a acontecimentos ou situações que interessem mais ou menos vivamente ao porvir dos povos que se estendem entre o Atlântico e os Andes, e, poventura, de toda a América Latina. Creio que, se a Liga adotasse este pensamento, a ele aderiria também a Sociedade de amigos da educação popular, a que pertenço. É de esperar que não tardariam a imitar-nos as outras associações semelhantes deste país e da República da Argentina. Quantas empresas escolares poderiam assim realizar-se, que seriam irrealizáveis no isolamento das forças? 272
"Seja como for, ofereço à Liga a minha cooperação pessoal, apesar da sua pouquíssima importância, para o caso de que de alguma coisa possa servir-lhe". Esta communicação foi recebida, como merecia com as mais vivas mostras de satisfação. O modo cavalheiroso porque nós é significado o apoio que tanto nos honra cativa o melhor da nossa gratidão. O dr. Berra é um homem de elevado valor literário, a quem causa a instrução no Uruguai e em geral os estudos pedagógicos devem notáveis serviços. Para nós o seu concurso é o mais valioso que poderíamos desejar entre os nossos vizinhos. As vantagens desse auxílio já se fazem sentir: depois de escrita a carta de que transcrevemos os trechos que se leram, reuniu-se a comissão diretora da Sociedade de amigos da educação popular, e, por proposta do dr. Berra, resolveu ela enviar as suas principais publicações à Liga do Ensino. Gratos à gentileza que nos dispensam o abalisado pedagogista e seus consócios, procuraremos retribuir esses testemunhos de apreço, que em alto garu nos obrigam, e não pouparemos esforços para desenvolver e estreitar as relações cuja convivência foi tão definida e aconselhada pelo dr. Berra. Esta crônica não conterá apenas os fatos que pertencem à vida íntima da Liga do Ensino. Felizmente assinalaram o mê que ainda finda acontecimentos dignos de nota em referência à causa a que a nossa associação procura ser útil. Folgamos de mencionar o bom serviço prestado com a reforma do regulamento das conferências pedagógicas dos professores primários, propsta pelo solicito sr. Inspector Geral. É ocioso encarecer as vantagens que essa instrução ofereçe para impulsionar-se o progresso dos nossos professores, os quais tudo devem temer do isolamento. Mas, afim de conseguir tão momentoso resultado, releva se consultem as condições daquela classe e de desvele a administração em que as conferências sirvam para compelir o professor ao estudo e ao trabalho. 273
A estes ditames da experiência satisfazem as instruções de 11 de março. O novo regimento consagra benéficas inovações: - a da publicação dos trabalhos; a de associarem-se a estes, além dos adjuntos as escolas públicas e dos professores da Escola Normal, um dos quais será eleito pela congregação afim de intervir no exame das teses de pedagogia, os membros do Conselho Diretor e os delegados literários; a de estebelecerem-se interessantes sessões de trabalhos práticos, que consistirão na direção de uma classe e na explicação do emprego e das vantagens dos instrumentos mais aperfeiçoados para o ensino, dilatando-se por outro lado a parte reservada aos temas pedagógicos, mediante a faculdade que tem o professor já de apresentar dissertações escritas a respeito de observações pessoais feitas nas escolas ou sobre questões do ensino, independentemente da discussão dos pontos escolhidos pelo Conselho Director, já de proceder à exposição do invento ou do aperfeiçoamento de qualquer aparelho; emfim a da concessão de prêmios aos professores públicos que mais se distinguirem. Adotamos convictamente a idéia de prêmio, em que muito confiamos para se aviventarem as conferências, e que se duvida é mais um adminículo com que se favorece a carreira do professorado. As medidas por meio das quais se ampliou o caráter prático dos trabalhos hão de ser muito profícuas ao aperfeiçoamento do professor, pois correspondem ao principal objetivo da instrução – que cada um se aproveite da experiência de todos. A admissão de autoridades do ensino, e dos professores da Escola Normal, nas conferências pedagógicas, pelo menos em tese promete a vantagem de ilustrarem-se os debates e satisfaz a conveniência, consultada pela legislação de outros países, de contratarem-se, por meio das contribuições experimentais, que ao professor imcumbem, as dos cultores teóricos da pedagogia, estabelecendo-se na prática a orientação científica que deve produzir a transformação do ensino. 274
Quanto à publicação de trabalhos, servirá para estimular o professor, cujos esforços não é justo deixem de ser conhecidos fora do recinto das conferências, e permitirá que se utilize no ensino das províncias o que realmente for digno disso. A certeza da publicidade advertirá os professores sobre a conveniência de enunciarem as suas idéias e observações, pelo menos com clareza, ordem e correção, - conveniência a que em geral não atenderam os que tomaram parte nas conferências de dezembro do ano passado, das quais deu conta no último numero da "Revista" o sócio da Liga que se imcumbiu de acompanhá-las27. A tal respeito não deixam nenhuma dúvida os trabalhos constantes do impresso que temos à vista, alguns dos quais são o mais convincente documento da ignorância dos seus autores nos conhecimentos elementares que a aula primária devem ministrarse às crianças. A providência da publicação, portanto, produzirá a vantagem de aconselhar o silêncio aos chamados professores que não podem arrostar a crítica, e assim se evitará que o magistério, onde sem dúvida se encontram cidadãos inteligentes e habilitados, continue a desmoralizar-se com as revelações de um atraso vergonhoso e de um racismo incurável, como as que se presenciaram na ocasião aludida, e constam daquele impresso. Em relação a tais professores nada valem as conferências, as quais, no justissimo conceito de Siciliani, longe de formarem professores, não fazem mais do que promover nos que são dignos deste nome a atividade prática e teórica, e incutirlhes na consciência a dignidade, a alteza e o valor do mestre na sociedade civil; em uma palavra, avivam o pensamento, despertam a mente, acendem e excitam o entendimento, mas, não o suprem, e menos o criam. Desde que as conferências se tornaram sérias, é natural que em seus trabalhos tomem parte somente os professores V. a Revista de fevereiro de 1884. – Conferências pedagógicas – 1883 – por Balduino Coelho. 27
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conscienciosos e habiliatdos. Neste sentido formamos votos para que em breve prazo possam os resultados que se colherem daquelle precioso orgão do progresso da escola não só aconselhar a administração a que amiúde as reuniões dos professores, para sua mais ativa cultura e troca de idéias, mas ainda justificar os encargos que o estado, logo que possível for, deve assumir criando a biblioteca pedagógica, complemento indispensável à instrução. Ocupar-nos-emos agora com o regulamento de 28 de março, que, também sobre proposta do ilustrado sr. Inspetor Geral, foi expedido pelo ministério do Império para os exercícios práticos de pedagogia da denominada Escola Normal. Veio ele em boa hora preencher uma grave lacuna. Desde o ano de 1882, quando começou ali o estudo da pedagogia, tem-se deixado de fazer aqueles exercícios, os quais até certo ponto serviriam para atenuar a falta das escolas anexas, que em toda a parte se consideram indispensáveis à instrução dada pelos institutos normais. O regulamento impõe aos alunos da aula de pedagogia a obrigação de assistirem, em cada um dos seis primeiros meses do curso, durante cinco dias consecutivos, aos trabalhos das escolas, pelas quais forem distribuídos, conforme os sexos. No último dia da semana, reunidos os normalistas de ambos os sexos em uma das escolas, um deles dará a lição prática, e, depois de se retirarem os escolares, terão lugar as observações dos outros alunos-mestres sobre ela, a defesa do normalista que houver dado a lição e finalmente o resumo das observações, feito pelo professor de pedagogia, que procederá a crítica das diferentes opiniões e demais circunstâncias que se houverem produzido. O mesmo professor distribuirá o serviço de maneira que, durante aqueles seis meses, todos dos alunos-mestres se sujeitem às lições práticas e estas versem sobre todas as disciplinas do ensino primário. Nos dois últimos meses do curso só haverá, em cada mês uma lição prática; mas os normalistas serão obrigados a trabalhar ativamente nas escolas duas semanas por mês, dirigindo sob sua responsabilidade as classes que lhes forem confiadas pelo professor de pedagogia, o 276
qual efetuará a distribuição de forma que, ultimados os exercícios, cada aluno-mestre tenha lecionado em todas. Estas providências são acompanhadas não só das regras relativas quer às obrigações do professor de pedagogia, quer às do catedrático da escola anexa, como das demais disposições adequadas ao estado actual. O regulamento figura-se-nos o melhor possível em presença de semelhante estado, que representa uma triste realidade. Felizmente o governo parece estar convencido disto, e a circunstância de ter sido expedido com caráter provisório o ato de que nos ocupamos autoriza a crença de que se cogita de criar uma instituição que sirva para formar professores. Para tão urgente fundação felizmente já estão aparelhados elementos aproveitáveis. Além dos relatórios presentes ao ministério do Império pelo sr. dr. Souza Bandeira Filho, no desempenho de um dos encargos que lhe foram confiados em sua viagem à Europa; além do parecer da comissão nomeada pelo sr. Leão Velloso, da qual fizeram parte o conselheiro Dantas Rodolpho, o dr. Ruy Barboza e Balduino Coelho, e o ex-director da Escola dr. Benjamin C. B. de Magalhães, existem os trabalhos que sobre o mesmo assumto se elaboraram com destino ao malogrado Congresso de Instrução. Brevemente haverá para o estudo da matéria novos subsídios com que tem de contribuir os cavalheiros a quem a presidência da Liga incumbiu o exame do estado e carateres do ensino normal na côrte. Diante dos testemunhos acumulados contra a monstruosidade da criação que anseamos ver substituída por outra que ofereça as condições específicas do ensino profissional, é de esperar que cessem hesitações que porventura ainda subsistirem, e que o governo, pronunciando-se sobre esta parte do projeto do sr. dr. Ruy Barboza, submetido à Câmara dos Deputados, obtenha do Poder Legislastivo a autorização de que carecer afim de começar a instante transformação do professorado primário. Não devemos duvidar das excelentes intenções e dos esforços da administração para livrar-nos das demoras que se opõem ao nosso progresso, sobretudo depois de atos, como os que 277
acabemos de registrar, com que foram atendidas necessidades importantes, e nos quais felizmente se observaram os bons princípios. Deste interesse, que muito nos apraz reconhecer nos poderes públicos, ainda aqui consignaremos mais um testemunho, digno de apreço. Tendo o governo da Inglaterra convidado o Brasil para concorrer à Exposição internacional de saúde e educação que em maio próximo se efetuará na cidade de Londres, em South Kensington, não aconteceu como de outras ocasiões, em que se deixaram de aproveitar, com evidente detrimento dos interesses nacionais, os magníficos ensejos que por meios análogos se nos ofereciam para darmos a conhecer às nações civilizadas o que possuímos e vamos realizando, e isto sem embargo das naturais condições de inferioridade que em muitos casos nos viessem a caber. Com efeito, o governo do Brasil aquiesceu aquele convite, e em 29 de fevereiro último providenciou para que se cologissem os elementos necessários à nossa representação. Dos trabalhos relativos à parte educativa ficou encarregada a Inspetoria Geral da instrucção; os atinentes à parte sanitária foram cometidos à Junta Central de higiene pública. Para organizarem a seção brasileira na Exposição, o governo nomeou os nossos distintos compatriotas, que se acham na Europa, dr. Joaquim Nabuco e lente da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro dr. Pedro Affonso de Carvalho Franco, os quais tem de servir sob a presidència do nosso Ministro em Londres sr. Barão de Penedo. Devendo os objetos achar-se até 15 de abril na capital do reino unido, reduziu-se a vinte dias o tempo dentro do qual cumpria preparar o que houvéssemos de remeter. Presumimos que, em razão da angústia deste prazo, nada se conseguiu organizar na parte relativa à saúde. Quanto à da educação, felizmente a Inspetoria Geral pode desempenhar-se do encargo que recebera. Colecionaram-se os objetos e aparelhos para o ensino, em uso nos estabelecimentos públicos e em alguns estabelecimentos 278
particulares da côrte, e igualmente os trabalhos dos alunos; reuniram-se as obras adotadas nas aulas, e as plantas ou fotographias das principais casas de escolas daqui e de algumas províncias. A remessa das coleções realizou-se no dia 24 deste mês, a bordo do vapor Guadiana, e consta-nos que já se acha organizada pelo infatigável sr. Inspetor Geral a memória descritiva dos objetos, onde se encontram informações que habilitam a melhor ajuizar dos ensinos que serão representados na Exposição. Sem dúvida o minguado contingente com que nos apresentaremos em South Kensington não dará idéia cabal do nosso estado, mas não é menos certo que a nossa posição entre as nações cultas nos impunha o dever de não recusarmos o convite que nos foi dirigido; e ante esta consideração, que a nosso ver sobreleva a quantas se inspirem na expectação de grangearias e preeminências internacionais, merece o nosso aplauso o procedimento do governo e dos que auxiliaram no pensamento de que o Brasil não deixasse vazio o lugar honroso que lhe foi reservado na festa e ciência e do trabalho com que brevemente veremos abrilhantar-se os fatos da civilização.
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