UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES DEPARTAMENTO DE DESENHO
RICARDO MIRANDA BURGARELLI
“O mundo como o espaço onde as coisas se tornam públicas”
Belo Horizonte 2013
RICARDO MIRANDABURGARELLI
“O mundo como o espaço onde as coisas se tornam públicas”
Monografia
a
ser
apresentada
ao
Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da UFMG como requisito para obtenção do grau de bacharel em Artes Visuais com habilitação em Desenho.
Orientadora: Profa. Dra. Patrícia FrancaHuchet
Belo Horizonte 2013
Ricardo Miranda Burgarelli
“O mundo como espaço onde as coisas se tornam públicas”
Monografia apresentada à Escola de Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Artes Visuais com habilitação em Desenho Aprovada em ____/____/____ pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
CONCEITO:
Profa. Dra. Maria Angelica Melendi Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Rodrigo Borges Coelho Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Francisco Magalhães
Agradecimentos De início, agradeço meus pais, Gilson e Karla, por todo o apoio e carinho. Aos meus irmãos, Rodrigo, Mateus e Lucas pelo companheirismo e pela cumplicidade, e ao pequeno irmão Davi pelos momentos que virão. Aos professores, hoje amigos, que foram tão importantes e tanto ajudaram na minha trajetória na graduação. Em especial a querida Patrícia Franca-Huchet e o sempre presente, também querido, Rodrigo Borges, que tanto me apoiaram e me impulsionaram à criação e à pesquisa. Aos que me deram a honra de criar projetos e proposições artísticas em conjunto, em especial a parceira e grande amiga Luísa Horta. Aos colegas de D.A, EM COMODO, do Bolas Artes, das casas e repúblicas, das festividades, e do Núcleo PSOL UFMG. Aos eternos amigos e familiares, que talvez nem imaginem a importância que tiveram nesse ciclo, pelas trocas, alegrias, brigas, afastamentos e aproximações, pelo amor. Às companheiras que por aqui passaram e deixaram algo. À Mari, ora pela intensidade, ora pela leveza.
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................... 7 Capítulo 1: Diálogos sobre o conceito de história..........................................................9 1.1.Visões históricas.............................................................................................................9 1.2 A abertura da história....................................................................................................19 1.3 Objetos mágicos, experiência e revolução.................................................................. .28 Capítulo 2: Do documento à ficção.................................................................................35 2.1 Vaga-lumes, documentos e dispositivo........................................................................36 2.2 Subversão e profanação..............................................................................................43 2.3 Ex-ficções.....................................................................................................................57 Capítulo 3: A montagem como arte da memória...........................................................66 Conclusão.........................................................................................................................78 Referências.......................................................................................................................80
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Introdução O ano de 2012 foi o primeiro no qual não passei o natal em família. Até 2001 as comemorações eram na casa da minha avó materna, no bairro Prado em Belo Horizonte. Após seu falecimento, a casa foi vendida, demolida, e hoje, um prédio de doze andares ocupa seu lugar. Daí em diante meu natal passou a ser na casa da minha avó paterna, na pequena cidade de Jequeri, localizada na Zona da Mata mineira. Em março desse ano, no dia em que eu completava 22 anos, minha avó paterna faleceu. A casa ainda não foi vendida, e se for, não acredito que em breve construirão um prédio em seu lugar. Jequeri não é uma cidade abastada e as muitas tentativas pretensiosas de “modernizar” a cidade foram um fracasso. Várias residências em estilo próximo ao neoclássico do centro foram demolidas e esboços de edifícios foram traçados no espaço, poucos deles concluídos. Na rua principal da cidade, após a igreja da matriz, vemos algumas dessas tentativas. Edificações pela metade, abandonadas, o que, julgando pelo fato de que ao menos desde que eu passei a conviver com esses espaços, eles permanecem inalterados, podemos supor que, do status de construção eles passaram ao de ruína. Para além das questões relativas à arquitetura, à cidade, ao espaço e sua relação com o sujeito, cito esse fatos pois foi retornando de um dos festejos natalinos que começou a ficar claro o que realmente me interessava e exigia de mim um posicionamento enquanto sujeito e artista. No trajeto de Jequeri para Diamantina, conversava com meu pai e meus irmãos sobre a segunda guerra mundial. O ataque a um submarino brasileiro e a posterior entrada do país na guerra. Não sei a partir de que momento o assunto passou a ser a crise dos mísseis entre Cuba e os EUA, momento áureo da Guerra Fria, no qual a eminência de uma guerra nuclear ameaçava a existência humana. Esse episódio foi conhecido como os “13 dias que abalaram o mundo”. Pensando nisso, perguntei a meu pai como havia sido a repercussão da crise em Jequeri?”, e ele me respondeu: “Filho, os '13 dias que abalaram o mundo' não abalaram Jequeri.” Uma conclusão aparentemente simples e óbvia, mas que intermitentemente ressoa nos meus pensamentos.
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Desde então passei a investigar o conceito de História, que se traduziu na construção de trabalhos artísticos nos quais imagens e processos explicitam o confronto entre a imagem e o fato, o real e o ficcional e as contrações do passado e do presente. Encontrei na montagem a forma de se buscar relações dialéticas com a imagem a partir de um olhar crítico sobre elementos constitutivos da nossa política, história, sociedade e modo de inserção no mundo. Para o entendimento do que seria o “mundo”, referencio a resposta de Hannah Arendt em entrevista com Gunter Gaus: “agora emprego o termo (mundo) num sentido mais amplo, como o espaço onde as coisas se tornam públicas, como o espaço onde a pessoa vive e que deve parecer apresentável. Onde surge a arte, claro” (ARENDT, 2008). O primeiro capítulo desta monografia parte dos escritos benjaminianos sobre o conceito de história, procurando promover diálogos entre Walter Benjamin e outros filósofos, escritores e artistas que procuram tratar esse conceito de uma forma aberta, ativa e dialética, que estimulem tanto o saber quanto o não-saber. Busca-se o entendimento de uma história com um dinamismo e um inconsciente próprio. Dinamismo de um tempo pautado pela complexa temporalidade das imagens. Essa história não-cronológica, que enxerga o passado como uma força presente, e que carrega não apenas a memória mas também as reivindicações dos derrotados é colocada em oposição ao historicismo, à proposição de uma história pautada pelo progresso e pelo desenvolvimentismo, visão histórica fatalista, que busca razões para todo o ocorrido, compreendendo o passado e a imagem como algo fixo, imutável. Essas proposições estão imbricadas no que diz respeito ao meu contexto e a minha produção artística. Nasci em Diamantina, uma cidade histórica localizada no baixo Jequitinhonha, início da Estrada Real, caminho construído pelos escravos para o escoamento de ouro para a antiga capital do Brasil (Rio de Janeiro). Por ser afastada da capital mineira, Diamantina não tem um grande fluxo de turistas, o que a meu ver propicia uma experiência mais viva e sombria com os fantasmas do passado. Já a alguns anos moro em Belo Horizonte, uma jovem capital construída com um ideário de espaço e cidade republicano, positivista, propício para a consolidação da República. Somos,
nas
cidades
brasileiras,
confrontados
cotidianamente
com
o
conceito
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benjaminiano de imagem-dialética. A América Latina, se traduz como um local geográfico onde pulsa as preocupações e as considerações desenvolvidas por Walter Benjamin na primeira metade do século XX. Vivemos em temporalidades completamente distintas, um anacronismo ostensivo demarca nossa experiência histórica, mas ainda assim, a crença no progresso é, e de maneira inclusive ingênua, o combustível fictício da nossa história. No segundo capítulo é explorada a dialética ‘realidade e ficção’, correlatas no estudo do documental e do ficcional. Inicia-se a elaboração do conceito de dispositivo e uma tentativa de entender o que está por trás das relações estabelecidas por ele, para então buscar alternativas de subversão do material documental. No terceiro e último capítulo é apresentado a montagem, em um sentido amplo, como um modo dialético, ou seja, construído a partir do conflito, da confrontação, da introdução de uma diferença, de elaboração do pensamento, da imagem, e do posicionamento. Ou seja, a partir da montagem, “criar um mundo de heterogeneidades juntadas mas confrontadas, co-presentes mas diferentes” (HUBERMAN, 2008). Dentro dessas construções e questionamentos, não disserto sobre todos meus trabalhos artísticos e nem sobre grande parte das minhas referências de artistas, mas esses estão inseridos nas imagens que acompanham o texto.
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Capítulo 1. Diálogos sobre o conceito de História Tudo é tempo e contratempo. O tempo é eterno. Eu sou uma forma avançada de tempo. Em luta seletiva, antropofágica, contra outras formas de tempo. (José Celso Martinez Corrêa em “O Rei da Vela”) A vida é uma longa morte. Esta é a terra de ninguém. Aqui estão as memórias dos homens e as ruínas de sua descrença. (Heurtebise responde à Orfeu em “Orfeu” de Jean Cocteau) 1.1 Visões históricas.
Em 1939, na eminência do suicídio, Walter Benjamin escreveu as “Teses sobre o conceito de história”, no qual tecia, de uma maneira lúcida e desesperada, revolucionária e messiânica, suas considerações sobre determinadas concepções de história, clamando por uma transformação dialética no modo de se lidar com o passado e o presente. Benjamin critica a base do historicismo, que, a partir de um procedimento aditivo, utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher um tempo homogêneo, linear e vazio. Em contraposição ele aplica à história um princípio construtivo, no qual é necessário
extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas (BENJAMIN, 1987. p. 231)
Benjamin se opõe não apenas a história positivista e ao produtivismo da socialdemocracia alemã, mas também, ao materialismo histórico convencional, ou seja, a automatização da história, a glorificação do trabalho, a relação instrumentalista com o passado e a ideia de que a vitória do socialismo estaria inscrita no decorrer do desenvolvimento das forças produtivas. O filósofo alemão compara essa concepção de uma história pautada no progresso com um autômato sem alma, incapaz de interpretar
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dialeticamente a história. O preço de se ignorar as ruínas e seguir em frente, fascinado pelo progresso, é um retorno do recalcado sob a forma de uma barbárie negativa, catastrófica. É preciso parar, através do “tempo agora”, e nos voltarmos para o passado, à luz do presente, a fim de juntar os fragmentos, acordar os mortos. Esta é a possível garantia de saída do ciclo fantasmagórico de repetição do mesmo. É nesta nova relação com a história, no re-envio entre presente e passado, que habita a esperança de um futuro distante do sempre igual. A visão linear e evolucionista da história foi predominante no século XIX e está longe de se extinguir. No Brasil temos, contraditoriamente (pelo que foi explicitado na introdução), ainda hoje esse tipo de pensamento em voga tanto nas políticas aplicadas pelos Estado, como também no relativo ao ensino fundamental e médio. A disciplina histórica continua retrógrada na maneira como é estudada, ou seja, os acontecimentos do passado são selecionados e contados sempre do ponto de vista dos vencedores. O ensino da história parte convencionalmente dos “descobridores”: Cristovão Colombo, Pedro Álvares Cabral, os imperadores, os generais da República, a elite agrária da República Café com Leite, etc. Não estudamos por exemplo o abolicionista Movimento dos Caifazes no século XIX, mas temos a Princesa Isabel como a mandatária da abolição da escravatura. No período de consolidação da república sabemos e homenageamos com estátuas, ruas, pontes e avenidas os generais e presidentes do país. Mas pouco sabemos da forte resistência operária, desses sonhadores do início do século XX, anarquistas, socialistas e comunistas. Nem ao menos promovemos o luto pelos trabalhadores mortos na Colônia Penal de Clevelândia do Norte ou pela destruição da Colônia Cecília. Esses dois momentos da história do brasil foram explorados na exposição “Arquivo de Obras em Acabamento”, que realizei com a artista Luísa Horta em agosto/setembro de 2012, na Galeria principal do Centro Cultural da UFMG. Para essa exposição a partir de uma intensa pesquisa em arquivos públicos, museus e nos espaços da cidade, produzimos trabalhos que, a partir de estratégias de montagem e de fabulação, lidassem criticamente com a construção/desconstrução de uma cidade/sociedade/modo de vida. Uma trajetória subjetiva e ficcional que partia dessa, que inicialmente se pautou como o espaço para a República, cidade de Belo Horizonte.
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Imagem 1:Montagem do “Arquivo de Obras em Acabamento” no CCult UFMG em agosto de 2012.
Imagem 2: Montagem do “Arquivo de Obras em Acabamento” no Museu Nacional na ocasião do “Situações Brasília: Prêmio de Arte Contemporânea do Distrito Federal”.
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Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, foi uma cidade planejada para no final do século XIX. Sua construção e a ideologia republicana que a permeou, coincidiram com o fim da Colônia anarquista chamada Cecília, no estado de Santa Catarina. A Colônia Cecília foi fundada em 1888 pelo italiano Giovanni Rossi. O terreno para sua fundação foi cedido pelo imperador Dom Pedro II. Tratava-se de uma comunidade de produção coletiva, que além da coletivização dos meios de produção e da supressão da religião, almejou transformações no modo de vida e de se relacionar pautadas pela liberdade, ou seja, pelo fim da instituição família, pela busca do amor livre e pela supressão do elemento mais arraigado da luta de classes: a desigualdade entre homens e mulheres. A comunidade já sofria com a hostilidade das vilas e cidades próximas, e após a proclamação da República o terreno da colônia foi confiscado pelo novo estado republicano (ROSSI, 2000). No “Arquivo de Obras em Acabamento”, o choque entre a construção da primeira cidade determinada pelo ideário republicano e a destruição de uma experiência utópica em terras brasileiras foi explorada no trabalho “Cecília”. O prédio do Centro Cultural da UFMG, local da exposição, foi construído em 1908, e serviu primeiramente como Batalhão do Exército. Até hoje as rodelas de apoio às bandeiras hasteadas se encontram na parte exterior do prédio. Se tratando de um prédio militar, essas eram as bandeiras da República. Portanto, subvertemos esse espaço de legitimação de poder hasteando a bandeira anarquista, de cores vermelha e preta, que, segundo registros, ficava erguida no centro da Colônia Cecília e é evidenciada no filme “Cecília” (1975) de Jean Louis Comolli. A potência, ainda que limitada, da utopia anarquista simbolizada pela bandeira, e a relação entre Cecília e Belo Horizonte é intensificada nos fragmentos textuais apresentados na publicação realizada para a exposição. Nessa peça gráfica, produzimos um relato fictício de Crescenzio Citti, indivíduo que teria passado os primeiros anos da infância na comunidade anarquista. Mas que, após o fim da comunidade, se deslocou com seu pai, que veio trabalhar na construção da nova capital mineira.
“(...)A única lembrança do navio é o cheiro, que não se aproxima de nada familiar, mas que retorna no momento mais inesperado. Não é um odor repugnante, nem, no entanto, agradável.
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Minhas primeiras imagens desta terra são poucas. Memórias fixadas por outros sentidos que não a visão. Me recordo de sensações, sons, texturas, odores. Vim com minha mãe. Viemos de encontro com o pai que havia partido quando eu ainda estava para nascer. Cresci escutando as histórias desse lugar, no qual vivemos nossas primeiras experiências no Brasil, se assim posso dizer. Seria esse meu lugar de fuga na infância. Quando criança sempre inventamos um lugar distante que desejamos, a nossa terra estrangeira. A minha era essa, a dos meus primeiros anos no Brasil. Meu esconderijo era esse lugar impreciso. Fiz dele uma ilha, uma fortaleza na qual escondia minhas fantasias. Fora as fantasias, não me recordo claramente de nenhuma lembrança de lá. Quando tivemos que partir, acompanhamos meu pai, que veio trabalhar na construção da nova capital. Como ele diria, seguimos então para “questo povero e vecchio mondo sbagliato”. No entanto, uma imagem intermitente daquele lugar de nome Cecília me surpreende, mas nunca consigo retomá-la, é um lampejo que aparece mas logo se perde na memória. Não sei mais se é uma recordação real ou se faz parte das minhas imaginações. No entanto, é o que parece ser minha lembrança mais antiga. Uma bandeira hasteada, de cores vermelha e preta. Não é uma bandeira imponente, vistosa e flamejante, mas a força do ar nunca a deixa se recolher por completo. Mesmo que quase imperceptivelmente ela estava sempre se movendo.(...) (Fragmento dos escritos biográficos de Crescenzio Citti, um dos primeiros habitantes de Belo Horizonte.)” (HORTA; BURGARELLI. 2012)
O anarquismo enquanto uma ideologia libertária suprimida, vencidos tanto pela repressão do Estado como dentro do próprio campo de disputa da esquerda revolucionária, também é explorada no “Arquivo de Obras em Acabamento” a partir da exposição de réplicas de jornais anarquistas brasileiros das primeiras décadas do século XX. Esses jornais vinham ao encontro de um desejo de potencializar a dimensão pública do espaço da galeria, bem como promover a re-existência desse material. Emergir os jornais, as ideias, as pessoas que neles escreviam, das profundezas do arquivo e expô-los enquanto uma potência viva, ativa e presente. Pois, enquanto “memória oficial”, abrigada e gerida como documento histórico pelo Estado através de suas instituições, esses são documentos reclusos, exauridos de sua força e atualidade. Ou, como afirma o personagem, funcionário da Biblioteca Nacional de Paris, no Romance Austerlitz de W. G. Sebald, o edifício que abriga esses arquivos pode ser entendido “como a manifestação oficial da necessidade cada vez mais premente de dar cabo de tudo aquilo que tenha alguma ligação com o passado” (Sebald, 2006)
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Imagem 3: Montagem do “Arquivo de Obras em Acabamento” no Museu Nacional na ocasião do “Situações Brasília: Prêmio de Arte Contemporânea do Distrito Federal”.
Imagem 4: “Cecília”, bandeira alusiva a Colônia Cecília hasteada no Centro Cultural da UFMG.
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Imagem 5: Publicação da exposição “Arquivo de Obras em Acabamento".
Imagem 6: Fragmento da publicação da exposição “Arquivo de Obras em Acabamento"
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No jornal “A Plebe” de 12 de fevereiro de 1927, dirigido por Florentino de Carvalho e exposto no “Arquivo de Obras em Acabamento”, noticiava-se os horrores acometidos na citada Colônia Penal de Clevelândia do Norte. Essa, se caracterizou como um campo de trabalho forçado, criado durante a presidência de Arthur Bernardes, de 1922 a 1927. O governo Arthur Bernardes se configurou como um dos mais repressivos da história republicana brasileira. Tendo instaurado um estado de sítio foram praticadas toda série de abusos para com os operários, sindicalistas, trabalhadores rurais que insurgiam contra o Estado. A condição dos detentos era tal que estimasse que mais da metade dos reclusos, faleceram na colônia de Clevelândia (SAMIS, 2012). O absurdo desses acontecimentos pode ser observado na seguinte discussão ocorrida no Senado em 1928, quando o expresidente mineiro Arthur Bernardes passa a ser senador da república e se defende das acusações de abuso de poder e maus tratos feitas pelo senador Irineu Machado :
Sr. ARTHUR BERNARDES: (…)Tenho então em minhas mãos os documentos da polícia, autenticados, os quais lerei para vocês o número de ordem de cada prisioneiro e as observações sobre cada um. Prisioneiro número 1- duas vezes vadio e gatuno; Prisioneiro número 2 – duas vezes jogo e gatuno; Prisioneiro número 3 – três vezes vadio e gatuno; Prisioneiro número 4 – primeira vez desertor da polícia de Sergipe; Prisioneiro... Sr. IRINEU MACHADO Mas quem fazia essa ficha era a própria polícia que prendia! Sr. ARTHUR BERNARDES: Ninguem melhor que a polícia para saber o motivo das prisões, ou V. Exa. quer atribuir uma má intenção à polícia? Sr. IRINEU MACHADO Não. Simplesmente não se pode lançar uma nota quando não há prova. Sr. ARTHUR BERNARDES: Mas é um documento oficial da própria polícia. Sr. IRINEU MACHADO Isso não constitui prova. E nem as fichas da polícia podem ser trazidas a público. Sr. ARTHUR BERNARDES: Neste caso, V. Exa. como Senador, deveria apresentar um projeto suprimindo a polícia, que não foi criada para trapacear. Sr. IRINEU MACHADO Os documentos só constituem prova quando constam no registro alguma
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condenação judicial, passada em julgamento. Fora disto é um sistema Medieval! Sr. ARTHUR BERNARDES: Não quero saber se é um sistema medieval ou atual! (HORTA; BURGARELLI, 2012)
Os absurdos diálogos do Senado foram ligeiramente alterados e transformados em um livreto de ópera, intitulado “O discurso” e exposto no “Arquivo de Obras em Acabamento” junto aos jornais anarquistas. Apenas tomamos conhecimento da existência do “Inferno Verde”, como era conhecida a colônia penal, nas visitas ao Arquivo Público Mineiro, onde reside a Coleção Arthur Bernardes. Anteriormente a isso, dado o número de homenagens ao Sr. Arthur Bernardes (estátuas, viaduto, avenidas e etc) poderia facilmente supor que se tratava de um dos grandes “homens que fizeram o Brasil”. A história o legitima como um vitorioso, e, como um vencedor só lhe cabe a glória.
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Imagem 7: “Jornais Anarqusitas”, trabalho exposto no “Arquivo de Obras em Acabamento”
Imagem 8: Publicação “O Discurso”, exposta no “Arquivo de Obras em Acabamento”.
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1.2 A abertura da história A empatia histórica com os vencedores é exaltada por historiadores como Von Sybul para quem “o sucesso é o juiz supremo...e a instância direta da decisão” (BENJAMIN, 1987). Um tipo de historicismo servil que apenas legitima os opressores de cada época, pois os que em um dado momento dominam são herdeiros de todos os que venceram antes. Similarmente, ao afirmar que a “história universal é o tribunal universal”, Hegel pontua “cada ruína e infâmia histórica como etapa necessária da marcha triunfal da razão, como momento inevitável do progresso da humanidade rumo à consciência da liberdade” (LOWIE, 2005). Para Benjamin, a oposição a essas proposições que dirigiram (e continuam dirigindo) a história rumo a catástrofe - como de fato aconteceu, se pensarmos em Auschwitz e na explosão nuclear em Hiroshima – seria o materialismo histórico, mas não aquele mecânico exaltado pelo stalinismo e pelo marxismo-leninismo. O materialismo histórico benjaminiano é aquele que é servido pela “pequena e feia” teologia. Aquele carregado por uma força messiânica que lhe foi atribuído pelos oprimidos do passado. Ou seja, “não há um messias enviado do céu: somos nós o messias, cada geração possui uma parcela do poder messiânico e deve se esforçar para exercê-la” (LOWIE, 2005). A história seria então “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras" (BENJAMIN, 1987). O presente se apresenta na forma de uma constelação. O irromper dessa constelação é a imagem-dialética, momento de choque entre o agora e o outrora. A imagem-dialética é um momento, pois “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo” (BENJAMIN, 1987). Ou seja, o materialismo histórico benjaminiano vive, com uma imagem do passado, uma experiência única.
Enquanto a abordagem conformista e pseudo-objetiva de Ranke e Von Sybul neutraliza e esteriliza as imagens do passado, a conduta do materialismo histórico descobre as energias explosivas ocultas que se encontram em um momento preciso da história.(LOWIE, 2005)
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Os estudos da imagem e da cultura e a visão da história enquanto uma constelação de tempos heterogêneos é partilhada por Aby Warburg. Para Warburg, o tempo da imagem não é o tempo de uma história pautada no progresso. O tempo da imagem corresponde ao tempo de uma história aberta, complexa e perturbadora na qual fragmentos do passado ora imergem nas profundezas do presente e ora vem à tona. Uma história que se permita vagar na imprecisão e nos sintomas da imagem. Não nos encontramos diante da imagem como diante de algo no qual as fronteiras possamos traçar. Ao expandir e desterritorializar o tempo da imagem, logo ele faz o mesmo com o tempo da história. Nenhuma época está isenta de antiguidades, de anacronismos, de presentes e de propensões ao futuro. Warburg anuncia as complexidades da história, a profundidade das imagens e a dimensão inconsciente do tempo. Insere na história um “modelo fantasmal: tempos calcados nas obsessões, sobrevivências, remanescências, reaparições das formas. Por não-saberes, impensados e por inconscientes do tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2009). Por influência de Freud, para lidar com a história, a cultura e a imagem, ele utiliza um vocabulário ligado aos estudos psicanalíticos: processo de defesa, imagem de substituição, arquivo inconsciente e etc. A história teria a profundidade do inconsciente e não estaria isenta de traumas, recalques, obsessões e compulsão à repetição. Essa última já havia sido esboçada por Karl Marx no seu diagnóstico do 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “as novas cenas da história são representadas com figurinos do passado” (MARX, 2011). Esses figurinos são os dos vencedores. Um exemplo esclarecedor é o diálogo do filme “Pocilga” (1969) do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, no qual, em um contexto dos anos 1960, o casal principal, proveniente da elite industrial alemã, caracterizado por um pequeno e perverso homem com um bigode bem característico, e uma pequena e roliça mulher estão deitados em sua cama e conversam com vestes de dormir. Preocupado, o homem afirma:
Os tempos de Grosz e de Brecht ainda não se foram. E eu poderia perfeitamente ser retratado por Grosz na forma de um triste porco e você, numa triste porca, na mesa, naturalmente. Eu com o traseiro de
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uma secretária de quatro, e você com as mãos entre as pernas de um chofer. E Brecht, que descanse em paz, poderia nos dar o papel de vilões numa obra onde os pobres são os heróis. (POCILGA, 1969)
Tanto Warburg quanto Benjamin (também Pasolini) tem como referências em seus estudos a “Segunda Consideração Intempestiva” de Friendrich Nietzsche. A semelhança é clara se observarmos a afirmação do filósofo de que: “o instante, aparecendo e desaparecendo como um relâmpago, vindo do nada e retornando a ele, volta no entanto como um fantasma a perturbar a paz de um instante posterior” (NIETZSCHE, 2005). A intermitência, o relâmpago e o fantasma, no entanto, essa afirmação de Nietzsche é um alerta para que os homens não se tornem prisioneiros do passado. “O excesso de história(...)mata o homem”(NIETZSCHE, 2005), sendo necessário um limite na relação entre o passado e o presente. Esse limite seria a força plástica de cada indivíduo.
Força que permite a alguém desenvolver-se de maneira original e independente, transformar e assimilar as coisas passadas ou estranhas, curar as feridas, reparar as perdas, reconstituir por si próprio as formas destruídas. (NIETZSCHE, 2005. p.73).
Essa força plástica parece ter sido rompida por muitos dos personagens das histórias de W. G. Sebald. Professor universitário e escritor alemão contemporâneo, Sebald começou a escrever nos últimos anos de sua vida. Tendo falecido, precocemente, deixou poucos, mas profundos, livros publicados. Julia Bussius traça alguma características de sua escrita:
Sebald recolhe fragmentos e cacos de memória em suas narrativas para tentar dar sentido ao que parece não ter sentido: a história da modernidade, que se mostra como uma tragédia atrás da outra. Mas ele olha para os escombros, como o anjo da história de Walter Benjamin, e quer recolher os cacos, pois são eles que lhe permitem enxergar o passado e resistir ao esquecimento. O olhar melancólico de Sebald soa como a descrição que ele faz de Sir Thomas Browne: 'E porque a mais pesada melancolia é o medo do fim inevitável de nossa natureza, Browne procura entre as coisas que escaparam à destruição os rastros da misteriosa capacidade de transmigração que tantas vezes estudou em lagartas em borboletas. (BUSSIUS, 2010. P. 10)
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Em sua escrita híbrida, beirando à realidade e à ficção, Sebald constrói personagens dotados de uma carga de melancolia e incomunicabilidade advinda de memórias de “experiências inexprimíveis”. São confrontados, principalmente na velhice, com um estranhamento, que, como bem descreve Sigmund Freud em “O estranho”, remete tanto ao familiar quanto ao desconhecido. Condição essa que se relaciona com aquela descrita por Benjamin em “Experiência e Pobreza”. A combinação de uma “paisagem familiar em que nada permanece inalterado, com forças bélicas que se assemelham às forças indomáveis da natureza primitiva”, na qual, “a força bélica despertou um medo recalcado no inconsciente da civilização” (Gerciano, 2011).
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1987).
Os personagens de Sebald estão de alguma forma buscando estratégias de apagamento da memória. Austerlitz se recusou a lidar com acontecimentos provenientes do século XX até ser acometido por colapso nervoso. O Dr Henry Selwyn, Paul Bereyter e Max Aurach suicidaram, e, Ambos Adelwarth, aquele com as histórias mais surpreendentes e dotada de vitalidade, ao se submeter voluntariamente ao tratamento diário de eletro-choque tinha o anseio “por uma extinção mais completa e irrevogável possível de sua capacidade de pensamento e recordação”(fulano, 19xx: 42). Se o excesso de história mata os personagens de Sebald, não se pode afirmar o mesmo do protagonista-narrador dessas histórias, que seria o próprio escritor. Sebald “consegue
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parar o tempo, saindo do cortejo frenético que marcha para o futuro, e como um típico flâneur, se detém absorto, para contemplar um prédio em ruína” (GERCIANO, 2011). Sebald desenvolve uma relação mágica, pessoal e sinistra com as construções antigas. Traduzindo a sensação que o acomete no contato com estes restos de passado à própria história presente do passado. Ou seja, o passado re-existe a partir de seu olhar e sua experiência com ele. “O narrador sebaldiano incorpora a subjetividade problemática à forma, intensificando esteticamente a condição traumática” (GERCIANO, 2011). A passagem mais sinistra disso esta presente no relato do incêndio na estação de trem de Lucerna.
Recordo-me agora que em fevereiro de 1971, durante uma breve visita à Suíça, estive, entre outros lugares, em Lucerna e lá, após uma visita ao Museu dos Glaciares, passei um bom tempo na ponte sobre o lago no caminho de volta para a estação de trem, porque ao contemplar sua cúpula e o maciço pilatus que se erguia atrás dela, branca de neve contra o céu claro de inverno, lembrei-me das observações feitas por Austerlitz quatro anos e meio antes na Centraal Station de Antuérpia. Algumas horas mais tarde, na madrugada de quatro de fevereiro, bem depois que eu ferrara em sono profundo no meu quarto de hotel em Zurique, irrompeu então um incêndio na estação de Lucerna que se alastrou com grande rapidez e destruiu completamente a cúpula. As imagens que vi no dia seguinte nos jornais e na televisão, e que durante várias semanas fui incapaz de tirar da cabeça, causaram em mim uma sensação de desassossego e angústia que se cristalizou na ideia de que fora eu o culpado, ou pelo menos dos cúmplices, do incêndio de Lucerna. Nos meus sonhos, mesmo muitos anos mais tarde, eu via às vezes as chamas saltarem do telhado em cúpula e iluminarem todo o panorama dos Alpes cobertos de neve. (SEBALD, 2008. p. 14,15)
Talvez, as imagens do incêndio na estação de Lucerna seja, para o protagonista de Sebald, “a lembrança tal qual cintila num instante de perigo” (BENJAMIN, 1987). O perigo seria a catástrofe que transforma o passado em um amontoado de escombros, catástrofe essa que, como afirma Austerlitz, já estava delineada em toda “a história da arquitetura e da civilização da era burguesa”(BUSSIUS, 2010), ou seja, na própria construção da estação que estava em chamas. E, por fim, não seria o sentimento de culpa do protagonista aquela mesma diagnosticada por Freud em “O Mal Estar na Civilização”? Ou seja, a possibilidade de auto-extermínio, dado o total controle do homem sobre as forças da natureza, são a causa de “grande parte de sua inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade.” É “o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização” (fFREUD, 1974).
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Imagem 9: “Atlas de construção/desconstrução” (2012) do Arquivo de Obras em Acabamento no CCutl da UFMG.
Imagem 10: “Atlas de construção/desconstrução” (2012) do Arquivo de Obras em Acabamento no Museu Nacional de Brasília.
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Essa sinistra aproximação entre as construções e o que seria seu oposto, sua ruína, chamou nossa atenção (minha e da minha parceira Luísa Horta) durante as várias visitas em arquivos públicos e, é claro, nos próprios espaços da cidade. Belo Horizonte é uma metrópole com pouco mais de cem anos, uma capital muito jovem se comparada com as capitais européias. Belo Horizonte vive o boom da especulação imobiliária, o que, combinado com um centro urbano, comercial e simbólico dotado de construções antigas abandonadas, desgastadas e pulsantes, mais uma vez nos encaminha para a estranheza freudiana. Produzimos, então, um atlas de construções/desconstruções. Um catálogo de imagens de arquivo que compreendia todo tipo de construção, projeção, demolição, abandono, escombro e ruína. As legendas que acompanhavam cada imagem foram subvertidas. Cada imagem tinha quase sempre na sua legenda algo próximo do seu “oposto”, que não deixava de ser “seu óbvio”. Muitas vezes a falsa legenda parecia mais apropriada para a imagem do que a sua verdadeira. Afirmo isso apesar de não ter mais certeza se cabe no momento um julgamento de veracidade das legendas. O trabalho “Janela”, também correspondente ao “Arquivo de Obras em Acabamento” travava um diálogo com o atlas de construções. Em “Janela” nós convidamos os operários da prefeitura de BH que trabalhavam em uma obra viária na avenida frontal a galeria do Centro Cultural da UFMG para quebrarem um pedaço da parede de drywall (gesso) da galeria, tornando evidente a janela existente atrás do drywall e logo a implicação visual e sonora da obra viária a qual eles construíam. No que tange a esses questionamentos, escrevemos o seguinte fragmento: Nos anos que sucederam à ascensão do nazi-fascismo até fim da segunda grande guerra, Bertold Brecht viveu exilado de sua terra natal. Vivendo em países que mal conhecia o idioma, a única forma de tomar conhecimento dos acontecimentos na Alemanha, na Europa e no mundo eram partir das imagens publicadas nos jornais locais. Os quais recortava e guardava em seu diário. Há uma sinistra semelhança entre esses recortes feitos por Brecht das cidades bombardeadas, abandonadas, dos quarteirões devastados e das poucas pessoas que os cercam, com as imagens de arquivo referentes ao processo contínuo e permanente de construção e desconstrução de Belo Horizonte. Esse estranho pressentimento remete em partes a afirmação feito por alguém ao avistar pela primeira vez o Palácio de Justiça de Bruxelas: “(...)os edifícios super-dimensionados lançam previamente a sombra de
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sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência como ruínas.” (HORTA; BURGARELLI. 2012)
Esse alguém da afirmação final não é o dramaturgo alemão Bertold Brecht, que ainda terá seu espaço por aqui, mas sim W.G.Sebald. O protagonista-narrador de Sebald está sempre em busca das memórias, do imaterial e do material das pessoas e dos tempos que passaram. Ele atua como o colecionador ou o Chiffonier (trapeiro) benjaminiano. Aquele que cata os “objetos da história, no momento em que estes se tornam inúteis, quando são abandonados pela ideologia que os gerou (...) perdem seu significado para se tornarem significantes” (GERCIANO, 2011). Os objetos são para o colecionador-narrador escombros de uma catástrofe. Esta catástrofe é o progresso. O próprio Benjamin se enquadra no seu conceito-alegórico de colecionador, na qual caracteriza como uma atitude anárquica. Benjamin confere uma grande importância a essa figura do colecionador na formulação de sua concepção de história, pautada na ideia do valor testemunhal das coisas. Essa imagem do colecionador de ruínas não deixa de compreender um estímulo revolucionário movido por uma insatisfação lúcida com o presente e pela tentativa de lidar com essas ruínas de maneira inversa aos entusiastas do progresso.
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Imagem 11: “Janela” (2012) do Arquivo de Obras em Acabamento no Ccult UFMG.
Imagem 12: “Janela” do Arquivo de Obras em Acabamento no Ccult UFMG.
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1.3. Objetos mágicos, experiência e revolução. Uma semelhante aversão ao progresso que clamava por um secreta força revolucionária se encontrava no movimento surrealista, o qual, Benjamin nomeou como o último instantâneo da inteligência europeia. Compartilhando dessa relação nostálgica, mágica e simbólica para com os objetos, os surrealistas miravam para as energias revolucionárias que transpareciam no antiquado: as primeiras construções de ferro, primeiras fábricas, primeiras fotografias e etc. Objetos que começam a extinguir-se, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandonálos. Como um movimento direcionado mais para um estado de experiência do que para a produção de objetos artísticos, era comum praticarem comumente experiências cotidianas que remetessem a essas energias como revolucionárias, como viagens de trem, visitas a bairros proletários e etc. No livro “Nadja”, André Breton traça alguns comentários sobre a prática de visitar mercados de pulgas: “sempre vou lá à procura desses objetos que não se encontram em nenhuma outra parte, fora de moda, fragmentados, inúteis, quase incompreensíveis, perversos, enfim, no sentido que entendo e amo.” (BRETON, 2007) Já no livro, “O Amor Louco”, ao relatar sobre o dia em que foi com Alberto Giacometti à uma feira de quinquilharia, na qual os objetos “ficam mergulhados no sonho” (BRETON, 2006)), Breton discorre sobre a máscara que o amigo comprou e a colher com haste de um sapato feminino que adquiriu. No seu relato ele promove a explosão das forças “atmosféricas” oculta nessas ações, experiências e objetos.
Discutíamos sobre o significado que urge atribuir a tais achados, por mais insignificantes que estes possam parecer. Esses dois objetos que nos tinham passado para as mãos sem sequer virem embrulhados, e cuja existência minutos antes ignorávamos, impunham-nos agora um contato sensorial assaz prolongado, convidavam-nos instantemente a considerar a sua existência concreta e, ao mesmo tempo, desvendavam-nos certas facetas, assaz inesperadas, de sua vida. (…) O achado, a meu ver, vem de súbito equilibrar dois níveis distintos de reflexão, à semelhança dessas bruscas condensações atmosféricas que
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tem por efeito tornar condutoras regiões que antes o não eram, e assim provocar relâmpagos. (BRETON, 2006: 41-43)
Semelhante relação com essas energias revolucionárias emanadas por objetos em desuso é passível de ser desenvolvida a partir do contato com tecnologias do passado, já ultrapassadas e “superadas”. A partir de uma pesquisa sobre os cinejornais brasileiros produzi com a parceira de trabalho Luísa Horta uma série de vídeos realizados com filmadoras 8mm, conhecidas como Super-8 e com fragmentos de filmes de. Essa é uma tecnologia proveniente dos anos 1960, que contou também com vasta produção nos anos 1970 e início dos 1980. Por ter um preço mais acessível, foi responsável pela difusão do audiovisual no Brasil, e foi muito explorada nas artes plásticas, sendo importante para o desenvolvimento da videoarte no país. Nosso trabalho consistiu na apropriação e subversão do material arquivístico e, a partir de um processo de montagem, criação de novos arquivos, esses, fictícios. Recentemente esse trabalho em vídeo compôs o projeto Cine-Jornais, realizado através do edital de estímulo de produção audiovisual do Espaço TIM UFMG do Conhecimento, e será projetado periodicamente, por 10 dias, na fachada digital do Espaço. Nos Cine-Jornais, o tensionamento das relações entre arquitetura, poder, sujeito e sociedade remontam a história através de episódios construídos com arquivos reais e ficcionas. Entre esses episódios, se encontram alguns relativos a série “Anais do Congresso Extraordinário Internacional da Cidade Nova”, no qual utilizamos desse processo de montagem para potencializar as relações entre a constituição da cidade de Belo Horizonte e os apontamentos críticos do dito congresso realizado durante a construção de Brasília. Nos fragmentos do congresso utilizados, que contou com nomes como Mário Pedrosa, Giulio Carlo Argan, Romero Brest, entre outros, privilegiamos aqueles que discutiam questões relativas a cidade planejada, a arquitetura como síntese das artes, a construção de uma utopia e as relações entre o sujeito e a arquitetura. Sobre essa experiência produzimos o seguinte fragmento textual publicado na exposição “Arquivo de Obras em Acabamento”:
O que fazer com as tecnologias obsoletas, os objetos em desuso,
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fragmentados, quase incompreensíveis? “O que fazer” sempre foi um questionamento demasiado pernicioso. Talvez fosse mais interessante trocar o agente da ação, sendo assim: o que eles provocam em nós? Que potência revolucionária, talvez até perversa, transparecem nesses objetos antiquados que ora nos repele e ora nos excita? Excitação essa que nos faz sentir, algumas vezes que nos postamos diante desses objetos particulares, como a criança que não distingue bem o ser animado, de um objeto inanimado. Mas não que essa excitação seja uma mera crença infantil, assim como também não o é o desejo da criança de que seu boneco seja um ser animado, mas sim a simples necessidade da magia. E como necessitamos dela hoje... Se esses objetos, aparelhos e parafernálias se tornaram inúteis para o sistema neoliberal de produção e de consumo; se são descartáveis para o nosso atual modo de vida, para os tipos de relações estabelecidas, algo de especial eles carregam. As imagens produzidas por filmadoras de tecnologia dita ultrapassada sempre vão remeter a algo que já existiu, ou que poderia ter existido. A mera constatação disso permite sua sobrevivência. O choque provocado pelo contraste entre o presente sendo exibido a partir de uma tecnologia de produção de imagem do passado diz respeito às tantas contradições que permeiam a nossa inserção no mundo. A imagem produzida pode ser entendida como uma prestação de contas com o passado, com o qual sempre estamos em dívida. Sobressaem acima de tudo, os dispositivos de construção de uma sociedade que tem uma compulsão à repetição, buscando o novo sempre a partir das mesmas velhas formas. (HORTA; BURGARELLI, 2012)
Nesse pequeno fragmento, chamo a atenção para a questão da magia. O quão necessitamos dela hoje e o quanto determinadas experiências e imagens carregam essa dimensão mágica, fantástica. O estatuto da magia foi muito explorado pelos surrealistas que
em
suas
experiências
revolucionárias
se
engajaram
numa
“empreitada
eminentemente subversiva de re-encantamento poético do mundo” (LOWIE, 2008). Os surrealistas tinham uma fascinação especial pelas tradições e formas culturais prémodernas como a alquimia, cabala, astrologia e etc. Eles eram atraídos pela carga poética e subjetiva desses rituais mágicos. Breton diferencia a magia da religião, ele a caracteriza como
conjunto das operações humanas que objetiva a dominação imperiosa das forças da natureza mediante práticas secretas de caráter mais ou menos irracional, em contraposição com a religião, onde se encontra o domínio da resignação, da imploração e das penitencias. (LOWIE ,
2008)
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Imagem 13: frame do Cine-jornal “Geração Protegida” (2012).
Imagem 14: Cine-Jonral sendo exibido na fachada digital do Espaço TIM UFMG do Conhecimento.
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A exploração do mágico, do antiquado, do fora de uso e a caracterização revolucionária desses elementos se inseriam num contexto de oposição radical ao modo de vida ordenado burguês e as condições de produção capitalista. “O plano da modernidade burguesa de desencantamento do mundo, expulsou da vida humana não apenas a magia, mas tudo o que pudesse escapar ao quadro estreito e limitado da racionalidade instrumental” (LOWIE, 2008). Segundo Peter Burguer, a premissa fundamental dos movimentos de vanguarda, mais precisamente o Dádá e o Surrealismo, era a dissolução da recém autônoma categoria “arte” e sua diluição na práxis vital. Mas a dissolução da arte, e sua configuração enquanto elemento vital da humanidade não se daria na vida ordenada burguesa. A arte transformaria a praxis vital, e nessa nova práxis, nesse novo mundo, não seria mais arte e sim vida. Que mundo seria esse? O retorno a um passado originário? A ilha longínqua e secreta que sonhamos na infância? Ou aquele dos sonhos fantásticos de Fourier? Para a construção de um novo mundo os surrealistas se atém menos as teorias de Marx e voltam seus olhos para revolucionários como Louis Auguste Blanqui e ideólogos do socialismo utópico, pré-marxista, como Charles Fourier. Fourier, socialista da primeira metade do século XIX, criticava as restrições burguesas ao desejo e as paixões e proponha uma relação igualitária entre os sexos. A manifestação irrestrita das paixões foi o cerne dos escritos do socialista:
Não sacrificai a felicidade de hoje em nome da felicidade futura. Desfrutai do momento, evitai toda associação de matrimônio ou de interesse que não satisfaça vossas paixões no mesmo instante. Por que trabalhar pela felicidade futura, se ela se sobrepõe aos vossos desejos, e, na ordem combinada, tereis apenas um desprazer: o de não poder dobrar a duração dos dias, a fim de que eles comportem o imenso círculo de gozos que tereis a percorrer.
(FOURIER, 2003.
p.5).
Além do surrealismo, Fourier atraia também a Benjamin pela associação entre a exploração do trabalho humano e a da natureza. Propondo um novo pacto entre os humanos e o meio ambiente, Fourier sonhava com um trabalho apaixonado, “constituído pela brincadeira, não mais orientado para a produção de valores, mas para uma natureza
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aperfeiçoada” (LOWIE, 2005 ). Já Louis Blanqui, revolucionário francês do século XVIII,
“adversário resoluto do positivismo e das ideologias do progresso”, afirmava: “Não sou daqueles que pretendem que o progresso seja óbvio, que a humanidade não possa recuar...não, não há fatalidade, caso contrário a história da humanidade que se escreve de hora em hora, seria toda escrita antecipadamente.” (LOWIE, 2005).
Essa aproximação entre esses revolucionários, “conspiradores profissionais”, e o surrealismo é potencializada por Walter Benjamin, que “exalta os surrealistas como os mais notáveis herdeiros da tradição libertária: “Desde Bakunin faltava na Europa uma ideia radical sobre a liberdade. Os surrealistas tem essa ideia” (LOWIE, 1992). No próprio Nadja, de André Breton, há uma passagem em que o protagonista se exalta pelas mobilizações de revolta em Paris contra a execução dos anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti. Executados nos EUA em 1927, um ano antes de Breton escrever Nadja. Portanto, Walter Benjamin e o Surrealismo tinham um interesse especial tanto por esses personagens utópicos e essas ideologias (como o anarquismo) vencidas seja pelo Estado, pelo fascismo, pelo stalinismo ou por Karl Marx, Vladimir Lenin e/ou pelo socialdemocrata alemão Karl Kautsky, como admiravam também as sociedades primitivas ou não-ocidentalizadas na busca de um passado originário que ainda estaria preservado em lugares que ainda não haviam sido absorvidos pelo modo de vida burguês. O próprio Benjamin, sob o desespero político dos anos 1940, assume, na versão francesa das teses sobre o conceito de história, sua posição de vencido. Centrado, dentro do materialismo histórico, na questão da luta de classes, “a luta até a morte de opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominantes e dominados” (fulano, 19xx), Benjamin, que em “cada novo combate dos oprimidos colocou em questão as dominações do passado”, que tentou salvar do esquecimento “cada tentativa de emancipação, por mais humilde e pequena que seja”, ao atear no passado a centelha da esperança, ilumina o presente. Ele se encontra entre os vencidos, pelos quais sempre lutou. Ao falar de sua geração, ele
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afirma: “a única imagem que ela vai deixar é a de uma geração vencida, Esse será seu legado para os que vierem.” Esse reconhecimento é também expressado nos comentários que faz no poema “Aos que vierem depois de nós” do amigo Bertold Brecht: “Pedimos àqueles que vierem depois de nós não a gratidão por nossas vitórias, mas a rememoração de nossas derrotas. Isso é um consolo: único consolo dado àqueles que não tem mais esperança de serem consolados.” Cabe a nós, Benjamin, não apenas a rememoração de suas derrotas, mas também a realização de seus anseios. As reivindicações da sua geração e das passadas não serão esquecidas. Como bem exemplifica Alain Badiou em “A hipótese comunista”, as tentativas de emancipação se tornaram um amontoado de fracassos. Por motivos diferentes sempre se fracassou, sendo o século XX o retrato mais desolador dessas derrotas. Sabemos o quão fraca é a força, o quão pequena é a chance e o quão fugaz é o momento, no entanto não se pode perder de vista a ideia, a hipótese, o princípio esperança.
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Imagem 15: “Memórias de lugar nenhum”. Serigrafia. 2011. Retirar as palavras, frases e textos de cartazes soviéticos dos primeiros anos pós-revolução de 1917.
Imagem 16: “Memórias de lugar nenhum”. Serigrafia. 2011. Retirar as palavras, frases e textos de cartazes soviéticos dos primeiros anos pós-revolução de 1917.
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Capítulo 2. Do documento à ficção O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Tróia dos sonhos. (BENJAMIN, Walter)
2.1 – Vaga-lumes, documentos e dispositivo Pier Paolo Pasolini, cineasta, poeta, escritor e revolucionário italiano, cresceu sob o regime que Benjamin mais lutou contra, o fascismo; e, combateu um outro fascismo, para ele, muito mais violento que o anterior, o regime democrata-cristão pós-1945. Assim como Benjamin, no final de sua vida Pasolini se deu por vencido. No livro “A sobrevivência dos Vaga-lumes”, Georges Didi-Huberman, centrado, entre outras coisas, na obra e na vida de dois italianos, Pasolini e o filósofo Giorgio Agamben, aproxima o conceito warbuguiano de sobrevivência ao de resistência, ou, como diria o ator e dramaturgo José Celso Martinez, re-existência. Aproximando-se do pensamento de Warburg, Pasolini acreditava no “caráter indestrutível das imagens em perpétua metamorfose” (DIDI-HUBERMAN, 2011). Fascinado pela sobrevivência de determinadas formas culturais na Itália contemporânea, Pasolini foi um estudioso das variedades de dialetos e gestos comuns a cada região do país, tendo escrito muito dos seus poemas em dialeto. A metáfora dos vaga-lumes como possuidores das pequenas luzes que se opõem aos grandes holofotes dos “conselheiros pérfidos”, ou seja, o fascismo, advém de uma carta de juventude escrita por Pasolini sobre uma noite, em 1942, que passou em companhia de um amigo:
(...)Subimos até Pievo dei Pino e vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes, que formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes(...) Assim estávamos, naquela noite; escalamos em seguida os flancos das colinas, entre os arbustos que estavam mortos, e sua morte parecia viva; atravessamos pomares e bosques de cerejeiras carregadas de ginjas e chegamos ao cume. De lá viam-se claramente dois projetores muito distantes, muito ferozes, olhos mecânicos aos quais era
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impossível escapar. (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, 2011. P. 1921).
Esses vaga-lumes vão permear toda a obra de Pasolini. Assim como eles “os homens irradiam às vezes seus desejos, seus gritos de alegria, seus risos, lampejos de inocência” (DIDI-HUBERMAN, 2011), Os filmes que compõem a trilogia da vida (Os Contos de Canterbury, O Decameron e As Mil e uma Noites) são o grande retrato dessa força da inocência, do desejo e das paixões. Se a alegria e a inocência dos vaga-lumes de Pievo dei Pino aparecem como alternativas ao fascismo de Mussolini, os gestos e os sorrisos inocentes e libidinosos dos vaga-lumes vividos por Ninetto Davoli e todos os atores do povo da Etiópia, do Iêmen, da Índia, do Nepal, etc, são as forças de oposição ao fascismo pós-mussolini. Após o fim da segunda grande guerra, o governo que se instaurou na Itália, vestia o mesmo figurino do regime derrotado; os atores eram o mesmos e os aliados também, tendo o degradante processo de genocídio cultural iniciado por Mussolini se intensificado brutalmente. O fascismo havia iniciado um processo de aculturação através da tentativa de unificação nacional, como a imposição de uma língua nacional e a proibição do uso dos dialetos.
a passagem abrupta e antinatural que a Itália viveu no período pósguerra de uma sociedade agrária para uma industrialização selvagem que, com a criação de um 'centro consumístico', operou um real genocídio das culturas locais, dos dialetos e em geral 'do ilimitado mundo agrário pré-nacional e pré-industrial'. Um mundo 'transnacional' que na realidade tinha as mesma características do Terceiro Mundo e era caracterizado por uma religiosidade atávica, cíclica, de fundo pagão, para a qual o catolicismo era uma sobreposição externa, como era o poder nacional. (OLIVEIRA NETO, 2009. p. 34)
No entanto, a perpetuação desse processo no novo regime democrata-cristão se deu de um modo ainda mais perverso. Para Pasolini, “no novo fascismo o comportamento passa a não ser dissociado da consciência, algo que ainda persistia nos tempos de Mussolini” (DID-HUBERMAN, 2011). Ou seja, nos anos 1930, por mais que houvesse uma ausência de liberdade política, de atuação, expressão e comportamento, o sujeito comum se
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opunha ao regime ao menos pela consciência. Seu modo de agir, alinhado com o que impunha o Partido Nacional Fascista era dissociado do seu modo de pensar. Já nos 1960/70, com a “ofuscante claridade dos 'novos' ferozes projetores: mirantes, shows políticos, estádios de futebol, televisão” (DIDI-HUBERMAN, 2011) e o eficaz genocídio cultural, a consciência do italiano comum passa a corresponder ao seu comportamento. “Quem manipulou e radicalmente (antropoligicamente) transformou as grandes massas camponesas e operárias em Itália foi um novo poder que me é difícil definir: mas tenho a certeza de que é o mais violento e totalitário que jamais existiu.” (PASOLINI, 2006) Primeiramente, Pasolini vai encontrar as pequenas mas intermitentes luzes dos vagalumes nos subúrbios, bairros operários, na pobreza urbana das cidades italianas, mais precisamente, de Roma. Esse será o cenário de seus primeiros filmes, como Accatone e Mamma Roma, filmes trágicos, que, assim como as mais variadas obras de Pasolini, promovem uma “conjunção assumida do arcaico e do contemporâneo” (DIDIHUBERMAN, 2011). Essa condição, para além de evidenciar a persistência do trágico na modernidade, condiz com a própria intenção de Pasolini de construir
“um cinema que se pretende mítico, não baseado na causalidade, mas crítico do paradigma de arte-entretenimento reforçado pela indústria cultural. O cinema de modelo hollywoodiano, indo na contramão do trágico, criou a linhagem dos heróis que vencem ainda quando derrotados." (OLIVERIA NETO, 2009. P. 32)
O Mito, enquanto força do passado, “fazia parte da energia revolucionária própria dos miseráveis, dos excluídos do jogo político corrente” (DIDI-HUBERMAN, 2011). Essa força do passado, não pertencia apenas ao que já passou, é uma força presente, e como afirma a personagem de “La Ricotta” (1963), uma força moderna: “Mais moderno que todos os modernos(...) eu sou uma força do passado.” Afirmação essa que o aproxima das considerações intempestivas de Nietzsche, na qual o contemporâneo é o que adere ao atual mediante uma relação anacrônica. A atualização do mito é evidenciada nos filmes Medéia, Édipo Rei, e Apontamentos para um Oréstia africana. Este último feito a partir de pesquisas realizadas na Índia e na Palestina, sendo estes, os próximos lugares que Pasolini avistará vaga-lumes. “É deste ilimitado mundo camponês pré-nacional e pré-industrial, que sobreviveu até só há poucos
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anos, que eu tenho saudades (não é por acaso que passo a maior parte possível do meu tempo nos países do Terceiro Mundo, onde ela ainda sobrevive, embora o Terceiro Mundo também esteja a entrar na órbita do chamado Desenvolvimento).” (PASOLINI, 2006) Assim como os surrealistas, o cineasta italiano cultivava uma fascinação pelas sociedades e pelo modo de vida pré-moderno, por esses “povos expostos ao esquecimento” (DIDI-HUBERMAN, 2011). O último filme da trilogia da vida, Mil e uma Noites, foi rodado em lugares como a Eritreia, a Etiópia e o Yemen, e foi nos rostos desses povos que Pasolini identificou a inocência e o desejo dos vaga-lumes: “eu me emocionei até as lágrimas com aqueles traços delicados...o sorriso explodindo em seu rosto como uma luz silenciosa” (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, 2011). Esse sorriso acompanha os atores e personagens de toda a obra de Pasolini. Em “Os 120 dias de Sodoma” (1975) ainda podemos percebe-lo no rosto dos jovens italianos nos primeiros vinte minutos de filme, mas, no decorrer dos ciclos de perversões arquitetado pelos fascistas modernos a inocência cede espaço para o desespero. Pasolini, no seu desespero político e sexual, anunciou o fim dos vaga-lumes: “devido a poluição da atmosfera, do campo, por causa da poluição da água, os vaga-lumes começaram a desaparecer, foi um fenômeno fulminante e fulgurante” (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, 2011). Concomitante, para o cineasta, desapareceu também o povo: “nas sociedades de controle não existem mais seres humanos nem comunidade viva. Há apenas signos a brandir...os lampejos de inocência desapareceram com a inocência condenada à morte” (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, 2011). Os dispositivos de poder e de controle social haviam sucumbido com a esperança emanada pelas luzes dos vagalumes.
Não é mais possível, em 1975, opor os 'corpos inocentes' à massificação cultural e comercial...a indústria cultural apossou-se dos corpos, do sexo, de eros e os injetou nos circuitos de consumo...a cultura não é o que nos protege da barbárie e deve ser protegida contra ela, ela é o próprio meio onde prosperam as formas inteligentes da nova barbárie. ( DIDI-HUBERMAN, 2011. p.40)
Para Didi-Huberman há motivos para ser pessimista, “contudo é tão mais necessário abrir
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os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes” (DIDIHUBERMAN, 2011). Para ele, o desespero de Pasolini não o permitiu ver o “espaço situado no improvável das aberturas, dos possíveis, dos lampejos”, aquilo que “aparece apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2011). Aquilo que aparece por exemplo, para as marionetes Otello (Ninetto Davoli) e Iago (Totò) no curta-metragem “Che cosa sono le nuvole?”(1967), na qual, após serem destruídas pelo público e despejadas em um depósito de lixo público, ficam maravilhadas com a beleza das nuvens movendo lentamente à céu aberto, sobre a qual Iago afirma: “dolorosa, maravilhosa beleza da criação”. Essas forças de controle exercidas pelo poder político-econômico - os ferozes projetores que são contrapostos às luzes dos vaga-lumes - são analisadas pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Agamben parte do conceito foucaultiano de “dispositivo”, que se caracteriza pelo “conjunto heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, medidas administrativas, proposições filosóficas, morais...tanto o dito quanto o não dito” (AGAMBEN, 2009). Os dispositivos têm sempre uma função estratégica, se inscrevendo sempre numa relação de poder. Ou melhor, no cruzamento entre as relações de poder e de saber. Para o pensador italiano, na genealogia foucaultina, esse conceito esta estabelecido como 'positividade', que, a partir de uma leitura dos escritos de Hyppolite sobre Hegel, se inscreve na oposição entre religião natural e religião positiva. Religião natural é aquela de “imediata e geral relação da razão humana com o divino” (AGAMBEN, 2009). Já a religião positiva é o “conjunto das crenças, dos ritos e das regras que numa determinada sociedade e num determinado momento histórico são impostos aos indivíduos pelo exterior” (AGAMBEN, 2009). A religião positiva, relacionada ao conceito de dispositivo, estabelece uma “relação de comando e obediência por meio de coerção e comportamento” (AGAMBEN, 2009). Foucault investiga a relação entre os indivíduos como seres viventes e a positividade, caracterizada como o 'elemento histórico': o “conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder” (AGAMBEN,
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2009). Ou seja, ele pesquisa os modos concretos em que os dispositivos agem nas relações, nos mecanismos e nos jogos de poder. Para além do conceito de positividade, o termo 'dispositivo' deriva do latim 'dispositio', uma tradução do grego 'oikonomía', caracterizado como “aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser” (CASTRO, 2012). Isso significa que os dispositivos devem produzir o seu sujeito. O que ocorre através de um processo de subjetivação do indivíduo, ou seja, da relação entre os seres viventes e os dispositivos. Agamben propõe uma classificação geral dos seres em duas classes: os seres viventes e os dispositivos. A função dos dispositivos é precisamente, a de capturar o vivente, dando lugar, por meio dessa captura, aos processos de subjetivação e de dessubjetivação. Nesse sentido, afirma, 'não seria errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos'. (CASTRO, 2012. p. 164)
Agamben alerta para a potência dos dispositivos na fase atual do capitalismo, que promovem o “desaparecimento de sujeitos e identidades reais (movimento operário, burguesia e etc) e o triunfo da 'oikonomia', isto é, de uma pura atividade de governo que visa somente à sua própria reprodução” (AGAMBEN, 2009). Um diagnóstico desolador como esse levou Pasolini a anunciar o fim do povo, da inocência e dos vaga-lumes. Didi-huberman aproxima essa postura desesperada do cineasta à visão apocalíptica do seu colega filósofo, que afirma uma destruição radical, e depois constrói uma transcendência. Para ele, tanto Pasolini no final de sua vida e Agamben se localizam sob “a luz ofuscante de um espaço e um tempo apocalípticos” (DIDI-HUBERMAN, 2011). “Na contramão das pequenas sobrevivências e experiências as visões apocalípticas nos propõem a grandiosa paisagem de uma destruição radical para que aconteça a revelação de uma verdade superior” (DIDI-HUBERMAN, 2011). No entanto, para além dessa visão apocalíptica evidenciada por Didi-Huberman, Agamben propõe outra forma de lidar com a sociedade. Sobre o processo de controle promovido pelos dispositivos ele afirma que “não se trata nem de suprimir os dispositivos nem de imaginar-se ingenuamente um bom uso, mas de profaná-los” (fAGAMBEN, 2007).
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Imagem 17: “Sapato anarquista” (2013). Lito-offset. Produzido para a Publicação “Nuvem”, o trabalho consistiu na elaboração de uma nota (“Exemplar de sapato...) para uma ficha policial que continha a imagem de uma bota, datada dos anos 1920.
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2.2. Subversão e profanação.
Em “O elogio da profanação”, Agamben afirma que profanar significa desativar os dispositivos, “a fim de tornar possível um novo uso”.
O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reinvindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez 'política' seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome do livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos de poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas. Por isso tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de 'profanação' que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem. (Agamben, 2007. p.11.)
Para profanar, ou seja, para desativar os dispositivos é necessário conhecê-los bem. Não apenas o que os constitui como foi descrito por Foucault e por Agamben, mas também como ampliá-los, dejalojá-los, ou, como propõe o filósofo italiano, promover o jogo, brincar com eles. Em sua “Arqueologia do Saber”, a partir de uma análise do documento, do arquivo, do discurso e do enunciado, Foucault nos fornece material para pensarmos a materialidade documental (imagens, livros, textos, narrações, registros, atas, objetos, costumes e etc) de uma forma distinta da que ela nos é apresentada. O documento “não é o instrumento de uma história que significa memória, mas sim uma maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa” (FOUCAULT, 2008). Para Foucault, o problema do documento é inicialmente um problema de uma concepção de história geral clássica. Dialogando com as questões colocadas no capítulo anterior, o filósofo francês caracteriza essa história clássica como uma abrigo previlegiado, na qual “a história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido” (FOUCAULT, 2008).
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Para ele, Karl Marx promoveu uma mutação epistemológica da história incompatível com a intenção clássica de “fazer da análise histórica o discurso do contínuo” (FOUCAULT, 2008). O filósofo alemão teria promovido a desintegração da forma tranquilizadora do idêntico. Ao pensar a diferença, descrever os afastamentos e as dispersões, Marx rechaça um sistema de pensamento no qual o tempo é concebido em termos de totalização. A partir daí, Foucault propõe uma abertura viva da história, que use das descontinuidades, revele os jogos das diferenças, problematize as séries, os recortes e as formas singulares de permanência.. Essa abertura se daria através da análise e do uso da materialidade documental:
“é preciso por essas noções em questão, desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde reinam... inquietar diante de recortes e agrupamentos que nos são familiares.” (FOUCAULT, 2008. p. 24).
Ao tratar das questões relativas ao enunciado e a formação do discurso, Foucault propõe uma série de questionamentos críticos que servem para evidenciar a profundidade de tal material: “segundo que regras um enunciado foi construído? Segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? Como apareceu um determinado enunciado, e não outro no lugar?” (FOUCAULT, 2008). Para ele, no contato com a descrição dos acontecimentos discursivos é necessário
“reconstituir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmuramente inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos, de restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas escritas e, às vezes, as desamarra.” (FOUCAULT, 2008. p. 31).
A existência do documento, do enunciado, e dos demais objetos de discurso que compreendem os dispositivos ocorrem sob as “condições positivas de um feixe complexo de relações estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de
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comportamento” (FOUCAULT, 2008), etc. Sendo que essas relações não estão presentes na constituição interna do objeto mas no que lhe “permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade” (FOUCAULT, 2008). A complexidade inerente ao material documental encontrado nas pesquisas de arquivo exige uma relação de cuidado e ousadia com esses objetos. O cuidado de não utilizá-los de modo gratuito, ingênuo, aprofundando no seu estudo através do que está por trás do enunciado; e a ousadia de potencializar relações à primeira vista estranhas, de brincar com o arquivo, adentrando na própria desorganização e falta de hierarquia desse material. Usar do imaginário enquanto uma forma de se posicionar politicamente, pois “em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política” (DIDI-HUBERMAN, 2011). Iniciei pesquisas em arquivos a partir do interesse em saber como havia sido a repercussão de grandes acontecimentos da história global no interior de Minas Gerais. Comecei então pelos jornais arquivados na Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa e me surpreendi com a ausência de informações sobre a queda das bombas atômicas no Japão nos periódicos de Uberlândia e Diamantina, minha cidade natal. Adentrando nas questões relativas a veracidade histórica, aos problemas de uma história geral e a imposição de um trauma, produzi o trabalho “07 de agosto de 1945”, que consta de várias impressões em gravura e metal e em off-set da imagem traumática da explosão da bomba em Hiroshima sobreposta nas imagens dos jornais que não os noticiaram. Cada gravura possui uma diferente relação de saturação entre o preto da explosão e da matéria do jornal e o branco do papel, sendo algumas remetendo ao excesso, o transbordamento, a explosão e outras ao apagamento. Na procura desses jornais, me chamou a atenção o enunciado do Estado de Minas sobre a destruição da cidade japonesa: “Desencadeada contra o Japão a força da qual o sol toma a sua potência”. Ainda focado na ideia do apagamento, do trauma e relacionando isso com a condição de alienação do sujeito em uma era de catástrofe, criei o trabalho “Um lugar ao sol”, uma série de impressões sobre uma faixa de 2,0 x 5,0 metros de papel de arroz. As impressões eram da frente do jornal Estado de Minas e do jornal britânico
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Imagem 18: “07 de Agosto de 1945”(2011). Gravura em metal. 60X100cm.
Imagem 19: “Um lugar ao sol”(detalhe)(2010). Transferência sobre papel de arroz. 100X300cm.
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Imagem 20: “Um lugar ao sol”(detalhe)
Imagem 21: “Um lugar ao sol”(detalhe)
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Imagem 22: “11 de Setembro “(detalhe) (2011). Impressão digital.
Imagem 23: “11 de Setembro “(detalhe) (2011). Impressão digital.
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Brainerd Dayli News do dia 07 de agosto de 1945. As imagens que ilustravam a principal notícia dos jornais foi substituída respectivamente pela imagem da pintura de Edward Hopper “People in the sun” e uma imagem de espectadores de teste nuclear. Questões relativas a história e a imposição de um trauma também foram exploradas no trabalho “11 de setembro”, no qual apresentei copiais de jornais noticiando outros “11 de setembros” que não o de 2001, quando o prédio do World Trade Center sofreu ataque terrorista. Os jornais expostos repercutiam os acontecimento de 11 de setembro 1919, quando os EUA invadiram Honduras; de 11 de setembro de 1969, quando houve a revisão da Lei de Segurança Nacional no Brasil, que estendeu a pena de morte a situações de guerra revolucionária e subversiva, além disso o jornal noticiava o encontro dos presidentes Richard Nixon dos Estados Unidos e Costa e Silva do Brasil, bem como a denúncia feita pela Argentina de um plano de subversão global da América Latina; e 11 de setembro de 1973, dia em que, sob apoio dos EUA, o presidente eleito Salvador Allende foi deposto do Chile e iniciou-se a ditadura de Auguste Pinochet. Não tendo encontrado repercussão em periódicos sobre a invasão americana em Honduras, a notícia foi criada e inserida por mim em um jornal da época. As pesquisas em arquivos foram incluindo outros elementos para além do jornal, como a imagem, o vídeo, o discurso e o documento em si. Tendo a subversão do documento e a ficcionalização da realidade sido elementos demasiadamente explorados na exposição “Arquivo de Obras em Acabamento”. Sobre a experiência com esse material e suas potencialidades de uso, escrevi o seguinte fragmento textual, publicado na própria exposição:
As pesquisas em arquivos e documentos sinalizam a incessante procura de um entendimento e formulação de um pensamento crítico no que diz respeito aos elementos constitutivos da nossa política, história, sociedade e modo de inserção no mundo enquanto sujeito. Ser sujeito subtende ter passado por um processo de subjetivação, ou seja, o embate entre o ser e o conjunto de práticas, de saberes, de medidas, e de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. Seríamos o resultado dessa relação entre seres viventes e os dispositivos que permeiam nossa existência? Como desativar ou subverter esses dispositivos? O documento em si apresenta formas de permanência, de visibilidades, espontâneas e organizadas, e, no seu uso enquanto objeto de estudo é um desafio identificar o jogo estabelecido entre as imagens e a matéria humana
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que atingiam e ainda atingem. Esses elementos identificados nos documentos, relativos aos dispositivos discursivos, contrastam com a total falta de hierarquia do arquivo. Submergir no universo do arquivo é constantemente se aproximar e se afastar de qualquer tipo de categoria, é lidar com o fragmentado, com partes imprecisas de um todo que nunca pode ser traçado. A fascinação com o arquivo e o ímpeto de lidar com imagens do passado não reside apenas na compreensão dessa rede que constitui os dispositivos, mas também nos elementos de sobrevivência, na restituição dos “timbres de vozes inaudíveis”. Naquilo que resiste perante todos os dispositivos de constituição do poder e do sujeito sob o poder. Ou seja, apesar de tudo, encontrar os pedaços de esperança. Aquilo que pode ser simplesmente uma paisagem, um gesto, uma palavra, um rosto ou um sorriso.
Nos arquivos, nem sempre encontramos aquilo que procuramos, mas muitas vezes nos encontra aquilo que nos procura. Se tratando de todo um universo heterogêneo e fragmentado, de pedaços de realidade, memória e história que vai do pessoal ao universal, em qualquer visita a arquivos públicos, uma gama de materiais vai nos interessar. Pesquisando a história da construção de Belo Horizonte através dos arquivos da Comissão Construtora da Nova Capital, encontramos no Museu Abílio Barreto, várias pranchas de aquarela contendo uma tipologia de casas para operários, projetos de residências para os futuros operários de Belo Horizonte. Se tratava de ilustrações de casas tipicamente vinculadas ao padrão “cidade-jardim”, um dos modelos de cidade que inspiraram Belo Horizonte. Vários questionamentos começaram a surgir a partir do contato com essas pranchas e com outras documentações da construção da nova capital, como: “O que foi feito com o que havia antes de Belo Horizonte, ou seja, o Curral Del Rey? Qual dinâmica de vida foi alterada para a emergir a nova capital? Sobre quais ruínas amontoou Belo Horizonte, e sobre quais ruínas surgiu e perpetuou o operariado? Essas problematizações estão de alguma forma inseridas na série de gravuras “Typos de Casas para Operários”, na qual o modelo de casas para operários da
Comissão
Construtora da Nova Capital foi subvertido, e as imagens inseridas são na maioria relativas a ruínas, a residências tipicamente rurais e/ou das casas e estabelecimentos que foram destruídas para a construção de Belo Horizonte. A série produzida em lito-offset compõem cerca de 30 modelos distintos de “typos de casas para operários”.
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Imagem 24 e 25: Typos de casa para operรกrios. 2012. Impressรฃo em lito-offset. 30X34cm.
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Imagem 26 e 27: Typos de casa para operรกrios. 2012. Impressรฃo em lito-offset. 30X34cm.
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Os questionamentos acerca da construção da nova capital, e sua relação com uma ideologia republicana positivista também foi explorado na série de gravuras, também em lito-offset, “Cadeia República”, na qual, a partir de uma série de imagens frontais de cadeias públicas inserimos a sílaba “re” em frente da palavra “pública” inscrita nos edifícios que localizam as penitenciárias. No conjunto da exposição, esse trabalho estabelece relação com os jornais anarquistas, a bandeira da “Cecília” e as demais propostas que buscam reativar uma memória reprimida. Uma outra cidade, inventiva, é apresentada na exposição através de souvenires ilustrados com imagens de projetos de construções para Belo Horizonte que nunca foram realizados. Projetos de caráter fantástico como o Cassino e o Observatório que deveriam compor o Parque Municipal, ou com uma dimensão macabra como a catedral, que por algum motivo não foram feitas. Muitas vezes, o próprio documento oficial nos apresenta um modo simbólico, inventivo e fantástico de se lidar com a cidade. Em pesquisa nos arquivos de tombamento dos edifícios da rua Caetés e adjacentes, localizado na Diretoria de Patrimônio Cultural (DIPC), tivemos acesso a um parecer de tombamento que compreende a cidade de uma forma aberta, expansiva e complexa. As anotações que fizemos desse parecer foram assim publicadas em forma de fragmento no “Arquivo de Obras em Acabamento”:
Um subterrâneo existencial participa da vida coletiva urbana. A cidade não está no que nela é visível, o invisível é a verdade. O simbólico pertence a ordem do invisível, do imaginário, do onírico, do lúdico, do fantástico. E o centro da cidade, com sua multiplicidade de possibilidades, pode-se apresentar como espaço de representação de tudo isso, tornando-se um palco onde o indivíduo é, simultaneamente, ator e espectador e onde tudo pode acontecer. Teatro do espontâneo – lugar da festa, lugar da simultaneidade, do imprevisível, que o levam a efervescência, ao sonho e à embriaguez. A centralidade acontece nesse momento mágico, nessa passagem que arranca o urbano de seu contexto estritamente instrumental e funcional para ir além e encontrar o espaço imaginário. Espaço imaginário – reino do possível – espaço indutor da sociabilidade O imaginário...através de personagens secretos, organizam a ficção da cidade, a memória que os habitantes constroem diariamente de acordo
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com as práticas sociais, interações e deslocamentos. A cidade adquire pregas através do tempo, encontrando-se estriada de faixas pretas semelhantes a certas regiões noturnas mal iluminadas de onde a vida parece escapar....Os nomes de ruas, quarteirões, sobrenomes, formam constelações cintilantes onde se engancham em associações de lembranças. Centro - fantasmas do passado e imperativos do presente A arquitetura possui uma escrita, representada pelos discursos, e é o palco do espetáculo urbano. A centralidade acaba por definir o utópico e é por ele definida – é o que não tem lugar, mas que o busca em um determinado espaço tempo.
Essas anotações foram utilizadas também como material para um dos episódios dos “Cine-Jornais”, exibidos na fachada digital do Espaço TIM UFMG do Conhecimento. Mesclando as anotações com outros escritos como trechos dos Cantos de Maldoror (LAUTRÉAMONT, 1986) e das Passagens (BENJAMIN, 2009), construímos um cinejornal que lidasse com o caráter fugaz e intermitente das imagens. Se apropriando das filmagens que falharam, seja por defeito da câmera, falta de foco, abertura do diafragma ou por ausência de luz, produzimos uma narração que acompanhada de uma constelação de imagens e situações alusivas a essa complexa relação com o tempo, a cidade, a história e a imagem.
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Imagem 28: “Cadéia República” (2012). Impressão em lito-offset. 50 x 62 cm.
Imagem 29: “Souvenirs (detalhe). Impressão digital sobre porcelana. Projeto de Observatório para o Parque Municipal de Belo Horizonte
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Imagem 30: frame do cine-jornal “Apontamentos sobre relatório de tombamento” (2013)
Imagem 31: frame do cine-jornal “Apontamentos sobre relatório de tombamento” (2013)
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2.3 – Criando ex-ficções
A memória, o simbólico e o passado não se encontram apenas em arquivos públicos e museus, elas fazem parte da cidade, da sociedade e do cotidiano. O passeio no centro da cidade é sempre suscetível a surpresas, ao impensado. Nele encontramos fragmentos de um passado, ainda vivo, mas imerso cada vez em camadas mais profundas. A cidade é permanentemente destruída e construída, mas algumas memórias, passados e presentes insistem em sobreviver. No centro de Belo Horizonte, buscamos informações e mapeamos os locais que, outrora, foram cinemas. Hoje, o Cinema Leão XII, na rua dos guaranis, é uma associação de trabalhadores cristãos que ainda guarda os antigos instrumentos da orquestra de fosso do cinema; o local do antigo Cine Metrópolis, que foi demolido, na rua Goiás, é ocupado por uma agência do Banco Bradesco; Cine Acaiaca e o Cinema Arte, ambos na avenida Afonso Pena, foram transformados em igrejas evangélicas; do Cine Candelária, na praça Raul Soares, só resta a fachada tombada pelo DIPC, o resto é estacionamento; Também se tornou estacionamento o Cine México na rua Curitiba; o Cinema Glória na Afonso Pena é um conjunto de lojas; o Cine Palladium, na rua Rio de Janeiro, foi reformado para funcionar como teatro, compondo complexo cultural do Sesc Palladium; e o Cine Teatro Brasil na Praça Sete está sendo reformado e voltará a ser um cinema-teatro. Desses cinemas, tiramos fotos frontais, relativas ao lugar específico aonde o filme era projetado. Fotografias essas que devem ser apresentadas através de projetores de slide, acompanhados de uma trilha sonora específica. Após longo tempo de exposição de um imagem através desses projetores, ela vai se apagando, até desaparecer. Na procura de apreender o visível e o invisível na cidade, nada chama mais a atenção que o já explicitado processo de destruição e construção. No livro das Passagens, Benjamin explana sobre a importância do despertar crítico da consciência coletiva para esses processos. A partir de uma inversão na visão histórico, ele propõe que o “ocorrido”, antes considerado um ponto fixo no qual o presente deveria se aproximar, se torne o “irromper da consciência desperta” (BENJAMIN, 2009). Ou seja, os fatos, presentes ou passados, acabam de nos tocar e fixá-los é a tarefa recordação.
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Imagem 32: Cine Leão XIII. Fotografia de locais que já foram cinema.
Imagem 33: Cine México. Fotografia de locais que já foram cinema.
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Recordar é despertar criticamente para o saber “ainda-não-consciente do ocorrido” (BENJAMIN, 2009). Adentrando nesse processo, Benjamin compara a relação do sonho do adormecido com o sonho coletivo. A consciência coletiva vive um sonho profundo e no seu interior “os ruídos e sensações de sua própria entranha, produzem...imagens delirantes e oníricas que traduzem e explicam tais sensações” (BENJAMIN, 2009). É necessário então, interpretar o passado e o presente como a consequência de suas visões oníricas. Essas visões oníricas, os ruídos e as sensações, são, no sonho coletivo, elementos como a arquitetura e a moda:
Arquitetura, moda, até mesmo o tempo atmosférico, são no interior do coletivo o que processos orgânicos, o sentimento de estar doente ou saudável são no interior do indivíduo. E, enquanto mantém sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração e etc. Permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história. (BENJAMIN, 2009. p. 434).
Analisar o passado através de suas visões oníricas é o que Benjamin realiza no livro das Passagens ao tratar da Paris do século XIX. A reestruturação higienista da capital francesa realizada no século XIX pelo Barão de Hausmann foi parâmetro e modelo para o engenheiro Aarão Reais no planejamento e construção da capital mineira. Nos seus estudos, ao citar Sigfried Giedion, Benjamin afirma que “a construção desempenha no século XIX o papel do subconsciente” (BENJAMIN, 2009), citação de uma atualidade incrível principalmente se transportada para as terras brasileiras. Vivendo nessa paisagem onírico de contínua construção da cidade, produzimos, eu e Luísa Horta, o trabalho “Biblioteca lítica”. Durante alguns meses nós coletamos pedras, pedaços de casas demolidas de Belo Horizonte, criando assim um catálogo de ruínas. Essa pedras são dispostas em uma mesa com indicação do endereço do local em que ela foi retirada. Pequenos aparelhos sonoros reproduzem gravações de sons de construções/desconstruções da cidade e também de singelos sons de processos de transformação, mutação, abalo da natureza. Buscando a ampliação da percepção do tempo, confrontando vários tempos heterogêneos, contrapomos essas imperceptíveis vibrações do tempo, erosões rochosas,
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pequenos abalos de terra, o nascer da água nas rochas etc, à esses processos inconscientes de transformação da paisagem da cidade, que, segundo Benjamin, seriam tão naturais como o processo de digestão do ser humano. Então, localizar a história dessas casas é localiza-las politicamente. O despertar não diz respeito apenas a elementos do presente mas também ao que passou, no qual “o passado adquire o caráter de uma atualidade superior graças à imagem com a qual e através da qual é compreendida” (BENJAMIN, 1987). Portanto, processos de atualização, subversão e/ou ficcionalização serviriam como um despertar crítico para o material documental submerso no mundo do arquivo. A relação entre um conteúdo ficcional e documental é presente na obra de Sebald. Sua história de vida pessoal se confunde com a dos personagens, e os fatos e acontecimentos relatados tratam de uma construção ficcional a partir da memória. “Sebald usa suas leituras, memórias, imagens e os cacos do passado livremente, sem preocupar-se em dizer de onde os tirou” (BUSSIUS, 2010). Esse modo de construção narrativa é potencializado na introdução do capítulo “O dr. Henry Selwin” no livro “Os Emigrantes”, que diz: “E o que resta a memória não destrói.” (SEBALD, 2002). Partir do documental para o ficcional foi também o caminho do cineasta Krzysztof Kieslowski. Após ter uma carreira consolidada como um documentarista composta por cerca de trinta produções audiovisuais, o cineasta polonês afirmou não enxergar mais sentido em fazer documentários, partindo então para os filmes de ficção. No entanto, seria possível para Kieslowski construir obras que aprofundassem tanto nas relações humanas, no desejo, nas paixões, nos tabus, na violação e nas forças ocultas presentes nessas relações, como é feito nos filmes que compõem o Decálogo, sem antes ter tido a experiência com o documentário? O Decálogo, série de dez média-metragens relativas aos dez mandamentos bíblicos, busca pensar a história do homem que, por achar dizer se orientar nesse mundo, não sabe como viver, ou, como analisa Slavoj Zizek, do homem em seu permanente questionamento ao Outro, “o que vocês esperam de mim?(ZIZEK, 2009)”
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Imagem 34: “Biblioteca lítica” (2012)
Imagem 35: “Biblioteca lítica” (detalhe) (2012).
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A profundidade e os questionamentos demasiados humanos potencializados no Décalogo tem uma forte relação com pequenos documentários de Kiéslowski como “Gadajazce Glowi” em que seres humanos de todas as idades, de um bebê a uma centenária respondem as seguintes perguntas: “quantos anos você tem? Quem é você? O que você espera ou deseja do/no mundo?”. Além desse, é possível citar outros documentários como “Refren” no qual assistimos ao cotidiano de uma agência funerária, ou “Z Punktu Widzenia Nocnego Portiera” onde nos é apresentada a vida de um guarda, indivíduo símbolo da repressão e da ordem estatal que nos é confrontado com suas emoções, desejos, etc. Zizek tenta compreender a desistência de Kieslowski em fazer documentários. Para ele
a primeira ideia de Kiéslowski foi combater com documentários a falsa representação no cinema polonês (a ausência da imagem adequada da realidade social); depois ele percebeu que, quando abandonamos a falsa representação e abordamos diretamente a realidade, perdemos a própria realidade, razão pela qual abandonou o documentário e entrou na ficção. (ZIZEK, 2009. p. 26).
No entanto, não seria o próprio documentário, ou o documento, uma ficção? Os documentários do cineasta francês Chris Marker ajudam a pensar essas questões relativas ao documental e o ficcional. Em “O túmulo de Alexandre”, Marker produz um documentário dedicado a memória do cineasta soviético Alexander Medvedkine, estendendo para uma análise subjetiva dos 83 anos de regime soviético. Medvedkine é conhecido pelo seu filme “A felicidade”, no entanto, a maioria de suas outras realizações foram perdidas, censuradas e/ou não conservadas. Portanto, a empreitada de Marker já carrega em si o paradoxo de trabalhar com a produção de um cineasta os quais a maioria dos trabalhos nós nunca vimos, e provavelmente, não veremos, mesmo os contemporâneos de Medvedkine não tiveram tanto acesso a esses filmes. Ou seja, como afirma Jacques Rancière, o trabalho de Marker não será o de lembrar ou conservar a história e a memória de Medvedkine e sim de criá-las.
A memória é uma obra de ficção. A boa consciência histórica pode, aqui, denunciar novamente o paradoxo e opor a sua paciente busca da
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verdade às ficções da memória coletiva, que forjam os poderes em geral e os poderes totalitários em particular. Mas a “ficção”, em geral, não é a bela história ou a vil mentira que se opõem à realidade ou que se querem fazer passar por ela. Fingire não significa necessariamente fingir, mas forjar. A ficção é a prática dos meios de arte para construir um “sistema” de ações representadas, de formas agregadas, de signos que se respondem.
Desse modo, para Rancière, não há equívoco em usar o documentário para repensar a história a partir de uma outra configuração das imagens e da memória:
O cinema documentário, desembaraçado por sua própria vocação para o “real” das normas clássicas de conveniência e de verossimilhança, pode, mais do que o cinema dito de ficção, jogar com as concordâncias e discordâncias entre vozes narrativas e as séries de imagens de época, de proveniência e significados variáveis. Ele pode unir o poder da impressão, o poder de enunciação que nasce do encontro do mutismo da máquina e do silêncio das coisas, com o poder da montagem – em um sentido amplo, não técnico do termo – que constrói uma história e um sentido pelo direito que se atribui de combater livremente os significados, de 're ver' as imagens, de encadeá-las de outro modo, de restringir ou de alargar sua capacidade de sentido e de expressão.
Nessa forma de se entender o filme documentário como colocado por Rancière, a montagem, em sentido amplo, ou seja, não apenas relativa ao sentido técnico, seria um dos principais conceitos para a construção de outro modo de olhar para a imagem e para a história.
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Imagem 36: “A bandeira” (detalhe) (2011). Impressão digital. Reconfiguração de frames do filme “Camera-Olho” de Dziga Vertov.
Imagem 37: “Coque de Ordem” (detalhe) (2012). Compilação de fotografias do início do século XX de grupos de crianças. Esse trabalho compõe o Arquivo de obras em acabamento.
Imagem 38: “Coque de Ordem” (detalhe) (2012). Compilação de fotografias do início do século XX de grupos de crianças. Esse trabalho compõe o Arquivo de obras em acabamento.
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Imagem 39: “Audire” (2011). Instalação e vídeo produzido juntamente com os artistas Maíra Fonte Boa e Jairo dos Santos Pereira.
Imagem 40: “Audire” (2011). Apresentado na exposição Táticas Heterogênas/ Aproximações Entrópicas no Festival de Inverno de Ouro Preto de 2012.
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Capítulo 3. A montagem como arte da memória
Meu Pai entra sorrindo e seus pés não fazem barulho na escada. Minha Mãe chega em silêncio e tira duma jarra um molho de cravinas translúcidas para pôr no coque. A vida recomeça como a projeção (no vácuo!) de um filme do cinema mudo. (Pedro Nava em “O Baú de Ossos”)
Em “Teoria da Vanguarda”, Peter Burger introduz o conceito de montagem como uma característica da obra de arte de vanguarda. A montagem, que, para Burger, “pressupõe a fragmentação da realidade e descreve a fase da constituição da obra” (BURGER, 2008), seria uma categoria que determina um aspecto do conceito benjaminiano de alegoria. A investigação de Benjamin acerca da alegoria corresponde à análise da forma artística do drama trágico alemão, na qual entende-se a alegoria em oposição ao símbolo no classicismo: “Não é concebível uma oposição mais crassa ao símbolo artístico, à imagem da totalidade orgânica, do que o fragmento amorfo, a forma em que se apresenta a imagem escrita da alegoria”(BENJAMIN, 2011). Peter Burguer desmonta o conceito de alegoria em quatro elementos:
1. O alegorista arranca um elemento à totalidade do contexto da vida. Ele o isola, priva-o de sua função. Daí ser a alegoria essencialmente fragmento e se situar em oposição ao símbolo orgânico. 'Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína(...). A falsa aparência da totalidade se extingue'. 2. O alegorista junta os fragmentos da realidade assim isolados e, através desse processo, cria sentido.(...) 3. Benjamin interpreta a atividade do alegorista como expressão da melancolia.(...) 4. Também a esfera da recepção é considerada por Benjamin. A alegoria, que pela sua natureza é fragmento, apresenta a história como decadência: 'a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como protopaisagem petrificada. (BURGER, 2008. p.141,142)
Burger coloca a montagem em oposição ao tipo de representação vigente desde o renascimento, caracterizada por ele como orgânica, na qual a intenção é criar uma impressão unitária da obra de arte, procurando tornar irreconhecível seu caráter de objeto produzido. Ele localiza historicamente o Cubismo como o primeiro movimento que destrói com maior consciência esse sistema de representação. No entanto, seria necessário
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cautela ao determinar as intenções de efeito estético nas primeiras obras que utilizam a montagem, pois “os fragmentos da realidade continuam inteiramente submetidos a uma composição imagética que se esforça por criar um equilíbrio dos elementos individuais” (BURGER, 2008). O conceito de montagem estaria relacionado com os elementos 1 e 2 extraídos por Burger do conceito benjaminiano de alegoria. O autor traça também uma aproximação do comportamento melancólico do alegorista, caracterizado como “uma fixação no singular, que tem de permanecer insatisfatória porque não lhe corresponde nenhum dos conceitos gerais de conformação da realidade” (BURGER, 2008), com o conceito surrealista do ennui, traduzido como enfado, fastio. Burger diferencia a montagem na literatura e nas artes plásticas, conformada como um princípio artístico, e no cinema, caracterizada como um procedimento técnico inerente ao próprio meio. No entanto, ele assume que esse procedimento técnico pode ser menos ou mais potencializado por cada cineasta. Pensando na dimensão crítica da montagem no cinema, Krakauer afirma que “as imagens das atuações cinematográficas, se configuradas de maneira diferente, ganhariam uma maior sensibilidade visual” (KRAKAUER apud DIDI-HUBERMAN, 2008). Para além do rompimento com a representação, Burger explora a mobilização política, ou maior sensibilidade visual da montagem ao adentrar em movimentos como surrealismo, dadaísmo, futurismo italiano e construtivismo russo. Ele assinala, por exemplo, a ausência de uma conexão narrativa entre os acontecimentos em Nadja de Breton, pois pela lógica narrativa, o último incidente pressuporia os precedentes; as fotomontagens dadaístas como alegorias políticas; e o futurismo italiano e o construtivismo russo como exemplos de que a montagem não traz em si um determinado posicionamento ideológico, ou seja, é problemático querer atribuir a um procedimento um significado fixo. Já as fotomontagens de John Heartfield atuam como imagens para leitura, promovendo uma crítica social administrada pelo meio da arte. Mobilizando politicamente a antiga técnica do emblema, os trabalhos de Heartfield seriam, segundo Burger, de clara formulação política e configurariam um momento antiestético. A potencialização da montagem no cinema se deu de uma maneira mais intensa na vanguarda russa. Almejando romper com a narrativa literária, dickensiana, do cinema
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norte-americano (centrado na figura de D.W. Griffith), os cineastas russos, entre eles Sergei Eisenstein, Dziga Vertov e Alexander Medvedkine, propuseram outra construção do olhar, essa, equivalente ao novo tipo de sociedade a ser construída. Nos já citados estudos de Jacques Rancière sobre o documentário “O túmulo de Alexandre”, de Chris Marker, há uma clara aproximação entre memória e montagem. A constituição da memória é semelhante ao material utilizado na montagem, ou seja, o fragmento da realidade. A memória é um certo arranjo de signos, de vestígios, de ruínas. Como afirma, Didi-Huberman, ao tratar do trabalho e da vida de Bertold Brecht, em “Cuando las imagenes toman posicion”: “se ver nos permite saber e, inclusive, antecipar algo do estado histórico e político do mundo, é que a montagem das imagens compreende sua eficácia como arte da memória” (DIDI-HUBERMAN, 2008) Didi-Huberman propõe um olhar sobre o trabalho de Brecht a partir da ótica do exilado, ou seja, dos 15 anos de exílio do dramaturgo, período correspondente a consolidação do nazi-fascismo na Alemanha e do advento da Segunda Guerra Mundial. Conceitos como memória, dialética, montagem, distanciamento, bem como o estatuto da imagem são desenvolvidos a partir de um olhar sobre os diários de exílio de Brecht e o livro Kriegsfibel, constituído de recortes de jornais e pequenos poemas, publicado por ele após voltar do exílio. Enquanto esteve exilado, Brecht cultivou o que chamou de Diário de Trabalho, no qual escrevia sobre sua vida pessoal, seu trabalho e sobre os acontecimentos mundiais:
o teatro de uma guerra que deixa sobre sua mesa de trabalho, a história singular de sua própria vida errante, as histórias inventadas de sua arte de dramaturgo, e a história política que ocorre em todo mundo, longe, mas que o pega tão de perto, ao chegar através desses jornais que explora, recorta e recompõe a cada dia, obstinadamente. (DIDI-HUBERMAN, 2008. p.23)
Brecht viveu nesse período em países como Finlândia, Suécia, Dinamarca e Estados Unidos. Com dificuldade com os idiomas e dada a escassez de notícias e informações sobre os acontecimentos na Alemanha, o único modo que encontrou de ficar a par do ocorrido era a partir das imagens dos jornais. Portanto, ao lado de um relato em que inicialmente se declara atacado por uma forte gripe e depois expõe ideias para uma nova
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peça de teatro, há uma foto de dois soldados vigiando pessoas em uma cidade e a seguinte legenda: “Alemães ocupam a Dinamarca e atacam a Noruega” (BRECHT, 22). Na página seguinte, o dramaturgo já fugiu da Dinamarca e se encontra na Finlândia, “deixando para trás móveis, livros e etc.”(BRECHT, 2002) O Diário de trabalho questiona o “problema da historicidade no contexto de toda questão de intimidade e de atualidade” (HUBERMAN, 2008), buscando “de uma forma aberta capaz de romper as fronteiras entre o privado e a história, a ficção e o documento, a literatura e o resto” (HUBERMAN, 2008). É a junção de acontecimentos separados que, todavia provêm de uma mesma história. Tendo como assunto central de sua preocupação artística a desordem do mundo, Brecht pratica um rompimento cronológica com uma série de anacronismos provenientes da montagem e de construções hipotéticas sobre o passado e o presente. Ao tecer comentários sobre uma peça que estava escrevendo sobre Júlio César, ele afirma:
Escrevendo César começo a entender que não devo acreditar nem por um momento que as coisas tinham de acontecer como aconteceram. Que, digamos, a escravidão, que tornava a política uma impossibilidade para a plebe, não podia ser abolida. Procurar razões para tudo o que aconteceu torna fatalistas os historiadores. (...)Toda concepção de um César é inumana. Por outro lado é impossível demonstrar inumanidade sem ter alguma ideia de humanidade. E não posso simplesmente deScrever as coisas a partir da situação de hoje. Tenho de fazer com que a situação alternativa pareça possível quando vista da perspectiva daqueles tempos também. Um mundo frio. Um trabalho frio. E no entanto posso ver, nos intervalos da redação ou enquanto escrevo, como chegamos tão baixo no plano humano. (BRECHT, 2002. p.8)
Enquanto busca alternativas para o passado, nos intervalos, Brecht lamenta o presente. Em um primeiro olhar, no diário de trabalho, as relações aparentam estar todas quebradas. “Contrastes, rupturas, dispersões, tudo se quebra para que possa aparecer o espaço entre as coisas, a relação não-advertida que as junta, mesmo que seja relação de distância, inversão, crueldade, sem-sentido” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Isso seria o que Benjamin caracteriza como uma escritura de montagem documental: “a verdadeira
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montagem parte do documento” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Segundo Benjamin, Brecht “nunca trabalhava sem ter um posicionamento, nunca tinha um sem antes procurar conhecimento, nunca buscava ter conhecimento sem ter diante dos olhos os documentos que lhe pareciam apropriados” (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2008). No entanto, o dramaturgo ”não via nada sem desconstruir e logo remontar, expondo melhor o material visual que havia escolhido” (BRECHT apud DIDI-HUBERMAN, 2008). Prática que nos leva a todo um questionamento da montagem, enquanto uma outra forma de olhar, de enxergar o mundo. Para Ruth Bernau, colega de Brecht, “um documento tem ao menos duas verdades, a primeira sempre ineficiente” ( BERNAU apud DIDI-HUBERMAN, 2008). Afirmação que coloca a necessidade de recortar as imagens e configurá-las de uma maneira distinta, levando a outro nível de inteligibilidade. Ao voltar para a Alemanha após a guerra, Brecht tentou publicar o seu Kriegsfibel. Uma espécie de atlas da guerra, na qual as imagens de guerra recortadas dos jornais eram inseridas em uma placa negra e acompanhada de um poema lírico, um epigrama. Brecht busca promover a retomada de uma tradição poética, oriunda da antiguidade clássica, junto a “uma reflexão sobre as condições fotográficas de visibilidade da história do século XX” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Evidentemente, que uma obra que consistia em um trabalho de memória visual e de nãoamnésia foi repudiada pelas editoras e pela sociedade alemã da época. Brecht conseguiu publicar o Kriegsfibel apenas em 1955, tendo pouca repercussão. W. G. Sebald, em “Guerra Aérea e Literatura”, promove um estudo da ausência de relatos sobre a destruição da Alemanha pelos ataques aéreos dos aliados e o estado mental e moral da nação alemã nos anos posteriores ao fim da guerra. Sobre a repulsa insensata dos alemães a todos os feitos e juízos relativos ao período nazista, Sebald afirma: Entrementes já lendária, e, de certo ponto de vista, de fato admirável, a reconstrução alemã equivaleu, após as devastações causadas pelos inimigos de guerra, a uma segunda aniquilação, realizada em fases sucessivas, de sua própria história anterior. Assim, tanto pelo trabalho exigido como pela criação de uma nova realidade despida de fisionomia própria, ela impediu de antemão
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qualquer recordação do passado, direcionando a população, sem exceção, para o futuro e obrigando-a ao silêncio sobre aquilo que enfrentara. (SEBALD, 2011. p16-17)
Na luta contra a amnésia coletiva, a montagem em Brecht é permeada pela forma épica, revelando as descontinuidades que operam dentro de todo acontecimento histórico. O dramaturgo “se atem mais as redes de relações que se esconda atrás dos acontecimentos do que a eles em si” (DIDI-HUBERMAN, 2008), sempre havendo outra realidade atrás do que se escreve. O teatro épico é colocado por Brecht em oposição ao teatro aristotélico, no qual a experiência teatral é realizada a partir da reprodução de efeitos específicos promovidos por uma ilusão que se baseia na vida, entre esses efeitos estaria a empatia. A forma épica, caracterizada por um teatro gestual, trata elementos do real num arranjo experimental, não reproduzindo efeitos específicos mas sim os descobrindo. “Seu descobrimento se faz pela interrupção dos desenvolvimentos” (DIDI-HUBERMAN, 2008). “Consiste em criar descontinuidades, em desatar articulações até o limite do possível, fazer com que as situações se critiquem dialeticamente, umas nas outras” (DIDIHUBERMAN, 2008). Em sua relação com o espectador, o teatro épico utiliza da atitude crítica do público para com os acontecimentos da vida real como material de trabalho, e caminho para promover o distanciamento. Como cita Walter Benjamin, é o desaparecimento da orquestra, do abismo que separa os atores do público. “No teatro aristotélico a ilusão da plateia em relação ao modo como os incidentes mostrados no palco se produzem e acontecem na vida real é ajudada pelo fato de que a apresentação da história forma um todo indivisível” (BENAJMIN, 1987), caracterizando um estilo alienante de representação. Para 'desaparecer com a orquestra', é necessário que o traçado da história seja um traçado fragmentado; “o todo isolado é constituído de partes independentes que podem e devem ser comparadas com incidentes das partes correspondentes na vida real” (BENJAMIN, 1987). Este modo de representar extrai toda a sua força de comparações com a realidade; em outras palavras, está a todo instante dirigindo a atenção para a causalidade dos incidentes reproduzidos.
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A maneira de evidenciar a complexidade e as contradições estabelecidas no Kriegsfibel se assemelham a forma épica do teatro brechtiano.
Se o poeta épico inventa fábulas que interrompem e remontam por sua própria conta o curso da história é porque servem para criar uma montagem de historicidade imanente, cujos elementos, tirados do real, induzem pelas suas colocações formais, um efeito de conhecimento novo que não é encontrado nem na ficção atemporal, nem na factual cronologia dos feitos da realidade. A pura ficção desconhece toda a historicidade, se arrisca a todo instante a cair no mito. Mas a narração puramente documental desconhece assim mesmo sua historicidade imanente, posto que a recai inteiramente sobre as coisas em detrimento das relações, sobre os feitos em detrimento das estruturas. (DIDI-HUBERMAN, 2008. p. 73).
O distanciamento promovido por Brecht tanto nas suas peças como nas relações entre as imagens e imagem e texto no Kriesgsfibel, dizem respeito a questão do olhar. Significa “Juntar, visual e temporalmente, diferenças” (DIDI-HUBERMAN, 2008), ou seja, “distanciar das coisas serve para demonstrar as relações históricas e políticas aonde adquirem um posicionamento” (DIDI-HUBERMAN, 2008). É a possibilidade de visão crítica sobre a história a partir da montagem. “Não há distanciamento sem trabalho de montagem e remontagem, decomposição e recomposição de toda coisa” (DIDIHUBERMAN, 2008). Brecht pratica uma montagem que “não se mostra, não se expõe, não se fornece.” Mas que “fornece as diferenças, choques mútuos, confrontos e conflitos.(...)Uma maneira de mostrar toda disposição de coisas como um choque de heterogeneidades” (DIDIHUBERMAN, 2008). O caráter de imprevisibilidade da montagem condiz com a “criação de ligações novas entre ordens e realidades pensadas espontaneamente como muito diferentes” (DIDIHUBERMAN, 2008). Essas novas ligações são efetivadas a partir da manipulação do material visual e narrativo como uma montagem de citações que fazem referência a história real. Uma prática experimental para mostrar o “caráter não-ideal da história, sua impureza inata, a incompletude, o caráter contraditório, conflituoso e de lacunas de toda transformação histórica” (DIDI-HUBERMAN, 2008).
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A estranheza enquanto reação ordinária à montagem diz respeito, como já foi explanado anteriormente, a uma “categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1974). Ou seja, o estranhamento, enquanto efeito estético, não para ser incompreensível mas para fazer com que se entenda aquilo que é há muito familiar e recorrente. “A arte não deve representar as coisas nem como evidentes, nem como incompreensíveis, e sim como compreensíveis, mas todavia não compreendidas” (DIDI-HUBERMAN, 2008). O distanciamento de Brecht está inserido em um “quadro dialético que tenta articular não saber e compreensão, particularidade e generalidade, contradição e desenvolvimento histórico, descontinuidade do salto e unidade dos termos contraditórios” (DIDIHUBERMAN, 2008). Sendo que, segundo o dramaturgo, o distanciamento pode caracterizar muito do que foi feito de interessante na arte moderna, como:
Chaplin,
Joyce, Cézanne, Suprematismo russo e Surrealismo. Ernst Bloch escreve sobre essa curiosa forma de 'mostrar' desenvolvida em demasia após a primeira guerra mundial, a caracterizando como a herança desse tempo. Pela desconfiguração da ordem das coisas, Bloch situa na mesma esfera estética James Joyce, Kafka, Proust e Breton.
“Não se mostra mais que desmembrando. É como se, as trincheiras abertas na primeira guerra mundial tivessem suscitado, tanto no terreno da estética quanto das ciências humanas (Georg Simmel, Freud, Warburg, Marc Bloch) a decisão de mostrar por montagem, por deslocações e recomposições de tudo. Montagem como um método de conhecimento e um procedimento formal nascido da guerra, que registra a desordem do mundo. (BLOCH apud DIDIHUBERMAN, 2008. p. 97-98)
Para Bloch, Brecht praticou a montagem no campo dramatúrgico, assim como Benjamin na filosofia. Promovendo incansáveis pedidos de formas novas, ou formas que só se encontravam em campos depreciados da cultura burguesa, Benjamin insere na escrita uma sucessão de sonhos e aforismos. Segundo Bloch, “esse jogo subversivo de aspecto dadaísta, surrealista ou anarquista, não se dá sem um verdadeiro trabalho arqueológico destinado a levantar esse inconsciente da visão” (DIDI-HUBERMAN, 2008).
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Estabelecendo relações entre a técnica vanguardista da montagem com o método benjaminiano de pensar, Stephané Huchet caracteriza Benjamin como o primeiro filósofo da montagem. Para ele, Benjamin permite que o rejeitado e os trapos da história obtenham justiça da única maneira possível: utilizando-os. Portanto, a dialética da montagem, ou seja, “o ato de separar e re-ajuntar os elementos no ponto de sua mais improvável relação” (DIDI-HUBERMAN, 2008), a “prática de uma infernal reativação das contradições e da fatalidade de uma não síntese”(DIDIHUBERMAN, 2008), foi explorada de diversas formas no século XX, se caracterizando não apenas como uma técnica de criação de imagem mas como uma forma de pensamento e uma maneira de se posicionar no mundo. A montagem enquanto uma reconfiguração do modo de olhar, desvendar, construir, mostrar, e se posicionar foi explorada na exposição Jornal da Imagem | Imagem do Jornal, que realizei em conjunto com os artistas Gladston Costa e Patrícia Franca-Huchet na Galeria de Arte da Cemig em abri/maio de 2012. Conjuntamente com a exposição, publicamos um jornal, elaborado com arte gráfica de Luisa Horta, trabalhando a história, fatos ficcionais e a crítica. Nos situamos em tempos distintos, e percorremos um trajeto pautado na dialética realidade e ficção através da história e da imagem. Na construção do jornal nos atentamos a importância do artista em uma época caracterizada como era das imagens. Vivemos numa sociedade onde as relações são mediadas por imagens, e sentimos a contradição de um excesso de imagens e mesmo assim uma insaciável necessidade delas, como afirma Patrícia FrancaHuchet no editorial do Jornal da Imagem | Imagem do Jornal:
Dividimos todos uma experiência em comum, que é a de nossa relação com as imagens. Estamos saturados, não podemos mais… mas por outro lado não temos o bastante. Como vimos há pouco, somos confrontados a uma superexposição visual onde não vemos mais nada. O artista deveria defender o trabalho de uma imagem que nos qualificaria, pensando naquilo que nos faz falta. Somos responsáveis pela palavra imagem e, aí está, fatalmente, uma questão política.
Para a exposição produzi um trabalho que rememorasse o caso de Nicola Sacco e
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Bartolomeo Vanzetti, anarquistas italianos condenados a cadeira elétrica nos Estados Unidos da América nos anos 1920 por um crime que não cometeram. Após uma pesquisa prévia sobre a repercussão dos acontecimentos que circundaram o julgamento e a execução dos anarquistas em periódicos de todo o mundo, são selecionados 42 jornais de diversos países. Fragmentos desses jornais e das notícias são evidenciados com adesivo amarelo transparente. São feitas algumas poucas alterações no conteúdo do jornal, visando à preservação da maneira própria de cada periódico contar uma história. As contradições, o conservadorismo e o vanguardismo dos posicionamentos são mantidos. Lado a lado apresentam-se as narrativas do partido comunista francês e de jornais conservadores de Massachussets. Ao suspender fragmentos dos jornais com adesivo amarelo, algumas pequenas notícias, não apenas as relativas à história de Sacco e Vanzetti, vão surgindo. No jornal The Evening Independent, da Flórida, o pequeno enunciado “Small son of florida banker killed by auto at Atlanta; negro driver leaves scene” remonta, no século XXI, as ainda não resolvidas questões raciais da sociedade americana que também se encontram em uma pequena nota sobre a Klu Klux Klan no St. Petersburg Times, também da Flórida. No jornal californiano “La Opinión”, ao lado de uma grande reportagem sobre Sacco e Vanzetti, a chamada: “Manuel Reyes, el cabecilla revolucionario há sido ejecutado en Toluca”, rememora hoje o assassinato de um dos maiores revolucionários mexicanos. O machismo introjetado nas notícias sobre o divórcio de Charles Chaplin e Lita Grey divide as manchetes com Sacco e Vanzetti. Em vários jornais norte-americanos é dada mais importância à recusa dos anarquistas (ateus) em receber os ritos religiosos antes da execução do que a morte deles em si. Nos periódicos brasileiros surpreendemo-nos com a indignação passional dos redatores. Narrativas apaixonadas, quando lamentam o destino dos italianos, e céticas quanto à justiça norte-americana. Escritas emotivas e julgamentos profundos de uma imprensa ainda a se profissionalizar. Devido à grande quantidade de jornais utilizados não é possível e nem desejado que se faça aqui uma transcrição das notícias e das imagens que compõem o trabalho, sendo esse trabalho um convite para que o passado, mesmo que em pedaços, seja experienciado. E, quem sabe, permita que suas centelhas se comuniquem com o presente. Nos propomos em expor trabalhos que utilizem o jornal como material, suporte e/ou meio para a criação artística. Trabalhar com jornal é tratar de montagem. É adentrar as amplas possibilidades de desconstrução e construção de um conjunto de acontecimentos,
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imagens e palavras. É lidar, antes de tudo, com as contradições econômicas, sóciopolíticas e históricas existentes nesse espaço onde conflituam o individual e o coletivo, o regional e o global. Da mesma maneira em que os acontecimentos são construídos e tratados com uma certa parcialidade necessária à manutenção de uma ordem social, o artista manipula as imagens e os fatos. Ao desatar essas articulações e propor uma outra forma para aquilo, ele logo vislumbra outra organização da vida, outro modo de ver.
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Imagem 4x: “América, Sacco e Vanzetti não podem morrer” (2012). Impressão digital e vinil amarelo.
Imagem 4x: “América, Sacco e Vanzetti não podem morrer” (detalhe) (2012). Impressão digital e vinil amarelo.
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Conclusão Esse estudo compreende os questionamentos e a elaboração crítica que compõem meu desenvolvimento artístico durante os anos de graduação, nos quais não hesitei em promover aproximações entre ideias, autores e artistas que possam ter mais elementos que os diferem do que aproximem. Trabalhando no campo da produção imaginativa procuro fugir das restrições, mesmo que essa posição me traga mais dúvidas do que respostas. As junções e dispersões desenvolvidas na prática intelectual-artística dizem respeito ao próprio modo de se lidar com o mundo. Ou seja, impulsionando o anacronismo da história a partir da reconfiguração das imagens, discursos, documentos e dispositivos em geral. Os materiais encontrados, apropriados, desintegrados e estimulados a uma re-existência apontam desde o primeiro momento para uma concepção de tempo histórico que está além de uma concepção cronológica, imóvel e de fácil determinação. A referencialidade múltipla, a potencialização das tensões entre o passado e o presente e demais questões desenvolvidas na monografia de certa forma buscam um diálogo com o que Stephané Huchet, com uma fala intitulado “O que Walter Benjamin diz ao artista?” no colóquio “Pescadores de Pérolas”, afirma como tarefa da arte: “associar fragmentos de mundo numa montagem crítica pertinente, consistente e convincente perante as tarefas exigidas pela época” (HUCHET, 2011), cabendo ao artista “fazer da arte uma chance soberana de criar imagens criticas dialeticamente motividas” (HUCHET, 2011). No início do livro sobre Bertold Brecht, Didi-Huberman tece considerações sobre as complexidades inerentes ao saber e a ação de se posicionar. Para saber é preciso tanto aproximar (com receio), como distanciar (com desejo), do conflito. É preciso se colocar em dois espaços e duas temporalidades de ume vez. “Para saber, tem que saber o que se quer, mas também, tem que saber aonde se situa nosso não-saber, nossos medos latentes, nossos desejos inconscientes.” Enxergo na prática artística uma vasto campo para explorar esses não-saberes, desejos inconscientes e medos latentes. Prática, não com intuito de desvendá-los, ou atribuí-los a algo, mas para que continuem inconscientes, latentes e contraditórios.
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Imagem 4x: Estudo sobre fachadas. (2011). Transferência sobre papel de arroz. Imagens de fachadas de edifícios neoclássicos com imagens de fachadas edificações ruínosas acrescidas com pranchas de estudo neoclássico. Trabalho realizado junto com a artista Marina RB.
Imagem 4x: Estudo sobre fachadas. (detalhe) (2011).
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