Mostra Dib Lutfi - Catálogo

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por danilo scaldaferri

bra missla mis


É difícil saber com precisão a quantidade de filmes em cujos créditos aparecem o nome de Dib Lutfi, perdeu-se a conta depois da sexagésima obra. Assim sendo, uma Mostra que pretende exibir apenas 6 destes filmes não se reveste de grandes pretensões. Decidimos eleger 6 parceiros importantes na trajetória de Dib e tentar contemplar as 5 décadas de serviços prestados por ele ao cinema nacional. Muito modestamente, pretendemos com nossas escolhas incrementar o debate acerca da autoria cinematográfica. Talvez até por isso, demo-nos “ao luxo” de não incluir na nossa programação a obra dirigida por Glauber Rocha; talvez não quiséssemos ter que dizer que Terra em Transe é, também, um filme de Dib Lutfi. Segundo Lauro Escorel, “Dib era um dos único operadores de câmera que imprimiam estilo ao seus filmes”, para Cacá Diegues, “de alguns dos filmes em que trabalhou, Dib podia ser considerado coautor, tamanha importância do trabalho dele” e vai ainda mais além: “todo mundo pensa o Cinema Novo como um movimento estético, intelectual, político... mas o Cinema Novo foi também possível por quatro fundamentais acontecimentos: a câmera Arriflex - mais leve - os filmes lançados no período - mais sensíveis - o gravador Nagra e as pernas de Dib Lutfi. Ele libertou a mise-èn-scene do Cinema Novo”, Paulo Cesar Sarraceni lembra que “tudo o que se queria naquele momento era filmar com Dib Lutfi”, Mario Carneiro explica que, em um dado momento da cinematografia brasileira, “Dib virou um instrumento a mais com o qual os diretores e roteiristas podiam contar, os roteiros passaram a ser imaginados em função dos movimentos que ele seria capaz de fazer”. Quando confrontado com tais assertivas, Dib garante, sorrindo, que “apenas fazia o que pediam para ele, o que era para ser feito”. “Dib não tinha a liturgia do cargo”, segundo Ana Maria Magalhães. Ao longo da empreitada para a realização desta Mostra, muito lemos e ouvimos a respeito de Dib Lutfi, mas foi o parceiro Domingos Oliveira quem mais perto chegou de “explicar” aquilo que sentíamos diante dos filmes que víamos: “Dib desenvolveu uma inteligência que é rara, que muito poucas pessoas têm, que é uma inteligência corporal, porque a inteligência não é só aquela do intelecto, aquela da razão... tem gente que tem a inteligência no corpo. Quando você solta o Dib para fazer qualquer plano você sabe que o plano vai voltar bem enquadrado, harmônico, com uma movimentação e velocidade imprevistas e imprevisíveis... ele e a câmera se entendem com o ator de modo extraordinariamente mágico”. E é por conta desta dimensão que não se consegue alcançar, por não ser da ordem do “intelecto, da razão”, que apostamos na pertinência de ver, rever e discutir os filmes cujas fotografia e câmera carregam a autoral “assinatura Diblutfiniana”. Muito provavelmente, esta nossa singela Mostra vai cometer o pecado do Bramis-Slamis, justamente porque o cinema que se vê através da câmera de Dib e que caminhou com as suas pernas não cabe em debates e explicações. Enfrentemos o paradoxo!

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05 “ACORRENTADO NINGUÉM PODE AMAR”: ^

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esse mundo e meu ^ e a camera sem amarras de Dib Lutfi por DANILO SCALDAFERRI

Os três primeiros planos de Esse mundo é meu almejam o céu, enquadram nuvens que tentam esconder o sol; mesmo oculto, o astro rei impõe a sua presença. A câmera, acolhida pelo corpo de Dib Lutfi, respira junto com a música. A letra da canção-oração que inicia o longa-metragem de Sérgio Ricardo clama a Oxalá que tenha “pena de nós”. No quarto plano, sem pudor, Dib aponta a câmera para sol, a luz invade impiedosamente a lente. Devagar, em panorâmica seguida de zoom in, o filme alcança o morro; os barracos encrustados no relevo geossocial do Rio de Janeiro deixam claro sobre qual mundo os irmãos Sérgio e Dib debruçaram-se naquela empreitada. Mais adiante, pouco depois do primeiro minuto do filme, a câmera “persegue” o voo de uma pipa sobre o céu da favela. Essas primeiras imagens de Êsse mundo é meu podem ainda não dizer muito sobre o que está por vir, sobre os conflitos que afligem os protagonistas do filme, mas prestam-se bem enquanto metáfora do trabalho realizado por Dib Lutfi - não só nesta obra, mas ao longo de sua tão prolífica trajetória. A operação de câmera de Dib e a sua fotografia são sempre sentidas, mesmo quando não se explicitam; no entanto, não poucas vezes, sua presença é despudoradamente explícita, revela-se tão inequivocamente quanto a luz que invade a lente e “queima” o negativo. Não seria um exagero dizer que, em boa medida, as películas em cujos créditos lê-se o nome “Dib Lutfi” orbitam a especificidade do seu talento e competência. Talvez ainda mais reveladora seja a imagem da pipa brincando com o vento. Um movimento que oscila entre a leveza quase passiva e o firme impulso que parece vencer as leis da física. Com Êsse mundo é meu, primeiro longa-metragem dos irmãos Sérgio e Dib, impôs-se a pergunta que sempre intrigou os analistas do percurso de Dib Lutfi - e que permanece sem resposta: “como era possível fazer o que ele fazia”? Vai saber! Há de ser sol, vento e pipa. Êsse mundo é meu conta (canta) a história de Toninho (Antônio Pitanga), um engraxate que sonha ter uma bicicleta para conquistar Zuleica (Luiza Aparecida),e do casal Pedro (Sergio Ricardo) e Luzia (Léa Bulcão), às voltas com as agruras impostas pela falta de dinheiro. No entanto, mais do que lidar com histórias e dramas individuais, Êsse mundo é meu é um filme



que pode ser enquadrado como um manifesto político-social, uma obra engajada. Um olhar especialmente interessado no “conteúdo” do longa de Sérgio Ricardo não deixaria de enxergar a luta de classes como questão central da obra; mas muito provavelmente é através da forma (cometendo conscientemente o pecado de recorrer à falsa dicotomia forma x conteúdo) que Êsse mundo é meu conquista espaço entre as grandes obras do cinema brasileiro. Toninho, o engraxate negro, e Pedro, o metalúrgico branco, são protagonistas de um discurso com notáveis influências do pensamento marxista. E aqui a palavra discurso não aparece por acaso, serve para chamar a atenção para a linguagem da qual o filme lança mão. A potência do discurso fílmico engendrado por Êsse mundo é meu não se fundamenta no que é dito através das falas dos personagens, sua força advém da fértil conjunção entre as imagens – impregnadas pelos marcantes enquadramentos e movimentação de Dib Lutfi – pela musicalidade do diretor que dá ritmo e atravessa o filme inteiro (não apenas quando as canções ocupam a centralidade das sequências) e pela inventiva montagem assinada por Ruy Guerra que, entre outras tantas proezas, descola os diálogos dos seus instantes de enunciação, fazendo com que eles mais componham a trilha sonora do que, apenas, façam parte dos momentos de “embate” entre os personagens. Ironicamente – ou tragicamente - Êsse mundo é meu estreou no Cine São Luiz, zona sul do Rio de Janeiro, no dia primeiro de abril de 1964. “Foi o meu primeiro fracasso de bilheteria. Não foi ninguém ver. Estávamos eu e dois amigos. Ninguém queria sair à rua”, disse Sergio Ricardo em recente entrevista.Se o golpe militar atrapalhou a carreira do filme no Brasil, no exterior ele teve boa receptividade, conquistando prêmios e elogios. Na época, o critico e diretor francês, Luc Moullet, em artigo escrito para a Cahiers du Cinema, condenou a ausência da obra de Sérgio Ricardo no festival de Cannes de 1965 e listou Êsse mundo é meu entre os melhores filmes de 64. Êsse mundo é meu é uma obra afinada com os novos cinemas que emergiam na década de 60. Segundo o próprio diretor, o modelo de filmagem foi inspirado pela Nouvelle Vague, “era o cinema da moda”, confessa Sérgio Ricardo. Em igual medida, pode-se também perceber a natureza cinamanovista da proposta. “Tinha a história na cabeça.Não tinha roteiro, não tinha nada. Saía para criar no meio da rua. Na hora, descobria um cenário que me agradava”. Mais do que sanar curiosidades acerca do processo de feitura de Êsse mundo é meu, a fala de Sérgio Ricardo explicita o que se vai sentindo ao longo da obra. O filme, de modo geral, e a movimentação de câmera, particularmente, equilibra-se entre uma elaborada sofisticação e a poderosa sensação de naturalidade e espontaneidade, marcantes características do trabalho de Dib Lutfi. Negociando com a máxima do Cinema Novo, pode-se dizer que a ideia estava na cabeça de Sérgio, masa força autoral da câmera estava nas mãosde Dib.

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Ainda no começo da história, o casal Pedro e Luzia vão ao parque. Dib e a sua câmera vão juntos, em última instância, levam também ao passeio o espectador; mas não nos permite, apenas, assistir, conduzem-nos a sentir, de uma só feita, o paradoxo entre a leveza e a pesada carga da sequência. Pedro diz para Luzia: “É, é isso mesmo, a vida da gente é algodão doce. O ordenado também, a gente pega aquele punhado de dinheiro e quando vai ver, é um tantinho só. Não tem sustância: algodão doce”. Quando Pedro e Luzia sobem na roda gigante, a câmera vai também e nos leva a girar, subir e descer. Os diálogos deslocados da sequência, a música e a movimentação da câmera impõem ao espectador uma participação sensorial, de corpo presente. A metáfora da roda gigante, seus altos e baixos, a instabilidade, o “frio na barriga”, tudo é sentido muito mais do que mostrado. Embora o trabalho de Dib não se entregue facilmente aos rótulos e conceitos, é possível dizer que em Êsse mundo é meu, não poucas vezes, ele incorpora a tarefa de contaminar os nossos sentidos com as sensações dos protagonistas. E esta complexa missão é cumprida ao longo de todo o filme. A imagem proposta por Dib Lutfi atua por contágio: no ato da feitura, contaminada pelos personagens, no instante da fruição, contaminando o espectador. Ao longo de todo o filme, o espectador vai sendo infectado pela movimentação sensível da câmera de Dib Lutfi, embalada pela musicalidade que rege Êsse mundo é meu. A história termina trágica para Pedro - Luzia morre durante uma mal sucedida tentativa de aborto - e lúdica para Toninho - que, em emblemática cena, rouba de um padre (Ziraldo) a bicicleta que viabilizaria o seu sonho de conquistar Zuleica. Ecoa, na cabeça de Pedro, viúvo, a música que ele e Luzia escutaram em um espetáculo que assistiram juntos (tal peça teatral, cujas cenas intercalam algumas sequências do filme, fortemente inspirada pelo Teatro do Oprimido): “Nem fome, nem eito. Nem dor, nem mais amor. Sua alma virou passarinho, lindo voo levantou”. Pedro retorna ao trabalho e convoca à luta os seus companheiros: “Será que estou sozinho?”. Dib caminha para trás com câmera na mão, sai de um plano americano do protagonista e conclui o movimento em plano geral que revela a adesão dos outros operários ao chamado de Pedro. A aderência estende-se ao espectador, que, internamente, “bate o martelo” ao lado daqueles personagens. No entanto, o grau máximo do contágio é alcançado no último plano do filme, quando todos inevitavelmente giramos em torno de Toninho e Zuleica, que dançam em um descampado, ao som da mesma canção que embalava a postura de enfretamento assumida por Pedro e seus companheiros: “tem que brigar se quer ter paz”. O “travelling” circular executado por Dib Lutfi certamente merece constar entre as mais impressionantes imagens do cinema nacional. Quando a cena “congela” e “escreve-se” FIM na tela, resta aos contaminados, principalmente àqueles interessados na compreensão da linguagem cinematográfica e dos seus efeitos, a questão: “como Dib Lutfi era capaz de fazer o que ele fazia?”.

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O DESAFIO: AMAR E MATAR A FOME por FABIO RODRIGUES

Seria estranho se não fosse sintomático que um filme tão falante e ritmado, como O Desafio, começasse num silêncio abismal. Um silêncio atônito (mas não mudo), entre a falta de perspectiva, a iminente destruição, o medo (quando não se pode ter medo), o desejo e a fossa. Os amantes Ada e Marcelo se amam? Amar é um ato político? Até que ponto a política interfere no amor? São questões precipitadas que me surgem ao aparente conflito central do filme. É nós? Quem somos nós? O silêncio do qual eu falo é um presságio, é o não saber como dizer e ainda assim procurar um jeito de falar, silêncio barulhento, ruidoso. Obviamente, tanto Marcelo quanto o filme diz (e quer dizer/citar ainda mais). Quer pensar, ainda que de modo confuso, sobre o cenário político: uma ditadura militar. Quer através dos subtextos das músicas brasileiras, das entrelinhas com citações, dos títulos de livros... procurar entender o que se irrompe numa manhã e muda tudo e todos. Muda o relacionar e o relativismo. O filme procura (agindo) uma forma de agir e resistir à nova realidade que exige uma posição e, portanto, exige coragem. O Desafio, filme dirigido por Paulo César Saraceni, pela emergência e pela circunstância, mais parece ser cortado a facão pra se ter um todo, incrusta-se no sentimento de Marcelo, na sua impotência e no seu estarrecimento diante do golpe. Não à toa a câmera de Dib Lutfi e a atuação de Oduvaldo Vianna Filho vão ficando cada vez mais intensas. O não poder estar em paz quando se está precisando tanto de guerra de Marcelo e, por outro lado, o olhar de Ada, sua riqueza, sua família, sua sensibilidade, sua capacidade de amar, se juntam num intenso debate onde a conjuntura separa as pessoas, colocando cada um frente a frente com seus problemas; paralelamente, como medida de sobrevivência, exige resistência – que só pode vir através da ação coletiva. Alguém tem direito de ser feliz enquanto reina essa fome, essa miséria? Talvez seja essa acentuação das diferenças e das desigualdades pela ditadura, através da morte e do silenciamento, que impeça os dois amantes de estarem juntos. Pode a diferença se juntar? Até que ponto eles são distintos? Para além da ênfase do dito, mesmo que remendado pós-censura, há no filme uma força do olhar capaz de denunciar o golpe e suas destruições. É quando se encontra os olhares de Marcelo e Ada que suas memórias de amor aparecem, se delatam e, portanto, se separam. De um close no olhar se abre outra cena, um outro momento, o outro. Prova disso é a potência da cena


onde o casal encontra uma pensão que um poeta ateou fogo (!), não só pela qualidade da fotografia, mas pela importância da cena para demonstrar quão só cada um do filme está e ainda as saudosas memórias do passado, visitadas “tão só pelo abandono, tão só pela fadiga em que essas ditas coisas goradas e orfãs se desgastam”. Engatando na deixa da ruína, portanto, do abandono, adentro propriamente no desafio que me foi proposto com esse texto: relacionar os filmes O Desafio (1965) e Fome de Amor (1968); e é importante essa deixa não só porque nos dois filmes está presente essa textura do tempo para mostrar um hoje (recorrendo, sobretudo, a memória de amor), mas também porque essa ruína ela denuncia o caráter dessas tantas histórias, desses difíceis tempos, ela reflete o estado, o momento. Em entrevista, Nelson Pereira dos Santos, disse que Fome de Amor foi um desafio pra ele. O filme, baseado num conto homônimo de Guilherme Figueiredo, e encomendado por Herbert Richers ao diretor, têm também seu silêncio no começo, um silêncio à procura. Com uma estrutura de filme um tanto quanto confusa, onde desejo, imaginação, memória e a (des)politização embaraça a trama e a narrativa, num emaranhado difícil de entender e mais difícil ainda de sair, o filme sustenta-se numa belíssima fotografia. A metáfora do abandono e do fracasso está o tempo todo presente nos conflitos e, sobretudo, nos personagens. Um guerrilheiro fornecedor de armas, hoje surdo, cego e mudo; um pintor que não consegue pintar nem desenhar, mentiroso fracassado; uma pianista intelectual “revolucionária” em crise e uma mulher descontente do seu casamento. Além disso, entre eles: a traição, a iminente morte (ou o matar), a mentira, o roubo e o isolamento. Mas, duas questões são importantes pra mim na análise desse filme. A primeira, feita por Mariana em sua divagação “revolucionária”, onde está o povo? A segunda, e a “fome de amor”? O filme está nos conflitos da burguesia em meio ao golpe, não é estranho que tais conflitos sejam tão superficiais, mas que escondem profundezas, que escondem inclusive o povo. As personagens se refugiam numa ilha em Angra dos Reis (RJ), propriedade de Alfredo intelectual guerrilheiro (que ironicamente, tornou-se completamente dependente de ajuda de terceiros), onde o pensamento é sucumbido pela mentira, onde o sentimento revolucionário é traído e relegado ao silenciamento, onde a orgia barata e a festa é alegoria do terror e do desespero, ao passo que é comemorar o êxito da mediocridade e da covardia burguesa. Não se vê povo, nem de fato um sentimento prático revolucionário porque o sentimento que impera, na real, é a impotência, é o tal não saber o que fazer, é o medo. Em seu quase interminável e incômodo final, regado a muitas gargalhadas ruídos e reisado, Alfredo e Mariana se isolam/fogem novamente em outra ilha, e incansavelmente sobem e descem, um puxando o outro. Em uma longa análise de Fome de Amor, José Inácio de Melo Souza, sintetiza a agonização que acontece ao final:

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O chamado à guerrilha seria crível se não fosse declarado por dois personagens negativos – o “Papai Noel das Américas Latinas” e a “Rainha Louca da Revolução Brasileira” –, vagando solitários por uma ilha (perto/ distante? Cuba/Brasil?), sem que uma massa revolucionária acompanhe as suas palavras de ordem. (SOUZA, J. I. M., 2011) Entre os dois filmes, sentimentos, formas, desafios, e até pensamentos muito parecidos. Certo que em Fome de Amor a ditadura militar encontra-se mais acentuada e ferrenha, refletido no prevalecimento da força alegórica e metafórica que ressalta a diferença das subjetividades entre os dois. Em ambos, os enredos voltados para o sentimento de impotência e o foco na burguesia/nos intelectuais. “Onde está o povo?”. Em O Desafio, a interminável quarta-feira de cinzas; em Fome de Amor o carnaval sem povo, sem corpo, sem calor. Pra responder a segunda questão que propus é preciso antes pensar no amor e atentar de maneira objetiva as duas bases de entendê-lo. Um diz respeito ao sentimento de entrega, completude, o tal ato revolucionário, o sentir; o outro, o “fazer amor” ou só “amor”, como puramente o ato do sexo. Essa segunda definição, mais popular, parece ironicamente se encaixar a fome da qual o título do filme reclama. Sendo assim, “Fome de Amor” por essa pulsante veia carnal e, no entanto, rasa, que despreza o todo, o resto, e circunda-se nas relações como mola percussora inclusive do desejo revolucionário e do revolucionar, é a orgia pra saciar o vazio. Em O Desafio, “falar de amor e flor é esquecer que tanta gente está sofrendo tanta dor”, diz do enfoque do filme e do sentimento que prevalece (ou da inviabilidade dele). Seguindo no fim do desafio, "eu sei que é preciso vencer/ eu sei que é preciso lutar/ eu sei que é preciso morrer/ eu sei que é preciso matar", no entanto o tempo sem sol, a falta do calor, de coletividade, impede essa revolução nos/pelos dois filmes. Seria a descida das escadarias por Marcelo a derrocada dele? Ainda no cruzamento entre os dois filmes, lança-se através dos semelhantes enredos: a necessidade de se repensar a tarefa de pensar a política, a coletividade como necessária à luta e o pulsante grito de: DITADURA NUNCA MAIS.

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11 os deuses e os mortos por LIZ RISCADO

Os Deuses e os Mortos (1970) é um filme dirigido pelo cineasta Ruy Guerra e tem Dib Lutfi como diretor de fotografia e câmera. O filme apresenta a história de um “sujeito sem nome”, vivido por Othon Bastos, que, depois de levaralguns tiros após uma chacina e não morrer(restando a dúvida se ele estaria vivo ou morto), se “infiltra” entre dois clãs de coronéis que lutam pelas terra do cacau, no sul da Bahia. A trilha sonora é assinada por Milton Nascimento, que surge também na tela, de espingarda na mão, na pele de uma capanga de um coronel. O longa-metragem está repleto de alegorias, discursos poéticos e políticos. Dib Lutfi tem forte influência em todo o filme, pois sua câmera e seus movimentos estão ensaiados junto aos atores,todos afinados em mesmo ritmo. A câmera dança percorrendo todos os espaços, com perfeitos planos sequência seguindo os atores em seus rodopios, caminhadas e discursos e assim expondo o drama do filme. Dib Lutfi filmou tudo com a câmera na mão, sem a utilização de nenhum outro artificio como grua ou steadicam. O resultado é uma impressionante interdependência entre a elaboração da mise-en-scène a partir da intersecção da câmera com os atores e as locações. A maneira, muito particular e original, através da qual a movimentação da câmera se infiltra e se impregna no/do filme promove uma marcante e poderosa sensação de “invisível presença” . Não há o uso de refletores, apenas de luz natural. As cenas são na maioria das vezes em locação externa, quando é numa locação interna, fez-se uso da luz natural vinda através das janelas. Outra particularidade de Os Deuses e os Mortosé que cada cena teve que ser ensaiada diversas vezes antes da gravação, pois a película era muito cara e só poderia ser feita uma única tomada, e que seria gravada no “ensaio final”. Othon Bastos, grande admirador do trabalho de Dib Lutfi, conta que em uma das cenas, depois de se ter ensaiado diversas vezes, um ator inesperadamente caiu no meio do plano, Dib, então, sutilmente, desceu a câmera acompanhando o ator a se levantar e seguiu com a filmagem, para surpresa geral da equipe que já se preparava para um novo take.



Dib Lutfi ganhou diversos prêmios com “Os Deuses e os Mortos”, incluindo o Festival de Brasilia em 1970, a Coruja de Ouro no Estado do Rio de Janeiro,no mesmo ano, e Xéme Rencontre Internacionale du Cinema et de Jeunesse de Grenoble, França. Todos como melhor direção de fotografia. Esse também foi um dos filmes nos quais a presença autoral de Dib se impôs inequivocamente, era unânime a percepção de que Os deuses os mortos era uma obra explicitamente dependente daquilo tudo que Dib Lutfi era capaz de fazer com a câmera nas mãos. Segundo Ruy Guerra, “com o Dib dava pra fazer de tudo, por mais absurda que pudesse ser a ideia que passava na nossa cabeça, com ele operando a câmera era possível. O cinema brasileiro precisa se assumir criativamente, vinculado às suas condições produtivas, relacionando-se com aquilo de que se quer tratar, procurando as suas próprias narrativas, procurando a sua própria montagem, procurando a sua própria linguagem... e nesse sentido é que precisamos de gente como Dib, que tinha a coragem de arriscar”.

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Dib Lutfi, a câmera na mão e a por EVANDRO DE FREITAS mise-en-scène Além dos conhecimentos técnicos de fotógrafo e habilidades pouco comuns enquanto câmera, como Dib Lutfi participa da constituição da mise-en-scène, maisespecificamente, nos planos sequência? Se considerarmos a câmera na mão e sua orientação que “gira” pela cena, percebemos ser impossível a monitoração da tomada em tempo real por parte do diretor – neste caso, Ruy Guerra. Todo o desenho e previsibilidade do plano deve, quanto mais seja possível, ser realizada nos ensaios anteriores à realização da tomada. Não obstante ao trabalho de concepção da mise-en-scène por parte do diretor, reconhecemos para os filmes modernos a importância da improvisação durante a cena, acasos motivados pela estética e desejados pelo estilo. Em tais condições, podemos reclamar que, para o plano sequência em câmera na mão, invariavelmente, o câmera deverá tomar decisões ao tempo em que o plano se desenvolve, agindo aos improvisos, numa espécie de “autonomia condicionada” para com a direção, que às diretrizes dela soma e participa. Estando a mise-en-scène em função da câmera e seu quadro, é razoável afirmar que a presença de Dib Lutfinas tomadas em sequência e câmera na mão, compartilhando o mesmo espaço da tomada junto aos atores, sentindo seus corpos e com eles respirando a mesma duração de tempo, goza certa emancipação para a composição dos quadros e, com efeito, para a realização da mise-en-scène. Como não afirmar que, para a performatividade dos atores, não haveria uma performatividade da câmera, ou melhor, da câmera na mão, joelhos e olhar de Dib Lutfi? Longe de reivindicar tons de autoria para a presença de Dib como fotógrafo e câmera, creio que devemos reconhecer as contribuições singulares de um homem personagem de nosso cinema, que imprimiu marcas de estilo e reconduziu nossos modos de fazer filmes. Afinal, uma câmera na mão bem executada, expressiva, já se tornou uma câmera à la Dib Lutfi.


com os atores, execução de ajustes de exposição e foco durante a tomada, além de sua perícia em manusear uma câmera 35mm (provavelmente uma Arriflex II, a mais usada durante o cinema novo) sem apoio de estabilizadores. Como sabemos, a habilidade de Dib Lutfi em operar a câmera em condições adversas e de modo estável – o que se tornou motivo de lendas anedóticas nos bastidores dos filmes – fora uma contribuição de grande relevância para a consolidação da proposta estética cinemanovista, rendendo ao fotógrafo reconhecimento internacional. Entretanto, o relevo de análise deste e diversos outros planos sequência que Dib realizou está na inferência da contribuição que ele prestou aos diretores para a constituição da mise-en-scène pretendida para os filmes, que conforme relatos, por vezes beiraram a marca do impossível. De modo simplificado, podemos compreender o termo mise-en-scène como a organização dos atores e dos cenários frente à câmera, onde o gesto mais aguçado de elaboração da mise-en-scène é percebido nos planos sequência, estes constituídos, por sua vez, pelas situações ocorridas em planos de longa duração. Entretanto, como determinar, por meio do corte, a diferença entre um plano sequência e um plano de duração longa? A título de ensaio, podemos partir da ideia de que um plano sequência se define menos pelo corte do que por sua natureza temporal: possui certa vontade que extrapola a medida de tempo cronológico do plano, tomando para si uma unidade interna e afirmando-se como cena propriamente dita. Nestes termos percebe-se que a mise-en-scène se define em função da câmera, existindo objetivamente nos limites do quadro e fundando, também por meio destes limites, o espaço fora de campo, que dela participa. Com efeito, o que não fora apresentado no quadro ou sugerido pelo fora de campo não deve ser considerado como pertencente à cena. Por exemplo: antes do personagem Homem subir as escadas na cena anteriormente descrita, não havia elementos mostrados pelo campo ou fora de campo que fizessem crer numespaço-tempo compartilhado entre personagem e escada. Há, por parte da câmera, um imperativo a afirmar que tudo o que está fora de seu quadro é sempre algo por vir, sendo esta, uma experiência do olhar totalmente distinta da vivência real. Ou seja, a mise-en-scène se caracteriza pelo modo com que se mostra os corpos e as paisagens na cena cinematográfica, onde a escolha pelo plano sequência e da câmera na mão produz efeitos de sentido específicos.

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Além dos conhecimentos técnicos de fotógrafo e habilidades pouco comuns enquanto câmera, como Dib Lutfi participa da constituição da mise-en-scène, maisespecificamente, nos planos sequência? Se considerarmos a câmera na mão e sua orientação que “gira” pela cena, percebemos ser impossível a monitoração da tomada em tempo real por parte do diretor – neste caso, Ruy Guerra. Todo o desenho e previsibilidade do plano deve, quanto mais seja possível, ser realizada nos ensaios anteriores à realização da tomada. Não obstante ao trabalho de concepção da mise-en-scène por parte do diretor, reconhecemos para os filmes modernos a importância da improvisação durante a cena, acasos motivados pela estética e desejados pelo estilo. Em tais condições, podemos reclamar que, para o plano sequência em câmera na mão, invariavelmente, o câmera deverá tomar decisões ao tempo em que o plano se desenvolve, agindo aos improvisos, numa espécie de “autonomia condicionada” para com a direção, que às diretrizes dela soma e participa. Estando a mise-en-scène em função da câmera e seu quadro, é razoável afirmar que a presença de Dib Lutfinas tomadas em sequência e câmera na mão, compartilhando o mesmo espaço da tomada junto aos atores, sentindo seus corpos e com eles respirando a mesma duração de tempo, goza certa emancipação para a composição dos quadros e, com efeito, para a realização da mise-en-scène. Como não afirmar que, para a performatividade dos atores, não haveria uma performatividade da câmera, ou melhor, da câmera na mão, joelhos e olhar de Dib Lutfi? Longe de reivindicar tons de autoria para a presença de Dib como fotógrafo e câmera, creio que devemos reconhecer as contribuições singulares de um homem personagem de nosso cinema, que imprimiu marcas de estilo e reconduziu nossos modos de fazer filmes. Afinal, uma câmera na mão bem executada, expressiva, já se tornou uma câmera à la Dib Lutfi.

“A capacidade e a qualidade dele como câ-

mera e como fotógrafo acabava criando pra gente um dado novo na misé-en-scène, na encenação, e até na decupagem do filme; você sabia que ia contar com o Dib, você já podia imaginar que determinados tipos de cena que você poderia filmar de uma maneira, você já tinha uma alternativa porque era o Dib que tava fazendo câmera. A principal qualidade do Dib não era só que ele era um câmera na mão muito firme, que a câmera era muito firme, e coisa e tal, é que também havia invenção no que ele fazia [...]”. Cacá Diegues em entrevista para o documentário, A Câmera de Dib Lutfi (2005), de William de Oliveira.



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quando o carnaval chegar, tudo será permitido! por RWOLF KINDLE

Quando o carnaval chegar (1972) registra o retorno do diretor, Cacá Diegues, após o exílio no exterior (Itália e França) depois que o AI¬5 foi decretado por aqui. O filme é uma das primeiras incursões do gênero musical hollywoodiano nos experimentos cinemanovistas. Na época, o Cinema Novo vivia sua terceira e última fase: passava a limpo suas propostas e se reinventava sob a influência do Tropicalismo ¬era preciso conquistar o público. Unia-se¬ pesquisa e representação identitária do imaginário brasileiro, afrouxando um pouco a condição de conflito que o Velho ¬Cinema ¬Novo havia fixado em pauta. Importante ressaltar que apesar do interesse em renovar a identidade brasileira na cinematografia da época, fazendo com que o público se reconhecesse cada vez mais nas telas, algumas escolhas de representação no filme são inevitavelmente problemáticas social e racialmente ¬ o que é uma premissa para o entendimento dos filmes de Cacá: seus registros são datados, históricos. Esse feito renovador faria ressurgir ainda alguns moldes de linguagem da chanchada como parte da estratégia de audiência. O carnaval, motriz fílmica bastante íntima do público de cinema das décadas de 30 à 50, é pano de fundo para a narrativa do filme e também para as representações de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão, que brincam e jogam com a fama que têm fora da tela. As personagens possuem características que são percebidas claramente nas personalidades dos músico-¬atores. Outro atributo à chanchada na linguagem do filme é a não utilização de contra¬planos nos diálogos, e a câmera sempre frontal por vezes evidenciando os cenários. É aí que entra a maestria do diretor de fotografia e cameraman, Dib Lutfi: a união de duas grandes fases do cinema nacional, até então declaradas opostas por Glauber. A câmera na mão, representação máxima do Cinema Novo, e somente possível com a presença e eficácia de Dib, dança em cena com as personagens, dando força às performances de Bethânia, Chico, Nara e Antônio Pitanga. Um dos traços mais louváveis do/no filme.


17 o movimento em “carreiras” por LIZ RISCADO e MAIANA BRITO

Interessante pensar este filme a partir do seu movimento; seja o movimento político que ele traz, ou o movimento de câmera e até mesmo as idas e vindas da protagonista. Ana Laura, personagem da atriz Priscila Rosenbaum, e seu enredo são uma adaptação do texto teatral Corpo a Corpo do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha).O diretor Domingos Oliveira tem uma longa experiência enquanto dramaturgo, ator, e cineasta. O teatro está na sua vida desde a infância, foi ator e ao longo dos anos dirigiu peças e escreveu muitas delas também. No cinema estreou com Todas as mulheres do mundo(1966), com a atriz Leila Diniz e o ator Paulo José. Em 2004, Domingos estreou a peça Profissão Âncora com Priscila Rosenbaum também atuando, a sua relação com o teatro e o cinema éintrínseca, em 2005 ele lança Carreiras com a adaptação do texto agora para as telonas. Do resultado de um posicionamento político do diretor Domingos de Oliveira no que diz respeito ao fazer cinema e o fazer cinema no cenário nacional, Carreiras surpreende com a quebra da quarta parede logo no início do filme, através dasimagens e cartelas que informam sobre o seu processo de feitura. A questão do filme de baixo orçamento é colocada e começamos a trilhar o caminho através do qual o diretor quer nos levar. Para a construção da personagem Ana Laura há uma breve apresentação narrada por ela, aos poucos vamos montando o quebra-cabeça, já que de imediato somos levados a uma conversa na mesa de bar. A metalinguagem é presente no filme, e nesta conversa participamos como ouvintes de divagações sobre o cinema e o teatro. Neste momento temos uma câmera livre, que passeia e se expressa ao dar o zoom em cada rosto e em cada detalhe. Ana Laura é uma mulher branca que beira os 40 anos eestá em crise com a sua carreira profissional. A atuação visceral da atriz compõe muito bem a personagem e conduz o enredo, a fotografia e a movimentação da câmera ajudam a compor o ritmo com que somos levados a acompanhá-la em uma noite explosiva e uma manhã de luz. A cor branca é bem presente no filme, seja nas paredes do apartamento



de Ana Laura, no seu figurino ou nas carreiras de cocaína. O estourado da fotografia traz essa iluminação excessiva e que muitas vezes parece mais o universo intensode onde veio Ana Laura, do sucesso na TV à decadência e às carreiras de cocaína. A superexposição e a fragilidade da personagem compõem a cena no apartamento, já as cenas externas nos lembram de que ainda é noite e o tempo cronometrado aumenta o frenético ritmo da jornalista. Domingos interpreta Esteves, o ex-marido, cineasta de filmes independentes. No encontro entre os dois,os acompanhamos através da câmera na mão e dos movimentos de zoom in e zoom out. Durante o filme seguimos essas idas e vindas, encontros e desencontros da personagem que ao amanhecer desacelera em frente ao mar. É através do olhar do fotógrafo Dib Lutfi, conhecido e reconhecido por conduzir habilmente câmeras munidas da “aurática” película cinematográfica que surge o Dib digital, lançando mão da potencialidade de uma câmera minidv. Com este aparato técnico ele conseguiu construir a sua forma de expressão, seja no movimento de câmera com o zoom ou na própria relação entre câmera e atriz. A coreografia é algo importante para um fotógrafo que realiza uma câmera na mão, no fluxo do filme percebe-se que a interação dos dois acontece de maneira a surgir uma composição. A construção da personagem e a fotografia estão entrelaçadas pelo seu movimento.O transitar de Ana Laura pelo apartamento e pelas ruas é acompanhado pela câmera que a segue incansavelmente, a relação corpo-personagem-câmera é intensa. Esta câmera alterna também em relação ao corpo da personagem e horas é colocada fixa, como apenas um observador que vê a situação com certa distância. Com um superclose pode-se acompanhar a imagem, por exemplo, de Ana Laurafalando para a câmera como um confessionário. Na diversidade de planos e movimentações percebe-se a escrita que o diretor e a atriz vão traçando ao longo do filme. Esta é uma fotografia fundamentada na simplicidade e Dib Lutfi a fez muito bem, com o uso de poucos refletores e a competente exploração da luz natural, nas ruas de dia e de noite. Carreiras foi o terceiro trabalho que Dib fez parceria com Domingos de Oliveira, os outros foram: Edu, coração de ouro de 1967 e Feminices de 2004, nos quais foi câmera e diretor de fotografia. Para além das questões que envolvem a técnica e o suporte no qual o filme foi “impresso” a potência de Carreiras é elevada a máxima potência, graças a uma impressionante sintonia entre atriz, diretor e fotógrafo.

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ANA, do plano à sequência por LETÍCIA RIBIEIRO

Nos primeiros caminhos cinematográficos, ainda em Salvador, ouvia atenta as aulas de André Setaro na Casa Amarela do Rio Vermelho, quando ele contava apaixonado a magnitude e precisão dos clássicos planos-sequência da cinematografia mundial. Ele se deleitava narrando o famoso plano de Profissão Repórter (1975), de Antonioni, aquele que a câmera em um travelling e “atravessa” as grades do quarto. Talvez ele antecipasse a minha sensação enquanto espectadora, mas naquela noite de quarta-feira, deu-se o rec na minha trajetória na fotografia de Cinema. Enquanto conhecia e degustava o nosso cinema “colonizador”, outras descobertas se tornaram necessárias e fundamentais, como a linguagem própria do Cinema Brasileiro. Embebida pelo movimento do Cinema Novo, e uma das suas premissas; a ruptura com as condições e idealizações do ato de filmagem convencionais da época, o movimento que almejava sair dos estúdios e ir para as ruas, para filmar as adversidades de gente de verdade – macro representação das classes – precisava de uma (re)renovação no uso de todas aquelas parafernálias, que encabeçavam e encareciam a produção, e que limitava também a orquestração dos planos-sequências modernos até então. A descoberta de Dib Lufti em meio a Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, foi como os fogos em dia de Santo. Sua pegada de câmera influenciava não só o meio de realização, mas também a estética fílmica. Como ele, naquela época, fazia aquilo tudo sem o uso de um steadycam? Só com a flexão dos joelhos, sustento nos ombros e força nas mãos, como o próprio diz. A câmera de Dib Lufti contracenava com os atores, respirava no compasso deles. Te fazia imergir no filme à medida que ela revela e te leva para dentro do cenário, para a própria mise-en-scène de determinado diretor. Os filmes pareciam ser mais nossos, mais vivos, mais orgânicos. Um movimento contra hegemônico da época, muito próximo também da nossa realidade. Novos realizadores saídos das recentes escolas de Cinema, e/ ou dos realizadores independentes (dependentes) de editais. Ainda era verão quando, Camila Camila, diretora de ANA, me falava da vontade de filmar em plano sequência, e como esse processo poderia ser enriquecedor à sua pesquisa em performance e ao filme documentário, ainda muito em papéis rascunho do que ele viria a ser. ANA trata da história dela e das histórias familiares que perpassam sua formação enquanto mulher, mulher-cineasta, e como se construiu pro/no mundo, com a educação dada por sua vó às tias e sua mãe,



uma outra mulher, mas agora psico-maníaca depressiva. Desconstruir a loucura em plano-sequência, mas como, eu questionava? Um trabalho desafiador, conhecendo a magnitude e preparo na mise-en-scène que seria demandada. Conhecendo algumas histórias dos sets com Dib que ele próprio conta em entrevistas, resmungava: daqui a pouco, a diretora vai querer uma cambalhota também (como Dib Lufti fez no filme O menino da calça branca (1961), de Sérgio Ricardo). É inevitável falar aqui também do baixo orçamento para realizar ANA, como definidor do não uso de maquinária pesada, como travelling, gruas, dollys, rodamos o filme todo em câmera na mão, uma Blackmagic Pocket Cinema Camera, uma miúda, que se adaptou muito bem nas minhas mãos. Estávamos em locações reais, tratando de histórias e memórias ‘reais’, a câmera na mão traria uma maior organicidade as sequências, com uma relação menos mecanizada e inibidora da atuação do corpo/personagem/atriz em cena. A câmera como cúmplice da atriz/personagem, se dando presente em cada respiro, acompanhando o desenlace do seu corpo; eu andando de costas, guiada por Maiana Brito, minha assistente e olho traseiro, nós de frente pra história. Como Dib Lufti e sua praticidade de iluminação, a intenção era de trabalhar o mais próximo do naturalismo para que contrastasse com a cenografia surrealista proposta como ação provocadora àquelas histórias na atriz, decidimos então ter o maior aproveitamento da luz do sol, mesmo nas cenas internas; explorando as frestas e as telhas abertas (ou destelhando), utilizando espelhos, aproveitando a luz das janelas escancaradas do Engenho da Vitória. Sim, num horário muito arriscado e apertado, 15h às 17h22m, o pôr-do-sol, horário que ele caía no horizonte em março de 2015. Sob o risco da luz, da tomada do sol, da performance como acontecimento, mesmo as representações sendo previamente delegadas à atriz e/ou marcações em set. Desaturamos a cor, apostamos no P&B com um contraste forte e marcado, numa vontade de uma maior imersão do espectador às histórias contadas através de um corpo silencioso em cena, mas, ao mesmo tempo, polifônico de memórias. Plano sequência como potência imagética, e para tal, elegi rodar o filme todo com uma única lente grande-angular, 35mm, que além de unidade estética, me propiciasse uma maior profundidade de campo, planos abertos que favorecessem a disposição dos objetos cênicos, quanto à liberdade do corpo em quadro, bem como o meu próprio posicionamento enquanto camerawoman, ao meu próprio corpo fora-de-campo, ou não. Sempre brinquei que Dib Lutfi era meu mentor espiritual, mesmo ele em vida. Além da admiração, não sei, alguma telepatia, ou ‘camerapatia’ aconteceu. Sem dúvida, uma forte influência que tenho na realização desse trabalho.

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(re)conhecendo por FREDERICO LOBO dib lutfi Foi naquela manhã de outono que o conheci. No pequeno e pacato interior do Rio de Janeiro, Xerém, a luz era bem bonita às 7 da manhã. O bucólico som dos pardais nas tamarineiras e o vai e vem de bicicletas e alguns cavalos e charretes possibilitavam uma cena perfeita para o encontro tão esperado. Levado por lembranças dos filmes que já tinha visto, refazia em meus pensamentos a sequência perfeita para o momento, desde o caminhar com a câmera no ombro, como se estivesse pisando em ovos, aos detalhes da luz minuciosa no contra plano. Dib Lutfi era assim, um mestre na arte da fotografia e câmera, e eu tive a sorte e o privilégio de poder trabalhar junto com ele. O ano era 2003, na época eu ainda não trabalhava exclusivamente como cinegrafista - foi um pouco depois disso - fazia captação de som direto e fui convidadopara trabalhar no curta metragem de Denise Figueredo chamado Jaqueirão do Zeca, ganhador do Festival do Rio em 2004, filme que mostrava de uma forma bem solta oprocesso de seleção das músicas que iriam entrar no próximo disco de Zeca Pagodinho. Ali encontravam-se todos os compositores que queriam mostrar seu trabalho e acontecia uma grande festa pra isso, com muito samba é claro! As ilustres presenças, além de Dib, claro, eram Monarco, Jamelão, Arlindo Cruz, Dominguinhos, Nei Lopes e muitos outros sambistas que fizeram e fazem a história do samba carioca. Dib Lutfi foiconvidado para fazer a fotografia e câmera do filme, e eu, como estava fazendo o som,tinha a grata tarefa de “contracenar” com o homem. Muitos planos, muitas olhadas, muita conversa, muitas dicas e conselhos; destes, o principal pra mim foi como andarcom a câmera na mão. Após sairmos de charrete pra fazer imagens e som ambiente do entorno do sítio onde aconteciam as filmagens, pude ter esse momento mais de fã, diríamos assim; fizemos um intervalo pra relaxar e curtir o lugar e não perdi a oportunidade de elogiar seu trabalho e de falar sobre a vida. Contou-me muitas histórias da época do Cinema Novo, falamos sobre o cinema atual, expectativas, enfim, um papo de quem ainda não se conhecia, mas tinha um trabalho a ser feito em comum, aproveitei e perguntei como ele fazia pra conseguir andar com a câmera sem trepidar tanto com os passos, ele deu um sorriso e disse assim: “Tente andar como se você quisesse ser mais baixo uns 10 centímetros, vai ter que agachar pra conseguir não é mesmo, dobre seus joelhos e siga em frente!”. Conselho dado, conselho absorvido, e posso dizer que essa consultoria me valeu demais na profissão.




Foto: AndrĂŠa Cebukin



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