Os Fios de Recontos

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Iasmin Gonçalves


Apoio Financeiro:




Um livro de Iasmin Gonçalves


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Esta obra é destinada aos estudantes e educadores do Ensino Médio da Educação Básica de Ensino. Resultado de uma pesquisa-ação sobre questões de raça, gênero e juventude, como material pedagógico que pode ser utilizado para o ensino interdisciplinar. A fim de abordar as interfaces das relações etnicorraciais, contribuindo para ampliação do conhecimento de toda comunidade escolar. As histórias de vida ensinam, personificam e materializam as aprendizagens. Convido a todos a navegar por estas Histórias de vida tão singulares ao nosso mundo!



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Os Fios de Recontos - Apresentação | página 10

Apr e s entaçã o Este livro resulta da pesquisa sobre Histórias de Vida e Formação, e suas interseções com as questões de raça e gênero, através das memórias, biografias e narrativas de jovens negras, estudantes da educação básica, em escolas públicas do Recôncavo da Bahia. Relatos pessoais, coletivizados nas Rodas de Saberes e Formação (RFS), permitem e proporcionam às estudantes questionar-se, reconhecer-se, afirmar-se acerca das identidades coletivas e individuais (Jesus, 2010, p. 320). O objetivo geral desta pesquisa é produzir um livro paradidático de “contos formativos”, elaborados a partir do entretecimento das histórias de vida e biografias individuais, sobre as temáticas de raça, gênero, juventude e identidade étnicorracial. O livro, resultado do Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas (CAHL/UFRB) se destinará aos anos finais da educação básica. Como estratégia para a produção das narrativas de vida, foi utilizada as RSF-Rodas de Saberes e Formação, uma “metodologia de ação” que consiste em uma tecnologia socioeducativa, a qual proporciona a reflexão coletiva e horizontalizada sobre questões de temas elencados, em encontros gravados e sistematizados, respeitando o sigilo das identidades das participantes. Deste modo, os “contos formativos” constituem-se da elaboração de narrativas recriadas, reinterpretadas, baseadas em fatos reais, que estimulem a reflexão, a apropriação e a releitura de fatos vivenciados por jovens mulheres negras, que permitirão debater temas como racismo, discriminação, violência, sexualidades, políticas afirmativas e acesso à educação. As histórias de vida apresentam pontos de similaridade entre as experiências de constituição da identidade de gênero-raça-sexualidade de mulheres negras, estudantes de escola pública, oriundas de famílias de baixa renda, de famílias monoparentais, e/ou com pais com baixa escolaridade. Reconhecendo estes percursos e ao identificá-los como um traço característico das participantes da pesquisa, ao conjugar estes aspectos, contados e recontados por cada uma delas, utilizo os contos que mesclam várias histórias de vida e formação. (Re)elaborando nestes contos histórias positivadas de superação e vitória, protagonismo, companheirismo e emancipação dessas meninas-mulheres, como mecanismo de (trans)formação, para servir a outras histórias de luta e de conquistas, ainda em potencial, a outras jovens que com elas se identifiquem. Ao enfocar a perspectiva da história de vida como um conjunto de ações sociais, o livro, Os Fios dos Recontos, em sua construção e resultados, tenta contribuir também na formação dos/as profissionais de educação, como possibilidade de aplicação para a Educação das Relações Étnicorraciais na Educação básica.



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“A vida é igual a um livro. Só é depois de ter lido que sabemos como encerra” Carolina Maria de Jesus

Muito bem, Carolina! Admiração. Contentamento. Orgulho. Esperança. Uma geração de mulheres negras na academia, olhando outra geração de mulheres negras, surgindo na universidade pública brasileira. Mulheres negras que falam em primeira pessoa, dizem seus nomes e inscrevem suas histórias de vida e formação, fazendo valer a luta de hoje, por todas que vieram antes de nós, por todas que virão depois de nós e a partir de nós. Essa é a pujança da formação da mutualidade que fez crescer em Iasmin Gonçalves a capacidade de entrelaçar os fios de muitas vidas de mulheres negras, para servir de matéria de formação identitária, política e emancipatória para jovens negras na Educação Básica. Iasmin Gonçalves é uma mulher negra de Cachoeira, Recôncavo da Bahia. Filha de uma forte mulher, na qual ela muito se inspira. Estudou no Colégio Estadual da Cachoeira. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Estudante cotista, militante, liderança estudantil, integrante do Programa de Educação Tutorial estudando acesso, permanência e pós-permanência de estudantes cotistas no Ensino Superior, co-fundadora e professora no curso comunitário preparatório para o ENEM - ONIM, Especialista em História da África (IFBA), Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas (MPHADPI/CAHL/UFRB), contista, empresária negra, fez da abordagem (auto)biográfica uma vertente de produção epistemológica, de (auto)conhecimento, poder libertação e cura feminina, sobre as questões de gênero, racismo, emancipação e identidade feminina e estética negra.


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O livro “Os Fios dos Recontos” traz o entrelaçamento de muitas vidas de jovens negras, estudantes das escolas públicas, em geral, oriundas de famílias negras, que estão nas periferias urbanas, nas zonas rurais, e que criam estratégias de sobrevivência. Por esse caminho, a autora utiliza os contos formativos como mecanismo de (trans)formação dessas histórias de luta, de dor, em uma potência que incite, informe, faça questionar, através da cumplicidade de seus relatos, fazendo surgir o encorajamento que permite reconhecimento, valorização e mutualidade na formação e no enfretamento das violências que interseccionam a condição de mulher negra no Brasil. Tendo como base o conceito de narrativas formativas proposto por Roberto Sidnei Macedo (2017), através dos (re)contos, são reunidos diferentes relatos biográficos, criando sínteses, recriando e conjugando experiências de vida e formação, gerando um material riquíssimo que se presta singularmente aos processos de aprendizagem com e pela vida. Ampliando e potencializando para o ambiente escolar, a abordagem pedagógica das experiências de vida. Desse modo, “Os Fios dos Recontos” apresenta transposições teóricas e narrativas, que resultam em “contos formativos” ficcionais, construídos a partir da metodologia das RSF- Rodas de Saberes e Formação (RSF), uma tecnologia sócioeducativa que proporciona a reflexão coletiva e horizontalizada sobre questões de temas elencados aqui como as questões de raça, gênero e identidade (Jesus, 2010), que resultaram da elaboração de narrativas recriadas, reinterpretadas, breves que incitam à leitura a partir de histórias de vida reais, de jovens mulheres negras, identificando as conexões entre as trajetórias de vida e formação, e a construção das identidades de gênero e étnico-racial. “Os Fios dos Recontos” são, portanto, uma tessitura de muitas vidas, uma abordagem transgeracional, com ancoragens na ancestralidade e na estética negra, conectando histórias, lutas e conquistas do povo negro. Porque há muito a ser feito ainda, mas somos muitas agora! Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus (UFRB)


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Sou Nina, negra como a noite! Tenho 16 anos, trago um sorriso frouxo e olhar atento, bem parecido com o da minha irmã mais velha, Joana. Ela tem dois filhos - a Lua e João - meus sobrinhos queridos, que moram um pouco distante, por isso, quase não os vejo. Onde nasci, no Córrego da Mãe D’ Água, um povoado da cidade de Cachoeira dos Lírios, havia muitos jambeiros, mangueiras e tantos aromas se misturavam com os cachorros correndo pela grama e pelo chão de terra batida. Mesmo com a chegada do asfalto, e a mudança do lugar, ainda sinto o cheiro da infância. Por lá, as mulheres da comunidade sempre fizeram o que podiam para manter suas famílias. E, por falar em família, sou criada pela minha tia, pois minha mãe faleceu vítima de feminicídio, um tipo de crime praticado contra as mulheres. Nesse caso, foi meu pai o agressor, logo ele que nunca esteve presente em nossas vidas.


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Por ter uma vida marcada por fortes experiências, vocês podem imaginar que, com esta idade, já tenho pelo menos em mente “o que quero ser daqui a alguns anos”! As minhas professoras da escolinha que o digam, todas elas pareciam que decoravam este texto, ano após ano. E o que é ser? Até onde eu posso ir? Respostas que poderiam ser simples, mas que no nosso caso, para ser de fato simples, era necessário conhecer a nossa própria história. A História dos nossos ancestrais e antepassados. Lembro que na infância, na escolinha, todos tinham apelidos, e o meu era cabelo de “pixaim”. Apenas entendia que pelo fato de meu cabelo não sair do casco, me chamavam assim, mas eu não gostava. Aliás, não consegui gostar de mim mesma por muito tempo, mesmo quando minha tia espichava meu cabelo e ele, por alguns breves momentos, parecia voar. Hoje, estou bem diferente e, ao olhar no espelho, vejo-me com outros olhos, sinto-me livre! Mesmo com as críticas de minha tia, que gostaria de continuar espichando meu cabelo. Meu cabelo “Black” de hoje em dia combina bem com o tamanho dos meus lábios. Ainda mais, quando coloco o batom roxo maravilhoso! O meu preferido. Coisas do empoderamento. Sou linda! Posso ser eu mesma, e ainda quero muito mais! Não posso deixar de falar sobre Dona Lili, uma grande amiga, por quem tenho carinho como a uma mãe. Cuidadosa nas horas que mais preciso, tem sempre bons conselhos, e muitas histórias para contar. Em uma dessas histórias, contou-me que inúmeros dos nossos ancestrais se sacrificaram muito para que, de geração em geração, as coisas mudassem até chegar a mim. Na realidade, aprendi que



O dia em que Nina aprendeu a sonhar |

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foi um esforço coletivo, para que nós chegássemos a nos reconhecer mos como pessoas negras e ver nisso dignidade e valor. Sempre muito sábia, sentava toda tarde embaixo dos jambeiros, para contar histórias. Aquelas árvores, gentilmente, desenhavam um tapete rosado no chão, para enfeitar o cantinho adorável de Dona Lili. Com os seus 65 anos de idade, adorava tranças nagôs no cabelo. Era uma linda imagem, pois sua pele reluzia como a minha. Somos muito parecidas! Olhando bem para os meus olhos, disse-me que foi muito difícil o seu tempo de juventude. Naquele momento, sobre o tapete rosa, vi os seus olhos se encherem de lágrimas. Conta que a sua avó e a sua mãe não sabiam ler, e nem escrever. Elas não tinham tempo para a escola. Preocupavam-se em alimentar seus filhos. Ela própria parou de estudar nas primeiras séries do primário, teve filhos logo cedo. Luiz e Antônio dependiam dela, por isso, o trabalho era a garantia da sobrevivência, e o sonho do estudo foi ficando distante. Com muitas responsabilidades, abriu mão de sua vida. As histórias de D. Lili foram crescendo dentro de mim, criando raízes como as daqueles jambeiros. Continuei com os olhos e ouvidos sempre atentos. Dona Lili, respirando profundamente, pediu para que prestasse muita atenção no que iria me falar. É, claro que seria algo de bom! Esperava gargalhadas, sorrisos, mas o que veio foi uma pausa. A primeira gota em seus olhos caiu. Ela, no compasso de sua respiração, disse-me que se esqueceu de sonhar. Nem sua avó, nem sua mãe, ou ela tiveram tempo de sonhar. A vida dura as engoliu. O mesmo aconteceu com a minha mãe. O sonho, essa coisa pouca para muita gente, entre nós tem sido tão raro que foi sendo esquecida. Com voz firme, Dona Lili me disse:


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“E você, Nina, não pode deixar de sonhar! Mas, é para sonhar de verdade. Sonhar grande! Não deixe que o tempo ruim passe por cima de você!”. De imediato, lembrei-me das professoras da escola. Será mesmo que elas estavam falando de sonhos? Então, falei para ela que eu achava que tinha um sonho. Com vergonha de falar qual sonho era, calei-me. A primeira vez que disse em casa, estava no 7a Ano. Minha tia deu muitas gargalhas, e disse que era impossível. Lembro bem da sua fala: “Você é muito preta para isto!” Com Dona Lili era diferente! Senti-me tão à vontade naquela tarde. Sabia que a ela eu poderia contar o meu sonho. Demorei um pouco, mas no mínimo de silêncio de Dona Lili, eu soltei. - Eu quero ser alguém. Quero ser advogada, para defender as mulheres que sofrem violência.

com as lágrimas já secas, me olhou dentro dos olhos, respondendo silenciosamente, que eu deveria ir, e realizar o que eu sonhava. Já chegando no desembocar da noite, percebi que naquela tarde eu havia aprendido a essência de sonhar. A minha força veio dos meus pés fincados no chão dos meus antepassados. Ao descobrir que sonhar seria por mim, mas também por todos/as que vieram antes de mim, por todo suor derramado nas lutas por liberdade, por toda memória que tentaram apagar, e pelos meus ancestrais. Eu não poderia esquecer-me de sonhar!


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Casco: Coberta óssea da cabeça; crânio. Empoderamento: sobre os direitos sociais e civis. Esta consciência possibilita a aquisição da emancipação individual, e também da

Feminicídio: É o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro. Ancestrais: São antepassados de um grupo populacional com parentesco em comum. Termo designado para gerações anteriores de uma família, individuo. Tranças Nagôs: As tranças nos cabelos têm origem no con�nente africano, principalmente na região da África Ocidental. Registros históricos datam a par�r do aparecimento da cultura NOK, uma importante tradição de povos pré- coloniais. Mas, é com a colonização do con�nente africano que o termo “tranças nagôs” surgiu, pois “nagôs” era um termo u�lizado pelos colonizadores europeus para designar todos os povos que falavam a língua iorubá ou ioruba (Èdè Yorùbá, “idioma iorubá”) é um idioma pertencente as línguas nigero-congolesa.


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“Já são seis e meia, acorda para não se atrasar!”, disse minha mãe,

Lúcia. Todas as manhãs é uma sina. Um trabalho para levantar. Hoje,

meus quase dezoito anos, percebi o quanto tenho me transformado. A vida tem sido intensa, mesmo da escola para casa, da casa para escola. No interior, na cidade de Cachoeira dos Lírios, onde moro, as casas são muito próximas uma das outras. As ruas são recheadas de mangueiras. Todos se conhecem. Todos sabem que sou filha de D. Lúcia, neta de D. Dadá que tem uma barraca de frutas e legumes, localizada em frente à Igreja dos Remédios. É..., aqui as pessoas procuram saber de quem somos filhos. Tenho dois irmãos. Meu pai saiu de casa quando éramos crianças, e não cumpriu durante muito tempo suas responsabilidades. Muitos dizem que sou muito parecida com a minha avó. Temos a mesma cor, olhos, cabelos. Sempre ajudei minha avó na feirinha, no turno oposto à escola, pois sei que ela precisa de mim.


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Hoje, meu pai tenta se aproximar. Mora em uma cidade próxima, mas não conseguimos manter uma relação devido às dificuldades que passamos com sua ausência. Eu e meus irmãos ficamos com um trauma. Minha mãe, com a ajuda de minha avó, conseguiu sustentar a casa, não houve apoio da parte dele. Acredito que com o tempo possamos vir a enxergá-lo de uma maneira diferente, se ele conseguir explicar os seus motivos, e formos capazes de compreender e perdoar. Então, somos apenas nós cinco, sempre cuidando uns dos outros. Minha cidade é dessas com gente de toda cor, mas aqui as pessoas falam que negro é quem tem a pele bem escura. Na escolinha, todos me chamavam de “café com leite”, moreninha, misturada. Minha avó disse-me que somos negras, somos descendentes de reis e rainhas do continente africano. E, que essas pessoas foram ensinadas a pensar assim, que negro tem que ter a pele bem escura, porque eles associam a cor da pele à escravidão. E nós associamos esta pele com a nobreza de gente trabalhadora, digna, que foi humilhada pela usura e cobiça de outras pessoas. Confesso que era difícil para mim entender essa diferença entre o que minha avó ensinava, e o que todo o resto das pessoas diziam. Eu vivia me perguntando quem tinha razão. Olhava para mim, com meus olhos claros, meus cabelos crespos, e uma pele escura. Olhava para minha mãe, meus irmãos e minha avó, e sabia que eu era negra. É assim que me vejo, hoje, não quero ser mais a “moreninha”. Porém, passei por algumas transformações. Lembro-me que uma das coisas que me intrigaram desde criança, era o meu cabelo. Na escolinha do bairro, onde estudei na infância, minhas amigas de turma eram


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parecidas comigo. O nosso cabelo tinha várias texturas, várias formas diferentes. O que não era muito aceito por nós. Queríamos ser que nem as princesas dos desenhos. Aquelas branquinhas, loirinhas, com cabelos que voam ao vento. Sempre levávamos bonecas para brincar. Nós queríamos mesmo era ter os cabelos longos, lisos, com balanço, iguais às nossas bonecas. Mas nossos cabelos exigiam controle, eram presos bem apertado, isso parecia que nos limitava também. Aos onze anos, minha mãe começou a relaxar o meu cabelo. Ficava igual ao dela, eu achava isso bom. Achava natural, como falavam, não dava trabalho de pentear, e até dava para ficar solto, o que era melhor ainda. Minha mãe cuidava dos cabelos toda semana. Sempre que tinha tempo passava o “ferro”, aquelas duas chapinhas que se esquentava ou no fogareiro de minha avó, ou no fogão, quando a situação estava melhor e podíamos gastar um pouco de gás! Com o tempo, as coisas foram melhorando, o ferro foi substituído pela chapinha elétrica, um luxo que ganhei de presente de aniversário. Passei um bom tempo usando essa forma de cuidar dos meus cabelos, a raiz crespa crescia, aparecia, e de novo, já estava na hora de alisar. O cabelo de preto, esse que todos chamam de “cabelo black”, hoje em dia, não era muito aceito aqui em casa, principalmente, pela minha mãe.

somente pelo tempo. Em uma quarta-feira, um dos dias de maior tarde, depois de desarrumar a barraca, pedi o dinheiro para comprar o produto. Meu cabelo já estava com a raiz alta, eu já me achando feia, estava impaciente. Ela então me perguntou: “porque vai fazer isso com o seu cabelo? Você lembra que seus cabelos eram iguais aos meus?” A


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Ela deu-me o dinheiro, mesmo não concordando com a minha vontade. Segui para casa. Ao chegar, parei na frente do espelho e me senti bem, no entanto, sempre escutei a minha avó, aquela pergunta não saía da minha cabeça, os seus questionamentos eram precisos. Incomodavam. Com isso, não passei na lojinha de cosméticos para comprar o alisante. Lembrei-me na infância, do meu cabelo natural. Muito cheio, ele não balançava, ficava no mesmo lugar sempre, tinha uns cachos bem fininhos. Estava sempre preso. Minha mãe fazia uns penteados com tranças, uns cocós, colocava fita colorida. E, quer saber? Eu me sentia diferente, confrontando essas lembranças e a pergunta de minha avó. Fui dormir com a cabeça cheia! No dia seguinte, na escola uma colega de turma na escola, em uma conversa, no intervalo das aulas, mostrou através de uma página do facebook que várias meninas usavam produtos e técnicas que deixavam seus cabelos naturais “bonitos”. Parecia uma febre, muitos jovens, adultos, tanto homens quanto mulheres estavam aderindo ao movimento. E, na escola não foi diferente. Ao entrar na rede, percebi que existiam meninas iguais a mim. Mas, que iniciaram o período de transição capilar. Retornando às suas raízes, ao cabelo natural. De imediato, o questionamento de minha avó parecia fazer sentido. Passei uma semana acompanhando as fotos,

mesmo de uma transformação de vida o que se tratava ali. Não era só se o cabelo era esticado, cacheado ou encarapinhado. Não era uma simples mudança de estilo, de estética. Era uma transformação, era algo que se fazia de dentro para fora, e de fora para dentro, uma valorização do que


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se era de verdade. Tratava-se de algo que minha avó possuía, e aí eu começava a entender. Na semana seguinte, em uma terça-feira, minha mãe nem precisou gritar, como de costume. Levantei, tomei banho, tomei café e fui para escola. Decidida, eu estava! Falei com Dandara, que já havia feito sua transformação. O professor de matemática tinha feito prova, e saímos mais cedo. Passei pelo corte, chamado big chop. Ao chegar em casa, foi uma surpresa, minha mãe não esperava. E questionou porque eu tinha feito “aquilo” no cabelo, pois ela me achava mais bonita com o cabelo alisado. Com o tempo, ela passou a aceitar, mas permanece com seu cabelo alisado. Sei lá, ainda não chegou o tempo da consciência dela. Minha mãe passou por muitas imposições, para conseguir trabalho, para nos manter. Eu a compreendo, aceito que cada uma de nós precisa ser entendida no conjunto de suas próprias vivências, e que no convívio, assim como minha avó me influenciou, podemos interagir e nos influenciar mutuamente. Acredito estar fazendo a diferença, começando por mim, me olhando no espelho, vendo o que em mim mesma é reflexo dos ensinamentos limitantes que tentaram me impor. Para isso que aprendi chama-se de descolonização do pensamento. Quem primeiro tem que se libertar, é essa outra pessoa que vejo no espelho, e que traz as características que não são as minhas. Mudar o que vejo no espelho, me libertar, não como uma imposição para os outros, mas para as pessoas enxergarem a mim como me vejo por dentro. Como quero me ver por fora, respeitando, e sendo assim, respeitada.


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Cortar o meu cabelo foi uma das coisas mais importantes que fiz. No início não foi fácil, cortei pequeno, mas à medida que se mostrava sentia-me melhor. Hoje, já com um tamanho maior, uso de variadas formas. Aprendi a trançar com lã os meus cabelos, a fazer as tranças soltas, livres, a deixar o cabelo se espalhar como ele queira, na sua forma, uma forma que combina com meu rosto, com meus olhos, com minha pele. Uma forma que combina com os meus parentes, meus amigos, com meu povo. E assim, descobri nessa forma de me encontrar com os meus fios de cabelo, a forma de me encontrar com minha identidade. Redescobri a mim na minha avó, na sua forma de ver e estar no mundo.


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Chapinha: Pequena chapa. Termo popular usado para utensílio domés�co e profissional para alisamento de cabelos. Facebook: Uma rede social gratuita criada em 2004. U�lizada por diversos usuários que criam perfis com fotos, interagindo através de mensagens públicas e privadas em listas, grupos de amigos. Moreninha: Segundo algumas fontes de dicionários, como o Aurélio, significa adj. es.m. Diz-se de, ou quem tem cabelos negros e pele um pouco escura; associado a termos pejora�vos e designação irônica ou eufemís�ca que se dá aos pretos e mulatos. Também pode ser entendida como uma categoria auto-atribuída para designar a cor no Brasil inserida em contexto histórico. Relaxar: Uma técnica de alisamento químico dos cabelos, indicado para cabelos cacheados ou crespos. Transição Capilar: Um movimento que cresce no Brasil, através de um processo capilar, em que a mulher deixa o seu cabelo, antes com o uso de química, para o natural crescer da raiz até que a�nja um comprimento ideal. O chamado Big Chop (ou BC) tem sido muito u�lizado. Trata-se do grande corte que �ra todas as pontas lisas para chegarem a textura natural dos fios.


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Cocós: Penteado nos cabelos, que u�liza da técnica de enrodilhar os cabelos em partes iguais prendendo com xuxas e/ ou grampos. Big shop: Também conhecido como “grande corte”. Utlizado para re�rada da química de cabelos crespos e cacheados que estão passando pelo processo de transição capilar. Parte de um movimento crescente, nos úl�mos cinco anos no Brasil, em que pessoas negras tem u�lizado os cabelos de forma natural deixando parte dos procedimentos químicos de alisamento. Descolonização do conhecimento: Descolonizar significa repensar, reconstruir nos espaços de sociabilidade os saberes construídos a par�r de uma lógica Européia. Trata-se da ampliação e democra�zação dos conhecimentos silenciados, ocultos, desconhecidos pelas atrizes e atores sociais.



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caminhos de s Za O ila

Tudo começou nas férias, na casa de bisa Adelaide, precisamente, no verão. Já são cinco da manhã, e precisamos adiantar para partir mais uma vez. Mainha e Painho numa agonia, com medo de perder o transporte. A casa de bisa Adelaide fica no interior, um pouco distante de moramos há três anos. Faz dois anos que não a visitamos. Hoje com dezenove anos, embora pareça que tenho quinze, desde a infância, passar as férias na casa de bisa era um dos momentos mais esperados do ano. Reencontrar com os amigos, andar de bicicleta na frente da igrejinha e subir nas mangueiras. Afinal, era tempo de muitas mangas.


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Acostumada a partir de um lugar para o outro, por conta do emprego do meu pai, em apenas um ano passei por duas escolas. A cidade em que vivemos por mais tempo, nesse ano, foi Tinharé. Recordo-me dos apelidos na escolinha: “girafa”, “cabelo de bruxa”, cabelo da mata de São Cristóvão, esse último eu tive até que perguntar para minha mãe, mesmo sem dizer o motivo, porque fiquei intrigada para saber que “mata” era essa! Ela me disse que era uma mata em Salvador, uma mata muito fechada, onde dizem, viviam só negros no passado. Aí logo entendi o apelido! Já podem imaginar. Marcas profundas. Confesso que foi um alívio ter mudado para Santana das Luzes. Perguntei aos meus botões: mas por que isso agora? Bisa sempre me conversava muito comigo. Eu escutava, escutava..., mas passava um tempo para entender as suas indagações. Ela usava dizeres e histórias dos mais velhos, provérbios ou itán, como aprendi que se chamavam bastante tempo depois. Imagine! Nessa viagem tínhamos dois anos de histórias acumuladas. Então, eu precisava contar como tinha sido a vida nova, o último ano na escola, os encontros, meus acontecimentos todos. Não via a hora de encontrá-la, sentir aquele abraço. Abraço de quem me protegia do mundo, da “girafa”e da “mata fechada”! As horas passaram lentamente, e ainda estávamos na estrada. Duas paradas no caminho, e enfim, estávamos próximos ao destino final. Sete da noite, chegamos! Lá estava ela, no sofá, agasalhada no seu xale de crochê, nos esperando contente. A tv ligada no jornal das oito. Nada tinha mudado por lá. Até Luck, o cachorro, estava deitado no seu cantinho favorito. Cansada e faminta, eu não tinha forças para tagarelar. Pedi a benção, dei


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aquele abraço demorado, e fui para a cozinha, pois a mesa posta nos esperava. Tinha o favorito de cada um: raízes de batata, de inhame, de aipim, banana da terra cozida, cuscuz de milho com ovos de galinha, que ela criava no seu quintal. O café quentinho, coado no pano. Tudo com sabor singular, coisas do interior, coisas feitas por minha bisavó. Depois de me refastelar com o banquete que nos esperava, tomei um banho, e aí, voltei para perto de minha bisa. Ela sorriu para mim. Chamou-me de “meu passarinho“. Uma saudade. Culpa das andanças constantes da nossa família. No dia seguinte, levantei cedo. Casa de bisa, ninguém passava das oito na cama. Ela não deixava. Batia panela, gritava o cachorro, ligava na rádio local. A gente queria dormir mais um pouquinho, mas achava bom acordar com o zum-zum-zum dela pela casa. Na cozinha, percebi o seu olhar de contentamento em direção a mim, pois ela percebeu, dessa vez, algo diferente. Nos meus olhos talvez... No meu cabelo...? Naquele momento não fazia a mínima ideia. Bisa vem de uma família de mulheres. São as chefas das casas. Conta que sua mãe trabalhava na roça de sol a sol, para botar comida na mesa. Os quadris largos, pele escura, braços fortes, seus cabelos são cacheados, mantidos em um coque. Olhos parecidos com uma jabuticaba. Somos parecidas. Todos falavam. Passei por algumas mudanças. E dessa vez fui com o cabelo natural. A minha mãe também aderiu. Contei que no ano passado, na escola, a professora de artes, através de um projeto sobre bonecas negras, nos fez pensar sobre nós mesmas. Daí, parte da nossa turma decidiu, em coletivo, assumir o cabelo natural.



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Ainda na cozinha, afirmou que meu cabelo era lindo. Encheu-me os olhos. Fiquei besta com isso. Tantas coisas para falar. Percebeu algo que realmente tinha me deixado feliz. Eu tinha me encontrado ao me olhar no espelho. Simples? Para Bisa, não. E nos seus ensinamentos. Lembrou de algo que sua mãe dizia, que aprendeu com a avó: “Pra quem não sabe, um jardim é uma floresta”. A conversa tomou outro rumo. Painho chegou, estávamos na cozinha, após receber uma ligação da empresa de trabalho que pedia a sua transferência urgente. Um prazo de quinze dias. Não me contive, pois lugar. Como já estava acontecendo. Na verdade, painho e mainha não queriam ouvir mais uma vez as minhas insatisfações.

Dois anos de conversa despejados em meio a uma frustração. Foi lá que descobri que meninas, como eu, deixam de ser girafas e bruxas. Também lá que reconheci que meus traços, as marcas da minha raça trazem um significado, uma importância enorme. Que aprendi com ela, e também nessa escola de Santana. Lá tinha professoras diferentes, que eram iguais a gente. E que se preocupavam em contar uma história positiva sobre nós negros, sobre a África, e sobre o que a raça negra fez de positivo para a história da humanidade. Tudo isso por causa de uma lei federal da educação, a Lei 10.639 de 2003, que fez com que todas as escolas do país tivessem que acrescentar conteúdos assim, positivos, afirmativos em relação à história do povo negro.


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Foi assim que passei a não me importar tanto com o que os outros falavam, foi assim que descobri o que era racismo, como deveria enfrentá-lo, e também a sentir o empoderamento negro.

novidades. Eu tentava me acalmar, para poder contar a ela todos os detalhes, mas sempre fui afoita como um redemoinho. Ela escutava com o riso no canto da boca. Encerrou a conversa com um de seus ”. E mais provérbios: “ um, tenha paciência... “fruta boa só dá no tempo”! Dessa conversa com minha bisa, saí pensando em como seria ter, de novo, que me mudar por causa do trabalho de meu pai, mas, também entendi um pouco do que ela quis me dizer, sobre paciência e sobre prestar a atenção ao começo das coisas. Entendi que ela queria me dizer que eu não era mais a mesma, que não teria mais os mesmos medos, tinha chegado. Eu já sabia que eu era!


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Bisa: Substan�vo feminino usada para se referir à bisavó, à mãe da avó; bisavó: gosto de ouvir as estórias da bisa. Mainha: Termo u�lizado no nordeste brasileiro para designar mãe. Maternidade. Painho: Termo u�lizado no nordeste brasileiro para designar pai. Paternidade. “Se quer saber o final, preste atenção ao começo”: Provérbio africano. Racismo: Conjunto de discriminações e preconceitos baseados em teorias, crenças e caracterís�cas biológicas para sobrepor uma raça sobre outra. Pode ser entendido também como sistema polí�co fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras. Empoderamento negro: Lei 10.639/03: Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e par�culares, tornando-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.




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O e s p el

A última aula já estava próxima e ainda não tinha finalizado a atividade de matemática. Levei para casa. A ansiedade me definia. No intervalo, a coordenadora Ana entregou a divisão das equipes para o projeto final da unidade. Na saída, as meninas do primeiro ano estavam me esperando para marcarmos a primeira reunião. Foram vários encontros. Um sol quente danado. Era verão! Daqueles de rachar. A sensação térmica de 40 ° graus, nem o fato de nossa cidade ser na beira de um rio amenizava o calor. Tudo brilhava ao sol! Marcamos às 14

exercidas na atualidade. Saímos da reunião com a tarefa de pesquisar. No dia seguinte, a professora Paulina de literatura, nos apresentou algumas mulheres importantes na Literatura. Pensei muito, e achei bacana que o assunto da unidade fôssemos nós, as mulheres. Aos 16 anos, pela primeira vez na vida, naquela semana, tive contato com histórias de mulheres na escola. Conheci sobre movimentos em


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muitas áreas da sociedade, protagonizados só por mulheres em todo o mundo. Eram mulheres cientistas, escritoras, filósofas, políticas, líderes comunitárias, religiosas, chefes de clãs, de organizações políticas, mães e donas de casa que organizaram verdadeiras revoluções! Ouvi falar até de feminismo negro. Fiquei deslumbrada! Mas, o que me deixou bastante curiosa, foi o fato dessas mulheres serem semelhantes à minha mãe, às minhas avós e tias, que tiveram papéis importantes para a sociedade. Por falar em família... Moro com os meus pais. Tenho dois irmãos, Luara e Luan. Minha mãe, tias, tios e avós são professores, uma profissão comum para mulheres negras, aqui em minha cidade. Pois o curso de magistério era oferecido na escola pública de minha cidade, e estudar sempre foi muito incentivado em minha família, como uma forma de nós termos nossa dignidade respeita e reconhecida. Meu pai trabalha com mecânica. Na nossa família seguir a carreira é algo que já vem de longas datas. Podem imaginar qual o plano traçado para mim. No entanto, eu tenho outros planos. Desde pequena as pessoas me chamam de “cabo-verde”, meus cabelos são encaracolados, longos. Minha família tem a pele escura, assim como a minha. Onde moramos, no interior, a maioria das pessoas são parecidas e apelidos como estes são comuns. E parece ser um distintivo em relação às outras pessoas negras, mas que tem cabelos crespos. Levei ter estas ou aquelas características. Foi complicado perceber que sendo assim como eu era, a tal “cabo verde”, fazia com que as pessoas me aceitassem mais, em determinados lugares e ocasiões, que às minhas


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primas, que tinham a pele tão escura quanto a minha, mas que tinham os cabelos crespos. Até para arranjar namorado, isso fazia diferença. Sofremos muito até entendermos que isso era expressão de preconceito racial, que isso gerava discriminação na sociedade, e que precisaríamos combater esse tipo de coisa. Meu avô Fernando, um grande sábio, é professor de história. Conta que esta terra foi povoada por indígenas, Tupis, Tupinambás e depois por africanos. Isso explicava as características físicas das pessoas negras de hoje em dia. Aprendi com ele isso, e então, estudando uns livros que ele sugeriu que eu lesse, de um professor chamado Kabengele Munanga, descobri coisas sobre mestiçagem e a identidade do negro no Brasil. São tantas coisas que a gente precisa aprender e saber!

Médio, e pensava no que fazer quando esse ciclo se encerrasse. Uma preocupação coletiva. Meus colegas de classe que o digam. E, essa resposta já tinha desde o nono ano do Ensino Fundamental. Lembrome, assistindo um programa de TV, uma mulher que todos pararam para ver. Era uma juíza negra. Respeitada por todos. Achava o máximo! E não é que ela se parecia comigo? Olhei-me no espelho, e me vi. A imagem refletida ali, era eu, mas como eu me via no futuro. Como uma mulher negra atuante, que fazia parte das mudanças na sociedade. Isso era possível, agora eu sabia, depois de conhecer as histórias de vida daquelas mulheres maravilhosas. Tanto as que se destacam nas ciências letradas, quanto aquelas que, de dentro de suas casas e nas labutas diárias, influenciaram as mudanças do mundo! Fiquei fã de Luisa Mahin, Lélia González, Angela Davis, Maria Firmina


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dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Aqualtune, Dandara de Palmares... e ainda mais fã de minhas avós negras, de minhas tias, e de minha mãe. Essa luz que estava acesa em mim, tinha uma potência enorme. Alguns em minha família tiveram medo disso, por preocupação de que eu pudesse não conseguir, e me decepcionar. Diziam coisas para me trazer de volta ao chão, como falavam. É uma profissão de risco, exige dedicação, muita leitura, dinheiro, e proteção. E ainda me mostravam o principal obstáculo, necessitava sair do interior para estudar em outra cidade, na capital, e isso era um projeto de vida muito grande para nossa família. No fundo, tudo que diziam tinha sentido, mas eu tinha a vontade de alcançar outros mundos, trilhar outros caminhos, e descobrir outros conhecimentos. Ciente que o grande projeto de vida exigiria dedicação e persistência, a contra gosto de parte da família, tomei a decisão: iria estudar e fazer o vestibular para Direito. Nessa decisão, era movida também pela vontade de proporcionar uma vida melhor para nós. Vovô contou-me que os seus pais, já falecidos, passaram por dificuldades, trabalharam na fábrica de charutos da cidade, hoje extinta, repartia um pão para todos os seus irmãos, e que não tiveram direitos trabalhistas respeitados, o que seria diferente, se tivessem alguém esclarecido para lutar por eles. Foi inclusive o que impulsionou que a nova geração estudasse, e eu pudesse ter minha mãe e tias professoras. O histórico doloroso só me impulsionava a conquistar o melhor. Na semana seguinte na escola, o grupo reuniu-se novamente, e compartilhamos as pesquisas. Cientistas, intelectuais, trabalhadoras,


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diversas mulheres. A professora concordou com a nossa apresentação. O nosso melhor foi dado. As apresentações foram realizadas em uma feira de culturas, organizada pela escola. Nossas apresentações foram super disputadas, todos os professores e professoras da escola vieram nos ver. Foi maravilhoso!

“A cada dia me sinto melhor, em busca de algo que não me deixe só...”


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“Cabo- verde”: Termo popular usado para chamar as pessoas que são filhos de português com africanos. A cor da pele escura com a textura do cabelo liso ou encaracolado fino. Angela Davis: Angela Yvonne Davis nascida em Birmingham em 1944. Negra, mulher, a�vista, feminista, filósofa, socialista e escritora. Durante os anos de 1960 destacou-se como símbolo de luta da população negra americana influenciando movimentos de libertação negra em todo mundo. Atualmente é professora de filosofia nos Estados Unidos. Aqualtune: Guerreira do período colonial do Brasil, filha do Rei do Congo, ao ser escravizada no Brasil foi uma liderança feminina do Quilombo dos Palmares. Carolina Maria de Jesus: Foi uma autora brasileira, negra de origem pobre, catadora de papel, destacada entre importantes escritoras negras do País. Ela é autora do livro best seller autobiográfico “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” que foi traduzido em inglês, francês, entre outras. Dandara de Palmares: Guerreira do período colonial do Brasil, Dandara foi esposa de Zumbi, daquele que foi líder do maior quilombo das Américas, o Quilombo dos Palmares. Liderança feminina negra que lutou contra o sistema escravocrata do século XVII.


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Discriminação: É uma ação preconceituosa no que diz respeito a uma pessoa ou grupo de pessoas, de modo geral, associa-se a definições pré-concebidas acerca da religião, raça, orientação sexual, gênero. Feminismo Negro: É um movimento social, polí�co protagonizado por mulheres negras. Enquanto movimento organizado surge no Brasil na ddécada de 1970 com o obje�vo de gerar e ocasionar visibilidade para a garan�a de direitos. Kabengele Munanga: Nasceu na República Democrá�ca do Congo, an�go Zaire, em 19 de novembro de 1942. Foi o primeiro antropólogo de seu país, fez mestrado na Bélgica. Atualmente é professor �tular do Departamento de Antropologia da Universidade de São PauloUSP, onde se doutorou em 1977, pesquisador nas áreas de Antropologia Africana e Antropologia da População Afro-Brasileira. Lélia González: Intelectual Negra, nasceu em Minas Gerais, filha do negro ferroviário Accacio Serafim d’ Almeida e de Orcinda Serafim d’Almeida. Lélia de Almeida González foi Professora da Educação Básica, possuía mestrado e doutorado em São Paulo. Par�cipou a�vamente na construção do Movimento Negro Unificado-MNU na década de 1970. Desempenhou papel importante na polí�ca, e suas obras falam sobre a população negra no Brasil.


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Luísa Mahin: Esta mulher aparece no contexto da Revolta dos Malês em 1835, narrada por escritores como Luis Gama, poeta e abolicionista, e Pedro Calmon. Figura histórica que ilustra a luta contra a escravidão e compõe o imaginário popular na Bahia durante o século XIX. Maria Firmina dos Reis: Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de março de 1822. Entretanto, seu ba�smo ocorreu apenas em 21 de dezembro de 1825, constando na cer�dão sua condição de “filha natural” de Leonor Felippa dos Reis e estando ausente do documento o nome de seu pai. Formou-se professora e exerceu, por muitos anos, o magistério. A escritora trouxe a público três narra�vas de ficção: Úrsula, de 1859, seguramente o primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a América La�na - e primeiro romance abolicionista de autoria feminina da língua portuguesa -, no qual aborda a escravidão a par�r do ponto de vista do Outro; Gupeva, de 1861, narra�va curta de temá�ca indianista, publicada em capítulos na imprensa local, com várias edições ao longo da década de 1860; e o conto “A escrava”, de 1887, texto abolicionista empenhado em se inserir como peça retórica no debate então vivido no país em torno da abolição do regime servil. Preconceito Racial: É toda forma de expressão que discrimina uma etnia ou cultura tratando-as como incapazes, insuficientes.




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- Vó Lyra preciso te contar uma história. Aquelas lembranças do tempo da escola. O dia da nossa revolução. - Sente aqui, minha neta. Conte-me! O ano letivo próximo ao fim, e lembro-me que um dia, no caminho para casa, nós, o grupinho do intervalo, nos encontramos na venda de seu Zé, com tia Mari, que trabalhava na cantina da escola. A merenda era feita com amor. Passávamos para comprar o melhor geladinho da cidade. Saímos para o mesmo lado. Morávamos próximas. Tia Mari, sempre alegre. Seu sorriso contagiava a todos, mesmo cansada de um longo dia de trabalho. Naquele dia, estava diferente, algo tinha acontecido. Percebemos no seu olhar, uma tristeza. Ela tinha dois filhos que estudavam lá na escola. Criava seus filhos com muita luta.


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Estudávamos na sala nove, coincidência ou não, desde o primeiro ano era nossa sala. Uma fama não muito boa. Turma agitada, questionadora. Sempre à frente das atividades. No futebol, os meninos se destacavam, só pensavam na quadra. Estudavam. Mas, o esporte fascinava. Eles não faltavam a aula de educação física. O sonho de serem jogadores de futebol era uma unanimidade. As meninas da minha turma andavam em grupinhos. Claro que tinha as preferências de compartilhar os segredos. Minhas amigas eram Hellen, Lupita e Janaína. Mas, quando tratava-se de interesses em comum, nós arregaçávamos as mangas para resolver. Safira e Analú eram as líderes da turma. Cabia a nós meninas, tomar a frente de tudo. Eu não concordava, pois os meninos deveriam também participar, já que eram sempre beneficiados pelo que as meninas conquistavam. Ao tocar o intervalo, eu e Safira fomos para a cantina. Tia Mari estava do mesmo jeito do outro dia, quando a encontramos, e ela parecia triste. Hoje porém, além de triste, ela se mostrava preocupada. Mal sabíamos que também iríamos nos preocupar. Tudo isto, pois na reunião dos pais do dia seguinte foi informado que a nossa escola iria fechar. Os alunos da nossa modalidade deveriam transferir-se para outra escola mais próxima. A notícia se espalhou. Não voltamos para sala de aula. As turmas reuniram-se no pátio, foi uma reunião longa. Todos queriam falar ao mesmo tempo. A sensação de perda veio de imediato. Não queríamos sair da nossa escola. Fazia parte das nossas vidas. Da vida das nossas famílias. Como acabar com a escola no bairro, perto de nossas casas, uma escola que interagia com a comunidade?


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Era a única escola pública da nossa comunidade. O professor de português sugeriu um abaixo assinado para ser entregue à Secretaria de Educação, responsável pela nossa escola. Eu e as meninas com os feitos da nossa escola. Até gente aprovada no ENEM para universidade federal, nossa escola tinha! Coletamos depoimentos. E não é que circulou em diversos espaços, até chegar aos superiores? Reunimos todo mundo, e fomos pedir uma reunião com o Prefeito. Depois de mobilizarmos todo mundo, até os vereadores, conseguimos, e a escola não fechou. Percebemos que nossa união, era nossa força, e que os bons resultados da escola foram nosso principal argumento, a nossa maior força. Tudo por nós. Pela nossa comunidade. Vó Lyra ficou muito feliz, e realizada quando soube que eu fui uma das lideranças entre os estudantes. Disse-me satisfeita: minha filha, tenho muito orgulho do que és, “espinho quando tem de espetar, já traz a ponta!”. Soou tão bonito, ouvir isso de minha avó! Agora eu entendo que o “caminho se faz ao caminhar”, e que meus passos vinham de longe, daqueles e daquelas que vieram antes de mim, e que me fizeram chegar onde eu estava A turma da sala nove representava essa nova geração. Que tendo seus mais velhos como exemplos de luta, reconheciam o seu papel na luta que continuava sempre, na defesa de nossos direitos. Cada uma de nós iria escrever seu nome na história que não acaba nunca!



sobre a autora: Iasmin Gonçalves Mulher, negra, pesquisadora, professora, de Cachoeira, Recôncavo da Bahia. Realizou o ensino médio no Colégio Estadual da Cachoeira. Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Especialista em História da África (IFBA). Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas (UFRB). Estudante cotista, empresária negra.



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ABREU, José António Carvalho Dias de. Os abolicionismos na prosa brasileira: de Maria Firmina dos Reis a Machado de Assis. 2013. 472 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013. ADLER, Dilercy Aragão. Maria Firmina dos Reis: uma missão de amor. 1 ed. São Luís: Academia Ludovicense de Letras, 2017. 124 p. . ALCÂNTARA, Vanessa Figueiredo de Souza de. Entre a letra e a lei: narrativas e identidades femininas. 2014. 120 f. Dissertação (Mestrado em Letras e Ciências Humanas) - Universidade do Grande Rio, Duque de Caxias, 2014. BAQUERO, Rute. Empoderamento: questões conceituais e metodológicas. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio-ago. 2006. BRASIL. Lei 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/lei/L13104.htm> FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendência; Identidade em construção. São Paulo: EDUC, Rio de Janeiro: Pallas, 2004. GOMES, Nilma Lino, Nota do artigo: Cultura Negra e Educação. Revista Brasileira e educação. Agosto, 2003

. GOMES, Nilma Lino, Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Minas Gerais. Autêntica, 2006. LODY, Raul. Cabelos de Axé: Identidade e Resistência. Rio de Janeiro: Editora SENAC Nacional, 2004. MALACHIAS, Rosangela. Cabelo bom. Cabelo ruim. Coleção percepções da diferença. Negros e brancos na escola. Vol.4, São Paulo: NEINB, 2007 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 20082 013, https:// dicionario.priberam.org/chapinha Dicionário Aurélio Beta [homepage na internet]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2008-2010. Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/. . TELLES, E. (2003). Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará


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Kbela (22min., Cor, RJ, 2015) Dirigido por Yasmin Thayná Gênero: Documentário mulheres negras e as experiências com o racismo por seus cabelos disponível: Lápis de Cor (22min., Cor, RJ, 2015) Dirigido por Larissa Fulana de Tal Gênero: Documentário Sinopse: O documentário retrata a representação racial de crianças negras que são afetadas pelo padrão de beleza eurocêntrico. O curta aborda de maneira sensível a auto- imagem de pele”, que possui uma cor bege. Esta cor é universal, usada, fortalecendo a representação branca. / Link disponível: vimeo.com/71849588 Febre Amarela - Yellow Fever (7min., Cor, Quênia, 2012) Dirigido por Ng’endo Mukii Gênero: Animação/Documentário de mulheres quenianas, africanas com jogos de palavras e animações desenhadas à mão que exploram os efeitos dos ideais de beleza eurocêntricos, disseminados pela grande mídia e publicidade. / Link: Uma história das cores (14min., Cor, RJ, 2018) Dirigido por Vitor Hugo Fíuza Gênero: Ficção da mãe, Vitória decide alisar o cabelo.


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Projeto gráfico e diagramação: Fabio Rodrigues Filho Fotos: Augusto Daltro e Fabio Rodrigues Revisão dos textos: Luana Gonçalves dos Santos Esta publicação tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e do Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI) (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.



Os Fios de Recontos resulta de um trabalho parceiro com estudantes da educação básica. O processo de co-autoria que ressalta a importância e o diálogo da pesquisa e produção científica entre a educação básica e superior para o fortalecimento da educação das relações étnicorraciais. Este livro consiste em uma transposição teórica, e de narrativas em contos formativos de histórias de vida e formação de jovens estudantes da rede de educação básica. Trata-se também de racismo, identidade, gênero, encontro com gerações. Gerações entrecruzadas por fios que se embaraçam, desatam e não perdem-se, como a história de negros e negras ao longo da história. História que se entrecruza, em particular, com a ancestralidade negra feminina. A História de vida reúne as nossas atitudes, sonhos, planos, posturas e modo ver e estar no mundo. Esta publicação tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e do Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI) (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.

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