Devemos desobedecer ao Acordo Ortográfico

Page 1

10 • 6 de Setembro de 2011

Entrevista

"A língua é um fundamento da soberania. Agora até parece um

António Emiliano: “Devemos desobedecer ao Acordo Ortográfico” DUARTE BRANQUINHO (TEXTO E FOTOS)

Activo opositor ao Acordo Ortográfico, António Emiliano é professor de Linguística na Universidade Nova de Lisboa e um dos especialistas que melhor tem demonstrado as razões por que não devemos adoptar esta nova ortografia. O DIABO entrevistou-o. O DIABO - Quais são as razões fundamentais que levam um professor de Linguística a opor-se ferozmente ao Acordo Ortográfico (AO)? António Emiliano - Um professor de linguística que leia o AO do princípio ao fim, como eu tive a infelicidade de fazer, fica espantado com o grau de incompetência e de falta de rigor com que aquilo foi feito e pensado. Pode precisar? Há expressões antiquadas e obsoletas e terminologia datada, isto apenas no aspecto técnico. Mas há, claramente, soluções erradas, que denotam uma ignorância profunda do papel da ortografia, do papel de uma língua escrita, da língua como património da Nação, como património de Portugal, que é diluído no AO numa coisa vaga que é a lusofonia. Para além de uma incompetência geral na justificação. O AO é um tratado que tem dois anexos. O primeiro é a reforma e o segundo é a justificação da reforma.

A justificação é pior que a reforma! Porque as justificações apresentam falácias atrás de falácias, referem estudos que nunca ninguém viu. Ora, em ciência, os dados e os estudos têm que ser públicos. As fontes têm que ser conhecidas. Referem-se a cada passo estudos que não estão publicados. Debates de que nunca ninguém ouviu falar, dos quais não há actas. Um professor de Linguística ou um linguista sério não pode deixar de ficar chocado com o que encontra no AO. Os acordistas querem a unificação. Mas, pelos vistos, não acontece... O AO, no seu clausulado, fala em unificação da ortografia, mas essa unificação é desmentida no próprio Acordo. Mas essa unificação não é promovida nos países lusófonos? A CPLP tem uma resolução, da cimeira extraordinária de Brasília, que recomenda que em cada país se aplique o AO de acordo com as

tradições ortográficas. É absolutamente inacreditável. Para isto precisamos de um Acordo? Acontece noutras línguas? Veja-se o caso do inglês, que é a primeira língua verdadeiramente global, onde há uma grande variedade de soluções gráficas e distribuídas por várias regiões do mundo. Isto é algum problema para a anglofonia? Alguém, alguma vez, reclamou uma unificação? Nem sequer existe no mundo anglófono uma ortografia oficial. A ortografia inglesa não está codificada em lado nenhum. Mas o AO não aproxima o Português do Brasileiro? O Português europeu e o Português do Brasil, estes são os termos técnicos utilizados hoje em Linguística, são variedades de matriz portuguesa, que estão já há algum tempo em processo avançado e acelerado de divergência. Coisa que não acontece na castellhanofonia, nem mesmo na anglofonia. Na lusofonia há, neste momento, uma clivagem brutal no domínio

da fonética, da fonologia, da morfologia, da sintaxe e do vocabulário entre a variedade europeia, que é seguida com algumas pequenas divergências pelos países africanos e por Timor, e a do Brasil. Este problema, este obstáculo, não é de forma alguma ultrapassado nem resolvido com o AO. No passado, o Brasil voltou atrás no Acordo... Sim. É preciso lembrar que o Brasil denunciou a ortografia que nós usamos actualmente, aprovada pela chamada Convenção Ortográfica Luso-brasileira de 1945, dois anos depois de ter assinado esse tratado. Ainda há esperança. Pode ser que o Estado português um dia faça o mesmo... Sim. Ou eles! [risos] Nalguns sectores anti-Acordo surge por vezes um sentimento anti-brasileiro. Acha que isso tem algum sentido? Qualquer posição de anti-brasileirismo é ridícula e disparatada.

Outra coisa é contestar a política de um Estado. E a política do Brasil, hoje, é extremamente agressiva e de expansionismo, nomeadamente na antiga África portuguesa. Em especial, a política destes dois últimos presidentes, Lula e Dilma, que são, na minha opinião, estalinistas. Porque impõem a reforma ortográfica através de um processo estalinista. Porque há vários brasileiros que também são contra o AO? Há muitos intelectuais brasileiros, escritores, jornalistas, professores, cantores, entre outros. Lembro-me, por exemplo, da expressão feliz da Rita Lee, que chamou ao AO “a porra da nova ortografia”. Porque é que não pode haver duas formas para a mesma palavra? Ortografia, literalmente, significa escrever bem, de maneira correcta. Ora, quando se introduz a noção de correcção, não pode haver territórios cinzentos. No caso de uma ortografia, e a partir do momento em que temos codifica-


6 de Setembro de 2011 •

Entrevista

ma coisa sem importância"

Apologista do desacordo Aos olhos de um professor português no Brasil

ção escrita, cada palavra tem uma forma ortográfica. Mas não tínhamos já algumas excepções, como “touro” e “toiro”, por exemplo? Não são verdadeiras excepções. São variantes fonológicas e portanto têm grafias diferentes. E essas grafias obedecem aos critérios gerais da ortografia do português. E agora? O que se estabelece com o AO é a possibilidade de grafar a mesma palavra de maneiras diferentes. O que traz uma consequência em que os acordistas originais nem sequer pensaram, que é a criação de palavras novas. Como assim? Por exemplo, há situações em que havia unidade entre Portugal e o Brasil, como em “recepção”, ou “aspecto” e agora deixa de haver. Ou seja, há desunificação. Parece que o que interessa é a forma como se pronuncia... Isto resulta de uma concepção totalmente errada da ortografia. Como se a ortografia devesse ser um registo da fala ou da pronúncia. Não é para isso que as ortografias existem. Se escrevermos “recepção” sem “p” lemos “recessão”. Exacto. Esse “p” faz falta, porque indica como nós pronunciamos a letra vocálica anterior. Com o “p” de “recepção” sabemos que o “e” é aberto. Esse “p” não é inútil, não é mudo. É necessário. Que diz dos que afirmam que os opositores ao AO são retrógrados ou passadistas? As ortografias são e têm que ser conservadoras por natureza. Como, aliás, todas as normas. Não se trata de voltar atrás. Como País europeu, moderno e civilizado, com a produção diária de um volume brutal de textos em ortografia portuguesa europeia, não nos podemos dar ao luxo de tocar nela.

Desidério Murcho, filósofo e autor de várias obras na área da Filosofia e do seu ensino, é actualmente professor na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais. O DIABO contactou-o para lhe perguntar se ele considera que existe alguma vantagem na adopção do Acordo Ortográfico (AO), enquanto português que lecciona no Brasil. Reiterando a sua oposição ao AO, reconheceu no entanto que “com o acordo é mais fácil misturar as duas variantes do Português” e deu exemplos concretos: “se eu escrever no português anterior à reforma, tenho de pôr acentuação, no Brasil, em ‘ideia’ ou ‘consequência’, o que não acontece se adoptar o acordo”. Mas nem por isso deixou de apontar alguns casos sem sentido, afirmando: “Em contrapartida, tenho de continuar a escrever ‘fato’ em vez de ‘facto’, e, o que é mais caricato, tenho de escrever ‘aspecto’ no Brasil e ‘aspeto’ em Portugal.”

O que diz dos jornais, como O DIABO, que não vão adoptar o AO? Enquanto professor de Linguística, pareceme uma posição sensata. Enquanto cidadão diria que é uma posição louvável. Mais ainda, patriótica. Porque não estão a pactuar com a destruição de uma parte do património. E no seu caso? Eu não vou adoptar o AO. Mas há uma questão: até que ponto e até onde é que podemos levar a objecção de consciência e a desobediência civil? Eu, pessoalmente, acho que devemos desobedecer a este Acordo e invocar a objecção de consciência.

Mas pode haver alterações? Sim. Se achamos que devemos melhorar a ortografia – e podemos –, temos que melhorar uma coisinha de cada vez. Com muito cuidado, prudência e muita discussão. Houve alguma discussão para se chegar a este AO? O AO diz no seu clausulado que resulta de um aprofundado debate que ocorreu nos países signatários. Isto é uma mentira de Estado! Não houve qualquer debate. Politicamente, acha que o anterior Governo fez do AO uma bandeira? Sim. Não sei se para distrair os portugueses de outros problemas ou de outras trafulhices. Mas a verdade é que, sabendo nós que metade dos ministros eram contra o AO, o Governo estava claramente apostado e empenhado em aprová-lo. Mas o actual Governo, que tem vários ministros contra o AO, mantém adopção. Porquê? Até o primeiro-ministro se manifestou em tempos contra o AO. Não se entende, de facto, porque é que este novo Governo, que tinha a oportunidade, o poder e o motivo para parar isto, pura e simplesmente não pára ou trava para avaliação. Devia ser travado como o TGV? Parou-se o TGV, o Aeroporto, ou a nova travessia do Tejo, por exemplo, porque não há dinheiro. Mas para o AO, que é uma catástrofe que vai ter custos inimagináveis a longo prazo, há. Acha que o AO foi tido com a mesma ligeireza que uma alteração do sentido do trânsito numa rua? Exactamente. A língua é um fundamento da soberania, mas parece que é uma coisa sem importância na qual podemos mexer à vontade. ■

Aborto ortográfico DA TRINCHEIRA

HUMBERTO NUNO DE OLIVEIRA

OPINIÃO

António Emiliano tem escrito vários artigos e proferido conferências contra o Acordo Ortográfico (AO), para além de ter publicado recentemente alguns livros sobre o tema. O primeiro, “Foi você que pediu um Acordo Ortográfico?”, é um opúsculo com a chancela da Guimarães e prefácio de Vasco Graça Moura, que foi apresentado publicamente em Maio de 2008 no Grémio Literário, em Lisboa. O segundo, com o título “O Fim da Ortografia. Comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)”, também de 2008, é uma segunda versão do texto apresentado nesse ano ao Presidente da República na audiência concedida aos signatários da petição “Em defesa da Língua Portuguesa contra o Acordo Ortográfico”. Já no ano passado, saiu “Apologia do Desacordo Ortográfico”, publicado pela Verbo, que é uma compilação dos textos de intervenção contra o AO que o autor escreveu para a imprensa, incluindo também alguns inéditos e um texto inicial de Miguel Esteves Cardoso.

11

A questão da defesa da nossa Língua – poderosíssimo factor da nossa identidade e individualidade – não se apresenta na primeira linha das prioridades. Pessoalmente, sou (sempre fui) uma pessoa de causas e, compreensivo e solidário com todos quantos se vêem forçados a fazer contas, muitas contas, para tentarem manter alguma dignidade no seu quotidiano – tarefa que se vai mostrando cada vez mais difícil, para não dizer manifestamente impossível – não posso deixar de alertar para o ataque (que outrora era subtil e creio que hoje se torna descarado e sem pudor) a muitos dos pilares da nossa identidade e individualidade, para já não referir o ataque profundo a muitos dos nossos valores. Como referi, a Língua – chamem-lhe materna ou paterna, como preferirem – é um desses pilares que não podemos, nem devemos, consentir sejam beliscados, quanto mais atacados. A língua é uma entidade viva, gostam de lembrar os linguistas (um dos quais, que não vejo desde os tempos que juntos frequentámos a Faculdade de Letras, e de garantido valor se encontra nestas páginas), e tal é verdade. Porém, a evolução há-de fazer-se sempre num quadro evolutivo endógeno, por evolução dos seus falantes autóctones, e não por espúrias imposições exógenas como, manifestamente, é o caso. Que um fato seja no Brasil o nosso facto pouco me consola; que as umidades deles não nos afectem, é o que desejo. Há em todo este processo uma bacoca subserviência em nome não se entende bem do quê. Vejam lá se os ingleses fizeram acordos ortográficos com os americanos ou jamaicanos. Quanto muito, reconhecem que, aqui e além, estes alteraram a sua língua, e basta quanto a reconhecimento das diferenças. O Inglês, para um britânico, é o que se fala na Grã-Bretanha, o resto são variações, mais ou menos felizes… Importa, pois, não desarmar. Nestes tempos de profunda crise em que nos meteram (des)governantes, importa não esquecer que um País que claudica na defesa dos seus pilares, não é à custa de um regresso instantâneo a uma qualquer fórmula mágica económico-financeira que pode garantir a sua sobrevivência e identidade como entidade colectiva multisecular. Importa, pois, não esquecê-lo e fazer esta luta acompanhar todas as outras que nos consomem o quotidiano. ■ hnuno.oliveira@gmail.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.