NOTA XLIX – DESACCORDO ORTHOGRAPHICO: Do número 7 da Base X do Acordo Ortográfico de 1990 – e póssamos e fáçamos? Prof. António Emiliano _____________________________________________________ Texto publicado no Facebook do autor em 16 de Abril de 2012 https://www.facebook.com/note.php?note_id=10150961842563378
_____________________________________________________ Diz o Número 7 da Base X do Acordo Ortográfico de 1990: «Os verbos arguir e redarguir prescindem do acento agudo na vogal tónica/tônica grafada u nas formas rizotónicas/rizotônicas: arguo, arguis, argui, arguem; argua, arguas, argua, arguam. Os verbos do tipo de aguar, apaniguar, apaziguar, apropinquar, averiguar, desaguar, enxaguar, obliquar, delinquir e afins, por oferecerem dois paradigmas, ou têm as formas rizotónicas/rizotônicas igualmente acentuadas no u mas sem marca gráfica (a exemplo de averiguo, averiguas, averigua, averiguam; averigue, averigues, averigue, averiguem; enxaguo, enxaguas, enxagua, enxaguam; enxague, enxagues, enxague, enxaguem, etc.; delinquo, delinquis, delinqui, delinquem; mas delinquimos, delinquís [sic]) ou têm as formas rizotónicas/rizotônicas acentuadas fónica/fônica e graficamente nas vogais a ou i radicais (a exemplo de averíguo, averíguas, averígua, averíguam; averígue, averígues, averígue, averíguem; enxáguo, enxáguas, enxágua, enxáguam; enxágue, enxágues, enxágue, enxáguem; delínquo, delínques, delínque, delínquem; delínqua, delínquas, delínqua, delínquam).» (negritos meus) Este número é uma desgraça. Como é possível que adultos funcionais e responsáveis, intelectuais reputados, académicos de número, professores catedráticos de Humanidades tenham sido capazes de escrever tal estropício? Como é possível que coisas destas tenham sido assinadas, aprovadas e ratificadas por governantes portugueses? Atente-se. ¶ Primeira estipulação: acentuação de ARGUIR e REDARGUIR A origem dos grafemas <qu> e <gu> — que correspondem, respectivamente aos fonemas /k/ e /ɡ/, quando precedem letra vocálica E ou I — é antiga: remonta pelo menos ao chamado período “proto-histórico” da história da língua portuguesa (como lhe chamou o Doutor Leite de Vasconcellos); as primeiras ocorrências destes grafemas encontram-se em documentos tabeliónicos escritos em ‘latim notarial’ ou ‘latino-romance’. A origem é fácil de explicar: no latim vulgar tardio as sequências consonânticas [kw] e [ɡw] antes de vogal palatal simplificaram-se em [k] e [ɡ]. A língua escrita não se alterou em função das mudanças fonológicas e assim as sequências QU e GU foram reinterpretadas como grafemas complexos (biliterais ou digramáticos).</gu></qu> Por razões históricas, nomeadamente, a introdução de milhares de cultismos greco-latinos a partir, sobretudo, do século XV, algumas palavras do português contemporâneo apresentam as antigas sequências consonânticas [kw] e [ɡw] antes de vogal palatal. É o caso das formas em apreço e de muitas outras. A introdução de cultismos com características fonológicas que haviam entretanto desaparecido do vernáculo, por força da sua natural deriva histórica, provocou inevitavelmente situações de variação. Assim, a desavisada supressão do trema em 1945 acrescentou, de forma totalmente desnecessária, um factor de opacidade à ortografia portuguesa (inevitavelmente complexa), como mostram as formas FREQUENTE vs. QUENTE, CINQUENTA vs. APOQUENTA,
LINGUIÇA vs. ENGUIÇA. E a pronunciação normal actual de BILINGUE/BILINGUISMO (com [ɡ] e não com [ɡw]) bem como a pronunciação de ADQUIRIR ou ANIQUILAR com [kwi] de muitos falantes mostram como a alteração da grafia pode conduzir a alterações fonéticas e a insegurança ortoépica. Com a supressão do trema a única forma de desambiguar a pronunciação de formas rizotónicas como ARGUIS, ARGUI, ARGUEM era a acentuação gráfica: ARGÚIS, ARGÚI, ARGÚEM. Nas formas arrizotónicas como ARGUI, ARGUISTE persistiu, lamentavelmente, a ambiguidade gráfica. A eliminação do acento pela Base X do Acordo de 1990 estende, assim, a ambiguidade a todo o paradigma de ARGUIR e REDARGUIR: não resolve nenhum problema da ortografia portuguesa, pelo contrário, acentua um problema pré-existente. ¶ Segunda estipulação: acentuação de AGUAR, APANIGUAR, APAZIGUAR, APROPINQUAR, AVERIGUAR, DESAGUAR, ENXAGUAR, OBLIQUAR, DELINQUIR e afins É absolutamente inadmissível que o Acordo Ortográfico diga sem mais explicações que as formas rizotónicas dos verbos em epígrafe devem ter dois tratamentos quanto à acentuação “por oferecerem dois paradigmas”. Dois paradigmas? Em que língua? Em que dialecto? Em que país? Perante a extensão geográfica pluricontinental e a diversidade linguística da chamada lusofonia estavam os autores do Acordo obrigados a esclarecer que formas como AVERÍGUE ou ENXÁGUE são BRASILEIRISMOS (uso aqui o termo na mesma acepção do Doutor Paiva Boléo), tanto mais que, apesar das referidas extensão e diversidade, a lusofonia se divide em dois blocos: o brasileiro e o euro-afro-asiático-oceânico. Dado que as facultatividades gráficas previstas estapafurdiamente no Acordo Ortográfico de 1990 são irrestritas, o facto de os autores do Acordo não terem declarado a especificidade regional dessas formas torna-as ipso facto, e pela natureza jurídica do Acordo, universais na lusofonia (!). Se formas gráficas como AVERÍGUO, AVERÍGUAS, AVERÍGUA, AVERÍGUAM, AVERÍGUE, AVERÍGUES, AVERÍGUE, AVERÍGUEM, ENXÁGUO, ENXÁGUAS, ENXÁGUA, ENXÁGUAM, ENXÁGUE, ENXÁGUES, ENXÁGUE, ENXÁGUEM, DELÍNQUO, DELÍNQUES, DELÍNQUE, DELÍNQUEM, DELÍNQUA, DELÍNQUAS, DELÍNQUA, DELÍNQUAM são consideradas correctas e oficiais em toda a lusofonia (logo, em Portugal), sem mais, sem qualquer qualificação ou limitação, então o que impede a inclusão em vocabulários ortográficos de formas portuguesas como PÓSSAMOS, FÁÇAMOS, DÍGAMOS, SUPÔNHAMOS, SÁIBAMOS, QUÊIRAMOS que, do ponto de vista fonológico (prosódico), não têm qualquer problema nem violam qualquer princípio geral da fonologia portuguesa? Por coisas destas, inexplicáveis e inqualificáveis, o Acordo Ortográfico de 1990 é uma mixórdia disortográfica sem pés nem cabeça, uma aberração produzida por gente sem mérito, sem tino e sem sentido de rigor. Quando num tratado internacional supostamente escrito em PORTUGUÊS (“unificado”) — assinado por um governo português, aprovado por um parlamento português e ratificado por um presidente português — se lê, como lá em cima no número 7 da Base X, uma monstruosidade como “as formas rizotónicas/rizotônicas acentuadas fónica/fônica e graficamente” a única reacção possível é o vómito e a revolta.