Textos de António Fernando Nabais publicados no blog Aventar
1. O que não interessa A discussão sobre o Acordo Ortográfico (AO90) não está esgotada. Hoje, e ao longo de mais sete textos, procurarei dar o meu contributo para o debate, sabendo que será praticamente impossível ser original, tal a quantidade de contendores que tem versado o assunto. Procurarei, ainda assim, sintetizar, divulgar e organizar muita da argumentação entretanto produzida. No debate sobre o AO90, tem havido demasiado ruído para que esse mesmo debate seja efectivo e, portanto, consequente. Entre a confusão de declarações importa definir, antes de tudo, de que é que não falamos, quando falamos sobre o AO90. Há, por exemplo, quem afirme que não devemos adoptá-lo porque somos os donos da língua e que, portanto, a haver sujeição, deveriam ser os outros países a acatar o que lhes quiséssemos impor. Tudo indica que tais afirmações terão origem num complexo resultante de um desejo de regressar aos tempos colonialistas. Entre os que defendem que devemos aceitar o AO90, muitos afirmam que o devemos fazer porque não somos os donos da língua. O Português pertencerá, com certeza, aos falantes de todos os países lusófonos, mas fica por explicar em que é a recusa do AO90 corresponde a um sentimento proprietário. Este argumento faria sentido se Portugal resolvesse impor aos outros, por exemplo, a ortografia europeia. Alguns críticos do AO90 baseiam as suas críticas no facto de ser imposto pelos brasileiros ou por ser uma ideia dos brasileiros. Não vejo qual seja o problema de adoptar uma boa ideia, independentemente da sua origem. Que sentido faria recusarmos a cura de uma doença só porque tinha sido encontrada por cientistas brasileiros? Entre os defensores do AO90 temos aqueles que declaram que Portugal deve sujeitar-se aos ditames brasileiros por causa da dimensão do país, o que faz tanto sentido como decidir que devemos passar a produzir queijo mineiro e deixar de fabricar queijo da Serra ou, para usar uma escala mais global, erradicar o cozido à portuguesa em favor do hambúrguer, alimento decerto mais consumido pela maioria dos habitantes do planeta. O AO90 é, ainda, visto como um instrumento fundamental para a internacionalização da língua, fenómeno que, pelos vistos, acontecerá devido à uniformização ortográfica pretensamente alcançada. Tendo em conta o número de falantes a nível mundial, a internacionalização da língua portuguesa é, afinal, um facto. A divulgação da língua e da cultura portuguesa ou mesmo lusófona dependerá da qualidade das suas produções.
Mesmo no meio de uma crise endémica, a verdade é que, ao longo dos últimos anos, graças a conquistas colectivas e a valores individuais, Portugal ganhou alguma projecção, sem necessidade de nenhum acordo ortográfico. A sobrevivência da língua é apontada como um dos factores que tornam necessário o AO90. Trata-se de um argumento vago e inexplicado, porque não é possível demonstrar que exista uma relação de causa e efeito entre a inexistência de um acordo ortográfico e o enfraquecimento ou a extinção ou outra qualquer hecatombe da língua portuguesa tal como é falada e escrita na Europa. No que se refere a estes dois últimos casos, continua a notar-se a manutenção de um complexo adolescente, próprio de quem precisa da aprovação dos seus pares ou está disposto a tudo para poder emparceirar com os mais crescidos ou os mais ricos ou os mais populares, seja a que preço for. Se no meio está a virtude, não se defende o regresso a um “orgulhosamente sós” paralisante, mas isso não significa que um país continue a ser uma Maria que vai com as outras. Diz-se, ainda, que o AO90 afecta uma percentagem insignificante das grafias. Se o acordo for bom, não interessa se afecta muitas ou poucas palavras, como não interessa saber se uma mudança para melhor é mais ou menos incómoda. De qualquer modo, se essa fosse uma questão importante, interessaria saber se as palavras afectadas são muito ou pouco utilizadas: que se saiba, o adjectivo “imarcescível”, que a maioria dos falantes nunca utilizará, não sofrerá alterações, ao contrário de “acção”, “reacção”, “concepção” ou “corrector”, termos de utilização frequente. Neste debate, outros argumentos sem importância surgem frequentemente, como o que desvaloriza a resistência à novidade como sendo coisa passageira ou o facto de o AO90 ser um facto consumado, afirmações insuficientes para demonstrar a virtude ou o defeito seja do que for. É, ainda, comum defender e atacar o AO90, lembrando a importância dos especialistas intervenientes. Convém, no entanto, não esquecer que até Homero dormitava, pelo que devemos limitar-nos, no mínimo, a factos e, no máximo, a argumentos sólidos. O tamanho do currículo não chega para provar que o AO90 tem virtudes ou defeitos. Finalmente, a ocorrência regular de princípios de intenções dos participantes no debate não é digna, caindo-se, frequentemente, em insinuações acerca de quem argumenta, fugindo-se, afinal, aos argumentos. Quais devem ser, então, os territórios que devemos percorrer nesta polémica? Parece-me óbvio que nos devemos ficar pelo debate linguístico, pelas consequências (desejadas ou imprevistas) do AO90 e pela consistência do próprio texto, incluindo a Nota Explicativa. Procurarei, ao longo desta série, ser o mais claro possível para um público leigo, pelo que tentarei evitar a sobrecarga de termos e instrumentos científicos (no que se refere a este último caso, prescindirei, por exemplo, de usar símbolos fonéticos). Os que estiverem verdadeiramente interessados em debater com conhecimento de causa poderão consultar os seguintes materiais: Página do Professor António Emiliano (aqui, é possível aceder ao texto do Acordo e à Nota Explicativa); Página de Francisco Miguel Valada; Blogue de Francisco Miguel Valada; Página da Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico.
2. Um texto inconsistente O AO90 terá sido elaborado por especialistas reputados. O facto de se ser um especialista numa matéria aumenta as responsabilidades e é legítimo exigir que um enunciado produzido por um especialista seja consistente e coerente. O AO90 é, no entanto, ao contrário do que seria de esperar, uma acumulação incoerente de enunciados, o que é, portanto, inadmissível. Limitar-me-ei a dar alguns exemplos. Na Base II, defende-se que o ‘h’ inicial se mantém por “força da etimologia”. O mesmo argumento é utilizado, na Base V, para manter o emprego de e, i, o e u em sílaba átona, ou seja, e exemplificando: apesar de corresponder ao som “i”, continuaremos a escrever “ameaça” com ‘e’. É certo que a manutenção destas regras não afecta a desejada uniformização ortográfica, mas quando se trata de eliminar as chamadas consoantes mudas, na Base IV, o critério passa a ser o da pronúncia. Que aconteceu ao critério etimológico que serviu para que o “h” inicial não desaparecesse? Ainda no que se refere à Base IV, é possível descobrir uma outra inconsistência já apontada por diversos críticos do AO90: o facto de se basear a grafia das palavras na pronúncia. Se é certo que isso, em muitos casos, tem como consequência uma aproximação entre Portugal e o Brasil (é o caso de “ação”, por exemplo), dá origem, por outro lado, a diferenças que não existiam (“receção”, em Portugal, e “recepção”, no Brasil). Há, ainda, que ter em conta que estas consoantes foram mantidas no Acordo Ortográfico de 1945, uma vez que se considerou que, mesmo não sendo pronunciadas, tinham valor diacrítico, ou seja, serviam para “abrir” o timbre da vogal anterior. Um texto científico consistente que faz um corte com o passado estaria obrigado a explicar o que mudou para que essas consoantes devessem, afinal, ser suprimidas. Nada disso acontece. Vejamos, agora, as razões apontadas para manter, eliminar ou deixar ao critério de cada um a utilização de alguns acentos gráficos. Na Base VIII, 3.º, defende-se a manutenção do acento gráfico em “pôr”, “para a distinguir da preposição por”, evitando a homografia. Na Base IX, 6.º, a), mantém-se o acento em “pôde”, para que não haja confusão com “pode”. Na alínea seguinte, deixa-se ao critério de cada um acentuar “dêmos” (primeira pessoa do plural do presente do conjuntivo), para que se distinga de “demos” (primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo). Mais abaixo (Base IX, 9.º), declara-se a extinção do acento gráfico em “pára”, sem que se aponte uma razão para isso, embora seja óbvio que daí nasce um par de palavras homógrafas. Na Nota Explicativa do AO, 5.3., defende-se a necessidade de manter os acentos gráficos em palavras como “fábrica” ou “análise”, para evitar a multiplicação de casos de homografia, mesmo reconhecendo que seria fácil distinguir as palavras no contexto sintáctico. Mais abaixo, em 5.4.1., b), argumenta-se que não há problema em retirar o acento gráfico de “pára”, “porque, tratando-se de pares cujos elementos pertencem a classes gramaticais diferentes, o contexto sintáctico permite distinguir claramente tais homografias.” Um texto sobre um tema destes só pode ser maçador, mas a verdade é que os casos apresentados não são filhos únicos de uma incoerência frequente num texto que, devido
ao currículo dos seus autores, não pode ser incoerente. Um mergulho nas Bases XV e XVI (relativas ao uso do hífen) far-nos-ia correr perigo de afogamento na acumulação de incoerências. Em conclusão, de um texto escrito e defendido por alguns especialistas esperar-se-ia consistência, argumentação clara e coerência. Nada disso acontece e nada disso vai sem consequências perniciosas.
3. Não há uniformização ortográfica A tese deste texto é a de que o AO90 não produz uniformização ortográfica, e isso, de certo modo, já ficou demonstrado no texto anterior e é reconhecido, aliás, na Nota Explicativa do Acordo Ortográfico, 4.4. (acerca dos casos de dupla grafia). Ora, a verdade é que um dos objectivos do AO90 consistia em criar uma ortografia comum, para que todos os falantes lusófonos pudessem escrever a uma só ortografia. Em primeiro lugar, é curioso notar que o próprio texto do AO90 contém a demonstração cabal desse falhanço, quando se verifica que são utilizadas duplas grafias como “antropónimos/antropônimos” ou “fónico/fônico”, de modo a respeitar ortografias que continuarão a ser diferentes. Leia-se o seguinte exemplo retirado da Base I: 2.º As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais: a) Em antropónimos/antropônimos [sic] originários de outras línguas e seus derivados: Franklin, frankliniano; Kant, kantismo, Darwin, darwinismo; Wagner, wagneriano; Byron, byroniano; Taylor, taylorista; Podemos perguntar-nos: como será um texto único escrito, por exemplo, nas reuniões da CPLP? Nos casos em que as grafias dos vários países continuem diferentes, continuará a ser utilizada a estratégia de deixar uma barra providencial entre as palavras? Nesse caso, para que serviu o Acordo? É certo que o AO90 cria igualdades antes inexistentes, pelo que todos passaríamos a escrever “ótimo”. No entanto, cria diferenças novas, especialmente no caso das chamadas consoantes mudas: é por isso que, em Portugal, passará a escrever-se “receção”, mantendo-se “recepção” no Brasil, entre muitos outros exemplos. A razão para isto é simples e já a abordei no texto anterior: ao usar como factor de uniformização o critério fonético e tendo em conta as diferenças de pronúncia entre os vários países, é evidente que teriam de nascer novos desacordos. Estranhamente, este acordo contribuirá, ainda, para que se esbata a uniformização ortográfica dentro de cada país que o subscreva, uma vez que está prevista a hipótese de que se possa escrever de acordo com o modo como se pronuncia. Assim, a palavra “sector”, na imprensa portuguesa, aparece, frequentemente, com grafias diferentes. A questão da grafia da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do Indicativo dos verbos da primeira conjugação constitui mais uma prova de que o AO90 contribui para o esbatimento da uniformização ortográfica. Leia-se o que está escrito na Base IX: 4.º É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas variantes do português.
Em Portugal, muitos falantes da zona do Porto pronunciam “gostamos” e “gostámos” da mesma maneira, ou seja, com o ‘a’ fechado em ambos os casos, ao contrário do que acontece no resto do país, em que o fechamento da vogal está reservado à forma do presente, tornando-se aberta no pretérito perfeito. Se é certo que esta proposta faz sentido, dentro do espírito que preside ao acordo, ao pretender-se uma maior aproximação entre a grafia e a fonética, não será de perguntar por que razão não se deva estender esta prerrogativa a outras zonas da lusofonia, mesmo sem sair de Portugal, permitindo aos alentejanos e aos algarvios substituir “ei” por “ê” ou abrir aos transmontanos a hipótese de passarem a grafar “tchuba”? Mesmo reconhecendo algum (muito pouco) delírio nesta argumentação, a verdade é que, também neste exemplo, assistimos a uma uniformização mitigada – uma contradição nos termos – da ortografia, porque, num mesmo país, passa a ser possível escrever a mesma palavra de maneiras diferentes, dependendo do modo como se pronuncia. Assim, o AO90 será, ainda, responsável pela erosão da ortografia dentro de cada uma das comunidades que o subscrevam, uma vez que contribui para o aumento do número de grafias facultativas. Com efeito, a partir do momento em que se permite, em muitos casos, que se escreva de acordo com o modo como se pronuncia, estará a criar-se uma situação em que a demanda pela uniformização ortográfica pode contribuir para o aumento dos erros ortográficos. Podemos, então, confirmar que o Acordo não produziu uniformização ortográfica, criando aproximações de um lado e afastamentos do outro. Este simples facto seria suficiente para demonstrar a sua inutilidade, mas há outros problemas que serão enunciados nos textos seguintes.
4. Não há uniformização da escrita No texto anterior, com a ajuda do AO90, Nota Explicativa incluída, ficou demonstrado que o dito AO90 não foi suficiente para alcançar a desejada uniformização ortográfica, o que, só por si, deveria ter sido suficiente para desencorajar tão escusado trabalho. O texto que hoje publico serve para confirmar aquilo que há muito sabemos: mesmo que tivesse sido possível unificar a ortografia, continuaria a haver diferenças sintácticas e semânticas que continuariam a inviabilizar que um texto pudesse ser escrito da mesma maneira em Portugal e no Brasil. Para ilustrar esse facto, já publiquei este vídeo e este texto. A consulta desta pequena lista serve como confirmação das muitas diferenças lexicais que se verificam entre o Português do Brasil e de Portugal. No seu livro Demanda, deriva e desastre, Francisco Miguel Valada faz uma análise das modificações de que seriam alvo os discursos de Lula da Silva e de Cavaco Silva, proferidos na inauguração da exposição Um Novo Mundo, Um Novo Império – A Corte Portuguesa no Brasil, em 2007, tendo demonstrado que, mesmo com a aplicação do Acordo, não seria possível a existência de um texto único, devido a diferenças como a colocação de alguns pronomes pessoais na frase ou a supressão do artigo definido antes do determinante possessivo. Para melhor ilustração das diferenças, transcreverei, em primeiro lugar, uma parte do discurso de Lula da Silva, tal como foi proferida: Nós, brasileiros, compartilhamos esse rico patrimônio do idioma e nos associamos a esse forte sentimento de família, um laço indissolúvel que nos une a Portugal.
Seguidamente, veja-se como, seguindo o Acordo, e na análise de Francisco Miguel Valada, ficaria este texto. Aquilo que for especificamente brasileiro ficará entre parênteses curvos e entre parênteses rectos ficarão os elementos da norma portuguesa: Nós, brasileiros, compartilhamos esse rico (patrimônio) [património] do idioma e (nos associamos) [associamo-nos] a esse forte sentimento de família, um laço indissolúvel que nos une a Portugal. Qualquer um que conheça o AO90 e que possua um conhecimento médio das características sintácticas e lexicais do Português do Brasil pode dedicar-se a este exercício, bastando escolher um texto ao acaso. Conclui-se, portanto, que um texto escrito por um brasileiro e por um português será sempre diferente, em termos sintácticos, lexicais e – pasme-se! – ortográficos. Para que serve, então, o Acordo Ortográfico?
5. As chamadas consoantes mudas Uma das questões mais polémicas do AO90 está relacionada com a Base IV, em que se propõe a eliminação das chamadas consoantes mudas c e p nas sequências interiores cç, ct, pc, pç e pt, o que deverá acontecer sempre que, segundo o Acordo, essas consoantes não sejam proferidas “nas pronúncias cultas da língua” ou “numa pronúncia culta da língua”, para citar o texto. Mesmo fazendo de conta que é possível identificar as várias pronúncias cultas da língua, a verdade é que mais do que um especialista tem defendido que as chamadas consoantes mudas têm, em contextos bem definidos, uma função diacrítica, isto é, desempenham relativamente à vogal que as antecede uma função semelhante à de um acento gráfico, para além de a sua existência derivar da etimologia. Na Convenção Ortográfica Luso-Brasileira (1945), de que foi relator o professor Rebelo Gonçalves, optou-se por manter estas mesmas consoantes “após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais.” (sublinhados meus) Para se propor a alteração desta regra, era importante explicar o que mudou desde 1945, para que fizesse sentido suprimir as mesmas consoantes. A tradição ortográfica que, por exemplo, serviu para manter o ‘h’ inicial não faz sentido aqui? As ligações à lusofonia são suficientes para apagar a relação do Português com as línguas românicas? Será que as chamadas consoantes mudas já não exercem influência no timbre das vogais que as antecedem? Num estudo publicado na revista Diacrítica, Francisco Miguel Valada analisou os efeitos que o AO90 tem sobre as palavras terminadas em ‘–acção’, nos casos em que perdem o c que não é pronunciado. Tentarei, aqui, resumir o artigo, tentando não desvirtuar o seu conteúdo. Assim, antes do AO90, existiam 3052 palavras terminadas em ‘-ação’. Nestes casos, o ‘a’ que antecede o ‘ç’ lê-se fechado, à excepção de 9 palavras, como, por exemplo, inflação, que se lê com o ‘a’ aberto. Por outro lado, são 45 as palavras terminadas em ‘-acção’ em que o ‘c’ não se pronuncia. Neste grupo, o ‘a’ pronuncia-se sempre aberto, sem uma única excepção, como é o caso de “acção”.
Por imposição do AO90, o segundo grupo de 45 palavras passa a integrar o primeiro e o Português passará a ter 3097 palavras terminadas em ‘-ação’, sendo que o novo grupo continuará a manter, em princípio, o ‘a’ aberto. Deste modo, passamos de nove excepções em 3052 palavras para 54 em 3097, o que constitui um aumento exponencial, com tudo o que isso significa de aumento de dificuldades para a aprendizagem da língua, mesmo sem realizar um outro estudo que deverá analisar se estamos a lidar com palavras muito ou pouco utilizadas. Fica evidente, no caso em apreço, a influência da consoante na “abertura” da pronúncia da vogal que a antecede. A crítica feita por Francisco Miguel Valada a este problema é lapidar: “Considerando que um instrumento ortográfico tem a função de criar regras e não de aumentar nem criar excepções a regras, sublinhamos que a supressão diacrítica nos exemplos por nós apreciados leva ao aumento das excepções a uma regra (Regra 2) e à eliminação de uma regra sem excepções (Regra 1).” Note-se que se torna necessário, ainda, estudar os efeitos do AO90 nas palavras em que os grupos intermédios ct, pc, pç e pt ficam reduzidos à segunda consoante. Francisco Miguel Valada está a debruçar-se sobre o assunto, mas parece-me provável que se chegue à conclusão de que o valor diacrítico se mantém. Seja como for, o estudo aqui referido e outros similares deveriam ter feito parte do processo de discussão do AO90. Alguns defensores do AO90 negam a hipótese de que a ortografia possa contribuir para o fechamento de muitas vogais, problema que afecta o Português Europeu há vários anos. A verdade é que esse risco é real, graças, entre outras razões, à analogia. Imagine o leitor como será difícil a um aprendiz da língua portuguesa perceber que, sendo “criação” uma das 3043 palavras que se pronunciam com o ‘a’ fechado, há 54 palavras como “reação” que terão de ser pronunciadas com o ‘a’ aberto. Para além disso, na Nota Explicativa reconhece-se, afinal, que a escrita pode influenciar a oralidade, como se pode confirmar em 5.3., b), em que se defende a manutenção de determinados acentos: “Em favor da manutenção dos acentos gráficos nestes casos, ponderaramse, pois, essencialmente as seguintes razões: (…) b) Eventual influência da língua escrita sobre a língua oral [sublinhado meu], com a possibilidade de, sem acentos gráficos, se intensificar a tendência para a paroxitonia, ou seja, deslocação do acento tónico da antepenúltima para a penúltima sílaba, lugar mais frequente de colocação do acento tónico em português;” Embora os outros grupos não estejam, ainda, estudados, como é possível afirmar que a supressão do ‘c’ em “corrector” não dará origem a uma mais que provável alteração timbre da vogal, mesmo aceitando que o contexto possa resolver o problema do significado? Mesmo não tendo valor científico, fui testemunha recente de uma hesitação de leitura no caso do timbre do ‘a’ inicial da palavra “atores”. Uma análise cuidada da aplicação de um acordo deveria, aliás, ter incluído estudos com o apoio de um laboratório fonético. No livro de Francisco Miguel Valada já várias vezes citado, é dado o exemplo da supressão do acento circunflexo no topónimo “Castêlo da Maia”. Alguém duvida de que o desaparecimento daquele acento está a provocar a progressiva homonímia com “castelo”? Ainda a propósito desta cruzada acordista que tenta impor a ideia de que a escrita deve corresponder a uma espécie de transcrição fonética, leia-se este magnífico exercício humorístico.
Em conclusão, as chamadas consoantes mudas, para além de constituírem uma referência etimológica, são, de uma maneira geral, fundamentais para indicar o timbre das vogais que as precedem. A sua eliminação é um dos maiores erros do AO90.
6. Mais homografias O AO90 contribui para o aumento das homografias, ou seja, com a sua aplicação o número de palavras que se escrevem da mesma maneira e se pronunciam de maneira diferente. Tal facto poderá dar origem, como vimos anteriormente, à alteração da pronúncia, para além de poder dificultar o entendimento de enunciados. Na Nota Explicativa dedica-se o ponto 5.4 a esta questão, o que, de certo modo, corresponde ao reconhecimento da existência de um problema. Um dos primeiros argumentos é o da preexistência de outras homografias na ortografia portuguesa. Ora, se é reconhecido que a homografia pode trazer problemas, qualquer acordo deve, na medida do possível, evitar a sua multiplicação. Relembre-se uma das contradições apontadas ao AO90, quando defende a manutenção do acento em “pôr” para evitar a homografia e a supressão do acento em “pára”, apesar da homografia. Na Nota Explicativa, 5.4.1, b), defende-se que a criação das homografias não criará dificuldades de leitura ou de entendimento “(…) porque, tratando-se de pares cujos elementos pertencem a classes gramaticais diferentes, o contexto sintáctico permite distinguir tais homógrafas.” Resulta da minha experiência profissional o contacto com homografias involuntárias que, efectivamente, criam textos que só a custo podem ser descodificados. Desafio o leitor a não ficar atrapalhado perante um enunciado como “A personagem e racional, mas, neste excerto, esta emocionada.” É claro que há, aqui, formas verbais que não foram acentuadas e é certo que um leitor experiente consegue, ainda que a custo, ultrapassar as dificuldades. Seja como for, a homografia é sempre um ruído que deve ser preferencialmente evitado. Francisco Miguel Valada, na p. 49 de Demanda, Deriva, Desastre, acrescenta o seguinte: “Quando se refere o contexto como fórmula de desambiguação, esquece-se que nem sempre o contexto pode ser factor auxiliar, nem, por vezes, se subentender, como pode acontecer com um cabeçalho de jornal, na linguagem publicitária ou mesmo em cartazes de campanhas partidárias.” Relembro, a propósito, que o próprio Record, o primeiro jornal a adoptar o AO90, optou por manter o acento gráfico em “pára”, dando como exemplo a ambiguidade que poderia nascer de um título como “Ninguém para o Benfica”, quando o objectivo fosse o de fazer referência a uma série vitoriosa daquele que se espera que venha a ser o próximo campeão nacional. Pedindo perdão pela nota clubística, acrescento, aqui, mais uma conclusão parcial: o aumento das homografias constitui mais um pecado do AO90.
7. Implicações pedagógicas A dada altura, os autores do Acordo revelaram uma preocupação com os problemas de aprendizagem dos alunos, explicando que a supressão das consoantes mudas vai tornar
tudo mais fácil. A fonética é fonte de muitos erros e a escrita das consoantes mudas fazia parte do rol. Por esta ordem de ideias, seria importante repensar outras questões ortográficas, como, por exemplo, os vários valores fonéticos de ‘o’ (é vulgar as crianças perguntarem, no Primeiro Ciclo, se ‘pato’ se escreve com u), de ‘i’ (o que dá origem a erros frequentes, como Medecina) ou de ‘x’ (letra que corresponde a cinco sons diferentes). Fica, ainda, por explicar por que razão tantas gerações de portugueses conseguiram superar essas e outras dificuldades levantadas pela ortografia portuguesa. Facilitar a aprendizagem da ortografia não pode ser argumento para mudar essa mesma ortografia. Os critérios que presidem a qualquer mudança deverão ser rigorosos e consistentes. Do ponto de vista pedagógico ou simplesmente cívico, aduzir um argumento em favor da simplificação é insultar a inteligência de professores e alunos. Para além disso, será, na verdade, mais fácil para todos lidar com um sistema ortográfico coerente. As consequências deste acordo para a pedagogia serão, aliás, desastrosas, como seria desastroso para o ensino de qualquer área científica incluir erros científicos. Para além disso, no caso do AO90, é fácil adivinhar que as grafias facultativas e a vulgarização da ideia que se deve aproximar a escrita da fonética serão, no máximo, duas mais que prováveis fontes de erros ortográficos, sabendo-se que uma das causas do erro ortográfico está, exactamente, na tendência para se escrever tal como se fala. No mínimo, haverá tendência para a diluição de um sistema, ou seja, para a antecâmara de um caos, o contrário do que deve ser, afinal, um conjunto de regras ortográficas. No que respeita, ainda, à possibilidade de duplas grafias, dependendo da pronúncia de quem escreve, pergunta-se como poderá um professor corrigir um texto sem conhecer ou sem se lembrar da pronúncia de um aluno, situação ainda mais caricata no caso da classificação de exames nacionais, em que é imposto o anonimato. Em suma, o facilitismo como critério e o esboroamento da coerência ortográfica originados pelo AO90 terão reflexos perniciosos sobre o ensino da Língua, já tão massacrado por décadas de experimentalismo e de constantes alterações.
8. Uma espécie de conclusão Muitas outras questões mereceriam, ainda, uma análise demorada, como a passagem dos nomes dos meses de próprios a comuns, sem qualquer argumentação, ou a supressão disparatada de acentos em determinados ditongos, mas não é possível nem necessário esgotar aqui todos os problemas levantados pelo AO90. Para além disso, quem quiser, verdadeiramente, informar-se sobre muitas outras questões que não abordei, facilmente encontrará nas páginas indicadas no primeiro texto desta série material suficiente. As questões legais relacionadas com o AO90 são importantes, como ficou demonstrado. De qualquer modo, mesmo que a situação legal estivesse assegurada, o Acordo continuaria a ser negativo. Assim, ao longo de seis textos, procurei demonstrar que 2. O AO90 não é um texto consistente; 3. O AO90 não produz uniformização ortográfica;
4. O AO90 não produz uniformização da escrita; 5. O AO90 erra ao propor a supressão das chamadas consoantes mudas; 6. O AO90 aumenta as homografias; 7. O AO90 tem implicações negativas no ensino da Língua. Se estes enunciados forem considerados verdadeiros, há razões suficientes para suspender o AO90 e aceitar, com tranquilidade, a ideia de que não é possível criar uma uniformização ortográfica. Depois de conseguirmos aceitar este facto – que não é um argumento, é um facto – podemos dedicar-nos, os falantes da língua portuguesa espalhados pelo mundo, a encontrar outros pontos de contacto frutuosos e a maravilharmo-nos com as diferenças. Espera-se, então, que todos os que se revêem nas análises efectuadas tomem uma posição firme de combate a um instrumento desnecessário e prejudicial. Podem começar por assinar a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico.
Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 19 de Fevereiro de 2012