DOS TROLHAS

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NUNO FERREIRA SANTOS

Estação Meteorológica António Guerreiro

O Acordo Ortográfico e os seus trolhas

H

á poucos dias, um dos auditórios da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa encheu-se de gente, ao ponto de muitos não terem conseguido entrar, para ouvir alguns convidados da universidade e exteriores a ela exporem os seus argumentos contra o Acordo Ortográfico. Porque é que uma questão aparentemente menor em relação aos problemas políticos e sociais consegue mobilizar tanta gente e provocar discursos inflamados? A resposta a esta questão tem múltiplas parcelas. Em primeiro lugar, as pessoas sentem como intolerável que o poder político se ocupe de questões que não lhe dizem respeito e que não podem ser submetidas ao arbítrio de quem detém o monopólio da violência legal. O Governo legisla hoje sobre a norma ortográfica como legisla sobre a nossa saúde, o nosso corpo e a nossa vida. É a isto que se chama biopolítica. Mas as razões de indignação surgem agravadas por um outro factor: o Governo arroga-se o direito não apenas de exercer essa violência legal, mas de o fazer em relação a uma matéria da qual manifestamente não percebe nada. À violência junta-se a ignorância. E, a somar à violência e à ignorância, há ainda uma razão estratégica absurda e anedótica: a de fazer da unificação ortográfica (que, afinal, é uma miragem e, por agora, já resultou num desacordo mais fundo do que aquele que tínhamos antes) um instrumento de conquista de poder e de influência da língua portuguesa no mundo. Por último, a coroar todas estas razões, há a desordem ortográfica a que afinal ficámos submetidos (e a quem pretende que está a aplicar o novo Acordo Ortográfico deve ser dito que aquilo que está a fazer é a inventá-lo à sua maneira para o tornar exequível). Mas a indignação de tanta gente contra o Acordo Ortográfico (na verdade, os seus públicos defensores passaram ao silêncio e já só se defendem a si próprios) e a reivindicação de uma espécie de objecção de consciência, por parte de muitos, para se subtraírem a ele, como se de uma guerra se tratasse, mostra bem que aquele argumento do aspecto meramente convencional da ortografia e da sua exterioridade em relação à língua está longe de dizer a verdade. Se assim fosse, as pessoas não reagiriam como quem as esfola e as espolia. Joga-se na ortografia algo muito mais profundo do que um sistema de regras gráficas convencionais. É certo que a linguística, por via de Saussure, está essencialmente voltada para a parole, a fala. Mas foi precisamente contra o primado da phonè que um filósofo como Derrida construiu a sua “gramatologia”. E de que modo é que a gramatologia aqui nos interessa? Interessa-nos para perceber que há uma arqui-escrita, como se fosse anterior à fala; e que é preciso instalar a escrita no coração da linguagem e não no exterior dela, como pretendem os construtores (autênticos patosbravos) do Acordo Ortográfico e os seus seguidores. Esta ideia de uma arqui-escrita é bastante complicada, mas por agora poderíamos deduzir dela a seguinte conclusão: a partir do momento em que aprendemos a escrever e passamos a utilizar o código escrito, a palavra é para nós, mais do que uma fonação (isto é, uma imagem acústica), um traço gráfico. E esse traço deixa de ser meramente convencional, ganha uma dimensão “arqui-“, archè, isto é, situa-se numa dimensão originária. Sós os engenheiros civis da língua e os trolhas ao seu serviço não percebem isto.

Uma inflexão na poesia de Manuel Gusmão: a história dá lugar à natureza

materialismo espectral, fragmentário, avesso a sínteses e totalidades. O resultado é uma poesia mais dura, menos “falante”, menos habitável (até pelo facto de se situar sempre num segundo ou terceiro nível, de ter sempre uma condição meta- e, portanto, ser sempre uma metapoesia), reclamando uma disposição do leitor muito mais difícil de obter. Não é que esta incursão na physis, com a sua exigência de micro-rigor, seja algo completamente ausente da poesia anterior de Manuel Gusmão, longe disso, mas agora dá-se um salto para a radical alteridade do mundo natural. E, dizendo isto, estamos a cair numa armadilha: na verdade, o “mundo natural” é, aqui, sempre um mundo representado por um medium artístico: a pintura, o desenho, o cinema. E até as paisagens da primeira secção do livro, O Caderno das Paisagens, são paisagens reduzidas à miniatura de um caderno, como uma espécie de herbário onde se entretece um texto (passe o pleonasmo) de elementos naturais. Podemos encontrar aqui um diálogo implícito e bastante requintado com os mecanismos de representação e miniaturização da paisagem elaborados em Finisterra, de Carlos de Oliveira. Mas são muitos os diálogos intertextuais reconhecíveis neste Pequeno Tratado das Figuras (por exemplo, com Luiza Neto Jorge). Temos assim nesta poesia vários níveis, vários mecanismos de distanciação e de mediação: ela fazse no interior da literatura (e, portanto coincide com uma leitura), a partir de artes da imagem, fixa ou em movimento. Poderíamos dizer que se trata de uma poesia voluntariamente deceptiva, pelo modo como se dá através de mediações. A noção de figura, a que o título do livro se refere, não recobre

30 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2013

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exactamente a noção de imagem: é mais abstracta, mais indefinida. Podemos ler nela a Gestalt, não no sentido de Jünger, para quem o Trabalhador era a Gestalt de uma época, mas no sentido, sem qualquer metafísica, de forma e formação. Neste livro representa-se um mundo em formação, que é uma pré-história da humanidade. E na medida em que é a descrição de quadros, de desenhos, de fotogramas, ele segue os preceitos da ecfrase. Mas, embora não possa ser negligenciada, a dimensão ecfrástica desta poesia não é aquilo que nela mais estimula as elaborações interpretativas. É um ponto de partida, mas não um lugar onde sejamos convidados a determo-nos com grandes demoras. Mais importante do que isso é o facto de em muitos poemas ter lugar a própria instância do discurso de que eles são o resultado (o facto de eles se darem como um acontecimento de palavra) enquanto tentativa de capturar um objecto, um “isto”, e de fazer coincidir a “coisa” com a coisa escrita, como se anuncia logo no poema de abertura: “Ramos lianas folhas e fios tecem/ a clara teia que seca a humidade/ da voz dos carvalhos e castanheiros/ e apaga o fulgurante vermelho/ dos zimbros/ e depois/ pintados de verde azul vêm/ envolver e enredar a capa/ deste caderno cujas páginas/ reciclam a natureza/ a máquina natural de atrair/ e capturar a multidão mínima/ dos encantos cantadores:/ os pássaros e as demais coisas/ escritas/ pela grande aranha/ que se baloiça contra/ o travejamento tempestuoso desse céu/ que se despenha e incendeia/ sobre os rios brancos do exílio (…).” Veja-se como neste poema, tal como em muitos outros, se multiplicam os deícticos, o “este”, o “esse”, que é um modo de se situar ao nível da mais pura imanência: a

imanência do discurso, que vai a par da imanência do mundo natural. É esta pura imanência que a poesia de Manuel Gusmão apreende nas representações figuradas. Talvez o que de mais difícil e o que de mais árduo este livro consegue seja a absoluta ausência de uma totalidade. As coisas naturais são como ruínas que estão aquém da capacidade de lhes conferir um sentido e de serem integradas num universo simbólico. Daí que a história esteja suspensa, numa espécie de epochè, e tudo se fixa numa imagem atemporal, de onde não é possível deduzir nenhuma cadeia de acontecimentos. E quando o atemporal é a dimensão das coisas, elas são uma pura presença, sem possibilidades, sem passado nem futuro. A vida das figuras, de que este livro se apresenta como “tratado”, é aquilo a que poderíamos chamar, com um conceito que já foi usado para a poesia de Celan e para a escrita de Sebald, uma “vida criatural”. Estranhamento da natureza, reificação dos entes, desmembramento da totalidade do mundo, construção de uma paisagem natural petrificada: tudo isto joga contra a retórica clássica e romântica do símbolo. É como se Manuel Gusmão tivesse querido, com as suas paisagens primordiais, que em boa verdade não são paisagens porque não constroem nunca a totalidade que qualquer paisagem supõe, representar um universo completamente assimbólico. As coisas não são corpos, são torsos. E é por isso que esta poesia se torna tão resistente, tão difícil de habitar, tão estranha à harmonia e à dissonância. Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets


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