ESSE MALFADADO ACORDO

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Transcrição parcial de crónica de Miguel Sousa Tavares publicada no Expresso de 30 de Dezembro de 2011

«Esse malfadado acordo» A partir de 1 de Janeiro, ao que parece, é de vez: todas as entidades públicas são obrigadas a adoptar o Acordo Ortográfico, mediante o qual o Estado português vendeu, grátis, parte do seu património inalienável. O Expresso, como sabem os leitores, já é escrito em obediência a esse malfadado acordo. Mas sobra a liberdade para os colunistas que assim o desejem, e entre os quais me incluo, continuarem a utilizar nos seus textos a ortografia da língua que herdámos dos nossos pais e que gostaríamos de transmitir aos nossos filhos. Assim continuarei, pois, a fazer, com o grande conforto de saber que estou a fazer a coisa certa. Que os chineses fiquem com a electricidade que chega às nossas casas, preocupa-me porque sei que não há almoços grátis e, mais tarde ou mais cedo, teremos de pagar o preço com juros. Mas, no essencial, nada muda: a EDP continuará a ser a empresa pessoal do dr. Mexia e nós continuaremos a pagar a electricidade a preços de monopólio, o que é um dos factores impeditivos do nosso desenvolvimento. Que os espanhóis fiquem com o controlo aéreo do espaço português ou os angolanos com a Galp ou a REN, preocupa-me mais um pouco. Que os alemães fiquem com a água preocupa-me bastante mais — não por serem os alemães, mas por ser a água, o mais público de todos os bens. Que a nossa mais importante embaixada no mundo, a TAP, seja oferecida aos brasileiros, considero um acto de lesa-pátria, mas, desde que não me obriguem a ir a Madrid apanhar o avião para o Rio, do mal, o menos, somos uma massa falida em liquidação total. Mas obrigarem-me a escrever o português em brasileiro — eu, cujos antepassados levaram a língua ao Brasil há 500 anos —, isso não. E digo-o com a convicção de quem ama profundamente o Brasil e tem, perdoemme a imodéstia, o orgulho de ter quatro livros editados no Brasil e, por expressa vontade minha, com o português que aqui se fala e que é nosso. Num artigo publicado esta terça-feira no “Público”, a professora Maria José Abranches explicou, mais uma vez, até que ponto a capitulação feita com o Acordo Ortográfico representa um absurdo face às regras da gramática em que aprendemos e crescemos e que continuam a fazer todo o sentido. Trata-se de uma língua comum, com regras ou desenvolvimentos diferentes na sua grafia e oralidade, que só são unificáveis à força e unilateralmente, tal como se fez no AO: quando os brasileiros escrevem de uma maneira, mesmo que nós não o façamos, vale a regra brasileira; quando nós escrevemos de uma maneira e eles não, vale também a regra deles. Já nem discuto que se possa fazer entrar em vigor uma convenção linguística que envolve oito países dessa língua e em que apenas três a ratificaram (há cinco países que continuarão a escrever o português que nós traímos). Já nem discuto que se tenha decidido modificar a língua sem consultar os que mais a usam: escritores, editores,


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