A PROPÓSITO DE UM CONVERSOR CHAMADO LINCE por Francisco Miguel Valada
Se o estimado leitor instalar o conversor Lince no computador pessoal (prática que, mais do que não aconselhar, desaconselho), como fiz recentemente num computador especialmente programado para ensaios e não no computador que utilizo para trabalhar, existe a forte probabilidade de ocorrerem fenómenos semelhantes àqueles que mais à frente iremos apreciar. Aviso ainda o estimado leitor que não esgotarei nesta nota todas as hipóteses de teste. Fica o aviso. O conversor Lince, para quem não souber, foi adoptado como “ferramenta de conversão ortográfica de texto para a nova grafia” pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011. Nesta Resolução, sobre a qual já muito se disse e muito há ainda a dizer, adopta-se igualmente “o Vocabulário Ortográfico do Português [VOP], produzido em conformidade (sic) com o Acordo Ortográfico”. A Resolução diz-nos mais: “ambos [Lince e VOP] desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa”. Parte-se do princípio de que “estão a ser desenvolvidos”. Mas também podem “ter sido desenvolvidos”. Podem mesmo “vir a ser desenvolvidos”. Nunca se sabe. Adiante. Vamos ao assunto.
Após introduzir no Lince um pequeno texto que escrevi (T1), obtive este resultado (T2): Texto convertido (i.e., acordizado) pelo Lince (T2) Água de colónia Dizer-se que a teoria de Aristóteles acerca do arco-íris é um freio (para o trânsito, como uma atriz famosa ou uma greve sectorial, e para a ortografia, como um corretor acordista ou uma comissão pouco interativa) é ir um pouco longe de mais. A teoria de Aristóteles acerca do arco íris não se extrapola para o trânsito nem para a ortografia. Digo eu, nesta nótula feicebuquiana. A conjetura de Aristóteles é apenas a primeira relativa a este aspeto, é como um tiro à queima roupa, vem na Meteorologia (III, 2) e admite que o arco íris é um fenómeno que ocorre por a luz se refletir nas nuvens. Coisa do arco da velha. Como disse Teodorico de Freiberg, quando a luz solar atinge uma gota-de-água, há um processo complexo constituído por duas refrações e uma reflexão. Como sabemos hoje, os principais fenómenos da luz, quando entra em contacto com os materiais, são a reflexão, a refração e a transmissão, isto é, em termos proactivos, devemos considerar os aspetos refletir, refratar e transmitir. Considerando a ótica do espectador, dado que a luz se dispersa por todo o espectro, os processos básicos de formação do arco íris são a reflexão e a refração, que mais não é do que a mudança de direção na propagação da luz causada pela mudança que ocorre no respetivo meio material. Dizer-se que o meio material anda ao deus dará é confundir-se um pé de meia com uma fortuna e o mais que perfeito com um amor perfeito cor de rosa. O que há de ótimo aqui, é que isto não há de ser nada, embora queira dizer alguma coisa. Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince
Agora, leia-se abaixo o texto T1, com erros de teste devidamente controlados e explicados: Texto original (T1) Água de colónia Dizer-se que a teoria de Aristóteles acerca do arco-íris é um freio (pára o trânsito, como uma actriz famosa ou uma greve sectorial, e pára a ortografia, como um corrector acordista ou uma comissão pouco interactiva) é ir um pouco longe de mais. A teoria de Aristóteles acerca do arco íris não se extrapola para o trânsito nem para a ortografia. Digo eu, nesta nótula feicebuquiana. A conjectura de Aristóteles é apenas a primeira relativa a este aspecto, é como um tiro à queima roupa, vem na Meteorologia (III, 2) e admite que o arco íris é um fenómeno que ocorre por a luz se reflectir nas nuvens. Coisa do arco da velha. Como disse Teodorico de Freiberg, quando a luz solar atinge uma gota-de-água, há um processo complexo constituído por duas refracções e uma reflexão. Como sabemos hoje, os principais fenómenos da luz, quando entra em contacto com os materiais, são a reflexão, a refracção e a transmissão, isto é, em termos proactivos, devemos considerar os aspectos reflectir, refractar e transmitir. Considerando a óptica do espectador, dado que a luz se dispersa por todo o espectro, os processos básicos de formação do arco íris são a reflexão e a refracção, que mais não é do que a mudança de direcção na propagação da luz causada pela mudança que ocorre no respectivo meio material. Dizer-se que o meio material anda ao deus dará é confundir-se um pé de meia com uma fortuna e o mais que perfeito com um amor perfeito cor de rosa. O que há de óptimo aqui, é que isto não há de ser nada, embora queira dizer alguma coisa.
1. NÚMEROS a) Em 18 linhas de documento Word (título excluído), o Lince propõe 18 alterações. Escusado seria dizer que é uma alteração por linha, mas vou dizê-lo na mesma: é uma alteração por linha. b) 18 alterações em 276 palavras identificadas pelo Word (título incluído) dá 6,5%. Verifica-se, mais uma vez, que os cálculos frequentemente mencionados pelos defensores do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO90) correspondem a uma ilusão, quer em termos de números, quer em termos de possível impacto, para o qual não há estudos. Como já disse em Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990: crítica da visão parcial (Ciberdúvidas, 8/6/2010, http://bit.ly/dWFddz), “a realização de cálculos conduzirá a resultados divergentes, conforme quer o tipo de texto a analisar, quer a sua dimensão”. Os números que a Nota Explicativa apresenta são uma fantasia. 2. AQUILO QUE O LINCE DEVOROU Relativamente às palavras alteradas atriz, corretor, interativa, conjetura, aspeto, refletir (2 vezes), refrações, refração (2 vezes), aspetos, refratar, ótica, direção, respetivo e ótimo já foram feitos estudos e comentários que não vou aqui repetir: a Biblioteca do Desacordo Ortográfico, cuidadosamente organizada por João Roque Dias, é um acervo importante, com estudos e referências a estudos: http://www.jrdias.com/acordoortografico-biblioteca.htm. Quanto à alteração pára → para, ao ler o meu parágrafo acordizado, fiquei com a franca impressão de que a teoria de Aristóteles era um motivo para interromper o trânsito ou uma ortografia. A imagem perdeu-se completamente. O freio reflectia-se na comissão, no corrector (e não num corretor, nem sequer num conversor) na actriz, enfim, na teoria. Nunca me ocorreria que a teoria travasse o trânsito ou a ortografia. Nunca foi tal o meu objectivo. O Lince, na sua voracidade, foi demasiado longe. Eu referia-me ao verbo “parar” e não à preposição “para”. O Lince não pode fazer-me ambíguo, quando quero ser claro. Se eu quiser ser ambíguo, a escolha é minha. Não admito que um Lince torne os meus textos opacos. 3. O QUE PASSOU DESPERCEBIDO AO OLHO DO LINCE… O facto de o Lince não ter nem detectado nem alterado acordista, feicebuquiana, Teodorico, Freiberg, gota-de-água poderá significar tão-somente que o Lince, para além de ser mero conversor e não um corrector (já todos sabíamos), apenas “converte o conteúdo de ficheiros de texto para a grafia neste momento a ser introduzida em vários países do espaço da CPLP”, como se pode ler na página do ILTEC. Ou seja, palavras que não são alteradas pelo AO90, independentemente da incorrecção detectada por um corrector de português correcto, escapam à fúria do Lince. Repito: poderá significar. Porque há uma segunda alínea neste ponto 3… Isto é, o Lince apenas se preocupará com as palavras afectadas pelo AO90. Não faz mais nada.
Nem se aventura em aventuras de corrector (que não é) com “açordita”, “cordita”, “acordaste”, “acudiste”, “aturdiste” para acordista, “Teodoro”, “Teosófico”, “Teodolito”, “Teodósio”, “Teogónico” para Teodorico, “Freires”, “Freixeda”, “Freire”, “Freira” ou “Reimergue” para Freiberg, nem sequer é taxativo (“Nenhuma Sugestão Ortográfica”), como foi o corrector ortográfico de português correcto que instalei em T1 quando se deparou com feicebuquiano (a minha norma pessoal) e gota-de-água (erro intencional para teste). Estava francamente à espera de que gota-de-água perdesse os hífenes à passagem do Lince. Desiludi-me: nem os detectou pelo cheiro… Como gota de água não tem hífenes na norma do decreto n.º 35228, de 8 de Dezembro de 1945, o Lince não percebeu que este enxerto constituía um erro (voluntário, é certo, mas um erro), logo, não extraiu. Se gota-de-água hífenes tivera, talvez o Lince lhos levara. Talvez… O mais problemático, contudo, diz respeito às locuções que deveriam ter hífen(es), porque, segundo a base XV, 6.º, são excepções “já consagradas pelo uso”. Escrevi-as propositadamente sem hífenes: água de colónia em vez de água-de-colónia, arco da velha em vez de arco-da-velha, cor de rosa em vez de cor-de-rosa, mais que perfeito em vez de mais-que-perfeito, pé de meia em vez de pé-de-meia, ao deus dará em vez de ao deus-dará e à queima roupa em vez de à queima-roupa. Arco-íris (base XV, 1.º), o actor principal do texto e que grafei sem hifenizar, excepto na primeira ocorrência, manteve-se tal e qual: com hífenes na primeira (em absoluto respeito da base XV, 1.º) e sem hífenes nas três seguintes (em absoluto desrespeito da base XV, 1.º). As excepções podem ser “já consagradas pelo uso”, mas o Lince não parece ser um animal de hábitos. Pelo menos, não são estes os usos habituais deste predador. 4. A FALÁCIA DA DUPLA GRAFIA O Lince não informa aqueles que se dedicam a experimentá-lo da seguinte realidade: segundo a base IV do AO90, sectorial, espectador e espectro são tão válidas como setorial, espetador e espetro. Felizmente, há vida para além desta experiência e o VOP informa-me que posso escrever sectorial, espectador e espectro (que têm a vantagem de respeitar a norma ortográfica do português europeu). Contudo, através do Lince, jamais ficaria a saber dessa benesse do AO90. Através do Lince, a dupla grafia criada pelo AO90 é mais do que um mito: é uma falácia. Não fico a saber que existe. O corrector de português correcto que utilizei, perante a água de colónia, recomendava: “substitua água de colónia por água-de-colónia”. O Lince, como vimos, não recomenda nada do género “o utilizador da língua, para além de setorial, espetador e espetro, também pode grafar sectorial, espectador e espectro”. Não! O Lince limita-se a morder os hífenes, a mastigar as consoantes, a engolir os acentos. O Lince não recomenda nada.
5. ÁGUA DE COLÓNIA E A FALÁCIA DA QUANTIDADE A escolha deste título para o texto que submeti à avidez do Lince teve um objectivo claro. Perceber-se duma vez por todas que quando alguém diz que as mudanças do AO90 são poucas (não são, mas essa é outra conversa) está a reproduzir uma mistificação. Pura mistificação. A prova não é o facto de o Lince (que só devora, que não converte) ignorar a água-decolónia. A prova é que, apesar de a base XV, 6.º (que existe em Diário da República há quase 21 anos) dizer que água-de-colónia tem hífenes e, apesar das acções de formação para peritos, profissionais e leigos, apesar de tanta publicidade que é feita pelos responsáveis políticos, apesar dos 30 segundos ou 30 trinta minutos prometidos por Feytor Pinto1 para todos aprenderem as regras, o Lince ignora e o VOP lança a confusão: para além da água-de-colónia, aparece a variante água de Colónia. Dupla grafia? Sem hífenes? Colónia com C? Como é possível? Quem autorizou, porque autorizou e com que autoridade o fez? Afinal, quantos acordos ortográficos existem? 6. PROACTIVO: AGORA E SEMPRE Aproveito também esta nótula para comunicar um desaparecimento. Felizmente, não foi uma pessoa que desapareceu. Contudo, o desaparecimento de uma palavra também deve ser denunciado. É verdade que o VOP reconhece pró-ativo. Mas a verdade é que escrevi proactivo e este ficou intacto durante a passagem do Lince. Na ausência de conversão, poderei partir do princípio de que o cê de proactivo é pronunciado? Poderei. Contudo, o reconhecimento do pró-ativo pelo VOP e a negação da existência de proactivo (ou de um proativo AO90) deve ser condenada. A palavra proactivo é abundantemente utilizada no Diário da República. No passado dia 30 de Dezembro, ainda se podia ler no órgão oficial:
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«Na verdade, saber quais são as alterações que esta nova norma introduzirá na ortografia, diria que para qualquer professor basta entre 30 segundos a 30 minutos» Fonte: http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=913828
CONCLUSÃO O Lince é um programa informático que aniquila consoantes, acentos e hífenes, mas é uma aplicação que não faz análise semântica, sintáctica e pragmática dos enunciados. É uma fera sedenta de consoantes, acentos e hífenes. Ponto. O Lince não percebe o contexto. O Lince não sabe o que é um contexto. Limita-se a devorar. Perante o pára e o para, segue o instinto da base IX. A culpa é do instinto. O Lince não repõe e não devolve. Um conversor é um programa que transforma. Frequentemente, o Lince não transforma. Amiúde, o Lince ignora. O Lince não é um conversor. O Lince é tão-somente um predador. Ataca quando quer, ignora quando lhe apetece. Contudo, o Lince é apenas uma parte de um problema maior. Para se resolver o problema do Lince, deve começar-se pela génese e acabar, duma vez por todas, com o AO90. Sem instinto, não há Lince. Perante o AO90, devemos todos ser linces.
Publicado na Biblioteca do (Des)Acordo Ortográfico a 3 de Fevereiro de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico