in Público, 6 de Julho de 2011 Consulenta, tal como presidenta, não é norma-padrão, aquilo que popularmente se chama “português correcto”
Enta à Presidência e singularidades de uso Por Francisco Miguel Valada (*) Por onde não auia de auer peſſoa que ſe prezaſſe de ſi, que não trabalhaſſe por ſaber algũ latim, que niſſo conſiſte o falar bem Portugues Pêro de Magalhães de Gândavo, 1574
Recente polémica nas páginas do PÚBLICO, motivada por crítica ao singular uso de presidenta e à defesa da sua legitimação, leva-me a manifestar opinião sobre matéria não relacionada com ortografia. Uma estreia nestas páginas. E garanto, para gáudio de alguns, que não irei grafar o nome do instrumento de indesejável adopção, palavra com p não pronunciado, mas com valor diacrítico. Desta forma, poderá continuar a ler-me quem intencionalmente tem, desde os anos 80, ignorado os pareceres negativos elaborados sobre o dito instrumento, cujo nome, tal como o de Voldemort no Harry Potter, não será aqui mencionado. 1 - José Mário Costa (PÚBLICO, 30.6.2011) pretende justificar a legitimação de presidenta, através da sua "generalizada atestação" em dicionários. Acrescenta que "pode não ser o recomendado ainda pela norma culta", mas adianta que Celso Cunha e Lindley Cintra, "ilustram outros femininos com similar formação, como "governanta", "infanta" ou "parenta"". Para mais tarde se reflectir, recordo que, na página 195 da edição que possuo da Gramática de Cunha & Cintra (18.ª, de 2005), os autores, além de presidenta, incluem giganta e hóspeda no "curso restrito do idioma". Porém, antes de me debruçar sobre os outros "femininos com similar formação" de J.M. Costa, entendamos o que é -ente e o porquê de presidente. "Ente" é palavra portuguesa masculina, com origem no particípio presente (ens) do verbo latino esse. Sendo um ente um ser, temos em português cerca de quinhentos substantivos terminados em -ente, na sua maioria comuns de dois géneros. Há excepções e são honrosas: a serpente, ser que serpenteia; a gente, ser colectivo; o ambiente, aquilo que nos rodeia. Uma vidente é um ser que (aparentemente) vê o que é invisível ao comum dos mortais. Uma aderente e uma crente são entes do sexo feminino: as aderentes aderem e as crentes crêem. Como se vê, o género gramatical acaba de ser nitidamente indicado pelos respectivos artigos ("uma" e "as"). Como muito bem ilustrou António Emiliano, em artigo de Luís Miguel Queirós (PÚBLICO, 24.6.2011): "Presidenta não é português". Corroboro a opinião de Emiliano e acrescento: videnta, crenta e aderenta não são palavras portuguesas. Para se legitimar uma presidenta, deve, em primeiro lugar, atribuir-se género feminino à palavra ente e depois avançar-se para enta. A partir daí, e só a partir daí, se poderá legitimar presidenta. Efectivamente, a partir de enta tudo pode acontecer. Faço igualmente notar que -enta é terminação de palavras femininas formadas, ou não, a partir de masculinos em -ento e não em -ente: ementa (sem masculino), mas avarenta (com masculino avarento). Apesar de haver quem diga sargenta, o ente que serve (servient), em contexto formal, é sargento e tem dois géneros.
Quando J.M. Costa refere "femininos com similar formação, como "governanta", "infanta"", faço notar que estas palavras não terminam em -enta, mas em -anta, não sendo o masculino -ente, mas -ante. A "similar formação" é aparente e importante, mas é conveniente distinguir a importância da diferença. Daí, Cunha & Cintra (p. 195) referirem-se a -nte, não serpenteando por -ente nem por -ante. O -ante em infante é um falso sufixo: não é -ante, mas -fante, do latim "fari" (falar). In-fante significa "que não fala", tal como prefaciar significa "falar no princípio". Infanta impôs-se, mas -ante não é sinónimo de -ente. Uma governanta e uma governante têm funções diferentes: a governanta governa uma casa, a governante governa um país. Continuando em -ante, elefante entrou no português através do latim e neste através do grego (έλέφας, marfim). Não havendo sufixo comum que permita uma explicação com regra comum, como em -ente, abriu-se a porta à flexão do género em -ante. Convém igualmente distinguir que alifante era usada até ao século XVI, tendo a relatinização do português permitido que Cunha & Cintra tivessem apresentado como excepção à "igualdade formal" elefante/a e não alifante/a. 2 - No Diário de Notícias de 1.7.2011, a propósito de crónica de Vasco Graça Moura sobre o instrumento a cujo nome não aludo, J.M. Costa refere o seguinte: "não é razoável a persistência em argumentos inexactos, como, por exemplo, na questão da queda das consoantes "c" e "p" das sequências "cc", "ct", "pt", etc.". Salvo melhor opinião, o que "não é razoável" é a persistência de J.M. Costa em considerar opiniões não fundamentadas mais exactas do que conclusões de quem estuda esta matéria. O pecado não é original, note-se, mas convém não perpetuar a erva daninha semeada pelos adeptos do instrumento sem referências, que convém abandonar e cujo nome não menciono. Aproveito os caracteres que me restam para informar que cobarde/covarde, febra/fevra, louro/loiro, ouro/oiro e afins não são variantes ortográficas, pois a sua "diferença" não remete para a grafia, mas para certos usos da fala ocorridos num determinado período. Cobarde e covarde não foram criadas por instrumento ortográfico, mas por pronunciações (e não "pronúncias") diferentes do "u" de couard (fr. antigo para cauda); oiro e loiro coexistem com ouro e louro, mas a corruptela "au" → "ou" → "oi" ocorreu no século XVI, porventura por influência judaica: por exemplo, na Farsa de Inês Pereira de Gil Vicente, os judeus Latão e Vidal usam hoiver, coisa, oiço e usam-nas em discurso oral, não em registo escrito. Afinal de contas, o teatro é o palco da oralidade por excelência. Detenhamo-nos nesta ideia de indistintamente se poder usar fevra (e fêvera - J.M. Costa esqueceu-se de fêvera), covarde e oiro, quando na consulta de dicionários que J.M. Costa apresenta como referências se verifica remissão para febra, cobarde e ouro. Parte-se do princípio (e só deste) de que quem dicionarizou considerou estas entradas como as da norma-padrão, em sã convivência com outras. A fronteira prescrição/descrição é matéria delicada. Contudo, estes exemplos não são, nem de longe nem de perto, comparáveis com as facultatividades ortográficas irrestritas criadas pelo tal instrumento que nem sob coacção citarei. Muitas destas explicações estarão inclusive no Ciberdúvidas, em respostas dadas a consulentes. Consulentes, note-se. "Os" ou "as" consulentes. Consulenta, tal como presidenta, não é norma-padrão, aquilo que popularmente se chama "português correcto". (*) Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009) ................................................................ Nota do Bibliotecário: o autor não menciona, não grafa, não alude e não cita o nome do tal “instrumento”. Mas, o bibliotecário de serviço grafa, alude e cita o monstruoso instrumento pelo nome por que é conhecido: "acordo ortográfico de 1990" (em bom português, sempre com minúsculas).