O SECTOR DO LINCE

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PÚBLICO, DOM 14 JUL 2013 | 55

O sector do Lince, a co-adopção e uma coisa insustentável DANIEL ROCHA

Debate Acordo Ortográfico Francisco Miguel Valada A linguagem e os gestos litúrgicos pertencem ao mundo simbólico, metafórico, poético, em ruptura com a relação curta e congelada entre significante e significado. Frei Bento Domingues O.P., PÚBLICO, 19/5/2013

trituradora de tempo e recursos: pelo menos dois professores por disciplina para produzir cada prova a nível de escola e, no dia da realização, três a cinco pessoas do secretariado, dois vigilantes e um coadjuvante, mais uma dose industrial de registos a assinar para comprovar que todos estiveram lá à entrada e à saída, não esquecendo um ou dois professores para a classificação da prova escrita e parafernália equivalente, se existir prova oral. E nem sequer comecei ainda a falar do processo indescritível das provas extraordinárias dos cursos profissionais do ensino secundário, avaliados por módulos, que chegam a ter três temporadas, épocas ou fases para serem realizadas, mesmo depois de sucessivas provas de recuperação durante o ano lectivo. A reforma do Estado na Educação deveria passar pelo aligeiramento de todos estes procedimentos nascidos da falta de confiança da tutela nos professores e que deslocam imenso tempo e esforço que poderiam ser usados de forma muito mais útil e eficaz para tarefas administrativas que se limitam a produzir certificados de actos. Mas isso implicaria um nível de concepção que exige conhecimento concreto do quotidiano e capacidade de apresentação de alternativas, não dependentes de um pensamento que continua a privilegiar a representação e o registo do acto. E isso não mudou. Fizeram-se cortes, ordenaram-se cortes. Nada se fez em prol da qualidade e eficácia do sistema. Reduziram-se encargos, mas não se apostou minimamente na produtividade, muito pelo contrário. Professor do ensino básico; doutorado em História da Educação

1.

Em parecer do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) sobre a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), apresentado na Assembleia da República (AR), em 21 de Março, refere-se, na “Análise aos dados da Carta Aberta ao Ministro da Educação e Ciência”, que “[o]s dados apresentados em quadro enfermam de erros graves de análise e mesmo de transcrição e não têm valor científico. Não existe qualquer anormal caos a não ser no próprio quadro”. Numa das notas do parecer, afirma-se que “estava ausente no quadro da Carta Aberta a forma sector, também permitida pelo Lince”. Houve quem tivesse a gentileza de me chamar a atenção para a probabilidade das prolações ‘se[k]torial’ e ‘se[k]toriais’ do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, em discurso proferido no passado dia 3 de Maio. Fui ouvir o discurso, verifiquei as prolações, confirmei-as, registei-as e arquivei-as. Entretanto, depois de encontrar a versão oficial do discurso, disponível no Portal do Governo e redigida numa mistura da norma de 45 e da proposta de 90 (fruto dessa recorrente e inútil tentativa de converter uma escrita estabilizada num registo aventureiro), criei um ficheiro de texto, entreguei-o ao conversor Lince (adoptado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011) e obtive 20 alterações, entre as quais, sector > setor (cinco vezes) e sectores > setores (uma vez). O ‘sectorial’ e os ‘sectoriais’ sobreviveram ao ataque do Lince. A dupla grafia sector/setor, prescrita pelo AO90 (base IV) e atestada, tal como sectorial/setorial, pelo Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) do ILTEC, é desrespeitada nas conversões do Lince. Isto é, ao contrário do que se escreve no parecer do ILTEC, “a forma sector” não é permitida pelo Lince, coisíssima nenhuma, como diria o dr. Vítor Gaspar, se sobre este assunto se pronunciasse. 2. É sempre lamentável que um Parlamento aprove um diploma, quando existem pareceres qualificados a recomendar a suspensão do processo em curso. Quando um Parlamento dá mostras de não saber aplicar aquilo que aprovou, confirmam-se os receios de que os pareceres resgatados a uma gaveta deram entrada imediata noutra. O recente projeto [sic] de Lei n.º 278/XII, relativo à *co-

adoção de crianças por casais do mesmo sexo, provocou uma chuva de *co-adoções na imprensa que se rendeu ao AO90 e deu origem, inclusive, ao Grupo de Trabalho — Co-adoção, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República. Por incrível que possa parecer, o AO90 não se resume à base IV: tem 21 bases e é escusado irem ao VOP do ILTEC, em busca da solução — trata-se de novidade, compreensivelmente ainda por atestar. Entretanto, a *co-adoção vai fazendo os seus estragos e a base XVI do AO90, embora aprovada pelo Parlamento, só servirá para inglês ver. 3. Há alguns meses, assisti a dois actos de curiosa contenda, nas páginas do PÚBLICO, em torno de disparidades criadas pelo AO90. Maria Regina Rocha (19/1/2013) e Jorge Candeias (25/2/2013) atribuíram aos números o papel principal e enfeitaram o pano de fundo com o Vocabulário de Mudança (VdM) do ILTEC. Continuo a considerar improfícua qualquer exposição sobre o AO90, com base em totais, proporções ou percentagens e comparações entre Portugal, o Brasil ou a Cochinchina, sem ter em conta a falta de base científica do AO90, a geração de instabilidade ortográfica e o impacto negativo produzido pelas alterações. Mais improfícuo se torna esse exercício, quando o ILTEC, além de alegar eventuais inconsistências no Vocabulário da Academia Brasileira de Letras (ABL), propõe grafias não aceites pela ABL (‘baptismo’, ‘baptista’) e não considera palavras afectadas pelo AO90 (‘protracção’), presentes quer no Vocabulário da ABL (protracção/protração), quer no mais recente Vocabulário publicado pela Academia das Ciências de Lisboa (protração), entidade que, se bem me lembro e, se estiver desactualizado, por favor, corrijam-me, ainda é o órgão consultivo do Governo português em matéria linguística. Em alguns lemas do VdM, surge a indicação de duas grafias, com uma delas a ser objecto de etiqueta “não é usado em Portugal” (e.g., ‘afectar’, ‘idiolecto’, ‘factura’, ‘tecto’). Contudo, apesar do acolhimento dessas grafias no Vocabulário da ABL, não há atestação em dicionários brasileiros de referência, como o Houaiss (edição de 2009). Convém verificar “eventuais inconsistências”, antes de se

Com o AO90, além de Portugal e Brasil deixarem de ter grafia comum, passa a haver três grafias ias

partir para cálculos correctos e rigorosos sobre divergências e convergências. Convém igualmente reflectir sobre a dimensão desagregadora do exercício AO90, considerando os inúmeros casos em que no Brasil se conserva a grafia anteriormente comum, passando em Portugal a adoptar-se uma grafia obscura e exclusiva, como em acepção > aceção, concepção > conceção, confecção > confeção, contracepção > contraceção, decepção > deceção, intercepção > interceção, percepção > perceção, peremptório > perentório, prospecção > prospeção, recepção > receção ou ruptura > rutura. Em 1999, Ernesto d’Andrade e Maria do Céu Viana escreviam: “É hábito estabelecerse uma diferença entre a forma comum em português ‘rotura’ e a forma erudita ‘ruptura’ (…) Note-se que se entrasse em vigor o “Acordo Ortográfico” de 1990 (…) teríamos mais uma variante (‘rutura’) que nos parece injustificada”. É verdade, ei-la, a rutura (sic), exclusivamente em Portugal. Antes que alguém enverede pela lengalenga da “dupla grafia” anterior ao AO90, “ruptura” e “rotura” não são “grafias duplas”: são palavras homófonas (em português europeu), com a nominalização de um mesmo verbo (‘romper’) a ser feita através de vocábulos diferentes, havendo aparente consenso quanto às respectivas acepções – “rotura” incide sobre um objecto físico (“rotura de ligamentos ou “carga de rotura”), enquanto “ruptura” diz respeito à interrupção da continuidade de uma situação (como na citação de Frei Bento Domingues, em epígrafe). Quanto a grafias múltiplas, considere-se a “electroóptica”. Segundo o VdM, antes do AO90, havia duas grafias: “electroóptica” (comum a Portugal e Brasil) e “eletroóptica” (apenas no Brasil). Com o AO90, além de Portugal e Brasil deixarem de ter grafia comum, passa a haver três grafias: em Portugal, “eletro-ótica”; no Brasil, “eletroóptica” e “electro-óptica”. É evidente que acentos agudos e circunflexos complicariam tudo. Se quiserem um espectáculo digno de registo, consultem o VdM e dêem uma espreitadela a “espectrofotómetro” e “espectrómetro” . No passado dia 31 de Janeiro, na AR, durante audiência concedida à Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, o deputado Luís Fazenda garantiu que “ficarmos com três grafias (…) é absolutamente insustentável, não faz sentido nenhum, é de uma ilogicidade total”. Pergunto ao senhor deputado Luís Fazenda e a todos os responsáveis políticos portugueses: estamos todos exactamente à espera de quê, para se acabar, duma vez por todas, com esta coisa insustentável? Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)


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