O ACORDO ORTOGRÁFICO E OS INTERESSES BRASILEIROS João Roque Dias O texto seguinte (em itálico) é um excerto do livro Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Porto Alegre, ediPUCRS 2009 da autoria do escritor brasileiro Charles Kiefer a que adicionei alguns comentários.
«No entanto, no campo estratégico, nos movimentos de longo prazo, o Brasil terá grandes vantagens, tanto que os outros países da CPLP resistiram por mais de uma década ao acordo. Mas quais são essas vantagens estratégicas? A primeira delas, e talvez a mais importante, é a possibilidade de o Brasil conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Em que sentido, indagarão os céticos? O que a unificação científica tem a ver com o CS? Ocorre que, com a unificação, os falantes de língua portuguesa serão aumentados bastante, já que se somarão os habitantes de todos os oitos países. Kiefer afina pelo diapasão dos que tentaram vender o acordo ortográfico com o argumento de que, sem o AO, a língua portuguesa nunca poderia vir a ser língua oficial das Nações Unidas! Ou seja, «nos movimentos de longo prazo», o AO não só seria necessário, como até seria obrigatório! E para isso, falam em milhões de falantes, e até de uma «unificação científica»? Não será antes uma “unificação artificial”? Curiosamente, tão magnífico desígnio da língua portuguesa – baseado exclusivamente no número de falantes (especialmente brasileiros) – não é referido NEM UMA VEZ na Nota Explicativa do AO. Porque será? A ONU já existia quando o AO foi feito! Não se lembraram dessa? A Nota Explicativa lá fala do “prestígio internacional da língua” (o que é, e como se define, são perguntas lógicas que deveriam ter sido respondidas pelos autores do AO, mas não foram), mas daí até ter estatuto de língua oficial na ONU vai uma grande cambalhota. Afinal, desde quando é que o prestígio internacional de uma língua TEM QUE SER sinónimo de língua oficial da ONU?
Hoje, na hora de se produzirem documentos, há uma torre de babel entre os nossos países. São clássicas, e cómicas, as situações na ONU na hora das atas, dos documentos, das produções de acordos comerciais em que o funcionário do órgão pergunta: Escreveremos em português de Portugal ou do Brasil? Após o acordo, toda a documentação será exarada num mesmo sistema ortográfico.
Cómico, mas cómico a valer, é ler esta afirmação de Kiefer! Simplesmente, porque NENHUM funcionário da ONU JAMAIS produziu algum documento oficial da organização em português... Como NENHUM funcionário de qualquer órgão (nomeadamente da ONU) jamais redigirá acordos comerciais em que algum dos países lusófonos seja signatário... O facto de o português «exarado num mesmo sistema ortográfico» não eliminar a sua mútua incompreensão por força das diferenças lexicais, sintácticas e morfológicas entre o português e o “brasileiro” parece não incomodar Kiefer. É a cegueira passada para papel! Também Malaca Casteleiro, o fabriqueiro-mor do AO pelo lado português (citado no Ciberdúvidas) diz que «a língua portuguesa é a única com duas variantes que têm que ser traduzidas nas Nações Unidas.» Só que é MENTIRA! Não existem NENHUMAS traduções para português nas Nações Unidas! E, o inglês utilizado nos documentos da ONU é a variante britânica com a ortografia de Oxford. Ora, existe também, como todos sabemos, a ortografia da variante norte-americana! Malaca Casteleiro sabe, certamente, isto, mas insiste na mentira! Outra afirmação extraordinária de Kiefer é a que «há uma torre de babel entre os nossos países»... Torre de Babel? Mas, não são os acordistas, como Kiefer, que nos tentam vender a ideia de que o AO apenas se refere ao modo de escrever (algumas, dizem eles...) palavras e que todo o resto continuaria como até aqui? Seria por causa da eliminação das consoantes mudas euro-afro-asiáticas, da eliminação do trema brasileiro e de umas novas regras do uso do hífen que a Torre de Babel seria demolida?
Isto, para efeitos práticos e legais, significará que o português unificado representará mais de 250 milhões. Como o Brasil é o país económica e populacionalmente mais poderoso do conjunto da CPLP, nossas chances de ingressar no CS aumentam exponencialmente. Se algum brasileiro supõe que ombrear com EUA, Rússia, França e Inglaterra não tem importância política, económica, social e histórica deveria fazer, urgentemente, um cursinho de Direito Internacional. Fazer parte do Conselho Permanente da ONU ajudará até ao vendedor de pipocas da esquina, ao plantador de laranjas, ao professor universitário, à empregada doméstica. Até os grevistas do Cpergs terão melhores argumentos ao defenderem melhorias salariais aos que professores que ensinam uma das mais importantes línguas do planeta. «Português unificado»? Terá Kiefer endoidecido? Afinal, (1) onde arranja ele 250 milhões de pessoas que usem nas suas vidas o «português unificado»? E o que será na cabeça do autor o «português unificado»? (2) Maiores (exponenciais, até) “chances” de o Brasil ingressar no Conselho de Segurança por causa do acordo? Sem ter sequer o apoio dos países do seu bloco natural, i.e., a América do Sul? Exponencialmente? Mas, na mentira, Kiefer não está sozinho. Também no texto de apresentação do VOLP da Academia Brasileira de Letras, na Internet se pode ler que «O VOLP 5ª edição contribui para o uso internacional da língua portuguesa e para sua adoção como um dos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas». E como a loucura, ou a mentira, não tem fim, a Prof. Fabiana Câmera, da Fundação Getúlio Vargas, diz até que, com o AO, «...não será mais preciso imprimir vias em grafias diferentes para os contratos, além da economia de papel, que contribui para a preservação do meio ambiente.» Vá lá, não se acanhem e tenham a coragem (a lata!) de dizer que o AO vai até ajudar a salvar as baleias, a floresta amazónica e o clima do planeta...
A segunda vantagem estratégica do Acordo Ortográfico é que ele torna o Brasil o maior fornecedor de bens e serviços ligados aos setores de comunicação, educação e informática dos oitos países. Dados preliminares anunciam algo em torno de 400 milhões de dólares por ano em ganhos diretos para o avançado parque editorial brasileiro, por exemplo. Dos oito países, o Brasil tem as editoras mais poderosas, as maiores e mais avançadas gráficas, o melhor e mais competente parque industrial na área dos produtos informatizados. Pobre Brasil! Com uma população de quase duzentos milhões, uma área territorial quase ao nível de um continente e um PIB enormíssimo, precisa, afinal, que 50 milhões de outras pessoas em 7 outros países acordassem em eliminar umas consoantes mudas da sua ortografia («sem qualquer valor», como decretou até o fabriqueiro-mor do AO pelo lado brasileiro, Evanildo Bechara) para, segundo Kiefer, «o Brasil [se tornar] o maior fornecedor de bens e serviços ligados aos setores de comunicação, educação e informática dos oitos países.» Ficámos também a saber que «as editoras mais poderosas, as maiores e mais avançadas gráficas, o melhor e mais competente parque industrial na área dos produtos informatizados» não passariam de um gigante de pés-de-barro, não fosse o incómodo de umas quantas consoantes mudas estrangeiras e a eliminação de uns hífenes... Dar-se-á Kiefer conta do que escreveu?
Se eu fosse um escritor moçambicano ou português, faria passeata contra o acordo! Mas sou brasileiro e por isso não me filio ao partido dos descontentes, dos críticos e de todos que acreditam que língua e poder não são coisas que se conjugam.» Aqui, tenho que concordar com Kiefer: é precisamente por ser português que faço e farei todas as manifestações e darei o meu apoio a todas as acções que estiverem ao meu alcance contra o acordo ortográfico. Não porque eu pense que o Brasil não possa vir a ocupar um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, nem por querer mal ou a ruína das «editoras mais poderosas, as maiores e mais avançadas gráficas, o melhor e mais competente parque industrial na área dos produtos informatizados». Desejo ao parque editorial e de conteúdos brasileiros a maior prosperidade! Não quero o acordo ortográfico porque, por ser português, não o pedi, não o quero e, sobretudo, não preciso dele. Que o Brasil dele precise, para adquirir poder à custa da minha língua, como bem explicou Kiefer, já é outra conversa...
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2012
Publicado na Biblioteca do (Des)Acordo Ortográfico a 2 de Fevereiro de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico