Afinal, “Ensaio sobre a Cegueira” não é apenas um romance João Roque Dias Tradutor, CT Num pequeno texto(1) escrito 10 anos depois da assinatura do acordo ortográfico (Portuguese translation: What clients need to know), e que se tornou um clássico entre a comunidade de tradutores portugueses e brasileiros em todo o mundo, Lyris Wiedemann, professora da Universidade de Stanford e tradutora independente afirmou que «...it is virtually impossible for a native speaker of one variety of Portuguese (European or Brazilian) to do a good translation into the other. Although there are unfortunately people who may feel, and announce themselves, as capable of translating or editing for both varieties, their work usually does not pass the simplest scrutiny of a native speaker». O que terá levado uma tradutora com um mestrado em Didáctica da Linguística e um doutoramento em Linguística Aplicada a fazer tal afirmação? Muito simplesmente, o conhecimento prático do modo como se processa a comunicação pela via escrita – necessariamente através da utilização da ortografia. Ora, na língua portuguesa – em que existem duas normas ortográficas bem definidas e estabilizadas, quase centenárias(2), a norma euro-afro-asiático-oceânica e a norma brasileira – a tradução para qualquer uma destas normas utiliza necessariamente a língua e a linguagem próprias dos respectivos falantes (e, evidentemente, escreventes), através do léxico, da gramática, da morfologia, da sintaxe, da prosódia e de todos os restantes componentes da língua. Sonhar sequer que, com a implementação do acordo ortográfico (com minúsculas, devido ao número e calibre dos erros e disparates nele contidos), as duas normas linguísticas passariam a ter como que um salvo-conduto para circularem livremente em ambos os espaços linguísticos, constitui uma cegueira indesculpável. As duas normas estabilizadas da língua portuguesa não chegaram até 1990 por nenhum passe de mágica ou milagre. Como não podia deixar de ser, aí chegaram por obra dos seus falantes e pelas influências recebidas de outras línguas e de outras culturas. No caso do Brasil, por exemplo, ao contrário do português europeu, a influência do francês é insignificante e a marca do inglês americano na língua aí falada e escrita é omnipresente, sobretudo, e como não podia deixar de ser, na norma “culta” da língua. Entre o português utilizado (pela fala e pela escrita) em Portugal e o português utilizado (pela fala e pela escrita) no Brasil, as diferenças mais insignificantes são as ortográficas: nunca as consoantes mudas – é bom não esquecer que o acordo foi fabricado para acabar com esta diferença ortográfica entre Portugal e o Brasil – impossibilitaram a compreensão de qualquer texto. As maiores diferenças – as que impedem frequentemente uma compreensão natural e escorreita da língua escrita pelos falantes da outra norma – residem no modo como são utilizados o léxico e a gramática. São estas diferenças que inviabilizam em termos práticos a utilização em Portugal das traduções feitas por brasileiros ou a utilização no Brasil das traduções feitas por portugueses. Refiro-me aqui, exclusivamente, às traduções de textos especializados (os linguistas chamam-lhes textos pragmáticos) necessários à vida dos cidadãos, das empresas e das organizações públicas, como a tradução de literatura técnica diversa ou de outras áreas, como o direito, a economia, a medicina, etc. Esta inviabilidade é pacificamente aceite, há já muitos anos, pela indústria das línguas: tradução para Portugal e os países africanos-