O DIABO DO AO90

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• O Diabo, 26 de Fevereiro de 2013

Entrevista

“Em Portugal existe a ilusão de os custos do AO serem nulos!”

“O Acordo Ortográfico é um monstro de que ninguém quer assumir a paternidade” DUARTE BRANQUINHO

João Roque Dias é tradutor certificado pela Associação Americana de Tradutores e uma das figuras que se tem destacado no combate contra o famigerado Acordo Ortográfico (AO), nomeadamente na internet, denunciando o caos ortográfico que este gerou. O DIABO entrevistou-o. Em que é que o Acordo Ortográfico (AO) alterou a área da tradução? Para mim, pessoalmente, nada! Trabalho exclusivamente com empresas estrangeiras e, até hoje, nenhuma me pediu para traduzir utilizando a ortografia do AO de 1990. Se alguma me pedir, enviar-lhe-ei um texto já preparado, em que expresso alguns factos (para eles desconhecidos), nomeadamente o da falta de um vocabulário ortográfico comum (exigido pelo art.º 2 do AO, depois declarado inexistente pelo 1.º Protocolo Modificativo e, mais recentemente, declarado em preparação até 2014) e as discrepâncias ortográficas entre os vocabulários existentes. Cabe aqui perguntar para quê fazer, agora, um vocabulário comum, se 1.º Protocolo Modificativo diz que o tal vocabulá-

rio tinha deixado de existir, através de uma enviesada e trapaceira citação do texto original? No entanto, não tenhamos dúvidas, algumas empresas (de tradução e não só) sem escrúpulos tentarão obter uma tradução no Brasil (por ser mais barata) e utilizá-la, sem qualquer edição, em Portugal ou nos restantes países da CPLP. O resultado será o que já conhecemos hoje: não é possível, porque as principais diferenças entre o português euroafro-asiático e o português brasileiro não são ortográficas, mas lexicais e semânticas. E para essas, não há acordo que lhes possa valer. Isso nota-se mais na tradução técnica? Na tradução de textos técnicos, a tentativa de utilizar um mesmo texto (traduzido em Portugal, para uso no Brasil ou traduzido no Brasil, para uso em Portugal ou nos restantes países da CPLP) em todo o espaço onde são utilizadas as diversas variantes do português será sempre destinada ao fracasso. Se num concurso internacional em Portugal, onde os documentos devem ser apresentados em português, vierem a ser apresentados documentos em português brasileiro (mesmo “acordizados”), o Estado português ficará nos braços com textos que não poderá recusar (a loucura da “lusofonia” tem destes custos...), mas que também não poderá utilizar sem tradução: os aviões não “decolam”, uma “laqueação” não é feita em fábricas de móveis, os bate-chapas não são “lanterneiros” ou “funileiros”, as estradas não têm “acostamentos” nem “rotatórias” e ninguém em Portugal, mesmo os especialistas, é obrigado

a conhecer esses vocabulários. Ou seja, a utilização de um texto brasileiro em Portugal precisa de tradução e vice-versa. Portugal deve ser hoje o único país no mundo onde são aceites oficialmente documentos redigidos na sua “língua” com uma ortografia e um vocabulário que lhe são desconhecidos e que não utiliza! Até nas Nações Unidas, a ortografia está bem definida: deve ser a britânica, conforme definida pela Oxford University Press. O AO tem prejudicado os tradutores portugueses? Objectivamente, não sei, mas tenho notado um acréscimo de pedidos de adaptações (isto é traduções) de textos brasileiros para português. E não será difícil imaginar que, no caso de empresas sem escrúpulos, as traduções serão encomendadas no Brasil e, ou utilizadas directamente (!) em Portugal, ou os tradutores portugueses serão transformados em simples editores/adaptadores de traduções brasileiras. A prática irá desmascarar esses vendilhões, mas algum dano será sempre feito aos tradutores portugueses. E, com tudo isto, foi feito algum estudo sobre tais impactos? Não! Nenhum! Para os acordistas, nada disto é importante! Tem agido muito contra o AO. Quais acha que são as acções mais eficazes? Numa palavra, todas. Desde a denúncia do disparate, dos erros e da inutilidade do AO para os fins a que se propôs (“unificar” a ortografia de duas variantes de uma língua com mais de 100 anos de afastamento), até à assinatura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (www.ilcao.cedilha.net). Como costumo dizer, contra o AO fazemos todos falta! Em que consistem “A Biblioteca do Desacordo Ortográfico”

e “A Choldra Ortográfica em Portugal”? Na “Biblioteca do Desacordo Ortográfico”, o Grupo Acordo Ortográfico NÃO! no Facebook compilou uma colectânea de documentos sobre e contra o AO. “A Choldra Ortográfica em Portugal” é um documento com, actualmente, mais de 400 páginas em que se apresentam exemplos práticos da utilização desastrosa da “nova” ortografia por todos os sectores da sociedade portuguesa, desde administração pública (incluindo o Diário da República), até ao sistema de ensino (em todos os graus), a comunicação social, e a sociedade civil. O panorama é assustador e revela o caos ortográfico existente actualmente em Portugal, onde o AO foi transformado n’A Grande Purga dos Cs e dos Ps (“oção” e “ocional” lê-se num manual com a “nova” ortografia e “adatado” ou “tetónica de placas” lê-se em sites de escolas públicas). O que é deveras interessante, é que os promotores do AO não se insurgem contra este estado de coisas. A quem defende um documento que diz promover o “prestígio da língua portuguesa” deve perguntar-se “qual prestígio”? O do caos ortográfico? O que diz de jornais como “O Diabo”, que se opõem ao AO? Digo bem! Porque não se vergaram à Mentira de Estado que o Estado português tentou impingir aos seus cidadãos, ao arrepio de TODOS os pareceres qualificados que recebeu de pessoas e instituições qualificadas. E aos jornais que aderiram à “nova” ortografia, pergunte-se: qual “nova” ortografia? A da choldra que nos dão a ler todos os dias, com erros na “nova” ortografia que dizem usar? A ortografia com regras privadas, só deles, cada um à sua maneira, que violam a “nova” ortografia? A miserável escrita de “espectadores” com aspas, ou os nomes dos meses com maiúsculas, porque com minúsculas

são, como disse um jornal regional, “brasileirices excessivas”? As diferentes posições no mundo lusófono quanto ao AO são a prova do seu fracasso? Claro que são! O AO é um monstro de que ninguém quer assumir a paternidade. Sobre um documento que em Portugal o Estado acha perfeito (e mandou aplicar), Angola declarou (mais de 20 anos depois) que deverão ser feitas alterações a 20 das 21 bases que o compõem! Outra prova do seu fracasso é que, se o AO viesse a entrar em vigor, teriam passado 25 anos sobre a data da sua assinatura. Vinte e cinco anos são uma geração! Quais são os custos para Portugal desta teimosia política? Não sabemos! Ninguém sabe! O Estado português assinou um documento com erros, conforme declarações dos seus próprios autores (e não apenas trocas de “da” por “de”) e sem um único estudo de impacto linguístico, um único estudo de custo-benefício ou único estudo de custos financeiros! O único país onde foi posta uma etiqueta de preço ao AO é Moçambique: custaria 110 milhões de dólares! Em Portugal existe a ilusão de os custos do AO serem nulos! A preservação das gravuras do Côa ou das pegadas de dinossáurios custou algumas dezenas milhões de euros e foi precedida de numerosos estudos. Para o Estado português, a língua portuguesa não vale uma pegada de dinossáurio ou umas centenas de sobreiros! É possível parar este caos ortográfico? É! Claro que é! O Brasil já, por duas vezes, nos mostrou como: em 1919, revogou a adopção (efectuada em 1914) da ortografia resultante da Reforma Ortográfica realizada em Portugal em 1991. E, em 1955, revogou o decreto de adopção do Acordo Ortográfico que assinou com Portugal em 1945, porque a ortografia dele resultante era, para o Brasil, “lusitanizante”! Basta aceitar, de uma vez por todas, que a língua portuguesa tem e usa duas ortografias válidas: a de Portugal, definida pela Academia das Ciências, e a do Brasil, definida pela Academia Brasileira de Letras. O que diz àqueles que acham que a nova ortografia é inevitável? Pergunto-lhes: inevitável para quê? Para “unificar” o que, há muito, deixou de ser unificável? Para viverem com uma mentirosa sensação de “agora escrevemos todos da mesma maneira”, quando sabem muito bem que tal não é verdade e que a “nova” ortografia declara, ela mesma, tal não ser verdade? Para tapar o sol com a peneira? ■


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