PARA* QUIETA, LÍNGUA!

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Para* quieta, língua! João Roque Dias, CT O XVIII Governo resolveu pôr a andar o acordo ortográfico de 1990 (AO90). Para isso, emitiu a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, onde se lê, logo no preâmbulo, que “Esta resolução adopta, ainda, o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico, e o conversor Lince (…) ambos desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa”. Nota: o guião deste texto foi-me sugerido pelo Francisco Miguel Valada, quando pesquisava o VOP para redacção do seu artigo Dermatologia e resistência silenciosa (PÚBLICO, 29.02.2012). A espantosa inutilidade do VOP como ferramenta para aplicação prática do acordo ortográfico fica demonstrada nas linhas seguintes.

Eu, que desde criança me senti violentado com a estúpida língua que me calhou em sorte e a obrigatoriedade de escrever acentos e consoantes que ninguém me ensinou a articular, caí de joelhos em agradecimento aos santos das Academias, quando estes decretaram que a minha língua – a que me tinha calhado em sorte e com que os meus antepassados se entretiveram a complicar ao longo dos séculos – deveria ser modernizada, simplificada e globalizada. Porque, dizem eles, está em (constante) evolução... Mas apenas desde que resolveram estropiar a sua escrita, claro está. Ó maravilhoso acordo ortográfico, que vieste resolver os meus problemas! Em alguns, como só mais tarde vim a saber, sinceramente, nunca tinha pensado: que a minha língua – a da má sorte – podia ser expandida (é certo que os santos das Academias nunca me disseram para onde, mas há que ter fé...), prestigiada (com todos os Cs, Ps e acentos, bem me parecia que a minha língua era das mais desprestigiadas do mundo) e até ir para a ONU (certamente para estupefacção e gáudio dos senhores do Mundo que por lá se passeiam e pasmo saloio de todos nós)... Como estas coisas da língua são sempre complicadas (e ainda mais numa língua tão “antiquada” em “constante evolução”...), o meu Governo, que existe para pensar em mim, resolveu até pegar no meu dinheiro e dá-lo a uns senhores que brincam às línguas nuns computadores para me trocarem o acordo por miúdos. Às miudezas chamaram-lhe Vocabulário Ortográfico do Português (VOP). Eu desconfiei, porque, uns tempos antes, os santos brasileiros tinham feito a mesma coisa, sem darem cavaco (curiosa palavra, quando se fala de ortografia acordada) a ninguém. O nome das miudezas brasileiras era ligeiramente diferente, mas mais sonoro, mais tonitruante: Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Como fomos os últimos a escolher, calhou-nos a fatia mais fininha do bolo. E eu, que sempre quis escrever bem a minha língua, deparei-me, há cerca de um mês, com o problema de grafar (forma “culta” para dizer “escrever”) as complicadas, antiquadas, desprestigiadas e anti-ONU palavras portuguesas "tacto" e "olfacto". Como tinham um C no meio das letras, um homem tem que estar sempre desconfiado: corto o C ou não corto o C?


Nestas coisas, lembro-me sempre das palavras da D. Estrela e da Prof. Edviges: o que não se diz, não se escreve. Eu acho que esta regra serve apenas para eu não escrever os impropérios que dirijo, oralmente, todos os dias, aos disparates que dizem sobre o acordo ortográfico... E lá fui eu ao saco das miudezas, o português, porque, já agora, se não me levam a mal, sempre acredito mais nos santos da casa... O “olfacto” português (há UM mês, no VOP):

Pronto, já percebi: deixei de poder escrever “olfacto”, porque os brasileiros roubaram-me a palavra. Apenas em Brasil, dizem os santos do VOP... Imagino o que teriam escrito, se o acordo tivesse sido assinado com o Canadá: apenas em Canadá... Como sou bem-mandado, irei usar a variante AO de agora legal em Portugal: OLFATO. Eu não disse que minha língua era complicada e que agora era tudo mais simples? Imagino até a poupança de tinta num livro sobre o sentido do OLFATO... Se o livro tiver 640 "olfactos”, poupa-se a tinta para imprimir 640 "Cs"... Mais simples e mais económico! Tudo vantagens, portanto. Mas só em Portugal... Sobre o “tacto” português (há UM mês), o saco das miudezas informou-me assim:

Pois é, a mesma coisa... Deixei de poder escrever “tacto”, porque os brasileiros roubaram-me mais uma palavra. Agora, dizem os santos das Academias, em Portugal só posso escrever TATO e TACTO é apenas em Brasil (se o AO tivesse sido feito com a Rússia, lá leríamos a calhorda expressão apenas em Rússia...) Se um livro sobre tacto e faltas de tacto tivesse 1200 "tactos”, poupava-se a tinta para imprimir 1200 "Cs"... Se eu fosse tipógrafo, ficaria rico...


Como nem tudo o que escrevo é para publicação imediata, o meu texto com tactos e olfactos ficou na gaveta durante cerca de um mês. E, como a D. Estrela e a Prof. Edviges andam a dizer que a língua é dinâmica e está em constante evolução, fui novamente ao saco das miudezas ver se tinha havido dinâmica e evolução no facto e no olfacto... E não é que houve mesmo? Língua dum raio, que tanto evoluiu em apenas um mês... Para*, língua! Para* quieta! O “olfacto” português (depois de um mês de evolução da língua) é assim:

Mau! Então o apenas em Brasil passou a um mísero Brasil? E o OLFACTO é agora a variante AO de OLFATO (o tal que, ainda há um mês, eu tinha de usar, porque o meu OLFACTO tinha sido roubado para uso exclusivo pelo Brasil?) Lá vou eu ter que gastar mais tinta para imprimir os Cs... Será que o barato sai mesmo caro? Talvez com tacto, a coisa se resolva. Vamos ver... O “tacto” português (depois de um mês de evolução da língua)

A língua evoluiu assim tanto ou, está, simplesmente, tudo doido? Agora, o apenas em Brasil parece ter-se mudado definitivamente para o mais simples, dúbio, mas não exclusivo, Brasil. O TACTO tem agora uma variante AO: TATO (mas já não é uma variante AO de NADA). Concluo assim que, segundo a mais recente evolução e o mais actual dinamismo da minha língua (para* quieta, língua...), como 1. TACTO E OLFACTO deixaram de ser apenas em Brasil, e 2. o acordo dos santos das Academias fala em facultatividades. Assim: Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente..., e


3. as minhas habilitações literárias permitem-me concluir que a minha pronúncia é, sem dúvida, culta (só não sei se geral ou restritivamente...), poderei escrever, brasileiramente, TACTO E OLFACTO em Portugal, sem risco de violar o acordo dos santos das Academias, impedir a expansão da minha língua e, até, ser um empecilho para que o português lusofónico possa vir a ser língua oficial ou de trabalho da ONU (como disse Cavaco Silva, sem grandes certezas sobre o que é uma ou outra...), quando (quando?) o Brasil vier a ocupar um lugar de membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Fico mais descansado. Mas, se fosse tipógrafo, já estava a fazer contas aos prejuízos... Só que, como diz Francisco Miguel Valada no PÚBLICO em Dermatologia e resistência silenciosa, «no VOP do ILTEC, tacto e olfacto apenas se escrevem com cê no Brasil. Isto é francamente estranho. Olfacto e tacto não surgem no Dicionário Houaiss (edição de 2009) e no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), organizado por Malaca Casteleiro, co-autor do AO90, aparece a pronunciação do cê no olfacto do português europeu.» NOTA FINAL DE REPULSA E DENÚNCIA PÚBLICA É impossível fazer uma apreciação séria deste VOP, alcandorado a guia ortográfico oficial da República Portuguesa por via de uma simples resolução de um Conselho de Ministros. Este VOP é um nojo. E cada denúncia que alguma alma caridosa faça chegar aos seus autores, é apenas uma pérola oferecida a incompetentes. Os incompetentes assobiam para o ar hoje, corrigem amanhã e o mundo segue como dantes, sem escrutínio e supervisão de...absolutamente ninguém! E, enquanto a construção de uns míseros 2 km de estrada pela mais humilde câmara municipal em Portugal é até escrutinada pelo Tribunal de Contas, a definição da ortografia portuguesa é apenas obra de um grupo de pessoas à solta, em roda-livre, pago à tarefa e sem o controlo de...absolutamente ninguém! No texto de apresentação do VOP pode ler-se este maravilhoso princípio: «Um texto legislativo é concebido de forma abstrata (sic) e não é pensado para resolver casos concretos. Como outros textos legislativos, o texto do AO é vago na sua formulação, carecendo de interpretação quando aplicado a exemplos específicos.» Perceberam? Como o AO é abstracto e vago (nenhuma destas palavras se pode ler no AO ou na sua Nota Explicativa), os santos do ILTEC permitem-se interpretá-lo à sua maneira, e não apenas (como dizem mentirosamente) para casos específicos “abstractos” e “vagos”. E, pasme-se, tais interpretações não foram sequer previamente discutidas e acordadas com os restantes Estados signatários do acordo ortográfico... ACORDO? MAS QUAL ACORDO? * Apenas uma tentativa de adaptação, como me mandam a D. Estrela e a Prof. Edviges... Segundo estas acordistas, a aceitação dos disparates depende apenas da adaptação e habituação aos mesmos.

Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 1 de Março de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico


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