Debate – Acordo Ortográfico
Consoantes mudas ou colunistas surdos? Manuel Villaverde Cabral
in PÚBLICO de 10 de Fevereiro de 2012
O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada. O assunto é demasiado sério e não se resolve com ofensas avulsas contra uma pessoa que há mais de uma década se dedicou a rebater os escassos argumentos esgrimidos por alguns raros dicionaristas agindo por conta de interesses políticos mal compreendidos. Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”. Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para “gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito “acordo”. Porém, toda a sua jocosa pirotecnia não acrescenta um átomo às débeis falácias dos professores Houaiss e Casteleiro, quando entenderam “fazer política com a língua” em vez de “fazerem verdadeira política da língua”, como acontece igualmente com Tavares. Ora, o “acordo” não é mau para um país abstracto chamado Portugal e para os “conservadores” de quem o colunista se pretende rir. Nem sequer é apenas mau para a ortografia e a fonética do Português europeu; é mau sobretudo para a já de si deficiente aprendizagem do Português. Só para dar um exemplo, as consoantes mudas” que Tavares pretendeu ridicularizar logo no título da crónica não são tiques de bota-de-elástico. Têm funções fonéticas e etimológicas relevantes que só o esquecimento, para não dizer outra coisa, faz desprezar. Foneticamente, abrem as vogais que se lhe seguem e permitem distinguir, por exemplo, “recessão” de “recepção”, já que a tendência do Português europeu falado é, como se sabe, para o chamado “emudecimento” das próprias vogais não sinalizadas. Além disso, etimologicamente as ditas consoantes “mudas” servem para identificar étimos comuns, não só dentro do próprio Português, como por exemplo em “Egipto” e “egípcio”, sendo o “p” alegadamente mudo na primeira palavra e pronunciado na segunda; como também para identificar étimos comuns noutras línguas europeias: “acção” e “activo”, por exemplo, pertencem a uma vasta família etimológica presente não só em línguas latinas como o Francês (“action”, “actif”) mas também no Inglês (“action”, “active”). Por outras palavras, a etimologia e a sua representação gráfica ajudam-nos a saber de onde vimos, se é que a história conta alguma coisa para quem se assina como historiador.
A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa, que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente “acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia” por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante. Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguistas portugueses e muitos brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno rectângulo do Sudoeste europeu. Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo” artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!
Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 10 de Fevereiro de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico