A LÍNGUA DE PANDORA

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in PÚBLICO (P2), 16 de Dezembro de 2012

Alegria breve ou a Língua de Pandora Por Nuno Pacheco, Jornalista Por estes dias houve entre nós algum contentamento pelo facto, bastante saudável, de o Brasil adiar a entrada em vigor do acordo ortográfico (AO90) para 31 de Dezembro de 2015, ou seja, para 2016. Isto, em si, é uma boa notícia, porque o disparate que por aí vai à conta do dito é tal que bem merece que se adie, de preferência sine die. Mas o que esconde este adiamento é coisa de que não se falou. Resulta de uma pressão que vem de longe, como nos lembra o professor Ivo Manuel Barroso (que em Portugal entregou na Procuradoria uma queixa, fundamentada, para que Portugal se desvincule do AO90) e tem por base uma acção judicial intentada pelo professor brasileiro Ernani Pimentel. Porquê? Porque o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é já de si um absurdo, porque o AO90 prometeu, sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial portuguesa), contradiz o acordo de 90 em vários pontos. Alguns exemplos: onde o AO defende “co-herdeiro”, escreve o VOLP “coerdeiro”; onde o AO tem “benfeito” no VOLP surge “bem-feito”; onde o AO tem “benquerença” surge no VOLP “bem-querença”; “Toma lá dá cá” perde o hífen no VOLP mas “paupicar” surge ligado; etc. Trapalhada? Sim, claro, não era de esperar outra coisa. Sucede que, ao contrário dos que por aqui combatem a irracionalidade do AO e o abastardamento da língua portuguesa imposto pelo acordo (ILCAO, Ivo Barroso, António Emiliano, Francisco Miguel Valada e tantos outros), o movimento de Ernani Pimentel pugna por um facilitismo cada vez maior no ensino e uma simplificação indecorosa da escrita. No seu site na Internet, explica-se que o Movimento Acordar Melhor, criado precisamente por Ernani Pimentel em 2009, “visa a [sic] propor uma simplificação na ortografia para que todos a dominem e se libertem de dicionários e manuais, na hora de escrever j/g, s/z, s/ss/sc/sç/xc”. E, mais adiante, defende-se a “necessidade emergencial da criação de uma democrática academia da língua portuguesa para que ela, com membros de todos os países interessados em baratear e otimizar a educação, discuta, defina as novas regras e oriente os cidadãos. ‘A simplificação ortográfica é o maior projecto de inclusão social. E está ao nosso alcance.’”.

Você não vai precisar mais ficar pensando em estudar português. Não mesmo?

Tudo dito? Ainda não. Numa curiosa entrevista dada pelo professor à televisão da Vestcon (“vest” de vestibular e “con” de concurso — o que, em português europeu, quer dizer exame de acesso ao Ensino Superior), Vestcon essa que é editora dos seus livros, Ernani Pimentel explica: “Eu desenvolvi uma tecnologia que são três livros: o Gramática pela Prática, que você consegue fazer em dois meses; o Intelecção e Interpretação de Textos, que você consegue fazer no máximo em um mês; e o Análise Sintática Visual, que você faz em um mês. Então em quatro meses, você, entrando nas aulas da Internet e seguindo por esses livros, em quatro meses você tem uma visão profunda e ampla de toda a língua portuguesa. Aí você não vai precisar mais ficar pensando em estudar português.” (A transcrição é textual, a entrevista está online.) Felizes, com a perspectiva? Ainda não viram nada. Se o AO90 já é uma fraude, fingindo unidade onde foi criada confusão e divisão (palavras que todos escreviam da mesma


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