TERESA CADETE - ENTREVISTA

Page 1

Teresa Cadete entrevistada por Duarte Branquinho O DIABO, 25 de Setembro de 2012

1. Quais as principais razões que levaram à condenação do AO pelo PEN Internacional? Mais do que razões, foi todo um processo de debate e esclarecimento nos encontros do PEN Internacional, em que alertámos os colegas dos outros Centros e, mais especificamente, dos comités de Tradução e Direitos Linguísticos CTDL e de Escritores para a Paz. No Congresso e Assembleia Geral anual, em Belgrado, em Setembro de 2011, foi aprovado o Manifesto de Girona dos Direitos Linguísticos, reconhecendo a cada país ou grupo cultural o direito (aliás consignado na Constituição da República Portuguesa) de defender a língua materna como património comum. No encontro do CTDL em Barcelona, em Junho deste ano, após a intervenção da nossa Vice-presidente Maria do Sameiro Barroso foi decidida a elaboração de uma resolução a discutir e votar no Congresso anual do PEN Internacional em Gyeongju, Coreia do Sul, que ocorreu de 9 a 15 de Setembro. Todos estes documentos podem ser consultados no blog Proximidade do site do PEN Clube Português, em www.penclubeportugues.org 2. Como é que a comunidade linguística internacional vê o AO? Presumo que se refere à comunidade do PEN Internacional, que conta com mais de 145 Centros em 104 países. Por aqui já se vê que nem sempre um Centro PEN corresponde a um país, mas a uma comunidade linguística com identidade própria. A incredulidade face ao AO foi tão grande que os redactores da resolução tiveram que apensar-lhe uma cronologia para que as 87 delegações presentes na Coreia percebessem como se tinha chegado a tal ponto, ou seja, como a população portuguesa tinha permitido que o AO fosse imposto como foi, à revelia das boas práticas linguísticas, não só aqui com o português europeu mas também no Brasil com a variante brasileira. Estamos no século XXI, na época da glocalização, do conhecimento global e aproximação mútua no respeito pela diferença local. A imposição de homogeneização (que, como vimos, não existe) é, no fundo, um anacronismo. No caso do AO, mais ainda, é uma mentira. Aconselho os leitores a lerem a resolução do PEN Internacional na sua íntegra. Enche-nos de vergonha face aos anglófonos, francófonos, hispanófonos. 3. Esta decisão do PEN Internacional é importante para a manutenção da actual ortografia? Pelo menos dá ânimo a quem é guiado pelo mais elementar senso comum de manutenção de uma ortografia perfeitamente operacional e articulada com a família linguística europeia. E não seremos mais europeus do que brasileiros ou africanos? É uma questão de história e geografia elementares. Em plena igualdade com aqueles, atenção! As reacções contra o AO não são xenófobas, ao contrário do que se pretende dizer de má-fé. São manifestações de respeito mútuo.


4. O que diz aos que acham que ir contra o AO é uma causa perdida? Depende de que ponto de vista falam. Num dos campos, os acordistas parecem muito seguros de si e da força daquilo a que chamam o facto consumado. Não deixa de ser curiosa a semelhança – mutatis mutandis – da acusação de “histeria” pelos acordistas a quem recusa deixar que a sua língua materna seja laminada e mutilada, com as atitudes de regimes totalitários que internavam os opositores em hospitais psiquiátricos, para não falar da “histeria” das mulheres confinadas ao papel de esposa e mãe, sem voz no espaço público. Mas tais discursos podem também ser vistos como sintoma do nervosismo de quem se torna violento (até agora só verbalmente) por insegurança de argumentação. De facto, ainda ninguém soube explicar as vantagens de um acordo que divide onde diz unificar. No campo dos opositores ao AO, os argumentos em favor da manutenção das variantes como resultado de boas práticas são coerentes mas há sempre vozes derrotistas – o que não é de admirar devido à incipiente cultura política, no sentido mais nobre: de cuidar do que nos diz respeito a todos, fomentando o diálogo e procurando consensos. É difícil resistir quando está em causa o próprio posto de trabalho? Pois é, e já escrevi sobre isso com total compreensão. Mas há meios de resistência, como a criação de grupos de opinião e, é claro, a assinatura da ILC para fazer voltar a discussão e votação à AR. Tenho aqui uma palavra de louvor para as formas criativas de resistência, desde a correcção de manuais escolares passando pelo uso da caneta para acrescentar Cs e Ps em textos acordizados até à troca de impressões com as pessoas em qualquer espaço público. Por aí se vê também a amplitude da rejeição daquele grafolecto. Em todo o caso, sublinho que ninguém se deve sentir só nesta luta que tem uma base de apoio cada vez maior. E que a possibilidade de mudar esta situação vergonhosa depende mesmo de cada um. 5. Considera que tem havido oposição a um verdadeiro debate sobre o AO? A correlação de forças muda a cada momento e é um fenómeno fascinante de observar. Podem bloquear aqui e além a discussão, mas quem rejeita visceralmente o AO não ficará sempre calado. Devo também frisar que o PEN é e será um fórum aberto a todas as opiniões, embora a esmagadora maioria dos membros se tenha manifestado inequivocamente contra esse “atentado ao corpo escrito da língua”, nas palavras de Maria Velho da Costa. 6. Como é que o AO afectou o mundo da tradução e da edição? Está a afectar. O feedback de escritores e tradutores à notícia sobre a resolução do PEN Internacional mostra que tínhamos razão ao alertar os colegas do PEN Internacional para as ameaças que pairam sobre escritores e tradutores que não queiram acordizar os seus textos. As causas do PEN tornaram-se diferenciadas. Criado em 1921 para dar assistência a escritores perseguidos e ameaçados, hoje o PEN também defende as línguas ameaçadas, em nome da diversidade linguística e cultural. 7. Muitas editoras acharam que o AO lhes abriria as portas do mercado brasileiro. Mas, de facto, continua a haver duas versões de cada livro... Duas? Se quisesse ser cínica diria muitas, pois o AO escancarou a porta ao mau escrever, à ortografia desbragada e aleatória! E os editores portugueses acordizantes merecem ser escarnecidos com uma “receção” num Brasil onde se escreve e escreverá “recepção”. Que o resultado seja então como se pronuncia: uma recessão… Sempre disse aliás que o AO é um atestado de imbecilidade passado aos brasileiros que, coitados, acabam por ficar com a imagem de serem incapazes de ler acto, facto, acção…


8. Que acha das editoras nacionais que não adoptaram o AO? Chapéu! Merecem que os cidadãos que não gostam do AO comprem os seus livros. 9. Também na imprensa há jornais que não adoptaram. O que acha daqueles, como "O Diabo", que se opõem ao AO? Idem, para os jornais. 10. Como é que o cidadão comum pode opor-se ao AO? Atenção, há quem goste do AO, como há quem goste de salsichas… Quem se opõe visceralmente pode armar-se com os apetrechos da imaginação – é delicioso desobedecer a, e contrariar, normas imbecis! Não dou receitas de propósito: que cada pessoa descubra as suas. A resistência ao AO tem de passar por todos os momentos. Já falei da ILC, dos debates cívicos. Pode ser uma oportunidade para poupar dinheiro em livros e valorizar os que se tem em casa. E para cultivar as línguas estrangeiras, quanto mais não seja para sentir como somos europeus, com raízes greco-latinas comuns. Sobretudo, é muito importante que os editores acabem por verificar que os negócios chorudos com que estavam a contar eram como a fábula da leiteira e do pote partido: que brasileiros querem ler “perspetivas” de “aspetos”, quando têm e terão sempre outras percepções? E ainda não falámos dos países africanos… A derradeira mensagem não pode deixar de ser esta: não deixemos que o diktat do AO continue a acontecer-nos. E isso começa por escrevermos como temos feito até aqui. Claro que me preocupa a geração dos nossos filhos e netos, massacrados com o eduquês, a TLEBS e agora o acordês. Mas é possível dar a volta a isso – e é um desafio à intensificação da cooperação intergeracional. E à redescoberta dos nossos autores que escrevem em bom português, desde os clássicos a um Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires… E o “Camões sem acção” – como vi escrito numa cinta, horror dos horrores – que vá para a reciclagem. Os governos sucessivos, sempre tão afanosos em encomendar estudos, nunca se preocuparam em avaliar o custo real de uma implementação do AO que – ouso vaticinar – nunca acontecerá, pelo menos nas próximas décadas. O tenebroso argumento da modernização da língua – e aqui vem a “pharmácia” quase sempre à baila – equivale a dizer: Ponham de parte a comida tradicional portuguesa e comam no MacDonald’s! Aí também o cidadão que não goste do AO tem uma palavra a dizer, não só, como já foi sugerido acima, solicitando nas livrarias que lhe forneçam livros em bom português, nas bancas de jornais comprando publicações não acordizadas (a redacção é sempre mais cuidada), mas de mil e uma maneiras. Por exemplo dizendo nas lojas: Não mude esta tabuleta (com “secção, p. ex.), pode voltar a precisar dela. Uma gota de humor corrosivo só ajuda. Disse aliás muitas vezes que gostaria de ver um novo outdoor dos Gato Fedorento no Marquês de Pombal, desta vez não contra um partido xenófobo mas contra a lapidação do nosso património comum. Mesmo que isso nunca venha a ser executado, as redes sociais podem ser rastilhos para acções interessantes – que estão em parte a decorrer já. ______________________________________ Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico em 29 de Setembro de 2012 http://www.jrdias.com/acordo-ortografico-biblioteca.htm

Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico http://ilcao.cedilha.net/docs/ilcassinaturaindividual.pdf


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.