Debate Acordo Ortográfico
A desmontagem do “facto consumado” Teresa R. Cadete *
in PÚBLICO de 8 de Abril de 2012
Há algumas semanas, numa conversa ocorrida no meio académico, alguém questionou, como se falasse consigo próprio: “Pois, não gosto do AO, mas tenho de ver o melhor modo de implementá-lo sem dor”. Isto junto de alunos de uma faculdade sem política ortográfica definida. O docente em questão tinha na sua mão decidir o modo de usar a língua materna e participar a sua decisão aos alunos, justificando as razões da opção tomada. E, naturalmente, respeitando as opções destes. Porquê então tal conformismo? No momento que atravessamos, e perante toda a argumentação exposta nos planos linguístico, cultural e jurídico, já se tornou público e notório que ninguém será prejudicado por criticar as arbitrariedades, as inconsequências, as irregularidades do texto do acordo de 1990 e das posteriores “emendas”. (Já falaremos da situação de quem é profissionalmente coagido a adoptar o AO.) Recentemente, tive de ler uma tese de mestrado escrita por uma candidata brasileira e que continha palavras como excepção, aspecto, perspectiva, recepção, etc. Creio que mesmo um acordista honesto se teria aqui interrogado vezes sem conta sobre a razão do sacrifício de uma erradicação de consoantes (que indicam a pertença a uma família de palavras) imposta ao português europeu. Não nos iludamos. Por um lado existe uma aparente liberalidade, por parte das autoridades legislativas e governativas, face à possibilidade de resistir às imposições do AO, que reconhecidamente falham as respectivas metas em todos os planos (alegada correspondência entre oralidade e escrita, pretensa unificação da língua para o mundo da lusofonia, real assalto das editoras ao mercado brasileiro, esse em que porém os leitores que amam a língua compreendem sem esforço o português europeu; será que esse assalto visa os analfabetos, os leitores light?). Por outro lado, essa liberalidade não consegue mascarar o carácter totalitarizante de uma medida que confronta o cidadão comum a par e passo com uma língua em que ele não se reconhece. Porque quem usa o acordês parece ficar isento de passar por esse processo sensorial e reflexivo tão primorosamente descrito por José Gil no texto publicado na Visão no passado 16 de Fevereiro. Engole a língua, sem a mastigar, e vomita-a como moeda de troca que se gasta por passar rapidamente de mão em mão, com valor de comunicação imediata. Tomemos como exemplo a alegada percentagem de 1,6% de palavras alteradas no Português europeu (Daniel Ricardo, O Novo Acordo Ortográfico, publicação da Impresa distribuída com jornais e revistas em 2011, p. 13). Ora acontece que essa percentagem pode ser verdadeira se tivermos em conta a totalidade lexical, mas que eu saiba ainda não existe nenhum estudo sobre a frequência e recorrência do uso das palavras mais afectadas pela razia acordista. Os resultados dessa nova estatística ultrapassariam, de longe, a percentagem que pressupõe a colocação no mesmo plano de palavras como acção, concepção, espectáculo por um lado, e manati, ornitorrinco, equidno, por outro, essas espécies animais cuja classificação nos deu outrora que fazer nos bancos escolares.