A MORDEDURA

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DIÁRIO DE NOTÍCIAS 13 de Fevereiro de 2013

A mordedura por VASCO GRAÇA MOURA

No mesmo dia 9 de Fevereiro, Jorge Miranda, no Público, e Carlos Reis, no Expresso, voltam a falar do Acordo Ortográfico. Com ambos tenho mantido amigáveis polémicas. Jorge Miranda, que aborda com pertinência a questão do direito à língua e da sua protecção constitucional, refere o AO quase incidentalmente, para dizer que o preferiria "na medida em que possa contribuir para a afirmação internacional da língua portuguesa", mas é de registar que nada diz quanto ao facto de o AO não ter entrado ainda em vigor e ser portanto inaplicável. Quanto a Carlos Reis, não me surpreende que o seu artigo ("Acordo ortográfico: um homem mordeu um cão") seja de clara defesa das pretensas vantagens do AO. Mas já me surpreende a sua interpretação sem sobressaltos da atitude de Dilma Rousseff ao prorrogar o prazo para o mesmo ser aplicado. Somos informados de que o autor viveu um ano no Brasil e assistiu à aplicação sem problemas do AO um pouco por toda a parte, uma vez que testemunha que lá "o AO está bem e recomenda-se". Tenho de concluir que Carlos Reis entretanto não teve tempo para ler os jornais brasileiros dos últimos meses, nomeadamente quando se fizeram eco reiterado de protestos de políticos e de professores que exigiam a suspensão do AO para que se procedesse a uma revisão, e que menos tempo ainda teve para compreender que existe um evidente nexo de causalidade lógica e política entre essas exigências e a atitude da Presidente brasileira. Nessa carência de informação, é natural que ele se dispense de conjecturar que o AO nunca mais ficará na mesma e de tirar as consequências relevantes dessa conjectura. Mas é pena. É de esperar que, encontrando-se agora em Portugal (felizmente para aquelas áreas académicas em que é um ilustre especialista), ele possa testemunhar que a maneira como se processa a pretensa aplicação do AO entre nós contribui para afastar a grafia do português de Portugal da do português do Brasil e da do português de outras paragens. Esse facto torna inadmissível a afirmação que faz de que "para atalhar a imperfeição [que afecta as línguas como produtos humanos] regulamos a língua até onde isso é possível sem que tal signifique mutilar singularidades". As barbaridades a que tem conduzido a pretensa aplicação do AO por força da adopção de vocabulários e correctores ortográficos que não têm nada a ver com um vocabulário ortográfico comum mostram precisamente até onde vai a mutilação destemperada das singularidades, perpetrada em nome de uma unidade ortográfica ipso facto tornada inviável. Será isso que estabiliza o idioma?


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