Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano II, n. 02

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Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano II, n. 02. Janeiro-Julho de 2016. Parnaíba-PI

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SUMÁRIO Expediente ................................................................................................... 04 Ao Leitor ..................................................................................................... 05 Artigos A LUCTA SOCIAL E A EXISTÊNCIA DE UMA REDE ANARQUISTA REGIONAL: Tércio Miranda/AM e Antônio Carvalho/PA (1914). Luciano Everton Costa Teles ........................................................................... 06 ESCASSEZ DE PROFESSORES PARA A INSTRUÇÃO PÚBLICA PIAUIENSE: Do Período Colonial à Redemocratização. Flávio de Ligório Silva.................................................................................... 16 ALÉM DA LUTA E DA MILITÂNCIA: Relatos de operários da MORAES S/A em Parnaíba-PI nas décadas de 1970 e 1980. Messias Araujo Cardozo ................................................................................. 32 ENFRENTADO A LAMA E ÁGUA: A difícil situação de trabalhadores do Delta entre os anos 60 e 70 e suas agruras ao levar os produtos até o centro de Parnaíba. Daniel S. Braga ............................................................................................. 43 A FERROVIA E O FUTEBOL: Histórias e Memórias do futebol ferroviário em Parnaíba (PI) Maria Dalva Fontenele Cerqueira ................................................................... 51 Dossiê “Trabalhadores e suas organizações no Piauí” UM OLHAR SOBRE OS ESTIVADORES: Os modos de organizações do trabalho e a construção do seu processo identitário em Parnaíba - PI (19952016). Fernando Emílio Alves dos Santos ................................................................... 63 ROMPENDO AS CERCAS DO LATIFÚNDIO: A Ocupação da Fazenda Marrecas e a formação do MST no Piauí. Gisvaldo Oliveira da Silva .............................................................................. 75 Reconfiguração do Sindicalismo Docente na Rede Estadual de Educação no Piauí no final dos anos 1980 Romildo de Castro Araújo............................................................................... 89

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Resenhas ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008. 388 pág. Messias Araujo Cardozo ................................................................................. 102

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Expediente A Revista Piauiense de História Social e do Trabalho é um periódico científico de acesso livre e gratuito, de edição semestral, vinculado à plataforma Mundos do Trabalho Piauí, e tem como objetivo facilitar e difundir investigações teóricas, pesquisas e resenhas que contenham análises, críticas e reflexões sobre o Mundo do Trabalho (urbano e rural), com enfoque no Estado do Piauí, nas mais diversas temporalidades e temáticas variadas, como: formação do mercado de trabalho, trabalho escravo, diversificação do mundo do trabalho, movimento operário, imprensa operária, cultura operária, dentre outros, aceitando também colaborações com análises de outras realidades em localidades distintas. Apoio: Plataforma Mundos do Trabalho - Piauí: http://mundosdotrabalhopi.blogspot.com.br Corpo Editorial Coordenação e Edição: Prof. Alexandre Wellington dos Santos Silva Prof. Msc. José Maurício Moreira dos Santos Conselho Consultivo: Profa. Msc. Amanda Maria dos Santos Silva Profa. Msc. Ana Maria Bezerra do Nascimento Prof. Msc. Francisco Raphael Cruz Maurício Profa. Msc. Maria Dalva Fontenele Cerqueira Prof. Msc. Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa Prof. Msc. Yuri Holanda da Nóbrega Foto de capa: “O predio da firma exportadora Berrninger & Ca, uma das mais importantes do Estado” In.: Almanak da Parnahyba, 1928, p. 60. Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - Parnaíba-PI. Janeiro/Julho de 2016. Ano II, n° 02. contato.rphst@gmail.com http://www.rphst.com.br

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Ao leitor

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É com imenso prazer que apresentamos ao público a segunda edição da Revista Piauiense de História Social e do Trabalho (RPHST). Desde sua primeira edição não nos furtamos de localizar historicamente onde estamos: Em uma crise do capitalismo a nível mundial, que afeta diretamente a vida e o cotidiano dos/as trabalhadores/as. No contexto brasileiro, a aplicação de um ajuste fiscal implica diretamente na retirada de direitos históricos do povo, como a proposta de aumento da jornada de trabalho, até a flexibilização da legislação que trata da regulamentação de terras, afetando a vida de trabalhadores nos campos e nas cidades. Assim, destacar a experiência histórica gestada no âmbito dos mundos do trabalho é, além de aprofundar os estudos na área, recuperar a memória de lutas, experiências, resistências, festividades e demais sociabilidades dos trabalhadores e trabalhadoras ao longo dos tempos, percebendo continuidades e rupturas no processo seu constante de formação, e que se efetiva pela ação no plano material. Nessa dupla tentativa, avançamos quantitativamente e qualitativamente nas pesquisas sobre os mundos do trabalho no Piauí. Foi então que, conscientes do papel político que exercemos enquanto pesquisadores/as, que demos início ao projeto da RPHST, vinculada à Plataforma Mundos do Trabalho – Piauí, e será com o intuito de superar o projeto ideológico de esquecimento da ação de trabalhadores/as no Piauí, sempre possibilitando diálogos com outros Estados e países, que daremos continuidade à Revista. Uma boa leitura à todos/as! Atenciosamente, Comissão de Organização e Edição da Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - RPHST

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Luciano Everton Costa Teles

A LUCTA SOCIAL E A EXISTÊNCIA DE UMA REDE ANARQUISTA REGIONAL: Tércio Miranda/AM e Antônio Carvalho/PA (1914).

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Resumo O texto em tela possui como objetivo central demonstrar, através do jornal A Lucta Social (1914), a existência de uma rede social anarquista, de dimensões regionais, tecida por dois militantes que tiveram um papel significativo na condução do movimento operário nortista na primeira metade da década de 10 do século XX, atuando na fundação de sociedades de resistência e de jornais, por onde buscavam propagar os ideais libertários. Palavras-chave: Anarquismo, Rede, Tércio Miranda e Antônio Carvalho. Abstract The text on screen has as main objective to demonstrate, through the newspaper Social Lucta (1914), the existence of an anarchist social network, regional dimensions, woven by two militants who had a significant role in driving the northern working-class movement in the first half the decade of 10 of the twentieth century, working on the foundation of resistance societies and newspapers, where sought to spread libertarian ideals. Keywords: Anarchism, Network, Tércio Miranda e Antônio Carvalho.

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Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Professor Assistente 2 da Universidade do Estado do Amazonas. Email: lucianoeverton777@hotmail.com

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Considerações iniciais Alguns estudos já salientaram a circulação de militantes, imprensa e ideias em dimensões regionais, nacionais e internacionais. No Brasil, as influências da social democracia no seio dos militantes socialistas foram analisadas por Pansardi (1994). Já o “modelo” da CGT francesa para dinamizar o movimento anarquista no país foi abordado por Oliveira (2009). Os setores organizados do movimento operário brasileiro da Primeira República seguiam, mesmo que de forma eclética, elementos que daí se espraiavam pelas diversas regiões do mundo. Recentemente, as análises acerca desse processo lançaram mão de metodologias diferentes, como, por exemplo, a história transnacional, cruzada e de transferência. Nas palavras de Batalha: A história transnacional, como o próprio nome diz, volta-se para o estudo de fenômenos transnacionais e pode ou não compreender uma dimensão comparativa. A história cruzada visa dar conta de fenômenos de interconexões e cruzamentos que ocorrem simultaneamente em dois contextos diversos. Já a história de transferência remete mais diretamente a fenômenos culturais que teriam origem em um contexto e seriam “transferidos” para outro (2006, p. 97-98). Certamente, como apontou o autor, algumas temáticas da história operária se “enquadrariam” em mais de uma dessas metodologias. Entretanto, em que pese às possibilidades que surgiram, a partir do uso delas, no sentido de compreender as dinâmicas que alimentavam as interações e ações entre os militantes operários no Brasil, acredita-se que a análise de redes sociais é significa-

tiva para demonstrar a rica troca de experiências e ideias entre os militantes operários de diferentes regiões. Tal análise, que surgiu na antropologia e sociologia, foi incorporada na disciplina histórica pelos microhistoriadores. Dentre as possibilidades visualizadas, sublinha-se a sua contribuição para as discussões em torno da relação micro/macro. Como os atores sociais e suas relações são elencados como ponto fulcral, a análise sugere que os aspectos macros-estruturais devem ser construídos sobre as fundações do micro. Desta forma, o nível das relações contribuiria para “promover bases para explicar atividades e estruturas de níveis mais elevados de agregação”, permitindo passar de um nível ao outro (PORTUGAL, 2007, p. 9). Como o uso da análise de redes sociais é diverso, cabe explicitar de que modo ela foi utilizada neste artigo. A posição assumida tomou a análise de redes em dois sentidos, porém de forma imbricada. O primeiro como “una estructura construida por la existencia de lazos o de relaciones entre diversos indivíduos” e o segundo como “un complejo sistema de vínculos que permiten la circulacíon de bienes y servicios, materiales e inmateriales, en el marco de las relaciones estabelecidas entre sus miembros” (PORTUGAL, 2007, p. 6162). Ainda nesta esteira, compartilhouse da posição de Imizcoz, em especial no entendimento de que os indivíduos se relacionavam com diversos atributos e valores que não podem ser desconsiderados: Los individuos tienen unos atributos y unos valores – de economia, cultura, creencias, capacitacíon, posicíon en una escala social, etc. – y se relacionan no solon com otros indivíduos, sino con todos los elementos

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materiales e inmateriales de su entorno y de su consciência. Estas dimensiones de la realidad no son exteriores a los actores sociales. La cultura, las instituciones, la economía, el poder político, no existen fuera de las personas, están encarnados en ellas o “son llevados” por ellas (IMÍZCOZ, 2004, p. 125). Neste sentido, os indivíduos atuavam com sua riqueza, com seu status, com suas atribuições hierárquicas, com suas normas e instituições, etc. Com isso não se procurou absolutizar as estruturas e nem cair no lado oposto do individualismo “puro”, mas sim promover uma análise que procura articular os diferentes níveis: individual, relacional e estrutural/sistêmico, percebendo-os num processo de interação onde a via nunca foi de mão única. O objetivo deste texto é demonstrar a existência de uma rede social anarquista, através do jornal A Lucta Social (1914), de dimensões regionais, tecida por dois militantes que tiveram um papel significativo na condução do movimento operário nortista na primeira metade da década de 10 do século XX, atuando na fundação de sociedades de resistência e de jornais, por onde buscavam propagar os ideais libertários. A imprensa operária e a construção de redes sociais A imprensa operária se apresenta como uma documentação significativa tanto como suporte documental quanto objeto de estudo. No primeiro caso permite recuperar aspectos importantes do trabalho e da vida dos trabalhadores. Através dela é possível identificar diversos contrapontos às iniciativas do poder como propostas políticas, formas de luta, de resistência e de leitura de mundo (DECCA, 1997, p. 98). Ela sugere uma gama de temáticas como a exploração e

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opressão do capitalismo, condições de vida e trabalho, alto custo do aluguel e dos gêneros de primeira necessidade, eleições, voto e representatividade, educação e instrução, organização e associações, repressão e perseguição, denúncias e conquistas, experiências culturais, dentre outros (RAGO, 1985, p. 15-17). Como objeto de estudo consente observar dimensões significativas do processo de produção, circulação e venda dos jornais direcionados aos trabalhadores, com destaque para a relação entre avanços tecnológicos, oficinas e produção de jornais, formatos e características, grupos (proprietários, editores, colaboradores e outros) e suas leituras de mundo e posicionamentos realizados sobre assuntos sociais (TELES, 2008). Em linhas gerais, a imprensa operária se singulariza particularmente por seus objetivos programáticos e seu caráter doutrinário. Suas falas, em geral, caminham na contramão dos discursos hegemônicos, sempre visando servir de instrumento de construção de um novo mundo, sem exploração, miséria, opressão, fome e outros problemas sociais. Foram vários os autores que alertaram acerca da potencialidade da imprensa operária. Em 1985, Zicman já acentuava que os jornais eram bastante consultados e citados, porém raramente estudados e analisados (1985, p. 92). Neste mesmo ano, Rago apontou que a riqueza desse tipo de imprensa não estava ligada somente aos aspectos materiais e de luta, mas incluía aspectos culturais e propostas de uma nova sociedade (1985, p. 16). Na década de 90, Jardim assim se posicionou: Pelo visto, a imprensa operária foi levada em conta como uma variável fundamental para o estudo da história dos trabalhadores, porém (...) pouco se fica sabendo de suas caracte-

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rísticas mais específicas. (...) Quer dizer, há muitas indicações da sua importância, mas pouca demonstração do porquê desta importância. Constata-se assim sob esse aspecto, uma lacuna na historiografia, mesmo naquela do centro do país, de estudos mais aprofundados, tanto descritivos quanto interpretativos sobre o tema imprensa operária. Ou pelo menos estudos que condensassem e reavaliassem o que já foi escrito de forma esparsa em diversos trabalhos e enfoques (1990, p. 10).

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De lá para cá uma parcela dos estudiosos observou alguns desses aspectos e fez avançar as reflexões sobre a imprensa operária. Mesmo assim, na virada do século XX para o XXI, Cruz, de uma forma contundente, realçou a importância desses estudos, pois para ela essa imprensa, apesar de ter se constituído como fonte privilegiada e indispensável para o “estudo das classes operárias no período recente da história social do trabalho brasileira (...) vem reclamando por estudos que a proponham também como tema e espaço central de análise e reflexão” (2000, p. 129). Achou-se importante destacar esses “chamamentos”. Porém, a questão aqui se refere à constituição de redes sociais através da imprensa operária e, nesta esteira, alguns passos foram traçados: 1) Identificar o grupo social que está por traz do jornal, contextualizando-o no sentido de investigar sua composição social, bem como trajetórias, contatos e vínculos estabelecidos internamente e externamente; 2) Em articulação com o que está acima, identificar o nome (em geral do militante operário, pois a pesquisa se insere neste âmbito) e, através dele, manusear os jornais com a finalidade de coletar dados que possam de alguma

forma explicitar a “rede de relações” do indivíduo, do grupo e do jornal que ele faz parte; 3) Perceber que no jornal existem conteúdos que foram alimentados não somente pela trajetória e experiência dos seus responsáveis, mas também absorvidos e/ou estimulados por conexões com outros grupos presentes no Brasil e no mundo, fruto da própria circulação e dinâmica das folhas operárias. Estes contatos estão expressos no jornal, ainda que em alguns casos, de forma fragmentada; 4) Reconhecer que, em alguns casos, os jornais publicavam uma lista com os nomes dos contatos e/ou permutas. Isto era feito porque eram enviadas remessas para eles e vice-versa. Esse movimento se coloca como salutar para esse processo; 5) Buscar, no próprio jornal, informações sobre a circulação de lideranças (cidades, estados, regiões, etc.); 6) Recolher alguns indicativos como transcrições de artigos de folhas operárias de outras regiões do país e do mundo, passagens nos textos publicados e que se referem a movimentos ocorridos em outras localidades, entre outros que indiquem a existência dessas relações e interações. Construir redes sociais utilizando a imprensa operária se coloca como fundamental para elucidar as “redes de circulação” montadas e por onde corriam a própria imprensa, seus militantes, os conteúdos e projetos de intervenção social. Um exemplo: a construção de uma rede anarquista regional – Tércio Miranda (Amazonas) e Antônio de Carvalho (Pará) – através do jornal A Lucta Social (1914) Primeiramente cabe sublinhar que é possível verificar e articular dimensões locais, regionais, nacionais e internacio-

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nais dos militantes e de sua imprensa. Não obstante, a título de ilustração, optou-se por demonstrar a construção de uma rede regional anarquista, através do jornal A Lucta Social (1914) e dos militantes que estavam por traz do periódico, notadamente Tércio Miranda (responsável direto pela folha) e seus companheiros como Joaquim Aspilicueta, Antônio Dias Martins, Ananias Linhares da Silva e Domingo Batista Guedes. Esse era o grupo por traz do A Lucta Social, mas quem eram esses personagens? Tércio Miranda era português. Viveu na cidade do Porto e nela entrou em contato com o anarquismo. Não se sabe exatamente quando e como, porém existem informações que permitem iluminar alguns aspectos desse contato, em especial entre os anos de 1908 e 1912. Muito embora o movimento libertário em Portugal remonte ao final do século XIX, mais precisamente aos anos de 1886/88 – com a publicação do periódico A Revolução Social – Orgão Comunista e Anarchista ligado à “Associação dos Trabalhadores e Partido Operário do Porto” – foi em 1910 que se publicou o jornal Aurora, agregando militantes anarquistas. O surgimento dessa folha foi tão significativo que gerou, a posteriori, a fundação de uma organização com o objetivo de lhe dar suporte, pois era considerado instrumento de ligação e apoio junto ao trabalhador português, assim como aos trabalhadores do mundo, buscando inclusive apoiar movimentos contestatórios numa perspectiva internacionalista (CRUZ, 2012, p. 2728). Desse processo, em 4 de setembro de 1910, nasceu o “Grupo Aurora Social” do qual Tércio Miranda fez parte, assim como, provavelmente, também participou da “União Geral dos Trabalhadores da Região do Norte”, organização que se materializou por volta de 1912, e se tornou pouco tempo depois

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Federação Sindicalista (CRUZ, 2012, p. 32). O que acabou reforçando essa provável presença de Tércio na União foi a menção feita pelo referido periódico A Aurora a sua participação como liderança na Liga D‟Educação Nova, em 1912.1 Certamente por questões ligadas a perseguição que se deu aos anarquistas, após a implantação da República em Portugal, a partir de 1910, Tércio Miranda se deslocou para o Brasil. Em terras tropicais, participou do 2º Congresso Operário Brasileiro na cidade do Rio de Janeiro. As discussões aí realizadas giraram em torno de questões como “cooperativismo, carga horária diária de trabalho, salário mínimo, bolsas de trabalho e, principalmente, do modelo organizativo, afirmando mais uma vez o sindicalismo revolucionário”. Além desses temas, foram destacadas a propaganda, a organização e a educação dos trabalhadores como fundamentais. A imprensa operária foi então considerada como um instrumento eficaz de orientação doutrinária e pedagógica. Debateu-se ainda o caráter internacionalista da luta pela emancipação humana, com envio de moções de apoio “aos trabalhadores do México, CGT da França e trabalhadores de Portugal e da Espanha” (MATEUS, 2012, p. 70-71). Em que pese as divergências políticas e ideológicas presentes no universo dos trabalhadores, cujos reflexos foram marcantes nas discussões travadas no 2º Congresso, ficou explícita a propagação dos ideais libertários junto aos trabalhadores organizados em torno da C.O.B. (Confederação Operária Brasileira) e do seu jornal, A Voz do Trabalhador (MARQUES, 2013, p. 51). Muitos militantes de outros estados que participaram do 1

Inclusive dando o endereço da Liga (Rua das Fontainhas, n. 9. Porta do Sol), o que é uma evidência forte da presença de Tércio Miranda justamente na região Norte onde o anarquismo avançou.

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2º Congresso Operário Brasileiro devem ter retornado aos seus universos locais convictos da necessidade de lutar pela emancipação operária, não medindo esforços para organizar os trabalhadores em associações, fundar jornais a fim de defender seus projetos e buscar uma articulação de caráter internacional. Assim, possivelmente foi com esse espírito que Tércio Miranda, na qualidade de delegado especial da C.O.B., atuou no Amazonas a partir de 1912/1913. Como foi dito anteriormente, outros personagens aparecem ao seu lado, ora no jornal, ora no Sindicato dos Trabalhadores Gráficos no Amazonas. Um deles era Joaquim Aspilicueta (membro da Comissão Administrativa do STG). Assim como Tércio, deslocou-se para a região onde desenvolveu uma participação ativa e significativa junto aos operários. Porém, ele era espanhol e socialista. Não obstante, mais do que uma atuação assentada numa perspectiva político-ideológica, buscou articular-se com outros setores da sociedade visando gerar debates, promover conquistas e assegurar direitos aos operários em geral, e aos gráficos em particular.2 Neste sentido, realizou diversas atividades em espaços diferenciados, além de escrever artigos para jornais operários, como A Lucta Social (1914), O Primeiro de Maio (1928) e Vida Operária (1920), mas também para o periódico Union, ligado à colônia espanhola no Amazonas. Procurou manter contatos com outros países, a exemplo da República do Peru (CORREIO DO NORTE. Manaus, ano I, n. 138, 1/7/1906).

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Aspilicueta aproximou-se dos anarquistas, como se buscou mostrar, mas também de personalidades políticas (Dr. Araújo Lima, prefeito de Manaus em 1928) e de lideranças explicitamente reformistas, como João Cursino da Gama, do Sindicato dos Cigarreiros. Ver O PRIMEIRO DE MAIO. Manaus, 1/5/1928 (número especial).

Já Antônio Dias Martins (também membro da referida Comissão) participou da diretoria do S.T.G. no Amazonas. Pouca coisa se localizou acerca dele. Sabe-se que ele era 2º escriturário da Alfândega e que foi transferido para trabalhar na Alfândega do Ceará em 1909 (CORREIO DO NORTE. Manaus, ano I, n. 281, 13/11/1909) onde ficou até 1912 (CORREIO DO NORTE. Manaus, ano VI, n. 926, 27/2/1912). Porém, deve ter retornado a Manaus entre 1913/14, pois atuou junto ao Tércio no Sindicato fundado por eles. Sobre os outros membros da diretoria do Sindicato (Comissão Administrativa, no caso), descobriu-se que Ananias Linhares da Silva era artista gráfico (CORREIO DO NORTE. Manaus, ano I, n. 494, 20/7/1910). A respeito de Domingo Batista Guedes nada foi encontrado. Nessa tarefa de identificar quem estava por traz do jornal A Lucta Social, dois elementos merecem ser acentuados. O primeiro diz respeito ao movimento internacional, nacional e regional dos militantes, no qual Tércio é o maior exemplo, e que permitiam estabelecer ligações e interações importantes. O segundo se reporta a presença de um gráfico socialista (Joaquim Aspilicueta) no interior do grupo anarquista, o que talvez se justifique pela conjuntura e/ou caráter politico e ideológico “eclético” que asseguravam essa aproximação, uma vez que os conflitos entre sindicalistas revolucionários e socialistas eram claros não somente no Amazonas, mas no Brasil como um todo. O jornal A Lucta Social carrega em suas páginas evidências desse conflito: Sou completamente contrario a luta entre os operários, porque entendo que essa luta é inglória, prejudicial e contraproducente, ante os fins que perseguimos, pois que com discussões de certo gênero, só damos ares aos elementos que deve-

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mos combater. (...) Formemos em fileiras estreitas, unidas, para defender os nossos direitos, sem esquecer os nossos deveres. (...) Sejamos tambem firmes e compactos para procurar a união de todo o proletariado, educando-o, propagando as doutrinas sãs e benéficas do puro socialismo. (...) Acabemos com essas dissensões e, unidos, batalhemos em prol dos esplorados e contra os exploradores (Aspilicueta, Joaquim. IMPRESSÕES. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 3, 1/6/1914, p. 7-8.).

Observam-se as divergências, mas também um discurso que buscava instituir uma “união” ou um “consenso”, entre anarquistas e socialistas, em torno de algumas questões, como, por exemplo, a luta pelas oito horas de trabalho. Nessa folha operária, torna-se visível a existência de uma rede anarquista no norte do país. Um primeiro aspecto revelador disso é a transcrição de matérias e/ou informações n‟A Lucta Social de jornais e/ou cartas recebidas do Pará:

Atesta-se, no quadro acima, uma ligação e interação com o estado vizinho do Pará. Certamente era uma conexão regional forte, pois o Pará, em grande medida, colocava-se como a “porta” de entrada e saída da Amazônia e o Amazonas, por sua posição central, como “ponte” que promovia a interligação com os outros estados do Norte. Isso se confirma pela ação de Tércio Miranda que, como delegado da C.O.B., fixou-se na capital do Amazonas e daí circulava pela região como um todo,

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como é possível verificar no trecho abaixo: Devendo fazer uma viajem de propaganda, por alguns estados do norte do paiz, na qualidade de delegado da C.O.B., declaro afim de informar as agrupações operárias que com bastante pezar meu e por motivos que se relacionam com a minha vida particular, não posso partir já, como informava A Vós do Trabalhador, órgão da mesma C.O.B., no seu último número (Miranda, Tércio. A‟ ORGANIZAÇÃO OPERÁRIA DO NORTE. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 4, 1/9/1914, p. 1).

Embora ele não tenha partido de imediato, a informação destacada por Tércio no jornal é bastante elucidativa da sua circulação regional. Portanto, tanto as movimentações desse militante pela região quanto às transcrições de assuntos que vinham do Pará revelam uma articulação em rede que ficará confirmada através das informações que corriam por ela. N‟A Lucta Social foi publicado um artigo intitulado “No Pará”, por onde se tornou pública uma série de denúncias de prisões e deportações de militantes operários anarquistas que participaram de uma greve geral, no ano de 1914, em favor das oito horas de trabalho. Esse movimento foi conduzido pela União Geral dos Trabalhadores no Pará e conseguiu mobilizar cigarreiros, carpinteiros, construtores civis, entre outros. A resposta do governo estadual foi contundente, taxando os grevistas de “amotinados” e o movimento de “alterador da ordem pública”, invadindo a UGT e prendendo e deportando as principais lideranças dos operários (FONTES, 2002, p. 253). Veja-se o tom da denúncia: Não é assim que se sofóca a vós da consciência, a aspiração dum ideal

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redentor. Entre os deportados, que foram prezos, uns na União Jeral e outros á saída de suas cazas, está o nosso amigo Costa Carvalho, que com os outros camaradas foi embarcado no “Hildebrand”, a 27 de maio. (...) Notícias que recebemos, dizem-nos que a construção civil continúa ainda em greve, havendo grande número de prizões. Não podemos ficar silenciozos ante tais vilanias (NO PARÁ. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 3, 1/6/1914, p. 2).

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Os acontecimentos no Pará ecoaram no Amazonas, numa troca de informações e experiências importantes para a dinâmica do movimento operário regional e local. Essa circulação só foi possível por força do estabelecimento de conexões que permitiram isso. E uma prova forte dessa articulação em redes é a parte, na citação acima, em que Tércio Miranda chama Costa Carvalho de amigo. Mas quem era Costa Carvalho? Antônio Costa Carvalho era um militante anarquista, português e dono de quitanda. Consoante Fontes, ele era um “propagador” e “formador” no interior do movimento operário em Belém, sendo uma das principais lideranças das greves que ocorreram nos anos de 1913/14. A sua quitanda se caracterizava como um espaço de convivência onde os trabalhadores discutiam seus problemas, podendo até mesmo se “converterem” ao anarquismo (FONTES, 2002, p. 247-248). Ele foi um dos militantes presos e deportados, como se viu, e, no decorrer desse processo, teve apreendido, pela polícia local, um conjunto de materiais (entre jornais, revistas e documentos variados) que confirma uma ampla rede de relações com lideranças do Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo, mas também França, Itália, Portugal, México, Uruguai, entre outros. Nesta esteira de relações, man-

teve conexões com Tércio Miranda no Amazonas, atestadas não somente pelas denúncias veiculadas no jornal A Lucta Social, mas, principalmente, pelos materiais colhidos pelos agentes de polícia. Nesse contexto, Fontes assinalou que dentre os materiais apreendidos se encontrava um exemplar do jornal A Lucta Social. Neste sentido, a autora salientou que: O interessante é que a data do jornal era de um mês anterior da prisão de Antônio Carvalho, o que demonstra uma correspondência com os anarquistas de Manaus atualizada e forte, se levarmos em consideração que o n. 3 deste jornal deu notícias sobre as greves ocorridas em Belém e sobre as prisões de deportações anarquistas (2002, p. 250). Para reforçar ainda mais essas conexões, torna-se exemplar o caso de Augusto Marques dos Santos. Este personagem foi uma das lideranças da greve dos manipuladores de pão, ocorrida no Pará em julho de 1914, que visava “o aumento de salário, o recebimento de duas refeições diárias por conta dos proprietários das padarias e o compromisso de fixar em 5$00 réis o preço do quilo do pão sem que esse preço fosse reduzido” (FONTES, 2002, p. 269). Ocorre que Augusto dos Santos foi visto pela “imprensa burguesa” do Pará como o principal articulador do movimento, sendo acusado de agitar os trabalhadores e, desta forma, de promover desordens sociais. A passagem abaixo é clara neste sentido: Segundo nos informa, o principal fomentador do movimento grevista é (...) Augusto Marques dos Santos, vindo fugido de Manaus, onde chefiou idêntico movimento, tendo desfechado vários tiros de revólver contra

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seu patrão (FOLHA DO NORTE, 28/7/1914 Apud FONTES, 2002, p. 271). Verifica-se que os termos direcionados a ele buscavam reforçar a ideia de “agitador”, “desordeiro” e, em última instância, de “criminoso”. Tal postura pode ser encarada como resultado da intensificação de um discurso, que possuía dimensões nacionais, de criminalização das lideranças anarquistas, cujo efeito mais concreto foi a prisão e deportação desses militantes por todo o país. Como foi dito antes, Antônio dos Santos foi uma liderança da referida greve dos manipuladores de pão e, certamente, lançou mão, no Pará, das experiências adquiridas no rico e diversificado movimento operário do Amazonas. Não obstante, o que interessa salientar nesse momento é essa relação entre o Amazonas e o Pará através da circulação de militantes, como no caso de Augusto dos Santos, que utilizou suas experiências na organização do movimento operário do Amazonas no estado vizinho. Retornando ao Tércio Miranda, ficou explícita a conexão existente entre ele e Antônio de Carvalho e seus respectivos grupos anarquistas, num processo de interações significativas por onde é possível visualizar redes sociais tecidas. Considerações finais A análise de redes sociais, como um instrumento analítico utilizado pelo pesquisador, permite tornar visíveis aos olhos às relações entre os indivíduos e seus respectivos grupos, assim como a circulação de informações, greves, perseguições políticas, entre outros assuntos relacionados ao mundo do trabalho na Amazônia, em especial entre Pará e Amazonas. Mediante o jornal A Lucta Social (1914) se identificou essa conexão, nu-

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ma dinâmica de compartilhamento de experiências que possibilitava a construção de solidariedades e de lutas que ultrapassava as fronteiras estaduais e até mesmo regionais, assumindo dimensões internacionalistas. Regionalmente, Tércio Miranda e Antônio de Carvalho, como lideranças de grupos anarquistas, estabeleceram esse diálogo e fomentaram movimentos paredistas de categorias específicas, como os gráficos no Amazonas e os Manipuladores de Pão no Pará, através da ação direta e visando conquistas sociais. As redes sociais regionais tecidas fortaleciam esses movimentos. Referências BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. Os desafios atuais da História do Trabalho. Anos 90. Porto Alegre, vol. 13, n. 23-24, p. 87-104, jan./dez. 2006. CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana (1890-1915). São Paulo: EDUC, 2000. CRUZ, Manuel Carvalho Ferreira da. O Movimento Libertário Portuense à luz do periódico A Aurora (19101919). Dissertação (mestrado em História), Universidade do Porto, 2012. DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A Vida Fora das Fábricas: cotidiano operário em São Paulo, 1920-1934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. FONTES, Edilza. Preferem-se Português(as): trabalho, cultura e movimento social Belém do Pará. Tese (doutorado em História), IFCH/UNICAMP, São Paulo, 2002. IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes, procesos: reflexiones para una historia más global. Revista da Facultade de LetrasHistória. Porto, vol. 5, III Série, p. 115140, 2004. JARDIM, Jorge Luiz Pastorisa. Comunicação e militância: a imprensa operária no Rio Grande do Sul (1892-

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ESCASSEZ DE PROFESSORES PARA A INSTRUÇÃO PÚBLICA PIAUIENSE: Do Período Colonial à Redemocratização. Flávio de Ligório Silva1

Resumo Este artigo tem por objetivo discutir a escassez de professores na instrução pública piauiense do período colonial à redemocratização, nos anos 1980. Neste sentido, debruço-me sobre as dificuldades de recrutamento de profissionais habilitados para ensinar e as formas como algumas legislações que normatizavam a educação nacional e local abordavam a questão. Metodologicamente, o artigo foi construído por meio de uma revisão de literatura e análise de textos legais a fim de reconstruir o cenário da condição e profissão docentes no Piauí, contextualizando-se a problemática discutida. Palavras-chave: Escassez de professores, Instrução pública, Políticas públicas. Abstract This paper aims to discuss the shortage of teachers in Piaui public education from the colonial period to democracy in the 1980s. In this sense, lean over me on professional recruitment difficulties qualified to teach and the ways in which some laws determined education national and local addressed the issue. The methodology used in this article was literature review and analysis of legal texts in order to reconstruct the scene of the condition and profession teachers in Piaui, contextualizing the discussed issues. Keywords: Shortage of teacher, Public education, Public policy.

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Licenciado em Matemática e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorando em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Piauí-Campus Corrente. Correio Eletrônico: flavio.ligorio@ifpi.edu.br.

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Introdução A questão da falta de professores, em geral, e da falta de professores de matemática, em particular, tem se apresentado como fonte de pesquisas educacionais nos últimos anos. Ilustra esta afirmação o trabalho coordenado por Gatti et al. (2010) sobre a atratividade da carreira docente; o trabalho de Dör e Neves (2014), sobre o perfil dos ingressantes na licenciatura em matemática de uma instituição do Distrito Federal; o artigo apresentado por Moreira et al. (2012) sobre o perfil daqueles que desejam se tornar professores de matemática; o interessante artigo apresentado por Araújo e Vianna (2008) sobre a remuneração dos professores de física, o qual, embora não se refira especificamente aos docentes de matemática, coloca a questão salarial na pauta como um dos motivos que explicam a falta de professores para o ensino no Brasil; o artigo apresentado por Oliveira e Teixeira (2013) sobre a demanda por professores de matemática nos municípios do litoral norte do estado de São Paulo, em que fica explicitado que vários alunos com potencial de cursarem uma licenciatura acabam optando por outras carreiras; o relatório produzido por uma comissão do Conselho Nacional de Educação instituída pelo Senado Federal (BRASIL, 2007), o qual traça um panorama sobre a escassez de professores no Brasil, apontando ao final sugestões estruturais de curto, médio e longo prazo para combater este problema; o pertinente trabalho de Passos e Oliveira (2008), no qual as pesquisadoras acompanham uma turma de alunos bacharéis de diferentes áreas, parte deles já atuando como professores de matemática, e que buscavam certificação de licenciatura plena em matemática através de diminuta carga horária e reduzidos encontros semanais, formação esta que descaracterizaria a profissão docente; e, por

fim, o trabalho de Araújo e Vianna (2011) sobre a carência de professores de ciências e matemática na educação básica e o crescente número de vagas na licenciatura nos cursos superiores, nas modalidades a distância e presencial. Tais estudos fazem emergir uma preocupação com a escassez de profissionais professores para ocuparem todas as funções docentes das escolas de Educação Básica no Brasil, em geral, e no Piauí em particular, a qual se alia uma outra inquietação, qual seja, a baixa atratividade da carreira docente (GATTI et al., 2010) entre os adolescentes em vias de realizar sua escolha profissional ao final de seu ensino médio e ingresso no ensino superior. Neste sentido, a falta de professores do presente, sobretudo nas disciplinas de matemática, física, química e biologia, conforme Brasil (2007), será agravada pelo baixo recrutamento de uma nova geração de profissionais que supram as demandas crescentes de professores. A escassez de professores, no entanto, não é um fenômeno novo, exclusivo do final do século XX e início do XXI. Antes, estudos históricos apontam para a carência de professores em solo piauiense desde os tempos coloniais, de modo que este problema atravessa a história do Estado até o presente. Neste sentido, o objetivo deste artigo é discutir a falta de professores para a instrução pública do Piauí fazendo um recorte temporal do período colonial piauiense (iniciado a partir da colonização da capitania em 1674) à redemocratização ao fim do regime militar brasileiro em 1985. Tal recorte se deve ao fato de que após a redemocratização inúmeras políticas públicas vêm tentando promover a valorização do magistério com consequente ampliação do número de profissionais formados, sobretudo após a Lei

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nº 9394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Este artigo consiste na adaptação de um dos capítulos da minha tese de doutorado a ser defendida no PPGE/FAE/UFMG, a qual versa sobre a escassez de professores licenciados para o ensino de matemática em Corrente/Piauí. Trata-se de um estudo ainda em andamento, cujos primeiros resultados aqui se evidenciam. A metodologia aqui empregada é a revisão de literatura e análise documental da legislação pertinente à regulamentação da educação nacional e estadual, procurando delas apreender o que determinam a respeito da escassez de professores e como os sistemas de ensino poderiam/deveriam lidar com a questão. Deve-se deixar claro, no entanto, que não se deve confundir o objetivo da pesquisa apresentada na tese com a finalidade deste artigo, o qual, reitero, trata de discutir a escassez de professores no ensino público piauiense no período da colônia até a redemocratização, considerando ainda que se trata de um problema histórico da educação piauiense. A instrução pública no período colonial A educação pública não se fazia preocupação da Coroa Portuguesa no período colonial brasileiro. Assim sendo, as famílias pertencentes à elite e que se preocupavam com a instrução de seus filhos empreendiam iniciativas particulares de ensino, as chamadas Escolas Familiares (ALVES, 2012, p. 1). A colonização da capitania do Piauí se deu a partir de 1674 e ocorreu do interior para o litoral, fenômeno que contrastava com as iniciativas de ocupação de outros domínios da América Portuguesa (SOUSA, 2009, p. 62). A capitania se destacava pelas atividades pecuárias, as quais demandavam escassa mão-de-obra e se estendiam por

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imensos domínios. Como consequências das atividades pecuaristas e agrícolas desenvolvidas no Piauí, observa-se que a população permaneceu esparsa e rarefeita, estabelecendo-se principalmente na zona rural em detrimento da ocupação de áreas urbanas como se observou em outras capitanias. De acordo com Sousa Neto (2014, p. 262), o caráter rural marcou os aspectos sociais, econômicos e demográficos do Piauí, bem como as atividades de cunho educacional que lá se desenvolveram, visto que um sistema oficial de instrução pública teve reduzido alcance e se fez pouco presente no cotidiano da população. Assim, impulsionaram-se modelos alternativos de educação sob a responsabilidade das famílias em que o ensino era ministrado em ambiente doméstico, misturando-se saberes de caráter formal a outros de sentido prático, ligados à lida diária no campo (SOUSA NETO, 2014, p. 262). Apesar de a educação doméstica persistir por todo o período colonial e imperial, com práticas que conseguiram alcançar inclusive o início do século XXI no extremo sul do Piauí, percebemse iniciativas, mesmo que tímidas, de implantação de aulas régias e formas oficiais de instrução na capitania, sobretudo em Oeiras, sua primeira capital. Os jesuítas tiveram uma tímida atuação no território piauiense, ocupando-se inicialmente com a criação de gado com que abasteciam certas atividades educacionais desenvolvidas na Bahia e só posteriormente tentaram empreender ações educativas no Piauí, as quais não lograram êxito dadas as dificuldades de sua instalação: pobreza, dispersão populacional, ausência de comunicação e grande distância dos centros populacionais (SOUSA NETO, 2014, p. 264). Uma segunda iniciativa foi a tentativa de organizar o Seminário do Rio Parnaíba, mas lutas pela posse da terra e disputas

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pelo domínio dos indígenas motivaram a transferência do empreendimento para o Maranhão. Após a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, a educação no Brasil vivenciou um período de ruptura. Disseminaram-se, nesta época, a instituição das Cadeiras de Primeiras Letras e das Cadeiras de Humanidades denominadas de modo geral de Aulas Régias. De acordo com Sousa Neto (2014, p. 266), as aulas régias representaram um modelo de instrução fragmentado, com aulas dispersas e isoladas. Para o autor, a historiografia não estabelece um consenso sobre o momento em que se implantam as primeiras cátedras de instrução no Piauí, sendo sua criação e seu fechamento, bem como sua duração efêmera, uma constante do século XVIII até o XIX. Destaca-se que após as parcas iniciativas dos jesuítas no Piauí, tem início uma organização escolar, sobretudo em Oeiras, que se assenta sobre Cadeiras de Instrução isoladas, predominantes na colônia e no império como se afirmou anteriormente. De acordo com Alves (2012, p. 3) criaram-se duas escolas: uma voltada para meninos em que se dava o ensino das primeiras letras e preceitos do cristianismo e outra para meninas que ensinava os mesmos conteúdos acrescidos de outros saberes de caráter doméstico. Sousa Neto (2014, p. 267) afirma, porém, que não são encontrados registros de funcionamentos destas cadeiras, dada a efemeridade de duração destas iniciativas, sobretudo pela falta de professores e de recursos financeiros para sua manutenção.

em decretos foram comuns na história piauiense. Isso contribuiu para ampliar o quadro deficitário na educação formal no Piauí, do século XVIII, que pode ser bem ilustrado pela dificuldade enfrentada pelo primeiro governador do Piauí, João Pereira Caldas que, em 1759, não encontrou habitantes capazes de assumirem cargos no regimento de cavalaria (SOUSA NETO, 2014, p. 267). Ao fim do século XVIII, o Estado Português empreendeu modificações educacionais no âmbito do reino e territórios ultramarinos. Sousa Neto (2014, p. 268) afirma que Portugal constatou a necessidade de 837 mestres e professores1, dos quais 44 eram para o Brasil, no entanto, nenhum destes foi previsto para atuar no Piauí. O autor afirma não haver o registro de nenhuma aula pública no Piauí no século XVIII e que sucessivos apelos e representações se fizeram emanar por parte dos governantes da capitania cobrando da Coroa Portuguesa iniciativas de instrução, a que Portugal se fizera surdo até 1815, quando se criaram três cadeiras primeiras letras: uma em Oeiras, outra em Parnaíba e uma terceira em Campo Maior, já com a presença da Família Real Portuguesa no Brasil. Período imperial brasileiro Nos idos de 1808, dadas as invasões napoleônicas nos Estados europeus, o Brasil se vê às voltas com a vinda da Família Real Portuguesa para a América e a abertura dos portos às na1

Acredita-se que mais que uma “curta duração”, essas duas primeiras escolas tenham se resumido ao alvará de sua criação, uma vez que, como já dito, escolas que existiram somente

Distingue-se a denominação de mestres-escolas para o docente das séries de alfabetização, ou primeiras letras, como se denominava à época o ensino primário, e professores para o ensino secundário. Tal denominação mantivera-se até por volta dos anos 1880 do século XIX (SCHUELER, 2005, p. 333)

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ções amigas, como forma de combate ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão contra a Grã-Bretanha. Apesar da criação das aulas régias citadas anteriormente, as dificuldades de instrução do povo piauiense persistiram. Quatro anos após estes empreendimentos, tais cadeiras de primeiras letras permaneciam vazias. “A dificuldade de provimento das Cadeiras de Instrução também esteve diretamente relacionada como os ordenados oferecidos aos professores. Os baixos salários e o atraso nos pagamentos contribuíram para o ocaso das vagas disponíveis para professores” (SOUSA NETO, 2014, p. 270). Para Alves (2012, p. 4), a profissão docente era desagradável e de difícil recrutamento. O autor afirma que o provimento dos cargos era difícil mesmo após o aumento de salário oferecido em 1818 e a criação da cadeia de Latim em Oeiras, a qual foi preenchida somente quatro anos mais tarde. “Ser professor, especialmente, no Piauí, era exercer uma profissão numa situação desagradável, pois o profissional era apontado como o que, por ganhar pouco, não pagava suas contas em dia, embora o respeito por parte dos alunos e pais de alunos não tivesse cessado” (SOUSA, 2009, p. 143). Para agravar ainda mais a dificuldade de se encontrar professores para atuarem na instrução pública, Souza Neto (2014, p. 270) afirma que os professores públicos, mesmo recebendo quantias ínfimas, precisavam retirar dos seus ordenados o financiamento de suas atividades. “Não bastasse isso, os professores públicos eram responsáveis ainda por financiar [o] desempenho de seu ofício com o ordenado que recebiam, responsáveis pelos meios e os materiais necessários ao funcionamento das Aulas. A escola era em sua própria casa e a compra do material necessário às au-

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las também ficava a seu encargo” (SOUSA NETO, 2014, p. 270, grifos do autor). Neste sentido, a escassez de professores para a instrução pública no Piauí inicia-se ainda no período colonial. Os baixos salários, a falta de boas condições de trabalho e o desprestigio da classe docente, agravada pela insuficiência de uma infraestrutura urbana fizeram com que aqueles que possuíam os saberes a serem ensinado não se interessassem pelo ofício, o que prejudicou sobremaneira a educação no Estado, cujos reflexos se fazem perceber ainda hoje. A ausência de uma estrutura escolar desdobrou-se na falta de formação de profissionais docentes que viriam a repor os quadros de professores de uma geração a outra. Sem pessoas instruídas, não havia maneiras de se recrutar interessados nas atividades de ensino, situação que só veio a se modificar já no início do século XX por meio Escola Normal de Teresina. Dessa forma, não causa estranheza que essas primeiras escolas não tenham obtido êxito, tendo sua curta existência atribuída, entre outros fatores, à carência de professores habilitados para ministrarem as aulas e à limitação de recursos a serem empregados no pagamento dos poucos interessados. A vacância das Cadeiras de Instrução torna-se, assim, problema rotineiro na história piauiense, sobretudo em virtude da falta de pessoas qualificadas para preencher as vagas disponíveis (SOUSA NETO, 2014, p. 270). A situação educacional do Piauí não se modificara substancialmente desde a criação das cadeiras de instrução pública de 1815. Assim é descrita a situação da província no período considerado:

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Em outro ofício encaminhado pela Junta Governativa do Piauí, em 25 de fevereiro de 1822, ao Secretário do Estado da Marinha e Ultramar, Inácio da Costa Quintela, “sobre a situação lastimosa da instrução pública na província”, encontra-se a informação de que para as Cadeiras de Primeiras Letras criadas em 1815, arbitrou-se como ordenados 120$000 réis anuais para a oferecida em Oeiras, e 60$000 réis para as de Parnaíba e Campo Maior, Segundo a Junta, esses ordenados afastavam as pessoas do magistério, levando as cadeiras a estarem sempre vagas ou mal providas. Nesse mesmo ofício, a Junta pede ainda melhores salários para a Cadeira de Gramática Latina de Parnaíba, criada em 16 de março de 1820, e para as Cadeiras de Primeiras Letras, para que possam ser providas por pessoas idôneas. (SOUSA NETO, 2014, p. 271)

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Os pedidos, ainda em 1820, de melhoria dos salários pagos aos mestresescolas e professores para que as cadeiras fossem preenchidas por pessoas “idôneas” revelam a situação de “mau provimento destas pela pouca habilitação dos professores e por representarem apenas simples fonte de renda – muitas vezes complemento de renda – em uma província de poucas oportunidades de emprego. A mesma denúncia persistia em 1843...” (SOUSA NETO, 20014, p. 271). Para a compreensão, mesmo que limitada, dos baixos salários pagos aos professores na década de 1820, Sousa Neto (2014) cita a Cronologia Histórica do Piauí de Costa2 (1974), recordando 2

COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Cronologia histórica do estado do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, vol. I e II, 1974.

que em geral os professores e mestresescolas do período colonial e imperial recebiam seus soldos em três parcelas anuais pagas em constantes atrasos. Para se ter um parâmetro, mesmo que limitado, acerca dos baixos salários pagos aos professores na época, Costa apresenta o preço cobrado, no ano de 1820, pelos principais gêneros alimentícios comercializados no Piauí: “carne, libra, 35 réis, arroz 80, toucinho 160, bolachas 480; açúcar 320; farinha, quarta, 320; sal 1$920; milho 320, e feijão 480; vinagre, frasco, 640; vinho 960 e leite 80” (COSTA, 1974, p. 251). Assim, com um ordenado de cerca de 20$000 réis ao quadrimestre, para Parnaíba e Campo Maior e 40$000 réis ao quadrimestre para Oeiras, não é de se estranhar que o magistério atraísse poucos interessados, em uma Província que apenas o gasto com alimentação, sua e de sua família, comprometia parcela significativa, ou mesmo toda a remuneração do professor (SOUSA NETO, 2014, p. 272). Percebe-se assim que a questão da baixa remuneração e os constantes atrasos nos pagamentos se fizeram elementos cruciais que explicam historicamente a escassez de professores no período considerado. Neste sentido, Sousa Neto (2014, p. 272) nos recorda de que eram comuns aos professores públicos envolverem-se no ensino particular, como forma de complementar seus rendimentos, citando o caso de José Torquato Baptista, professor de primeiras letras de Jaicós, função que acumulava com o cargo de Agente dos Correios na localidade, bem como a grande presença de sacerdotes nomeados para instrução pública, principalmente entre aqueles que não obtiveram o controlo de uma paró-

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quia que lhes subsidiasse o sustento próprio. O ensino secundário não se encontrava de modo diferente do ensino de primeiras letras, permanecendo vagas as cadeiras de instrução pública, como o testemunha a vacância da cátedra pública de Gramática Latina criada em Oeiras em 1818 e que assim se mantivera até 1822. O ofício de professor não se mostrava suficientemente atrativo. Some-se a isso o fato de que as pessoas que se encontravam habilitadas ao exercício do magistério eram comumente empregadas em outros ramos da administração pública e que o ensino no Piauí não atraía profissionais de outras províncias, dados os baixos ordenados pagos aos docentes no território, o que mostra que a educação pública não se constitua uma prioridade para os governantes da época (SOUSA NETO, 2014, p. 276). Apesar de a carência de um sistema público de ensino e de pessoas habilitadas para o exercício do magistério não se constituir um problema exclusivo do Piauí, nessa província a dificuldade ganha contornos distintos por causa das atividades produtivas que lá se desenvolviam, quais sejam, principalmente, as de caráter pecuarista, as quais não demandavam mão-de-obra instruída por meio do ensino formal. A quem interessava ensinar os conteúdos das primeiras letras e até mesmo o latim a vaqueiros e homens ocupados com a lida no campo? Tais questionamentos se fazem presentes nas discussões estabelecidas por Sousa Neto (2014) já no título de seu texto, o qual toma por cerne o fato de que não interessava à população rural do Piauí que seus filhos aprendessem a ler e a escrever, mas sim o aprendizado de conhecimentos de caráter pragmático úteis à vida cotidiana, de modo que era suficiente o ensino proporcionado pelas escolas familiares.

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Após a Proclamação da Independência do Brasil, apesar de a Constituição de 1824 tratar do tema educacional estabelecendo a gratuidade e a universalidade da instrução primária (ALVES, 2012, p. 7), o que se verificou foi o lento crescimento, desenvolvimento e implantação de unidades escolares no Piauí. Nessa época contava-se apenas com os seguintes estabelecimentos de ensino sendo 03 escolas primária: 02 em Oeiras e outra em Parnaíba e duas cadeiras de latim, uma em Oeiras e outra em Parnaíba, onde foi destinada uma verba pouca significativa para a manutenção da rede escolar, o que resultou em salários baixíssimos, docentes mal qualificados, ou seja, não podendo esperar maiores conhecimentos por parte dos mesmos. (ALVES, 2012, p. 7) Os gastos do governo provincial do Piauí com a supressão da Revolta dos Balaios, ou Balaiada (1838-1841), bem com o envolvimento inclusive de professores nas lutas empreendidas, fizeram com que a educação ficasse eclipsada, sem investimentos, observando-se o abandono das escolas. Por fim, destaca-se ainda no período imperial a iniciativa educacional do Padre Marcos, piauiense que instituiu em 1820 a Escola da Boa Esperança em fazenda homônima que herdara de seu pai, na região de Jaicós, próximo da cidade de Picos. O religioso dera, de certa forma, continuidade às iniciativas educacionais de seu pai, com quem aprendera suas primeiras letras. Enviado a Coimbra, em Portugal, regressa ao Piauí, vindo a participar da cena política ocupando sucessivos cargos. De acordo com Alves (2012, p. 8), a Escola da Boa Esperança oferecia ensino gratuito em regime de internato e alimento aos que nela encontravam assistência. O autor afirma

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que a escola funcionou por 30 anos vindo a fechar suas portas quando da morte de seu fundador. Padre Marcos é considerado o primeiro mestre-escola piauiense e sua escola a primeira em seu estado (ALVES, 2012, p. 8).

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Do início da república ao fim do regime militar: rumo a uma profissionalização? A queda do Governo Imperial, com o exílio de Dom Pedro II e a ascensão da República mergulharam a instrução pública piauiense em uma situação de caos (SOUSA, 2009, p. 63). Para Alves (2012, p. 9), o provimento de professores, bem como sua destituição, atrelava-se sobremaneira ao universo político local, havendo casos mesmos em que o mestre-escola mal sabia ler mas obtinha seu cargo por indicação política. Já no ensino secundário permanecia o hábito de professores de áreas diferentes que ministravam aulas apenas como atividade complementar, dentre eles, muitos eram advogados, médicos, farmacêuticos etc. As famílias naquela época eram responsabilizadas pela escolarização de seus filhos, surgindo assim a figura do professor itinerante ou particular (ALVES, 2012, p. 9). A capital do Piauí fora transferida, em 1852, de Oeiras para Vila Nova do Poty, posteriormente denominada Teresina em homenagem à Imperatriz D. Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II. Alves (2012, p. 9) destaca o processo de feminização do magistério, acompanhada da perpetuidade da baixa remuneração dos docentes, conforme os períodos anteriores, o que desmotivava o recrutamento de interessados no ofício de professor. O impulso ao trabalho feminino no campo da educação veio

com a ascensão dos cursos de formação de professores com a criação da Escola Normal Livre em Teresina, no ano de 1909, posteriormente denominada Escola Normal Oficial. De acordo com Sousa (2009, p. 64), além da Escola Normal, o despontar do século XX viu o florescer da educação confessional em instituições privadas de Teresina como o Colégio Diocesano e o Colégio Sagrado Coração de Jesus, criados em 1906, o primeiro para a instrução masculina e o segundo para a educação das mulheres. Alves (2012, p. 9) chama ainda a atenção para o Colégio Correntino Piauiense, em Corrente, o qual diferentemente de outras intuições confessionais do país, era o único que não possuía vinculação à Igreja Católica. A explicação para a valorização da educação de vinculação religiosa, mesmo considerando-se que se trata do período de consolidação da República, com seu caráter anticlerical, é dada por Sousa: O ensino público laico era criticado, pois, por ser um ensino sem Deus, não havia como regenerar os homens, sendo o estado incentivado pela maçonaria e pelos livres pensadores, os culpados pela exclusão da religião católica na vida da sociedade piauiense. Por outro lado, o estado, na época precisamente em 1909, publicou uma portaria proibindo o ensino religioso nas escolas. Dessa maneira, os católicos conclamavam o povo a verdadeiro embate, e várias proibições foram estabelecidas como: ler o jornal O Apóstolo; as edições protestantes da bíblia; ler Voltaire, Zola, Victor Hugo, Ernest Renan; o livro História das religiões no Piauí de Higino Cunha; o jornal O monitor e Um Manicaca de Abdias Neves. Com isso, a igreja assumia a “missão pedagógica” de instruir os leitores contra as

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ideias modernas que colocavam em julgamento a moral e os dogmas cristãos. (SOUSA, 2009, p. 64) Sousa (2009, p. 64) afirma que a partir de 1910 observa-se a existência de uma rede oficial, mesmo que modesta, de escolas primárias que ofertavam os três anos elementares e um quarto ano complementar. Ressalta-se, no entanto, a diferença de sentido da palavra escola no contexto da época e seu significado atual. Depois da expulsão dos jesuítas do Brasil, o termo era utilizado no mesmo sentido de cadeira ou aula. Desse modo, cada professor ou mestreescola era responsável por uma cadeira, aula pública ou escola isolada umas das outras (SOUSA NETO, 2014, p. 281). A reunião de várias cadeiras isoladas sob uma mesma direção e num único espaço físico denominava-se escolas reunidas ou grupo escolar, cujo início se deu no Estado de São Paulo, dando início ao ensino graduado (em séries progressivas) no Brasil. A partir da década de 1940, observa-se no Estado do Piauí uma crescente “funcionarização” da profissão docente (Araújo, 2011). Por funcionarização, o autor compreende o fenômeno pelo qual os professores tornam-se, em número cada vez maior, parte do corpo de funcionários civis do Estado. Nesse sentido, percebe-se que aquilo que ocorreu no Piauí se insere no quadro mais amplo das mudanças educacionais e da profissão docente ao longo do século XX, as quais retiraram o ensino de um caráter doméstico, oferecido nas casas de escola, e transformando-o em uma atividade sistematizada em um espaço público específico, as escolas reunidas ou grupo escolar, por profissionais mais e mais especializados. A normatização da profissão docente, no contexto funcionalismo público do Estado do Piauí nesse período,

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deu-se pela publicação por parte do governo da Lei Estadual nº 441 de 1941. De acordo com Araújo (2011, p. 4), tratou-se da publicação de um estatuto para os servidores públicos estaduais civis, dentre os quais os profissionais do magistério são enquadrados. Neste sentido, não há uma regulamentação específica da profissão docente e sim uma normatização geral respeitada por servidores estaduais de todas as áreas. Para Araújo (2011, p. 4), um dos destaques da referida Lei se deve ao fato de que ela garantia estabilidade aos servidores após dois anos de efetivo exercício na função. Na medida em que o século XX avança e o sistema educacional se expande pelo Piauí, abrangendo um maior número de localidades e aumentando o universo de pessoas que passam a ter acesso ao ginásio (posteriormente 2º grau, hoje ensino médio), fez-se necessário por parte do Estado maior controle sobre o que e como ensinar. Araújo (2011, p. 5) afirma que a partir da década de 1960 desse século, o ensino brasileiro passa por novas formas de organização de maior organicidade, racionalidade e padronização. Para o autor, a expansão da oferta pública do nível que corresponde hoje ao ensino médio demandou maior número de professores e reorganização da gestão do sistema de ensino. Percebe-se, nas décadas de 1960 e 1970 uma profissionalização crescente do magistério, conforme afirmado anteriormente, o que exigiu por parte do Estado a criação de normas específicas que permitissem a sua regulamentação. A profissionalização da carreira docente nas décadas de 1960 e 1970 se insere num jogo entre os professores e o Estado em que os primeiros tomam parte da proposta procurando a garantia de autonomia e independência, mesmo que isso implique na aceitação de deveres, e o segundo buscando o controle da ação

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dos professores e das instituições escolares (ARAÚJO, 2011, p. 6). Ainda na década de 1960, foi sancionada pelo presidente João Goulart a Lei nº 4024 de 1961 (BRASIL, 1961), a qual estabelecia diretrizes e bases para a educação nacional.

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Nessa lei, as relações funcionais passam abarcar aspectos como a igualdade de direitos (isonomia), garantia de aperfeiçoamento, progressão funcional e normas sobre cargos e salários. Houve uma certa ruptura com a fase anterior, embora, parte daquela realidade ainda se fizesse presente. Mesmo assim, no país, ainda vivíamos uma situação de grande instabilidade dos professores secundários, herdada desde o Império e agravada com a república. Por exemplo, havia um grande número de professores do quadro provisório ou interinos sem nenhuma relação mais definida com o Estado. (ARAÚJO, 2011, p. 6). A LDB/1961 dividia o ensino em três graus: primário, médio e superior (BRASIL, 1961). O grau primário compreendia o ensino pré-primário destinado aos menores até sete anos, ministrado em jardins de infância ou em escolas maternais e o ensino primário, com duração mínima de 4 anos, podendo se prolongar a até 6 anos (BRASIL, 1961). O grau primário corresponderia na nomenclatura atual da educação infantil até os anos iniciais do ensino fundamental (5º ano). O ensino médio era dividido em dois ciclos: o ginasial e o colegial, abrangendo cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-primário (BRASIL, 1961). Nesse sentido, o que era o ensino médio da LDB/1961 corresponderia aos anos finais do ensino funda-

mental (6º ano) até o final do ensino médio (3º ano) da LDB/1996. Em termos de formação de professores, o artigo 53 da LDB/1961estabelecia que bastava a titulação obtida em escola normal de grau ginasial de no mínimo 4 séries em escola normal de grau colegial de no mínimo 3 séries para que as professoras se habilitassem ao ensino primário (BRASIL, 1961). Já o ensino médio requeria professores formados em faculdades de filosofia, ciências e letras, conforme se lê no artigo 59 (BRASIL, 1961). Os artigos 60 e 61 da LDB/1961 ainda estabeleciam o provimento efetivo em cargos de professores do ensino médio nos estabelecimentos oficiais de ensino mediante concurso de títulos e provas e que o magistério de ensino médio fosse exercido por professores registrados em órgão competente (BRASIL, 1961). Esta legislação, no entanto, não especifica qual é o órgão responsável por esse registro, seja ele pertencente ao governo federal ou aos governos estaduais. Chama a atenção, porém, os artigos 117 e 118 da LDB/1961: Art. 117. Enquanto não houver número bastante de professôres licenciados em faculdades de filosofia, e sempre que se registre essa falta, a habilitação a exercício do magistério será feita por meio de exame de suficiência vetado. Art. 118. Enquanto não houver número suficiente de profissionais formados pelos cursos especiais de educação técnica, poderão ser aproveitados, como professôres de disciplinas específicas do ensino médio técnico, profissionais liberais de cursos superiores correspondentes ou técnicos diplomados na especialidade. (BRASIL, 1961)

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Tais artigos contrariam o artigo 60 e 61 da LDB/1961, explicitados acima. Leite (2009, p. 32), com base na literatura especializada, mostra que o órgão competente para o registro profissional dos professores fazia concessões a professores habilitados e não habilitados, dada a escassez de profissionais formados. Mesmo que os pressupostos estabelecidos por tais artigos da LDB/1961 viessem a ser revogados pela LDB/1971, sancionada durante a ditadura militar, as práticas deles decorrentes perduraram no Piauí. Neste sentido, a LDB/1961 institucionalizou a contratação do professor não habilitado nas disciplinas específicas para o que hoje equivale aos anos finais do ensino fundamental e o ensino médio mediante a realização de um exame ou o aproveitamento de professores de outras áreas, no caso da referida legislação, de professores do ensino técnico utilizados para ministrar aulas das disciplinas propedêuticas quando da falta de professores habilitados em número suficiente. Tais práticas, institucionalizadas no passado há mais de 50 anos, perduram ainda no imaginário e se materializam nas ações do presente. Não se pode desconsiderar a semelhança entre a contratação de professores seletistas para atuarem hoje, a título precário, em escolas do Estado do Piauí, mediante a realização de um exame e os mecanismos (ou improvisos) de supressão da escassez de professores habilitados formalizados pela LDB/1961. A exigência de contratação de professores por meio da realização de concursos de títulos e provas fez com o Estado do Piauí se visse obrigado a formalizar a carreira docente, instituindo formas de ingresso, remuneração, duração da jornada de trabalho, formas de progressão, dentre outras. De acordo com Araújo (2011, p. 6) esta legislação modi-

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ficou as formas de contratação e seus ritmos, o que provocou a diversificação da categoria docente em exercício no Estado. Havia, portanto, o professor efetivo, o que corresponderia ao profissional ingressante por meio de concurso público; o contratado, correspondente ao profissional temporário; professores não contratados que adquiriram estabilidade em 1967 por meio da justiça e; por fim, o professor celetista3. Mesmo com o advento da LDB/1961, o Estado do Piauí permaneceu sem estabelecer um plano de carreira que especificasse os cargos e salários do magistério público estadual, o que só veio a ser implantado muito depois, a partir do governador Chagas Rodrigues em 1970 (ARAÚJO, 2011, p. 6), por meio da Lei Delegada nº 41 de 1970, a qual dispôs sobre o Estatuto do Ensino Médio do Estado e deu outras providências (PIAUÍ, 1970). Esta lei representou o primeiro estatuto a que se submeteu o pessoal do magistério do Piauí e também a primeira que divide os docentes em classes ou séries de classes. Pelo art. 40, o pessoal docente era dividido em duas categorias: professores, quando possuíam registro para exercer o magistério e; instrutores, categoria constituída de docentes sem registro para magistério, mas autorizados a exercê-lo (PIAUÍ, 1970). O art. 14 estabelece como formas de provimento para os cargos do magistério: 3

Embora se use o termo seletista, grafado com “s” para designar os professores contratados temporariamente no Estado do Piauí que passaram por um processo “seletivo” de provas, o termo usado por Araújo (2011, p. 6) foi celetista, grafado com “c”. Dado que se verifica certa confusão entre os termos na vivência cotidiana no Estado do Piauí, não há como saber se o autor utilizou a palavra para especificar um tipo de professor cuja relação empregatícia com o Estado se rege mediante a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou se ele se confundiu e escreveu celetista quando, na verdade, queria designar o professor seletista.

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nomeação, transferência, readmissão, remoção, aproveitamento, reversão, recondução e contratação (PIAUÍ, 1970). Já o art. 15 diz que o acesso aos cargos se dá por meio de concurso de títulos e provas (PIAUÍ, 1970). Nesse sentido, aos professores que foram contratados, não se considerava como pertencentes ao quadro de professores efetivos, apesar de relatos obtidos na pesquisa de campo afirmando o contrário: professores que passaram ao quadro efetivo sem a realização de concursos públicos (PIAUÍ, 1970). Este estatuto regulamenta ainda o regime de trabalho, separando os docentes entre aqueles que exerciam o regime normal de trabalho e os contratados em regime de tempo integral. Observemos o que dizem os artigos sobre o regime normal de trabalho:

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Art. 25 – Considera-se regime normal de trabalho o período de 50 (cinquenta) aulas mensais, a que estará obrigado o docente, em cada cátedra. Parágrafo único – As aulas terão duração de 50 (cinquenta) minutos, para o curso diurno, e 40, para o noturno. Art. 26 – Em um mesmo estabelecimento de ensino, não poderá o docente ministrar, por dia, mais de quatro aulas consecutivas nem mais de nove intercaladas. [...] Art. 28 – O Professor que não completar, na respectiva cadeira, o número de aulas a que está obrigado, será aproveitado em disciplinas correlatas, ou ficará à disposição do estabelecimento até completar o número de horas determinadas nesta lei. (PIAUÍ, 1970). O regime normal de 50 aulas mensais de 50 minutos no diurno e 40 minutos no noturno corresponderia a apro-

ximadamente 12 aulas semanais, próximo do que prevê o Estatuto atual (PIAUÍ, 2006) para os professores em regime de 20 horas semanais. Não previa, no entanto, tempo destinado à correção de provas, estudo e atividades extraclasse. Os professores em regime de tempo integral deveriam dedicar pelo menos 200 horas de trabalho mensais às escolas em que lecionavam. A implantação da dedicação exclusiva nas escolas do Estado foi um fator positivo da Lei nº 41 de 1970. As férias docentes deveriam ser gozadas no período das férias escolas e nunca poderiam ser inferiores a 60 dias por ano, dos quais pelo menos 30 dias deveriam ser consecutivos, conforme o artigo 47 (PIAUÍ, 1970). Por fim, nas disposições gerais e transitórias da referida lei, em seu artigo 72, o Governo do Estado estabelece a possibilidade de contratar, a interesse do ensino, professores e instrutores de ensino médio mediante seleção com prova de títulos e prova didática, e no artigo 76, afirma que os professores primários efetivos que estejam atuando no ensino médio a pelo menos 5 anos, poderão optar por ocupar o cargo referente a este nível de ensino (PIAUÍ, 1970). No entanto, a carreira docente continuava desvalorizada e os professores atravessavam dificuldades, apesar das medidas de caráter populistas adotadas por Chagas Rodrigues: A importância dessa política [populista] pode ser compreendida à medida que a mesma passou a compor parte das reivindicações do movimento de professores, ainda na década de 1960, quando surge a Associação dos Profissionais do Magistério Oficial do Piauí - APMOP. Na verdade, a situação do magistério era bastante dramática. Devido à massificação, os governos tinham dificuldade em

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manter uma folha de pagamento cada vez maior, demonstrando na prática que a expansão do ensino não levava em consideração a melhoria das condições objetivas do magistério piauiense. Certamente essa situação tenha gerado as condições para organização da primeira greve do magistério do ensino médio oficial em 17 de maio de 1968 (ARAÚJO, 2011, p. 7). No ano seguinte, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, ainda na ditadura militar, o Brasil veio a conhecer a sua segunda LDB, Lei nº 5692 de 1971 (BRASIL, 1971). Esta legislação fundiu o ensino primário e o ensino ginasial em um ciclo único denominado 1º grau, com duração de 8 anos e tornado obrigatório e transformou o ensino colegial em 2º grau, abolindo o exame de admissão do primário para o ginásio. Uma das maiores diferenças entre esta legislação e todas as que a precederam deve-se ao fato de que a educação profissional foi colocada como objeto de destaque. Todo o ensino de 2º grau seria oferecido na modalidade profissionalizante, mediante a matrícula dos estudantes em cursos técnicos. De acordo com Sousa, [...] podemos concluir que a implantação da Lei 5692/71 foi desordenada no Piauí, qualificando os professores de maneira acelerada, com ênfase no tecnicismo. Por exemplo, a disciplina Prática de Ensino foi muito valorizada em detrimento das disciplinas da área dos fundamentos da educação. Outra observação diz respeito à falta de importância da realidade local, uma vez que não houve adaptações necessárias que considerassem o quadro educacional do Piauí. Outra consequência foi a desvalorização dos que optavam pelo

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magistério na Escola Normal, em virtude da valorização maior das carreiras técnicas (SOUSA, 2009, p. 137) Se, porém, no início dos anos 1970 o Brasil experimentara o Milagre Econômico4, um período de relativa estabilidade financeira e baixa inflação, o aumento exacerbado do preço do petróleo e o cenário internacional mergulharam o país numa profunda crise econômica ao final da década que persistiu pelos anos 1980. Sendo assim, os inúmeros projetos educacionais estabelecidos no Piauí com otimismo depois dessa Lei cederam lugar, num processo de retração e desaceleração (SOUSA, 2009, p. 138). Esta crise fez com que os investimentos nas áreas sociais se vissem muito diminuídos. De acordo com Sousa (2009, p. 138), a carreira docente se viu às voltas com o arrocho salarial e o desprestígio da profissão. A autora afirma ainda que as greves paulistas de 1979 impulsionaram os professores piauienses, juntamente com seu sindicato, à luta, levando-os a realizar greves, passeatas e atos políticos que repercutiram pelo Estado. A LDB/1971 exigiu que os sistemas de ensino aprovassem estatutos e planos de carreira que normatizassem as condições de trabalho de seus professores, assim como a LDB/1961. Isto se deu no Piauí por meio da Lei nº 3278 de 1974, posteriormente modificada pela Lei nº 4062 de 1986, que dispunha sobre o estatuto do magistério do 1º e 2º graus. Esta normatização organizou o pessoal do magistério, 4

O termo faz referência ao grande crescimento da economia brasileira entre 1969 e 1973, com elevadas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto, grande investimento em obras de infraestrutura, baixo índice de desemprego e grande expansão industrial.

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[...] dividindo os professores em docentes e especialistas em educação e reclamando remuneração condigna, institucionalização do sistema de mérito, qualificação crescente, além de dignificação profissional e social para se recuperar a dignidade, o prestígio e o conceito de classe. No período de implantação da Lei 5692/71, o Piauí procurou remunerar melhor seus professores, o que não se manteve ao final da década. Por outro lado, o Estado exigia profissionalização, mas esta era inviabilizada aos docentes pelos altos custos, mesmo com os esforços da Universidade Federal do Piauí, no sentido de criar cursos na capital e nas principais cidades, a fim de levar uma melhor qualificação ao professorado (SOUSA, 2009, p. 138).

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A esse respeito, Alves (2011, p. 89) destaca que o processo de funcionarização do magistério piauiense precedeu seu processo de profissionalização. O rígido controle imposto pelo Estado vai aos poucos transformando as práticas docentes, seus comportamentos e as visões que se tem do ofício, agora alçado ao status de profissão em detrimento de uma ocupação doméstica e improvisada como era concebida ao longo dos séculos XVIII e XIX. O autor afirma que toda a legislação que vigorara nas décadas de 1960 e 1970 fora gradualmente ajustando os docentes a uma nova concepção de si, os quais passam a se ver corporativamente como funcionários públicos de Estado, engajados em processos dinâmicos de luta por avanços da educação, melhorias nas condições de trabalho e incremento das remunerações, “justamente no momento de massificação dos professores secundários, provocada pelo processo de expansão da escola secundária, quando se dá a imposição de regras rigorosas para ingresso e exer-

cício da profissão docente” (ARAÚJO, 2011, p. 9). Os estatutos e normatizações que seguiram após o fim do regime militar e o período de redemocratização, do país não trataram especificamente da escassez de professores, fugindo, pois, dos objetivos que pretendíamos discutir neste artigo. Assim, optamos por fazer um recorte, situando as discussões do período colonial até a redemocratização do Brasil. No entanto, as mudanças implementadas pela Lei nº 9394 de 1996 (BRASIL, 1996), bem com as resoluções, leis complementares, emendas constitucionais dentre outras apontam para uma preocupação crescente da sociedade com os rumos da educação nacional e a forma como os governantes têm lidado com a questão. Mesmo com improvisos que sinalizam avanços e recuos, percebe-se uma tentativa de valorização do magistério e da educação, única saída vista para diminuir a escassez de profissionais e aumentar a atratividade da carreira docente. Considerações finais Por meio deste artigo, pôde-se discutir a escassez de professores na instrução pública piauiense do período colonial até o fim do regime militar brasileiro. Observa-se que a carência de professores não é um fenômeno novo na educação do estado, antes, vem sendo objeto de inúmeros improvisos estabelecidos por diferentes legislações e normatizações. Isto resultou em práticas que podem ser observadas ainda hoje como a presença de professores habilitados para lecionar uma disciplina ministrando aulas de outra para a qual não são formados. Vê-se que há um longo caminho ainda a percorrer em prol de uma educação de melhor qualidade, a qual passa necessariamente pela valorização do pessoal docente.

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Educação, Curitiba, v. 8, n. 23, p. 105120, jan./abr. 2008. PIAUÍ. Lei nº 41 de 1970. Dispõe sobre o Estatuto do Ensino Médio do Estado. Diário Oficial, n° 80, 14/05/1970. PIAUÍ. Lei Complementar nº 71 de 26 de julho de 2006. Dispõe sobre o Estatuto e o Plano de Cargos Carreira e Vencimento dos Trabalhadores em Educação Básica do Estado do Piauí e dá outras providências. Diário Oficial, Teresina. Disponível em: <http://legislacao.pi.gov.br/legislacao/ default/ato/12523>. Acesso em: 28 abr. 2016. SCHUELER, Alessandra Frota de. De mestres-escolas a professores públicos: histórias de formação de professores na Corte Imperial. Educação, Porto Alegre, n. 2, v. XXVIII, p. 333-351, maio/ago. 2005. SOUSA, Jane Bezerra de. Ser e fazer-se professora no Piauí no século XX: a história de vida de Nevinha Santos. 2009. 236 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2009. SOUSA NETO, Marcelo de. Escola para que? Escola para quem?: os primeiros passos da instrução pública no Piauí (1730-1824). Mneme, Caicó, n. 35, v. 15, p. 260-283, jul./dez. 2014.

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Messias Araujo Cardozo

ALÉM DA LUTA E DA MILITÂNCIA: Relatos de operários da MORAES S/A em Parnaíba-PI nas décadas de 1970 e 1980 Messias Araujo Cardozo* Resumo No artigo eu abordo as experiências de operários da MORAES S/A em ParnaíbaPI nas décadas de 1970-80, a partir da história oral e da consulta a periódicos e outros documentos, busquei enfatizar a cultura a margem da militância. Aponto a não radicalidade e “essencialidade” revolucionária dos operários no intuito de narrar suas lutas, concepções religiosas e políticas deixando eles mesmos falarem por si. Foi-nos perceptível que os operários em questão não lutavam ou se organizavam contra o sistema ou contra o patronato no sentido tradicional, seja por meio do sindicato, greves e ou motins por razoes e motivos intrínsecos a sua formação e não por “alienação”. Palavras-Chave: Operários, Parnaíba-PI, Experiência.

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Abstract In the article I approach the issue the experiences of factory workers in MORAES S/A in the decades of 1970-80, in Parnaíba-PI based on oral history and consultation with periodicals and other documents I searched to emphasize the culture margin of militancy. I point to the do not radicality and “essentiality” of revolutionary factory workers the purpose of narrate their struggles, religious and political conceptions leaving them speak for themselves. It was perceptible that the factory workers in question did not fight or organized themselves against the system or against the employers in the traditional sense, either by trade union strikes and or rioting for reasons and intrinsic reasons their education and not by “alienation”. Keywords: Factory Workers, Parnaíba-PI, Experience.

*

Graduando do oitavo período do curso de Licenciatura Plena em História da UESPI (Campus Alexandre Alves de Oliveira), bolsista do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID, Subprojeto de História). Email: messias.histsocial@gmail.com

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1. Uma não tradição visível e exacerbada de luta e combatividade operária em Parnaíba-PI: operários de perfil conservador Em primeiro lugar “[...] é importante superar o mito da recuperação absoluta da „história operária‟, ou de sua reconstrução heroico-contínua, cronológica e integral” (HARDMAM, 2002, p. 41). O fazer-se do operariado de Parnaíba foi um tanto lento se comparado à região sudeste, e suas primeiras associações de classe provam que as classes trabalhadoras de Parnaíba ainda imbuídas de uma concepção mutualista, não provocaram um curto-circuito na sociedade de classes. Na altura da década de 1940, existiam algumas associações de classe, com ênfase mais em uma organização de ajuda mútua do que com caráter mais combativo, radical. Dentre essas associações se destacavam: O Centro Operário Beneficente Parnaibano, fundado nesta cidade, a 7 de Setembro de 1927, é uma instituição de honra ao operariado local. Pelo sentido associativo do empreendimento. Pela exata compreensão da solidariedade de classe. Pelo espírito fraternal que conduz a associação.1

de assistência aos seus associados. Sociedade de belo futuro, do círculo proletário S. José é lícito que se espere grandes serviços ao proletariado parnaibano, principalmente a infância operária, merecedora de atenção e desvelo.2 Como já afirmaram alguns autores (HARDMAM, 1982; BATALHA, 2000; REZENDE, 1994), as associações deste tipo, com uma ideologia de “conciliação entre as classes”, além da notável influência religiosa e do seu atrelamento aos patrões, dificilmente conseguiriam as mudanças e que as reivindicações proletárias fossem atendidas, devido a certo pacifismo (além de sua recusa da greve como forma de reivindicação por parte dos trabalhadores) e sua submissão ao patronato. Existiam também neste período, além de Institutos e Associações profissionais, algumas organizações sindicais, tais como: Sindicato dos Oficiais de Máquinas, dos motoristas e dos condutores em Transportes fluviais (Fundado em 12 de Julho de 1941 – Associados inscritos: 67), Sindicato dos Contramestres, Marinheiros, Moços e Remadores em Transportes fluviais no Estado do Piauí (Fundado em 22 de Julho de 1941 – Associados inscritos: 920), Sindicato dos Foguistas em Transportes fluviais no Estado do Piauí (Fundado em 21 de Julho de 1941 – Associados inscritos: 145), Sindicato dos práticos, Arrais e Mestres de cabotagem (Fundado em 22 de Julho de 1941 – Associados inscritos: 124), Sindicato dos estivadores do Estado do Piauí (Fundado em 22 de Julho de 1941– Associados inscri-

Existia ainda O Círculo Proletário S. José que: [...] foi idealizado, organizado e finalmente, fundado nesta cidade, a 12 de Maio de 1943, [...]. Sua fundação, em sessão solene, teve lugar no salão da sala paroquial, posto a disposição da sociedade por Monsenhor Roberto Lopes grande benfeitor da instituição. [...] O círculo proletário S. José é instituição beneficente e de amplos afins 1

Fonte: Livro do Centenário da Parnaíba, 1944, p. 211.

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Fonte: Livro do Centenário da Parnaíba, 1944, p. 213, 214.

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tos: 130), Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da construção e do Mobiliário de Parnaíba (Fundado em 22 de Agosto de 1942 – Associados inscritos: 1.123), Sindicato do Comércio Atacadista no Estado do Piauí (Fundado em 14 de Março de 1942 – Associados inscritos: 21) e o Sindicato dos Empregados do Comércio de Parnaíba (Fundado em 16 de Outubro de 1943 – Associados inscritos: 278).3

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Apesar do expressivo número de sindicatos, e de associações de cunho mutualista, não devemos esquecer-nos do contexto nacional, após 1937, e, sobretudo depois da promulgação da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) em 1943, o sindicalismo perdeu em muito a combatividade e a independência frente ao Estado que detinha antes de meados da década de 1930 (ANTUNES, 2003). “Antes do padrão estatal do sindicato único por categoria se impusesse no pós-1930, era bastante heterogêneo o quadro sindical e associativo dos trabalhadores no Brasil” (HARDMAM, 2002, p. 42). Além de heterogêneo era, sobretudo combativo, a chamada cooptação da classe trabalhadora pós-1937 (REZENDE, 1994) não deve ser visto como fator determinante e totalizante. Mas temos que ter em mente que a cooptação pós 1937 não foi um processo novo, já precedia o período Vargas. Todavia, o padrão mutualista de organização dos trabalhadores em Parnaíba neste período se mostra como uma padronização submissa por parte dos sindicatos, com forte presença dos patrões e de religiosos nestas instituições, que sem duvida não objetivavam mudanças sociais abruptas, menos ain-

da revolucionárias, nos levando a caracterizar a história da cidade, e o comportamento dos trabalhadores como majoritariamente conservador, com trabalhadores conformados e disciplinados. Ao mesmo tempo em que ressurgiam as lutas sindicais após os anos do Estado Novo pelo restante do país, tendo em vista entre outros fatores que “no início dos anos 50, sob o último governo de Vargas, o movimento sindical atingiu novamente grande dimensão” (ANTUNES, 2003, p. 53). A cidade de Parnaíba estava isolada, pois o perfil da classe operária era pacato e até conservador, visto o grande numero de associações mutualistas na década de 1940 (quando em fins da década de 1920 pelo Brasil elas eram praticamente nulas) e o sindicalismo da cidade ser pouco expressivo quando comparado aos outros movimentos sindicais que se proliferaram pelo restante do Brasil. 2. Relatos de operários da MORAES S/A nos anos 1970 e 1980: além da luta, mas longe da alienação O bar, é um espaço onde o trabalhador se sente a vontade4, é um espaço para além da fábrica, é a negação do recinto laboral. Elencamos o bar, em virtude de que três entrevistados (dentre os cinco) nos indicaram este local como o espaço onde eles se relacionavam neste período. O nosso colaborador, senhor João Pedro, nos indica que: Rapaz, tinha um bar do seu zé.. que agente ia tomar umas sabe... eu bebo desde de novo, parei mais agora por causa da saúde.. mais tinha dois bar que os que trabalhavam lá na 4

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Fonte: Livro do Centenário da Parnaíba, 1944, p. 242, 243.

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“Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se senti fora de si” (MARX, 2001, p. 114).


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MORAES iam, era ali pela Coroa sabe?... Lá era bom, agente se divertia junto, a turma quando trocava sabe, agente descia pra lá... era bom porque agente mal se falava quando tava lá no MORAES, mais lá no bar era bom.. o seu zé vendia fiado e eram pouca as briga porque era só nos mesmo sabe? Só quando um ou outro bebiam era que tinha essas coisa. Lá no seu zezim... que era como agente chamava o seu José, os pessoal do sindicato também apareciam eles pagavam umas pinga as vezes pra nos.. mais a maioria deles não bebia, só ia pra conversar sobre o trabalho... né...5

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Nos bares como o do “seu zezim”, os operários costumavam contar suas angústias e infortúnios, mas o local servia, sobretudo para socializarem as experiências de vida, o espaço do bar era o espaço anti-fábrica, no sentido do não-trabalho, do divertimento e do nãoesforço, isto é evidente quando o colaborador afirma que “Mais era no bar do seu zezim que a gente se sentia a vontade mesmo”. O bar é historicamente um local do trabalhador, onde na folga ele diverte-se. E pelos bares da cidade, estes operários viviam o que a fábrica não poderia lhes oferecer: momentos agradáveis, o que nos é patente, a partir das falas dos entrevistados é o quanto a fábrica se assemelha a prisão sem condenação formal, era o espaço anti-lazer. O álcool, companhia miserável onde o trabalhador se afundava para negar sua condição proletária (ENGELS, 2010), era para eles o líquido que ativava as sensações de agradabilidade, gozo e sensação de liberdade, o alcoolismo, principalmen5

Entrevista concedida por João Pedro dos Santos Amaral à Messias Araujo Cardozo em 11 de Agosto de 2015.

te para o anarquismo (HARDMAM, 2002) e para Trotsky6 em particular, era uma lástima que devia ser veemente combativa, visto que contribuía para a perpetuação da alienação do trabalhador, o que o tornava mais mesquinho e incapaz de somar na luta revolucionária para sua emancipação. Sobre este espaço, afirma o colaborador Eduardo Sampaio Araujo de Melo, ex-operário da MORAES entre 1976 e 1982, que chegou a participar do sindicato, porém segundo ele “não teve muita sorte”. O senhor Eduardo é hoje aposentado pelo sindicato dos trabalhadores rurais, visto que após sua passagem pela MORAES voltou ao campo. Ele hoje tem 69 anos, vive no Bairro do Carmo. A entrevista foi realizada em sua residência. Sobre o nosso jeito de se divertir, era pros bares que a gente ia muito né [...] tinha alguns perto da MORAES, tinha dois que eu costuma ir, um era do “seu zé rico”, a gente chamava ele assim pois vivia viajando... Tinha também o bar do zezim onde a turma, principalmente os que trabalhava lá a mais tempo ia. Era muito bom sabe, o serviço era duro e toma uma ou duas é sempre bom num sabe.,. Mais lá no bar é que era diferente não sabe, dava pra achar muita graça, lembro que uma vez teve um que bebeu tanto que disse que não ia mais voltar pra fábrica. Era um lugar onde eu gostava de ir... mais minha mulher reclamava quando eu chegava tarde [...].7 6

Sobre isto ver: “Trotski: a vodka, a igreja e o cinematógrafo” In: Op. Cit, HARDMAM (2002), onde Trotsky afirma que é necessário: “Desenvolver, reforçar e organizar, levar a contento a política antialcoólica [...]. Neste ponto, nenhuma concessão é possível” (HARDMAM, 2002, p. 227). 7 Entrevista concedida por Eduardo Sampaio Araujo Melo a Messias Araujo Cardozo em 22 de Setembro de 2015.

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“[...] lá era outro lugar sabe, era diferente [...]” como podemos traduzir esta diferença? Pensamos na perspectiva de uma oposição, e esta manifesta em relação ao espaço fabril, que para nós era por eles concebido como o local puro e simples de trabalho, e estes se traduziam em manutenção de seu modo de existência, no sustento da família e lhes rendia a rubrica de “cidadãos”, ainda que estes dotados de uma postura disciplinada e até mesmo reacionária em relação a outros centros como poderemos visualizar mais adiante neste trabalho. Outro fato que nos foi perceptível foi que as mulheres eram excluídas deste espaço e para além de suas ocasionais críticas e oposições frente ao dinheiro que escorria pelo gargalo, ou seja, o protesto pelo gasto inútil (frente à demanda do sustento familiar, onde estas mulheres representam o chamado “matriarcado orçamentário”8) elas se viam reclusas ao espaço doméstico, o bar representava então um espaço masculino, expressão de uma sexualização do espaço citadino, visto que o bar se associava ao consumo do álcool e a promiscuidade (PERROT, 1988, p. 209). 2.1 A cultura religiosa: catolicismo, trabalho e conservadorismo. Outro local de sociabilidade diagnosticado, onde estes operários frequentavam buscando refrigério e alento frente à vida é a Igreja, neste caso restringese ao catolicismo. A fé, expressada aqui na ida as procissões, e nas missas entendemos como mais um dos aspectos que denotam o profundo espírito moderado destes operários, entende-se por “espírito” nada de metafísico, mais sim como uma expressão de vontade de agir, co8

Sobre o “matriarcado orçamentário” ver: PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 192.

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mo já ressaltamos historicamente a cidade não tem uma cultura de movimentos sociais, entendemos “cidade” expressa em grupos que agem por meio de protestos, greves, motins e etc. Então, esta forte religiosidade que poderemos vislumbrar, é característica do povo da cidade, que em nosso entendimento historicamente experenciou as relações sociais como um todo harmônico, uma sociedade sem antagonismos de classes. Entretanto, esta religiosidade, para o pensamento de movimentações mais radicais que discutem até as hierarquias religiosas fora pérfido para a classe operária em questão, se pensarmos na perspectiva de um pensamento laico, esquerdista e com vistas a movimentos sociais radicalizantes. E dizemos isto, mas ressaltando que não queremos imputar a eles isto, até porque se deve levar em conta a origem e as circunstancias sociais destes indivíduos, porém, esta religiosidade no mínimo era inibidora de uma consciência de classe mais aguda e operante no sentido de greves e motins por exemplo. Segundo seu João Pedro, nosso colaborador, a religião é o principal e mais importante aspecto da vida, é vital para que “o homem que trabalha crie um espírito de seguir em frente”. Olha, nossa religião era a católica, como ainda hoje eu sou graças ao meu senhor Jesus Cristo e a nossa senhora das graças meu filho que me protege, eu e minha família todinha. Quando nós trabalhava lá na MORAES agente ia todo mundo pras procissão e pra missa também, missa era mais difícil mais vez por outra nós ia. Ia era muitos que trabalhavam lá [...]. Nas procissões era mais animado num sabe? Alguns bebiam demais depois, tem sempre umas venda de pinga por perto que vendia e o povo compra mesmo né... Eu


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acho que Deus... assim a religião não sabe, é importante demais pra que o homem que trabalha crie um espírito de seguir em frente não sabe? O trabalhador só trabalha na terra que Deus da pra ele, seja na terra, no serviço na fábrica, na enxada consertando uma coisa ou outra é tudo dado por Deus, e os padres são homens de Deus, são os que nos diz as palavras dele não sabe [...].9

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A religiosidade representaria para nós neste caso, outro ponto de ancoragem do trabalhador frente a sua vida e os problemas correspondentes a sua existência tanto no mundo do trabalho como nas outras instâncias. O que podemos perceber é certamente que a religiosidade aqui expressa corrobora com a visão naturalista do mundo do trabalho onde este é concebido sem exploração, com caráter preexistente e atemporal. Para estes operários, o homem nasce e morre trabalhador (equivalente a honesto), o que é positivo, visto que isto sustenta a ideia de que “a essencialidade do trabalhador” é sua honestidade, zelo moral, e, sobretudo sua pacacidade, alicerçada nesta ideia de que a sociedade é um todo sem fraturas de classe, e que o mundo do trabalho é desta forma por vontade e desejo divino, sendo assim é inútil (ao que isto nos sugere) resistir à ordem social. Outro de nossos colaboradores, o sério senhor Marcos, que para nós é um homem de convicções que flerta com uma direita moderada (um conservador no sentido de apegado a ordem tipicamente militar), mais que em assuntos de religião é tradicional, no sentido de católico convicto e fervoroso defensor da religião e até da inefabilidade do papa. 9

Entrevista concedida por João Pedro dos Santos Amaral à Messias Araujo Cardozo em 11 de Agosto de 2015.

Segundo o ex-operário Marcos: Olha, a minha religião desde que eu me entendo por gente é a católica, foi com fé em Deus e em Jesus e Nossa Senhora que eu to vivo até hoje. Naquela época da MORAES que nós trabalhava lá fazendo sabão e no manejo com a cera era todo mundo católico... E acrescenta: Rapaz, uma coisa é certa: o trabalhador só come aquilo que Deus da pra ele de direito, que ele consegue trabalhando honestamente como homem que foi feito por Deus rapaz. Agente naquele tempo costuma ir nas procissão na missa... Eu acredito que o homem sem Deus, ele pode até ter muito dinheiro, mais sem a fé, se não seguir o que o Papa diz ele morre de nadar e não sai da praia. À nossa análise, estas falas ilustram de forma clara como estes operários entendiam o mundo como um todo acabado, sem divisões de classe, onde a exploração, que era até percebida em alguns pontos das falas eles comentamna, não se revertia em ações mais diretas típicas de movimentos combativos, como greves e motins. A ordem social era entendida como intrínseca a ordem social em que Deus era o grande arquiteto e este era sinônimo de religião católica, a correlação fé, deus e igreja católica é marca patente entre todos os nossos colaboradores. 2.2 Ideias em termos de política: visão conservadora, saudosismo da “ordem”. Os operários da MORAES S/A que entrevistamos, para além do bar e da Igreja, também tinham ideias políticas nos anos 1970-80, cartografá-las não foi ta-

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refa fácil e nem quando das entrevistas eles logo foram identificando suas “filiações ideológico-partidárias”, tivemos que reter fragmentos que nos sugerem estas e de antemão podemos dizer que em síntese seus ideários políticos estão completamente alinhados ao conservadorismo político e até com flertes abertos a direita do período da ditadura. Existe quando analisamos as entrevistas deles uma coisa em relação à política que os unem: um saudosismo em relação a uma Parnaíba “da ordem”, uma saudade de um período disciplinar e exemplar, não importa se sem voto (e neste caso, por conseguinte sem as “amolações” do ser social político ativo na figura do eleitor...). Sem participação mais, sobretudo sem responsabilidade, no caos ou no “milagre”, a política parece algo longe, distante, a esfera de poder parece desvinculada da pequena realidade destes trabalhadores, todavia, os mesmos não se revoltaram contra tal (pelo menos não através de greves e protestos). Como sobre as suas práticas culturais no âmbito da religião e do lazer na figura do bar, sobre estes operários caem uma enorme herança histórica advinda do campo. Como grande parte dos entrevistados veio das regiões do interior, onde a política é feita pelos “grandes” e a maior parte da população apenas a contempla, quase como espectadores de um jogo em que são partícipes mínimos, não é de admirar que na cidade eles fossem se comportar disciplinarmente em termos de política, sem radicalismos e sobressaltos. Além do conservadorismo político destes operários, a ideologia do trabalhismo nos seus termos de conciliar a cooperação econômica com a paz social e a simbiose entre dirigismo e “partici-

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pação”10 (FERREIRA, 2001, p. 175) eram características das visões políticas dos operários em questão, como diz o colaborador seu João Pedro: “Política é coisa de rico, trabalhador tem que se ajudar e cooperar com a política na medida do possível né ...”. Entendemos ideologia trabalhista, nos termos de Angela de Castro Gomes, cientista política brasileira que é autora de livro clássico sobre o tema, segundo (GOMES, 2005, p. 300-301): A invenção do trabalhismo e a montagem do sindicalismo corporativista, [...] constituíram as pedras de toque para a incorporação política dos trabalhadores. [...]. O sucesso do discurso trabalhista e da organização de interesses corporativista baseou-se na ressignificação de todo um elenco de demandas e toda uma tradição cultural e política centrada no valor do trabalho e da dignidade do trabalhador, desta feita enunciados e reconhecidos pelo próprio Estado. Este é o ponto: centralismo do valor do trabalho e da dignidade da pessoa do trabalhador, esta lógica esta impregnada nos discursos dos trabalhadores da MORAES S/A que entrevistamos, várias são as alusões ao valor de ser trabalhador, a ética do ato laboral como virtude, como condição para a quase ostentação do epiteto “cidadão”. Vejamos isto, por exemplo, quando um de nossos colaboradores nos afirma que: Quem trabalha é quem é homem mesmo, ser cidadão é ser trabalhador. E na época que nos trabalhava 10

Trata-se aqui do artigo “Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964)” de autoria de Lucília de Almeida Neves, In: FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 167-203.


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lá na Moraes eu sempre fui dessa forma. Nós trabalhava pra come mais porque é isso que o cidadão tem que fazer. Quem trabalha tem valor, tem dignidade e outra coisa, naquela época tinha ordem as coisas sabe... Não é hoje que é essa política ae que não vai pra frente... Quem comandava eram homens de farda e que colocavam ordem, a Parnaíba era boa de se viver, e eu tive orgulho de trabalhar minha vida inteira.11

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Existem entre todos os entrevistados algumas linhas mestras de pensamento político-social, pudemos diagnosticar ao menos dois eixos que se adequam ao que a autora citada chama de trabalhismo e que nos permite dizer que estes operários eram ideologicamente trabalhistas (o que infere na consciência e nas movimentações de classe, falaremos disto mais a frente). Estes eixos eram: o conservadorismo político (com flertes e até defesas em relação à direita militar) e uma ética teleológica da existência humana pelo ato do trabalho (e este ser que trabalha é sinônimo e condição necessária para a cidadania segundo o que nos sugerem suas falas). Em relação ao trabalhismo, este reserva algumas características nocivas quando pensamos a classe em termos de manifestação, oposição e ação frente a abusos e as condições de existência a que o trabalhador fabril se vê impelido na sua existência enquanto classe. Estas características são que o trabalhismo é impregnado de: antisocialismo, ideia de homogeneidade social, negação completa da luta de classes e a participação política (quando existe) é restrita a confirmar o poder decisório nas mãos do Estado, além do 11

Entrevista concedida por Marcos da Silva Cardoso à Messias Araujo Cardozo em: 18 de Abril de 2015.

sindicalismo pelego12 e do não intervencionismo por parte dos trabalhadores nas questões sociais mais amplas (FERREIRA, 2001, p. 202). Apenas em relação ao antisocialismo (pois nenhum entrevistado se reportou ao mesmo) todos estes caracteres que compõem o conceito de trabalhismo estão presentes nas falas destes trabalhadores. Outra coisa que nos foi patente foi o saudosismo em relação ao regime militar. Segundo o senhor José Pedro: Política não é coisa que gente pobre tem que se meter não, só na hora de vota mesmo certo. Eu nem votava naquela época... E era era bom. O homem que trabalha faz parte da sociedade e todos somos iguais até porque Deus fez o homem igual né verdade? Essa questão de poder deixa pra quem é da política mermo, o homem que vive no seu serviço não tem que se meter nisso não. Acho que por isso que naquela época as coisas andavam em ordem [...]13 Grifo nosso. Ainda neste sentido do trabalhismo, uma entrevista é praticamente uma descrição conceitual, além de nela podermos vislumbrar alguma consciência da existência de uma classe para o indivíduo que fala. Segundo o colaborador Augusto Gomes: Quem trabalha tem que ser obediente se não perde o emprego ou prejudica o companheiro ali da labuta. Nós que trabalhava na Moraes na 12

Sindicalismo pelego refere-se ao tipo de organização sindical sem autonomia, atrelado ao Estado ou ao patronato. Sobre o sindicalismo ver: Op. Cit, ANTUNES, 2003. 13 Entrevista concedida por João Pedro dos Santos Amaral à Messias Araujo Cardozo em: 11 de Agosto de 2015.

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época não tinham muito essa coisa de se envolver em política não. O que faz do homem um cidadão é seu serviço, seu trabalho. Com fé em Deus meu filho agente segui, e deixa quem ta na poder faze o que deve ser feito, nem sindicato nem nada tem que se mete nisso não [...]14 Grifo nosso.

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Estas falas nos sugerem uma representação de uma classe apolítica, mais não devemos generalizar obviamente, até porque como já falamos neste trabalho havia sindicato e indivíduos talvez mais radicalizados (até pelo seu possível envolvimento e conhecimento de outros centros com movimento operário mais desenvolvido). Em relação ao conservadorismo, as falas deles são nítidas. Existe entre a maioria dos entrevistados um aspecto de saudosismo pelo regime militar, que para eles é fortemente associado (umbilicalmente poderíamos dizer) com os signos de ordem, paz e segurança social. Segundo o colaborador Eduardo Sampaio Araujo Melo, nesta época em que trabalhava na MORAES S/A: A cidade era bem diferente. Íamos trabalhar cedo, chegávamos e quando um pouco atrasados já dava pra ouvir a sirene, é que tocava uma sirene ai quem tava por perto ia pro serviço, era um alerta não sabe... Na época era tudo tranquilo, tinham tudo em ordem na cidade. Quem governava o país era os militares não é verdade? Militar é homem de autoridade, eram eles é que eram pra governar

o país inté hoje rapaz. Não esse bando de ladrão [...]15 Grifo nosso. A sirene para nós ilustra como no cotidiano, já estava impregnada a lógica disciplinar. Imaginem uma pequena massa de trabalhadores, que ao ouvirem a sirene se dirigiam todos para o serviço. De forma semelhante ao rebanho que obedece aos chamados da ordenha do seu pastor. E ainda segundo o colaborador a sirene tocava para trocar as turmas (o serviço era efetuado por turmas que revezavam, trabalhava-se em alguns períodos diuturnamente, mas apenas em certos períodos da produção), a sirene tocava para a alimentação e podia ser ouvida nos arredores da fábrica. O que podemos perceber além do saudosismo a uma sociedade disciplinar16 mais efetiva (visto que eles vêem na nossa perspectiva a atualidade e, por conseguinte a democracia como uma forma degenerada da vida política, mesmo que se sacrifique o direito de voto e etc.), é a confluência entre poder militar e segurança para o trabalhador. Considerações Finais A pesquisa buscou perceber as experiências cotidianas dos operários em questão desconectadas da militância ou da política combativa. O que nos permite descrever uma sociabilidade no período sem grandes agitações sociais no meio dos trabalhadores. Desnecessário afirmar que não falamos por todos os trabalhadores nem negamos que na época (ou em outra) os operários sempre mantiveram um perfil conservador, religioso e não combativo. 15

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Entrevista concedida por Augusto Gomes de Castro Filho à Messias Araujo Cardozo, em 05 de Outubro de 2015.

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Entrevista concedida por Eduardo Sampaio Araujo Melo a Messias Araujo Cardozo em 22 de Setembro de 2015. 16 Sobre a ideia de sociedade disciplinar ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.


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Ao falarmos das associações mutualistas e de sindicatos na cidade, podemos perceber é que não havia neles um perfil de combatividade, que postulasse a concepção de luta de classes entre os trabalhadores da cidade, seu perfil foi à nossa análise tradicional e com sua ideologia (que apesar de não negarmos a possível existência de radicalismos e ações mais combativas na história dos trabalhadores da cidade) vinculada ao trabalhismo, o que reverberou consequentemente em posturas tradicionais do ponto de vista político, do ativismo e em termos de movimento operário. Seu lazer, no caso o bar, deve ser encarado com um dos signos típicos da cultura do trabalhador rural17 que teve continuidade na cidade de Parnaíba. Em sua maioria eles tiveram uma socialização na zona rural antes de vir trabalhar na fábrica MORAES S/A, e assim como os entrevistados não se reportaram a nenhuma revolta camponesa também não indicaram ou aludiram uma movimentação mais combativa quando trabalharam na cidade de Parnaíba no período, o que descredibiliza falar em “alienação” e sim em cultura não militante, afinal esta não é a “essencialidade” do operariado ou da classe trabalhadora. A forte religiosidade18 católica também não foi uma experiência adquirida após a vinda à cidade (e, por conseguinte as experiências fabris) mais uma condição à que já estavam habituados, preexistente, fazia parte de suas coordena17

O consumo do álcool se relaciona ao operariado desde o início da revolução industrial como nos indica Friedrich Engels. Sobre isto ver: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 142. 18 A religiosidade é um aspecto importante para a formação da classe, da consciência de classe. Sobre isto ver: THOMPSON, E. P. A Formação da classe operária inglesa. Vol. 1 A árvore da liberdade. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

das culturais formadoras de seu ser social, que para o movimento operário pode ser entendido em termos de atraso, visto que a ideologia católica (cristã) nega a realidade classista e insiste na “conciliação entre as classes”. As ideias políticas ou o que á nossa análise podem ser percebidas como concepções políticas dos operários em questão, são conservadoras. Indicandonos que no meio dos trabalhadores da cidade no período o que existia era uma confirmação e até mesmo identificação dos colaboradores com a “ordem” e outros signos do regime civil-militar imposto em 1964. Fontes Consultadas e Referências Bibliográficas Entrevista concedida por Armando Pereira dos Santos Neves a Messias Araujo Cardozo em 03 de Setembro de 2015. Entrevista concedida por Augusto Gomes de Castro Filho à Messias Araujo Cardozo, em 05 de Outubro de 2015. Entrevista concedida por Eduardo Sampaio Araujo Melo a Messias Araujo Cardozo em 22 de Setembro de 2015. Entrevista concedida por João Pedro dos Santos Amaral, em 11 de Agosto de 2015. Entrevista concedida por Marcos da Silva Cardoso, em 18 de Abril de 2015. Jornal Inovação, edição de 6 de Abril de 1978. Livro do centenário da Parnaíba. 1944 MORAES S/A – Celulose, Indústria e Comércio. 75° Aniversário, 4 de Março de 1904 4 de Março de 1979. (Parnaíba (PI), Fevereiro de 1979). Mensário da Associação comercial de Parnaíba, BOLETIM COMERCIAL. Março, 1944, Ano I, n° 2. ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. BATALHA, Claudio Henrique de Moraes. O movimento operário na Pri-

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meira República. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008. FERREIRA, Jorge. Org. O populismo e sua história: debate e crítica. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987. GOMES, Angela Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria nem patrão: memória operária, cultura e literatura no Brasil. 3ª ed. São Paulo: UNESP, 2002. MARX, Karl. Os Manuscritos econômico-filosóficos. Ed. 3ª reimpressão, São Paulo: Martin Claret, 2001. PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. REZENDE, Antonio Paulo. História do movimento operário no Brasil. Ed. São Paulo: Ática, 1994. THOMPSON, E. P. A Formação da classe operária inglesa. Vol. 1 A árvore da liberdade. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

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Daniel S. Braga

ENFRENTADO A LAMA E ÁGUA: A difícil situação de trabalhadores do Delta entre os anos 60 e 70 e suas agruras ao levar os produtos até o centro de Parnaíba

Daniel S. Braga1

Resumo Esse artigo dialoga com memórias de trabalhadores dos rios e dos mangues do povoado de Morros da Mariana entre os anos de 1970-1980. Esse local sofria com o isolamento, a ausência de estradas, rede elétrica, água encanada etc. Transportes não entravam por aquelas paragens, obrigando os moradores a se deslocarem a pé ou no lombo de animais até o centro de Parnaíba. Chegando na Ilha Grande de Santa Isabel, o rio Igaraçu era um obstáculo a ser vencido. Nota-se, portanto, a interdependência entre ilhas e centro/cidade. Os trabalhadores relembram as travessias, as caminhadas, e dão ideia da importância do mercado para os ribeirinhos dentre as décadas estudadas. Palavras-chave: Trabalhadores; memória; mercado Abstract This paper discusses memories workers rivers and Mariana of Morros village of mangroves between the years 1970-1980. This place suffered from isolation, lack of roads, electricity, running water etc. Transport not entered by those stops, forcing residents to move on foot or on animals tenderloin to the center of Parnaíba. Arriving on the Big Island of Santa Isabel, the river Igaraçu was an obstacle to overcome. Note, therefore the interdependence of the islands over the cities, especially to market. Workers recall the crossings, walks, and give us an idea of the importance of the market for riverine among the studied decades. Keywords: Workers; memory; market

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Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor da rede pública de ensino (SEDUC-Parnaíba). danielphb.historia@hotmail.com

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É fato que existe grande dependência das ilhas em relação ao centro das cidades. Essa interdependência, melhor dizendo, se estende sobretudo ao mercado, local onde os ribeirinhos abastecem com produtos agrícolas e pescados. Ao longo da história, as ilhas que compõem o Delta sempre necessitaram do centro de Parnaíba. Pois, como afirma Beijamin Santos (2014, p. 10), memorialista e dramaturgo parnaibano, “o centro de Parnaíba é a própria Parnaíba: lá tinha dois cais, uma estação de trem, as igrejas, praças e hospitais, os consultórios médicos, as farmácias, escritórios e armazéns”. “Já o resto”, referindo-se aos subúrbios e bairros distantes do centro, “não era cidade para ninguém”, alerta Luiza, personagem do romance Beira Rio Beira Vida, de Assis Brasil. Renato Castelo Branco (1981, p. 20) registrou nas suas Memórias que “em torno de um centro imponente estendiam-se os bairros proletários, uma enorme cinta de palhoças e casebres, em que as ruas não eram calçadas, não haviam jardins e nem praças arborizadas, onde os fios elétricos não chegavam”. A cidade, como se vê, se restringe, na maior parte das vezes, ao centro; enquanto isso, nos bairros afastados, as pessoas sobrevivem ao avesso da vida, sem calçamento, água encanada, praças e jardins. Entre as regiões periféricas de Parnaíba nos deparamos com o Povoado Morros da Mariana1, localizado no interior da Ilha Grande Santa Isabel, fronteira de 1

Morros da Marina era um povoado que ficava no interior de Ilha Grande de Santa Isabel, bairro de Parnaíba. Recebeu esse nome por causa de sua desbravadora, Dona Mariana, que em meados do século XVII se fixou na Coroa do Delta e sobreviveu do cultivo de batatas. Em 1994 esse povoado é desmembrado de Parnaíba e elevado à categoria de cidade com a denominação de Ilha Grande/PI. Sua população é estimada é de 9211 habitantes, segundo o último senso. Possui uma área de cerca de 134,32 Km². É conhecida por ser uma das portas de entrada para o Delta do Parnaíba.

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Parnaíba, cercado por rios, mangues, cajueiros e dunas. Entre os anos 70 e 80 grande parte dos moradores sobreviviam da pesca, lavoura, extração de crustáceo e artesanato. Nas primeiras décadas de do século XX, Parnaíba, a princesa do Igaraçu, caminhava rumo ao progresso: embelezando-se, expandindo suas linhas férreas, estradas, interligando-se com outras cidades. O povoado, por outro lado, sofria com o isolamento, a ausência de estrada, eletricidade, água encanada etc. Transportes não entravam por aquelas paragens. Além da ausência de estradas, nem mesmo pontes havia, obrigando as pessoas a se deslocarem a pé ou no lombo de animais até o centro da cidade. Chegando a fronteira, o rio Igaraçu era um obstáculo a ser vencido. A propósito, o rio tornou-se um obstáculo natural que impediu o avanço arquitetônico de alcançar a Ilha Grande de Santa Isabel e tantos outros povoados. Os trabalhadores contentavam-se com as veredas de chão batido, abertas pela inquietação das caminhadas diárias em meio aos matagais e carnaubal. No inverno, essas viagens eram um “verdadeiro Deus nos acuda”, de tanta água e lama que transbordava pela planície, dificultando a locomoção. No entanto, essas dificuldades não impediam os trabalhadores de se descolarem até o mercado no intuito de venderem seus produtos. É sobre essas dificuldades que fala o Jornal do Piauí, em uma reportagem de 1972, em que fazia a cobertura da inauguração da estrada Morros da Mariana/Parnaíba: Os trabalhadores tinham que enfrentar a lama e água, também para levar seus produtos ao mercado da cidade de Parnaíba. Tinham que sair de casa pela madrugada e somente retornavam à noite, em vagarosas canoas, ou a pé, dentro da lama, exa-


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tamente porque tinham necessidade de vender aquilo que produziam e trazer da cidade o indispensável para vida na Ilha. Os estudantes tinham que caminhar exatamente 7 quilômetros de caminhada. Além disso, eram obrigados a enfrentar as águas e a lama, com a farda do colégio na cabeça e com água na cintura. Era uma verdadeira situação de promiscuidade (JORNAL DO PIAUÍ, 1972, p. 20). Na mesma reportagem, o governador da época, diz “não esquecer de sua infância vendo aquele povo lutar contra a natureza”. Ressalta, também, a importância do povoado para economia de Parnaíba. Não esqueceu de agradecer ao presidente Garrastazu Médici e “sua política sadia desenvolvida através da Revolução de 1964”. Alberto Silva2 conclui dizendo que “não pode continuar a ver aquele povo atravessar diariamente a lama e a água para levantar seus produtos a fim de abastecer Parnaíba e não deixar que a segunda cidade do Estado entrasse em colapso total” (Jornal do Piauí, 1972, p. 20). Nota-se, de acordo com a reportagem, que o povo vivia em estado de promiscuidade, ao passo que o governador, como conhecedor da ilha, narra o sofrimento do povo e fala da importância da estrada para a comunidade. Até os primeiros anos de 1970 era complicado chegar tanto ao litoral 2

João Alberto Silva, nascido em 10 de novembro de 1918, natural de Parnaíba, formou-se em Engenharia mecânica, Civil e eletricista, pela Universidade Federal de Itajubá, depois de alguns anos na carreira política, foi indicado, em 1970, pelo então Presidente da República Emilio Garrastazu Médici ao cargo de Governador do Piauí, sendo governador do Estado mais uma vez em 1986 dessa vez pelas eleições diretas, seguido de uma eleição vencida para deputado federal em 1994 e em 1998 para Senador do Estado, faleceu em pleno exercício da atividade política no ano de 2009.

quanto se deslocar dos povoados até o centro de Parnaíba. Tudo porque, como já foi dito, não havia estradas. Veículos, só os de pequeno porte. Afora que, sem pontes, as pessoas se viam obrigadas a atravessar o rio com ajuda de embarcações movidas a força do remo. Dessa forma, o Porto das Barcas, logo cedo, era movimentando por inúmeros pescadores, catadores de caranguejo, estivadores, comerciantes em geral que procuram o mercado público no intuito de comercializarem seus produtos. Sobre isso, Antonio R. Ribeiro, no livro Parnaíba: presente e passado, um misto de analises e memórias, redesenha o movimento dos trabalhadores de manhã cedo no Porto Salgado: Cedo da manhã começava a movimentação no Porto Salgado, quando chegavam os barcos trazendo os pescadores, os catadores de caranguejos, vendedores de frutas, estivadores e consumidores diversos. Os produtos que chegavam cedo ao porto destinavam-se ao mercado para serem comercializados. Por muito tempo pode se ver essa atividade rotineira fazer parte do dia-a-dia do Porto Salgado. Era um ponto de visitação pública muito preferido pois tinha atrativos para quem gostava de novidades, visto que constantemente chegavam barcos de outras cidades, estados e até países distantes (RIBEIRO, 2003, p. 105). Entretanto, como lembra Halbawachs (1990, p. 67), “ao lado da história escrita há uma história viva que se perpetua e se renova através dos tempos e da memória”. Vamos, assim, analisar como as memórias dos trabalhadores lembram e representam essas viagens. Começaremos com o Sr. Raimundo

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Nonato3, mais conhecido como Guajiru, catador de caranguejo. Depois de extrair os crustáceos se corria até Parnaíba, seja a pé ou com auxílio de animais, para vender os produtos. Em meados dos anos 60, “caiu uma chuva tão grande que saiu rasgando tudo. Era tanta água que nosso jumento escorregou num buraco e estava prestes a morrer a afogado”, diz o trabalhador. Conta o caranguejeiro que ficou desesperado e saiu gritando os viandantes que passavam naquele momento: “corre pessoal que meu jumento está morrendo”. Com muito esforço conseguiram salvar o animal, mas parte da mercadoria foi comprometida, o que não impediu sua ida até o mercado. Aliás, os pescadores artesanais associam a cidade ao mercado, lugar onde vendem seus produtos e adquirem mantimentos (sal, arroz, óleo a carne etc.). Se por um lado não usufruíam alguns espaços da cidade (cinema, casino praças e jardins), por outro, o mercado era praticado diariamente, já que todos tinham transito livre, independente do lugar e origem social. O Sr. Raimundo Roque, pescador, mais conhecido com Sessenta, se refere a Parnaíba como o centro e o mercado, espaço que era obrigado a ir quase toda a semana. Quando perguntado sobre o que lembrava dessas viagens, prontamente falou do quanto o povoado necessitava de Parnaíba. Não esquece, porém, das mulheres com seus balaios na cabeça com caju, murici e as caminhadas durante a madrugada. No decorrer do percurso, existiam lugares para descansar e tomarem o último fôlego que os levaria até as margens do rio Igaraçu, limite natural que os separa do centro da cidade.

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ROCHA, Raimundo Nonato da Conceição. Entrevista concedida a Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, jan. 2015.

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Aqui era um interior velho, meu filho. Não tinha ônibus, não. Não tinha nem estrada, só tinha um caminho de terra mesmo. Muitas pessoas iam daqui pra Parnaíba caminhando. Olha rapaz, pra você vê, tempos atrás se via aquelas pobres mulheres que moravam naqueles lados da Cana Braba, né, com seus balaios na cabeça, cheios de caju, murici e tantas outras coisas pra vender na Parnaíba. Eles botavam aquele balaião na cabeça e chinelavam às três horas, quatro da madrugada, se jogavam nesses caminhos aí. Quando chegava no Bairro Vermelho se descansavam um pouquinho. Aí quando dava lá para as quatro horas se botava o balaio na cabeça de novo, aí partiam pra Parnaíba. Aí quando se chegava lá no Porto Salgado, né, iam esperar por um passador. Não tinha ponte ainda não, viu, se pagava uma passagem pra poder atravessar o rio de canoa, meu filho. E era na vara, sabia! Eles iam aqui, oh, na polpa, né, vareando aqui, empurrando aquela canoa até quando chegava do outro lado. Aí quando chegava do outro lado pegava o balaião de coisas, né, botava na cabeça e levava pro Mercado. Era uma vida sofrida, meu filho4. A intenção de todos esses esforços era chegar o mais cedo possível no mercado. Antes tinham que esperar o “passador”, homem responsável por atravessar os trabalhadores até o outro lado rio. O Sr. José Lino, pescador e catador de caranguejo, conta que desde pequeno faz essas travessias, pois sempre ajudou sua mãe que vendia junco, frutas e pescados no mercado. Suas memórias fa4

SILVA, Raimundo Roque. Entrevista concedida a Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, fev. 2015.


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lam do quanto essas viagens eram difíceis, sobretudo no inverno, e da importância dos “passadores”, profissionais de grande importância para economia parnaibana. O Porto Salgado, segundo o trabalhador, “era tomado por barcos, lavadeiras, estivadores e um barulho ensurdecedor”. Ao chegar na outra margem, lembra do desespero das pessoas correndo até o mercado na intenção de conseguir o melhor lugar para vender seus produtos. A minha mãe vivia pelo mato apanhando caju, castanha, puçá, murici, pra levar e vender na Parnaíba. Esse produto a gente levava por aqui, pela Vargem, caminhando mesmo, passando por lamaçal e tudo. Quando era no verão, era bom demais. Agora no inverno era sofrimento. Chegando no Porto Salgado, não tinha essa ponte ainda não, viu, aí a gente ficava esperando o passador horas e horas. Era preciso ficar gritando pra ele vir. Depois a gente atravessava do outro, aí a gente ia até o fim do calçadão, naquele lado ali, onde hoje o pessoal vende roupa, né. Pois é. Ali era assim: botava uma bacia ali, outra acolá, até na ponta da rua. Era o quarteirão ali. Ficava um bocado de mulher com sua bacia de caju, murici, era assim. Hoje não é mais, né. Hoje o pessoal vende é roupa. Olha, era tanta gente ali, que quando a canoa atracava no Porto Salgado, a danação era correr pro mercado pra pegar lugar, de tanta gente que vendia ali. Aquele mercado grande ali, que hoje tá fechado, era o mercado de vender carne, camarão, caranguejo5. Sobre o mercado, tão presente na memória dos trabalhadores, ele ficava próximo à praça Coronel Jonas e atraia

pessoas de vários lugares – principalmente os moradores das ilhas. “Na parte da frente, o mercado de carne e peixe; enquanto que atrás, onde hoje se encontram barracas de confecções, era a área destinada as frutas”. Não faltavam clientes e os roubos, gritos e engodos eram frequentes. Segundo as memórias, entre os anos 70 e 80, “era o mercado mais movimentado da cidade6“. Além de ser um espaço de comércio, o mercado era um lugar dos encontros, pois ali se obtinha notícias de parentes e amigos que moravam em outros cantos, trocavam experiências sobre a pesca, a roça, se atualizava das novidades, das fofocas, contavam causos, bebiam cachaça. Recuaremos um pouco, até as memórias sobre os passadores, ou vareiros. Conta o Seu Abraão, catador de caranguejo, que atravessou o rio Igaraçu muitas vezes à nado, já que não tinha paciência de esperar o atravessador e precisava cumprir horário no tiro de guerra. O Seu Vicente Candido diz que “morreram muitas pessoas nessas travessias”. Perguntado como, ele responde que “as canoas iam muito cheias. De quando em vez, caia um indivíduo na água e não voltava pra contar a história”. No livro A sereia Mariá, um apanhado sobre as memórias das comunidades do Delta, deparei-me com o relato de Maria do Socorro, 67 anos, moradora da Vazantinha, artesã e lavradora, que lutou muito para criar seus 11 filhos. Segundo ela, evitava ao máximo ir ao mercado, pois tinha medo que seus filhos morressem afogados, “[...] já que não existia ponte e se atravessava numa canoa que fazia passagem de um lado ao outro”. “Uma vez”, diz ela, “[...] a canoa se alagou e morreram muitas pes6

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LINO, José. Entrevista concedida a Daniel Souza Braga. Ilha Grande/PI, mar. 2015.

Sr. Julinho. Depoimento concedido a Daniel S. Braga. Ilha Grande, jan. 2015.

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soas. Outra vez vi uma senhora morrendo afogada na minha frente, mas não pude fazer nada” (ROCHA, 2014, p 22). O Seu Sessenta ainda lembra dos homens com suas varas, queimados do sol, feito eles, também trabalhadores do rio, responsáveis por atravessar produtos e pessoas de uma margem a outra. Segundo Raimundo de Souza Lima ( 1987, p. 13), “a prosperidade de Parnaíba teve origem com à força física dos homens do rio, os conhecidos vareiros, responsáveis por gerar a força motriz que movimentava a economia da cidade na primeira metade do século XX”. Esses sujeitos marcaram a história de Parnaíba, devido suas epopeias que escreveram no cais, seus serviços prestados e pela entrega aos vícios, brigas e paixões. Sobre a natureza do trabalho, conta o jornalista, que era passado de pai para filho e consistia, basicamente, em apoiar a vara no peito, ao passo que os braços e o corpo cuidavam de impulsioná-la, movimentando, dessa maneira, a canoa. Essa técnica corporal, segundo Raimundo Souza Lima, deixou marcas na altura do peito, considerada pelo cronista como sinal do machismo e de uma vida de sacrifícios que o próprio vareiro desprezava. Completa: [...] o homem do rio ou o Vareiro propriamente dito foi a pedra angular na formação do império comercial desta região, cabendo-lhe por isto mesmo o lugar de destaque na ação aglutinadora em que de pronto se transformaria(...). O homem fluvíario estava na linha, garantindo a presença como fonte alimentadora da energia física na luta com suas barcas e nalguns casos passando até mesmo despercebido no torvelinho de sua faina diária (LIMA, 1987, p 23).

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Não só os vareiros possuíam marcas do machismo. Pescadores e caranguejeiros também possuíam chagas do trabalho, devido às caminhadas até a Parnaíba, em que muitos homens se auto afirmavam como trabalhadores e, ao mesmo tempo, exercitavam suas masculinidades. Os produtos eram levados no ombro, ou cabeça, e o que importava, antes de qualquer coisa, era resistir a dor. Além do mais, percebe-se que, entre os trabalhadores braçais, o status de homem está intimamente ligado ao emprego da força física dentro da atividade profissional que desempenham. Portanto, existia um certo orgulho por, em outras épocas, suportarem levar inúmeros produtos no ombro, sem reclamar nem acusar cansaço. O Seu Antônio Maria narra uma de suas caminhadas até Parnaíba em meados 1970, do esforço, da resistência do corpo: Senhor, é seguinte, uma vez eu botei uns caranguejos nas costas ali, no Porto do Morro, e soquei nesse caminho. Quando cheguei no meio da Vargem eu botei o calão no chão. Demorou um pouquinho e botei no ombro novamente. Mas parece que cada vez que eu tirava o bicho ficava mais pesado. Senhor, botei no chão de novo. Aí, dessa vez, botei nas costas, e soquei. Cada hora que botava no chão esse troço ficava mais pesado. Pois bem. De Santa Isabel até o porto, eu coloquei umas quatro vezes no chão. Senhor, nesse tempo não tinha ponte, né, quando entrei nessa canoa isso aqui assim (os ombros) estavam em sangue que não podia nem tocar. Quando cheguei no porto Salgado tirei os caranguejos dentro da canoa e sai eu fui logo botando embaixo. Aí eu disse “rapaz, vou pagar alguém pra levar esse calão pra mim, que eu não aguento mais não”. O peso era tão grande que eu estava com o


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ombro todo aberto, de dor. Foi quando eu encontrei um véi, o nome dele era Anastácio, e disse “Seu Anastácio, o senhor leva esse calão pra mim”, e ele pergunta “ quantas cordas é? “, aí eu disse “é 60, você pode? “, aí ele disse “rapaz, o difícil é colocar no ombro, estando no ombro eu levo até no inferno”. Então eu joguei os caranguejos no ombro dele. Quando ele dobrou o beco para chegar na praça da Graça, ele gritou “tira dessa desgraça do meu ombro, senão eu jogo esse troço no chão, tira, tira...”. E agora? Botei no ombro, e, passando por cima da dor, cheguei, graças a Deus, até o mercado. Quando botei esses caranguejos chão senti um alívio tão grande, mas, ao olhar pro meu ombro, vi que ele estava todo escapelado, roxo, puro sangue7.

durante os primeiros anos da década de 1970. Nesse período se deu a construção da estrada Morros da Mariana a Parnaíba e, sobretudo, a inauguração da Ponte Simplício Dias. Esta obra foi executada pelo governador Alberto Silva e foi inaugurada numa manhã de sol de 1972. Essa ponte, segundo a professora Maria da Penha (1987, p. 26), “veio satisfazer os anseios da laboriosa gente das ilhas dos férteis povoados do delta do Rio Grande dos Tapuias, e veio facilitar tudo”. Facilitou para o estudante que busca “o pão do saber em Parnaíba”, como “facilitou o turismo”, completa a professora. No entanto, alguns trabalhadores falam do medo ao atravessarem, pela primeira vez, a ponte, e, alegam, “que o governador a construiu porque facilitaria o acesso as suas fazendas na ilha”, somente.

O Sr. Antonio Maria conta suas proezas corporais, numa época em que o corpo era forte e viril. Hoje, porém, encontra-se adoentado. Talvez pelo excesso de esforço e trabalho. Curiosamente, numa sociedade marcada pelo trabalho braçal, há uma espécie de valorização da força física e da resistência. As travessias dos Morros da Mariana até Parnaíba serviam, entre outras coisas, para os homens mostrarem força e vigor. As costas doídas e os ombros feridos, ao invés de ser motivo de precaução e cuidado, eram, na verdade, símbolo da bravura e macheza. Como lembra Denise Bernuzzi Sant‟Anna (2001, p 43), “[...] os corpos longilíneos, capaz de mostrar agilidade e flexibilidade, especialmente no trabalho, parecem fornecer um atestado de decência e elegância incontestável”. As caminhadas e o desconforto das travessias do rio Igaraçu cessaram

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Livros e Fontes hemerográficas BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 1970. CASTELO BRANCO, Renato. Tomei um ita no Norte (Memórias). São Paulo: LR Editores, 1981. HALBAWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990, p. 54. LIMA, Raimundo de Souza. Vareiros e outras histórias. Parnaíba: (Edição do autor), 1987. RIBEIRO, Antonio Rodrigues. Parnaíba: presente do passado. Parnaíba: Gráfica Ferraz, 2003. ROCHA, Francinalda M. Rodrigues. Cassimiro Pedral: Recorte de Memória. Parnaíba: SIEART, 2014. SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de Passagem: Ensaio sobre a Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. SANTOS, Benjamin. O centro era a Parnaíba. In. Bembém. Parnaíba, nº84, dez. 2014, p. 10.

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Sr. Antonio Maria. Depoimento concedido a Daniel Souza Braga. Ilha Grande, mar. 2015.

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SILVA, Maria da Penha Fonte e. Parnaíba, minha Terra. Parnaíba: [edição da autora], 1987, p. 26. Uma estrada para o Morros da Mariana. Jornal do Piauí. Teresina, 29 de fev. 1972, p. 20.

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Fontes Orais Sr. Antonio Maria. Depoimento concedido a Daniel Souza Braga. Ilha Grande, mar. 2015. LINO, José. Entrevista concedida a Daniel Souza Braga. Ilha Grande/PI, mar. 2015. Sr. Julinho. Depoimento concedido a Daniel S. Braga. Ilha Grande, jan. 2015. ROCHA, Raimundo Nonato da Conceição. Entrevista concedida a Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, jan. 2015. SILVA, Raimundo Roque. Entrevista concedida a Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, fev. 2015.

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Maria Dalva Fontenele Cerqueira

A FERROVIA E O FUTEBOL: Histórias e Memórias do futebol ferroviário em Parnaíba (PI) Maria Dalva Fontenele Cerqueira1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo compreender a participação dos ferroviários no futebol parnaibano, conhecer o cotidiano dos ferroviários e sua participação no futebol, buscou-se, também identificar os espaços da cidade ocupados pelos times durante os treinos. Utilizou-se a metodologia da história oral, tendo como gênero adotado nas entrevistas a história temática. Além das fontes orais, foram utilizados jornais, revistas, livros de memorialistas para compreender as questões propostas. Na análise e interpretações das fontes foram importantes as contribuições de autores como: Assmann (2011) Nora (1997), Certeau (2003), Fontineles (2009), Franco Júnior (2007), Thompson (2002). Palavras-Chave: Futebol. Memória. Parnaíba (PI).

Abstract This article aims to understand the participation of the railroad workers in parnaibano football, knowing the daily of railroad workers and your participation in football, it attempted to also identify spaces ocuppied in city by the teams during training. We used the methodology of oral history, with the kind adopted in interviews the thematic history. In addition to the oral sources, were used newspapers, magazines, memoirs books to understand the questions posed. In the analysis and interpretations of the sources were important the contributions of authors such as: Assmann (2011) Nora (1997), Certeau (2003), Fontineles (2009), Franco Júnior (2007), Thompson (2002). Keywords: Football. Memory. Parnaíba (PI).

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Mestra em História do Brasil (UFPI), Especialista em História do Brasil (UFPI), Licenciada em História (UESPI). Professora da Educação Básica da Secretária de Educação do Estado do Piauí. Diretora da Escola Normal Francisco Correia - IEAF / Parnaíba (PI).

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Entrando em campo A bola rolou no Piauí no início do século XX. Na cidade de Parnaíba, o esporte começou a ser praticado como uma forma de lazer pela elite que era formada pelos filhos de comerciantes locais e pelos ingleses que trabalhavam na Booth-Line e na Casa Inglesa. De acordo com as fontes pesquisadas na década de 1920 a cidade já dispunham de dois estádios de futebol pertencentes aos times, Parnahyba Sport Club e Internacional Sport Club, e uma Liga de Esportes Terrestres onde os demais times ao se filiar disputavam os torneios municipais. No mesmo período Parnaíba viu ser construída a Estrada de Ferro Central do Piauí e com ela um novo tipo de trabalhador, o ferroviário, profissão até então inexistente no estado. A Estrada de Ferro Central do Piauí, construída na cidade de Parnaíba nas primeiras décadas do século XX, foi recebida pelos piauienses como símbolo da modernidade, sua chegada proporcionou mudanças de hábitos e costumes, alterou noções de tempo e espaço, encurtou distâncias e aproximou os parnaibanos das cidades e povoados do norte do estado e com a capital, Teresina. Além do encurtamento das distâncias e da melhoria da comunicação a chegada do trem no Piauí significou também, uma oportunidade de emprego para muitos piauienses, cearenses e maranhenses que estavam desempregados, sem condições de alimentar sua família. As mudanças climáticas, a seca como ficou conhecida, que assolavam o Nordeste nas primeiras décadas do século XX prejudicavam a lavoura, causando a ruína das plantações, uma das atividades dos piauienses, cearenses e maranhenses no período pesquisado. Os trabalhadores da estrada de ferro também conhecidos como ferroviá-

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rios que assim como os filhos da elite parnaibana se encantaram pelo futebol, que passou a ser umas das suas principais formas de lazer nos finais de semana. Reunidos em torno do Ferroviário Atlético Clube, disputaram partidas memoráveis e entraram para a história do futebol da cidade como campeões. O time dos ferroviários foi tretracampeão parnaibano entre as décadas de 1940 e 1950, passou a ocupar um lugar de destaque entre os demais times existentes na cidade e no Estado. Também conhecido como “Esquadrão da Central” ou “Ferrim”, o Ferroviário Atlético Clube tinha uma sede própria localizada na Avenida São Sebastião. Prédio construído na década de 1940 pelos próprios ferroviários com recursos da ferrovia, que atualmente está de pé no mesmo local, este prédio funciona como um “fundamento normativo” e um “lugar de memórias” não apenas para os ferroviários-jogadores e seus familiares, mas para os demais parnaibanos que frequentavam as festas realizadas pelos ferroviários. Diante do exposto, apresentamos nosso interesse em investigar a participação dos ferroviários no futebol parnaibano entre as décadas de 1940 a 1980, identificar as atividades que exerciam na estrada e os lugares que ocupavam dentro do time, conhecer as representações que os ferroviários-jogadores guardam em suas memórias sobre a prática do futebol em Parnaíba. O recorte temporal escolhido considerou inicialmente a década de 1940 em que segundos as fontes investigadas, o clube foi fundado e a década de 1980 quando a ferrovia fazia parte da Rede Ferroviária Federal foi desativada. Esclarecemos ainda que em alguns momentos de nossa investigação podemos avançar ou recuar no tempo cronológico para uma melhor compreensão do objeto de pesquisa.


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Na nossa investigação, tomamos como fontes jornais, livros de memorialistas e cronistas locais, Almanaque da Parnaíba e fonte oral produzida por meio de entrevistas, realizada com ferroviários aposentados e seus familiares que fizeram parte do Ferroviário Atlético Clube no recorte proposto. Para Daniéle Voldman a fonte oral “é o material recolhido por um historiador para as necessidades de sua pesquisa, em função de suas hipóteses e do tipo de informação que lhe parece necessário possuir”(VOLDMAN, 2006, p. 36). No entanto, a história oral não é exclusividade dos historiadores. Fazem uso dessa metodologia todos os campos do saber que buscam um “caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a forma de vidas e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade” (ALBERTI, 2088, p. 164). O trabalho com fonte oral propicia um contato entre pessoas, ou seja, as pessoas que ao aceitarem participar da pesquisa passam à condição de colaborador, sem essa colaboração ou cooperação a pesquisa com esse tipo de fonte se torna inviável. Por meio de suas narrativas dos ferroviários expressam seus feitos, suas experiências vivenciadas com o grupo ou individualmente, em que estiveram envolvidas no trabalho, lazer e nas relações cotidianas. O historiador Francisco Alcides do Nascimento alerta os pesquisadores sobre o uso dessa metodologia ao afirmar que a “história oral não pode ser vista como uma panaceia, mas como um instrumento que permite a construção de documentos, que levam para dentro da história, vozes ignoradas pelas fontes tradicionais” (NASCIMENTO, 2006, p. 140). Ao adotar a História Oral como metodologia pressupõe um estudo não apenas de história, mas também de

memória. O que a memória pode nos fornecer sobre as experiências e o cotidiano dos trabalhadores e sua participação no Ferroviário Atlético Clube? Sobre as potencialidades da memória e o que ela pode nos fornecer, Michel de Certeau afirma que: Ela é feita de clarões e fragmentos particulares. Um detalhe, muitos detalhes, eis o que são as lembranças. Cada uma delas, quando se destaca tecida de sombra, é relativa a um conjunto que lhe falta. Brilha como uma metonímia em relação a esse todo. De um quadro, há somente, deliciosa ferida, esse azul profundo. De um corpo, esse brilho de um olhar, ou esse granulado de uma brancura que apareceu no entreabrir-se de uma encrespadora. Essas particularidades têm a força de demonstrativos: aquele sujeito ao longe que passava inclinado...aquele odor que nem se sabe de onde subia...Detalhes cinzelados, singularidades intensas funcionam já na memória quando intervêm na ocasião (CERTEAU, 2003, p. 164). A memória, portanto, é tecida de recordações que são compostas de pequenos fragmentos de lembranças que, em alguns casos, encontram-se adormecidas e precisam ser tocadas para despertar. Quando lembramos, não estamos revivendo o passado. Este já passou. O que aflora são pequenos fragmentos vividos em grupo ou individualmente, às vezes vem desordenada, desrespeitando uma cronologia, mas como nos ensina Certeau: “A memória não possui uma organização já pronta de antemão que ela apenas encaixaria ali. Ela se mobiliza ao que acontece – uma surpresa, que ela está habilitada a transformar em ocasião. Ela só se instala num encontro fortuito, no outro” (CERTEAU, 2003, p, 162).

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Os toques ou “ativadores de memória” para usar uma expressão cara a Paul Thompson (2002) podem ser dados por meio de uma imagem, uma notícia de jornal ou pelas perguntas realizadas durante uma entrevista. Uma vez mobilizada, as lembranças ganham cor, brilho e afloram da escuridão do esquecimento a que estavam submetidas.

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A bola rola em Parnaíba Atualmente o futebol é esporte que mais encanta e emociona a sociedade brasileira, com um grande número de adeptos, praticantes ou torcedores, capaz de seduzir e despertar paixões em adultos e crianças. No entanto, esse esporte nem sempre foi um esporte popular. Introduzido no Brasil como um esporte moderno no final do século XIX, por brasileiros que iam para a Inglaterra estudar trouxeram a bola, as normas e a paixão que os encantou pelo esporte. No Brasil, a introdução do novo esporte é atribuída a Charles Miller, que foi enviado à Inglaterra, ainda criança, para estudar, “retornou em 1894 trazendo em sua bagagem um verdadeiro arsenal litúrgico: dois uniformes, um par de chuteiras, duas bolas, uma bomba de ar e o desejo quase apostólico de desenvolver o esporte entre seus pares” (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 60). Segundo Hilário Franco Júnior, o pioneirismo das pratica futebolísticas no Brasil estão centradas em São Paulo, seguidas pelo Rio de Janeiro, e depois propagadas pelos outros estados brasileiros. Em Parnaíba, as primeiras notícias da pratica de futebol foram deixadas por Goethe Pires de Lima Rebelo no livro intitulado Tempos que não voltam mais: crônicas sobre a Parnaíba antiga, segundo o cronista, “[...] pouco antes da primeira grande guerra, Parnaíba tinha sua larga pauta de exportação para paí-

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ses da Europa Ocidental, [...] Este fato trouxe um intercâmbio comercial e cultural de relevante significação, levando algumas famílias “patrícias” a mandarem seus filhos estudarem em colégios europeus, para que aprendessem, além da língua, as técnicas mais avançadas do momento. [...] Na volta ao lar, esses rapazes traziam hábitos e costumes novos, adquiridos no além mar. Entre esses, o do futebol, grande novidade esportiva da época, que começava a ganhar campo em todo o mundo” (REBELO, [s/d], p. 61) Essa aproximação, por meio do comércio, é apontada pelo cronista, como “um fato que trouxe um intercambio comercial e cultural de relevante significação”, pois por meio dele, além de outras práticas culturas o futebol foi introduzido no Piauí pelo comércio praticado entre parnaibanos e os países europeus, dentre ele a Inglaterra. E assim como o jovem Charles Miller, “foram para a Inglaterra os jovens Septimus Clark, Adhemar Neves e Zeca Correia e, para Alemanha, Joca Neves” (REBELO, [s/d], p. 61) ambos completar os estudos e tiveram contato com o futebol. Por essa época, existiam em Parnaíba agências de duas importantes firmas inglesas, com ramificação em todo o Norte e Nordeste do Brasil: Casa Inglesa e Booth-Line, ambas com sede em Liverpool, Inglaterra. O gerente e sócio da Casa Inglesa o Sr. James Frederic Clark, pai do jovem Septimus. Possuía em seu Quadro de funcionários o cidadão inglês chamado Leonard Haynes. A Booth-Line era gerida pelo jovem Mister Juliam Clissold e contava no seu quadro de funcionários com o cidadão inglês, Mister Anderson. Estes ingleses e os rapazes que haviam es-


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tudado na Europa, principalmente na Inglaterra, organizaram um grupo de admiradores do futebol que, com mais alguns rapazes da terra, dava para formar dois times (REBELO: s/d, p.61) (grifo nosso) E assim, segundo o cronista o futebol passou a envolver no mesmo espaço os “rapazes que haviam estudado na Europa”, por tanto, membros da elite parnaibana e os “rapazes da terra” os trabalhadores dos comércios onde os pais desses rapazes eram proprietários ou administradores. Ingleses e brasileiros se misturaram na prática desse lazer moderno, recém-chegado à cidade. Inicialmente formavam-se os times minutos antes da partida que era comandado por um dos dois “captains”, Septimus Clark ou Zeca Correia, com o passar do tempo começaram a surgir rivalidades entre o grupo e formaram dois times próprios: O grupo capitaneado por Septmus Clark, dispersou-se, passageiramente, até que em 5 de junho de 1912 [...] fundou em sessão solene, o glorioso Internacional Athletic Club. Adotou a camisa vermelha com golas e punhos brancos, tendo ao peito esquerdo o emblema do club; calção branco, meias vermelhas e brancas, listrada na vertical e chuteiras pretas. A bandeira era listrada de vermelho e branco, tendo na parte superior o emblema do clube, inserido num pequeno retângulo. O outro grupo capitaneado por Zeca Correia, mais coeso, acabou fundando, em 1 de maio de 1913, em sessão solene, o Parnahyba Sport Club. [...] Adotou a camisa branca com gola e punhos brancos, tendo ao peito o escudo do clube, calções azuis, meias e chuteiras pretas. A bandeira era azul com faixa branca no meio, tendo no centro o em-

blema do clube (REBELO, [s/d], p. 62). Pela descrição apurada sobre a prática do futebol em Parnaíba, observamos que os times já possuíam inclusive de roupas apropriadas para a situação, que são as equipes, como conhecemos hoje. A bandeira e o hino de cada time também foram pensados pelos organizadores, inclusive o hino do Parnahyba Sport Club é atualmente o hino da cidade. Os times também construíram seus estádios, verdadeiros templos de lazer moderno, com arquibancadas com capacidade para um grande público. Depois de organizados os primeiros times, os parnaibanos criaram uma liga de futebol e assim, “em 1917, foi fundada a Liga de Esportes Terrestres de Parnaíba, primeira representante oficial do futebol piauiense, filiada a Liga Metropolitana de Esportes Atléticos, órgão máximo do esporte brasileiro, daquela época, com sede no Rio de Janeiro, então, Capital Federal do Brasil” (REBELO, [s/d], p. 62), a Liga foi presidida por João Tavares da Silva. Como podemos observar, na década de 1920 já estavam montadas as bases do futebol no Piauí, em especial, em Parnaíba, a existência de times, a criação da liga e a construção dos estádios. Toda essa agitação em meio ao futebol favoreceu a divulgação do esporte na cidade e os parnaibanos tomaram gosto pelo esporte que passou a ser jogado não apenas pelos filhos da elite, mas também, pelos filhos das famílias mais pobres que improvisavam uma bola e disputavam suas partidas em meio às praças e nos terrenos baldios espalhados pelos arredores da cidade. O cronista parnaibano era um apaixonado por futebol e torcedor do Internacional Athletic Club. Em sua crônica sobre o futebol parnaibano nar-

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ra que nos idos de 1922, sua família foi morar numa chácara vizinha do Internacional o que o aproximou mais ainda do clube, tendo inclusive a oportunidade de fazer parte “de seu quadro infantil”, narra detalhes sobre o time, onde um dos detalhes mais curiosos era a terminologia que era usada pelo time “era estritamente britânica. O goleiro era Goal-Kepper; os zagueiros, Fullbacks; os de meio campo, Halfs-backs; e os dianteiros, Fowards; impedimentos, Off-side; bola lateral, Out-side; início do jogo, Kick-off; o juiz, Referee; a entrada, Ticket; o jogo, Martch; e o campo, Field.” (REBELO, [s/d,] p.63). Assim como os parnaibanos, os teresinenses também se renderam aos encantos da bola, de acordo com o historiador Pedro Vilarinho Castelo Branco, “o futebol torna-se, por volta de 1918, a grande paixão esportiva dos teresinenses, surgem várias agremiações de footbalers na cidade e entre as quais podemos destacar: o Satélite, o Republicano, o Artístico, o Militar e o Palmeiras”, diferentemente do que acontecia em Parnaíba, “os jogos eram realizados principalmente nas praças e lagos, de forma improvisada e sem conforto para o público que ia assistir aos eventos esportivos” (CASTELO BRANCO, 2015, p. 24). Os teresinenses formaram a liga, e como era na capital foi chamada de Liga Piauiense de Esportes Terrestres, a criação da liga foi notícia na coluna esportiva do jornal A Imprensa de 15 de setembro de 1925, onde o cronista aponta o feito como um símbolo de progresso e civilização: Teresina civiliza-se, tem ânsias de progresso. Tudo que seja elevá-la, engrandecê-la tem hoje, sem discrepância, aprovação unanime não só da parte culta, como do povo em geral. Daí, a explicação do entusiasmo fe-

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bril com que foi saudada a ideia de um campeonato de Foot-ball entre os clubes da cidade, instituído pela liga piauienses de sports terrestres, novel associação a dias criada nesta capital (A IMPRENSA, 15/09/1925). No Brasil, aos poucos o futebol deixou de ser praticado, exclusivamente pela elite, e passou a ser “o esporte de maior aprovação no seio social brasileiro” (FONTINELES, 2010, p.111). Foram formados muitos times nas capitais e nas cidades que eram centro produtoras e com destaque comercial nas primeiras décadas de século XX. O historiador Antonio Paulo Rezende nos informa que em Recife, “o futebol despertou paixões, daí a fundação da Liga Esportiva Pernambucana para incentivar a sua prática, também em 1915, um ano depois do surgimento de dois times de futebol que se tornariam tradicionais e grandes adversários” (REZENDE, 1997, p. 58). Em Parnaíba na década de 1930, por exemplo, registramos a existência do “Guarani Sport Club, o Coroa, Fluminense, Remo, Paissandu, Flamengo” esses clubes eram formados nos bairros que ficavam nas imediações do centro da cidade. O time cujos membros eram filhos da elite comercial parnaibana, foi formado posteriormente e nas palavras do cronista foi um “glorioso time, o Ginasial- Comercial Futebol Club, cujo maior time de sua existência era formado do seguinte esquadrão: Walterdes Sampaio, Ari Uchôa, Goethe Pires, Alcyr Carvalho, Zé Sales, Souza Neto, Edison Sampaio, Gotardo Miranda, Dante Pires, Alberto Silva e Parentinho” (REBELO, [s/d], p. 62). Como podemos observar os nomes que compõem o “time glorioso” de nosso cronista, são filhos da elite parnaibana e estes nas décadas seguintes ocuparam cargos importantes na cidade


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e até mesmo no estado, como Alberto Silva que foi por duas vezes prefeito de Parnaíba e governador do estado do Piauí e Walterdes Sampaio que se formou em medicina e foi presidente do Ferroviário Atlético Clube.

sa Martins, s/nº; Paissandú Esporte Clube – Rua Coelho Rodrigues, s/nº; Primeiro de Maio Esporte Clube – Av. Alvaro Mendes, 8. (ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1943, p. 299).

A bola na Rede O futebol assim como outras formas de lazer, no início do século XX, invadiu o cotidiano dos brasileiros e em pouco tempo se consolidou como “esporte de multidões”. Na cidade de Parnaíba tinha se formado times que disputavam as partidas principais no campo do Internacional. Essa forma de lazer que a princípio era praticada apenas pela elite parnaibana se popularizou entre os operários da estrada de ferro que passaram a formar seu próprio time, o Ferroviário Atlético Clube. De acordo com a historiadora Lêda Vieira (2010, p.189) os ferroviários tinham muitas formas de lazer, onde o futebol era uma delas, “os ferroviários também se divertiam com os clubes de futebol criados por empresários ou esportistas interessados pelo desenvolvimento dos esportes. Na cidade de Parnaíba existiam muitos times de futebol [...]”. O Almanaque da Parnaíba (1943), aponta uma lista dos times existentes em Parnaíba, onde o Ferroviário já se fazia presente:

O Ferroviário Atlético Clube formado na década de 1940, teve como um dos principais incentivadores o médico da Estrada de Ferro Central do Piauí, Walterdes Sampaio, que assumiu para si a responsabilidade com a formação e manutenção da equipe. Como ocupava um cargo importante dentro da empresa e tinha boas relações na cidade, escolhia para participar do time os jogadores que se destacavam nos demais times e os convidava para trabalhar na ferrovia e fazer parte do time. Em Parnaíba, nesse período não tinha jogadores profissionais em geral os times eram compostos por trabalhadores que faziam, por meio do futebol, assim como aconteceu em São Paulo e em outras regiões do Brasil a “descoberta de uma vocação” (SEVCENKO, 2009, p.63). Essa vocação, em alguns casos, lhes permitia a conquista de um emprego que poderia ser nas casas comerciais ou empresas federais, como a Estrada de Ferro Central do Piauí, que empregou muitos jogadores de futebol para defenderem seu time. Um dos jogadores que foi convidado pelo presidente Walterdes Sampaio para fazer parte de sua equipe foi Raimundo Ribeiro Nascimento. Assim como muitos outros ferroviários piauienses ele tinha um apelido, Leiteirinho, foi como ficou conhecido entre os parnaibanos. Ao se recordar de sua história na ferrovia e no futebol numa entrevista concedida ao historiador João Batista de Oliveira Nascimento, ele faz o seguinte relato: “quando comecei a trabalhar na ferrovia já era conhecido assim, foi uma herança de seu pai que

Belga Futebol Clube – Av. 1º de Maio, s/nº; Brasil Futebol Clube – Ilha Grande de Santa Isabel; Casino 24 de Janeiro – Rua do Miranda, 3º; Corôa Futebol Clube – Rua São Bernardo, s/nº; Esporte Clube Fluminense – Av. Marechal Pires Ferreira, s/nº; Flamengo Esporte Clube – Rua Vera Cruz, s/nº; Ferroviário Atletico Clube – Praça Luiz Galhanoni, s/nº; Guarani Esporte Clube – Av. Marques de Paranaguá, s/nº; Parnaíba Esporte Clube – Rua Sou-

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se chamava João leiteiro, isso foi por ele ser administrador da fazendo de gado do Coronel Josias de Moraes Correia e distribuir leite de gado na cidade” (NASCIMENTO, 2013, p. 193). Mas, Leiteirinho não herdou do pai apenas o apelido, herdou também o gosto e a habilidade com a bola, “papai era jogador de futebol, era zagueiro do Fluminense. Ele era muito bom! Bom mesmo!! Eu sempre acompanhava ele nos jogos e nos treinos e ficava admirando e brincando nos arredores com outros meninos”. Leiteirinho, atualmente idoso, convive com os problemas de saúde, mas gosta de contar as histórias de sua vida, principalmente às relacionadas ao futebol, esporte que ele tem uma verdadeira paixão e que lhe rendeu seu primeiro emprego.

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Eu comecei a jogar futebol novinho, ainda criança, já rapazote eu jogava no Bariri no Alagoas Futebol Clube, na posição de ponta esquerda, o time era do Sargento Gerson. Na época o João Tavares da Silva era Presidente da Liga Parnaibana e presidente do Parnaíba Esporte Clube. Meu primeiro time oficial mesmo foi o Belga, se não me falhe a memória eu tinha entre 16 e 17 anos. Eu joguei pouco pelo Belga e fui para o Parnaíba a convite do senhor Antonio Gutemberg que falou com meu pai pra eu ir trabalhar na tipografia de sua Gráfica Comercial e jogar no seu time, o Parnaíba Esporte Clube. Ah!! Eu fui. Arrumei um emprego e jogar num time grande, lá eu era atacante. Depois veio o Doutor Walterdes e me convidou para trabalhar na gráfica da Estrada de Ferro e jogar no Ferroviário. Eu nem pensei duas vezes e aceitei logo. O Ferroviário era um time muito bom e já tinha ganhado muitos jogos. Joguei em muitos ti-

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mes, mas o Ferroviário foi o time da minha predileção. Nós era uma família, a família ferroviária. (NASCIMENTO, 2013). Na vida do Leiteirinho, futebol e trabalho estão entrelaçados. Quando criança o futebol era uma das suas brincadeiras favoritas, a brincadeira de criança lhe rendeu oportunidades de emprego e uma profissão, primeiro na Gráfica Comercial e depois na Gráfica da Estrada de Ferro Central do Piauí, quando se tornou um “ferroviáriojogador”, emprego que lhe ajudou a alimentar e educar sua família e de onde ainda hoje retira seu sustento, por meio de sua aposentadoria. Sobre a participação do Doutor Walterdes Sampaio no futebol parnaibano e seu compromisso com o Ferroviário Atlético Clube e seus jogadores, o historiador João Batista Nascimento afirma que: Médico efetivo da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) e um dos melhores clínicos da cidade foi, em vida, o maior gestor futebolístico do querido “trem”, outro adjetivo carinhoso dado ao seu Ferroviário. Não se tomava decisões ou deliberações sem consulta prévia ao Dr. Walterdes porque ele se preocupava com a efetiva administração de seu Clube, desde a contratação (amadorismo marrom) até a vivência cotidiana de seus jogadores. Era comum o uso de sua influência na Diretoria da Estrada de Ferro Central do Piauí (EFCP) para arranjar emprego, com oficial registro de trabalho para seus atletas (NASCIMENTO, 2013, p. 114). Vicente de Paula Araújo Silva também era jogador de futebol e trabalhava na Casa Inglesa foi convidado pe-


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lo Doutor Waletrdes para integrar o Ferroviário e trabalhar na ferrovia na década de 1960. O entrevistado, afirma que, “venho de uma família de ferroviários, meu pai, Sebastião Lauro da Silva, assim como outros ferroviários também tinha um apelido, Icão, era ferroviário e irmãos, filhos que trabalhavam na ferrovia”. Seu pai, que também fazia parte do time era assim como ele, um apaixonado pelo futebol e em especial pelo time da empresa na qual ele trabalhava. Eu entrei por causa da influência do meu pai, que já trabalhava lá e como eu jogava futebol e trabalhava na contabilidade da Casa Inglesa, a oportunidade de ganhar mais lá era praticamente três vezes mais o que eu ganhava trabalhando na contabilidade da Casa Inglesa. Aí eu trabalhava somente um expediente e praticamente era só pra jogar futebol. Eu jogava no Ferroviário. Eu era aspirante de vez em quando eu jogava no time titular e eles achavam que eu tinha futuro como jogador de futebol e por influência do papai, o Doutor Walterdes me contratou para trabalhar na Estrada de Ferro, mas logo quando esse Capitão dos Portos invadiu a estrada fui logo demitido porque eu não era funcionário efetivo, era servidor contratado. Então, foi uma passagem rápida pela Estrada de ferro, mas minha família foi uma família de ferroviários (SILVA, 2014). A narrativa do entrevistado é esclarecedora por dois motivos: primeiro por informar que quando se tinha um parente trabalhando na ferrovia aumentava as chances de emprego aos demais membros da família, segundo por mostrar como o futebol promovia uma mobilidade entre os trabalhadores da cidade, uma vez que os times contratavam

os jogadores que trabalhavam nas empresas e esse contratado implicava na mudança de emprego. O narrador era funcionário da Casa Inglesa e passou a ser ferroviário ao ingressar no Ferroviário Atlético Clube. Outro ferroviário que também guarda na memória as recordações do futebol em Parnaíba é o senhor Newton Pereira Costa. Para este ferroviáriojogador o que mais lhe marcou como ferroviário não foi o trabalho na oficina, mas os jogos que ele disputou com os colegas de trabalho. O que mais me recordo da ferrovia foi de muita bola que joguei pelo Ferroviário. Fiz muitos amigos lá! Quando eu fui jogar bola eles nem queriam que eu jogasse, eu era garoto e era magrinho. [...] Eu tinha um primo que me dava à chuteira dele do pé esquerdo para eu jogar. Depois eu mandei fazer uma chuteira para mim, naquele tempo era muito jogador, hoje em dia ninguém ver mais o povo jogar bola. Eu joguei em muitos lugares, onde era a Escola Normal era campo, na frente da Santa Casa dia de domingo. [...] Nós jogava porque gostava de jogar, não era pra pagar ganhar dinheiro [...] (COSTA, 2013) (grifo nosso). As recordações de entrevistado revelam os campos improvisados onde o futebol era praticado como uma forma de lazer, os amigos com quem conviveu e disputou animadas partidas de futebol também fazem parte de suas lembranças, dentre eles estão: “Palanqueta, Leiteirinho, Raimundo Rasga, Cafuringa, Ição, Vicente Rasga, mas tinham outros eram muitos jogadores, eram muito bons, muitos eu nem sei do nome, só sei do apelido”. Os ferroviários “faziam dos apelidos formas de brincadeiras e de “quebrar o gelo” [...] No entanto, nem

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sempre eram levados na “esportiva” por quem os recebia, especialmente quando eram pejorativos ou de baixo calão” (VIEIRA, 2010, p. 191). A sede do Clube dos Ferroviários na Avenida São Sebastião era o local onde eles se reuniam com os amigos e seus familiares para festejar suas vitórias e outras comemorações, como a data da inauguração, carnaval. O Clube tinha uma presidência que era eleita pelos sócios, tinha um regulamento que definia os direitos e os deveres dos sócios. A escolha do presidente e dos demais cargos ocupados dentro do clube se dava por meio de eleições que contava com a participação dos sócios que também eram os eleitores. Os sócios tinham uma carteira onde eles eram identificados como Atletas. A eleição do Clube era notícia ocupava páginas dos jornais locais, como o jornal Folha do litoral em 02 de junho de 1976 informa aos parnaibanos sobre a um eleição realizada para escolha da nova diretoria, “a qual compareceu [sic] 437 ferroviários, sendo que 282 deram o seu voto a chapa encabeçada pelo Sr. João de Deus Spíndola, que recebeu o apoio da União dos Ferroviários do Brasil, e 149 apoiaram o Sr. Manuel Mesquita de Araújo, com uma diferença por tanto para o primeiro de 139 votos” (FOLHA DO LITORAL, 1976, p. 03). A chapa vencedora tinha como presidentes de honra os médicos Walterdes Machado de Sampaio, Carlos Araken Correia Rodrigues e o jornalista Bernardo Batista Leão. Os ferroviários tinham muito apreço pelo Doutor Walterdes Sampaio e procuravam demostrar dando a ele o cargo de Presidente de Honra do Clube, uma forma de reconhecimento e retribuição pela dedicação do médico ao futebol ferroviário. Para o Senhor Raimundo Nonato Mesquita de Araújo, ferroviário e eleito um dos presidentes

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do Clube, “o Ferroviário foi fundado em 1946 pelo Doutor Walterdes, Doutor Godofredo e o Sebastião da Silva conhecido como Ição, esses aí foram os principais, “os cabeças” do Ferroviário. Mas a Estrada de Ferro dava muito suporte ao Clube” (ARAÚJO, 2014). As lembranças dos ferroviáriosjogadores são formadas por acontecimentos, personagens e lugares como sugere Michael Pollak (1992) ao se referir aos elementos constitutivos da memória individual ou coletiva. Os locais onde disputavam as partidas, as pessoas com as quais conviveram e apontam como “cabeças” do time estão presentes em suas recordações e formam uma “memória subterrânea” do grupo a que pertenceram e com o qual se identificam. Quando se referem ao grupo é como “família ferroviária” que eles se identificam. Esse sentimento de pertencimento a um mesmo grupo ou uma família demostra o elo de união existente entre os ferroviário-operários fortalecido pelo futebol, pois ao entrarem em campo ele levavam consigo o sentimento de unidade, onde cada um era responsável pelo outro. Formavam um time dentro e fora da ferrovia, pois pertenciam a um grupo determinado, diferenciado dos demais pelas atividades que desempenhavam e pelo lugar de destaque que ocupavam dentro do campo, onde disputavam as partidas de futebol aos finais de semana. A semana era dedicada ao trabalho. Considerações finais O futebol que foi introduzido no Brasil por filhos da elite que iam estudar na Europa, no Piauí, especialmente em Parnaíba, na primeira metade do século XX passou a significar uma oportunidade de emprego, mudando a vida de muitos jovens que por demonstrarem habilidades com a bola tiveram oportu-


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nidades de trabalho e renda. Não que existissem jogadores profissionais, mas aqueles que se destacavam em campo eram convidados para integrarem os times das empresas que apoiavam e incentivavam a pratica desse esporte. No Piauí os ferroviários formaram um time que recebeu apoio da empresa que permitia a contratação de funcionários para trabalhar e defender seu time. Esses homens trabalhavam no comércio da cidade e estavam ligados aos pequenos times existentes em Parnaíba entre as décadas de 1940 a 1950 quando foi frequente essa pratica pelos dirigentes do Ferroviário Atlético Clube. O “Esquadrão da Central ou Ferrim” como ficou conhecido teve construída sua sede na Avenida São Sebastião, próximo da estação central, onde os ferroviários se reuniam para as festas que reuniam a “família ferroviária”. Festas como o carnaval ficaram famosas e foram por muito tempo endereço certo de muitos foliões. Entre os dirigentes o que mais marcou a memória dos ferroviáriosjogadores foi o médico da estrada de ferro, Walterdes Sampaio, apaixonado por futebol foi um incentivador do esporte entre os ferroviários, cujo time ele fazia questão de escolher dentre os melhores da cidade aqueles que iam entrar para sua equipe. Os escolhidos tinham emprego garantido e passavam a fazer parte da Estrada de Ferro Central do Piauí, uma das maiores empresas federal existente em Parnaíba no período em destaque. O futebol que a princípio foi apenas uma brincadeira para muitos parnaibanos era uma coisa séria, pois poderia garantir uma vaga num emprego ou a possibilidade de um emprego melhor, com melhores condições de trabalho e um aumento salarial.

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Fernando Emílio Alves dos Santos

UM OLHAR SOBRE OS ESTIVADORES: Os modos de organizações do trabalho e a construção do seu processo identitário em Parnaíba - PI (1995- 2016). Fernando Emílio Alves dos Santos1

Resumo Este artigo tem como objetivo compreender os modos de organizações dos trabalhadores da estiva em Parnaíba/ PI, no seu universo de trabalho. Analisando o processo identitário a partir do referencial teórico de identidade de classe, utilizando como base teórica a história social (THOMPSON. 2011). Metodologicamente trabalhando com fontes documentais e analisando o cruzamento de fontes orais. O artigo divide-se da seguinte forma: „„Estivar para (sobre) viver‟‟; „„Saindo da „„margem‟‟, modos de organização de trabalho e o processo de identidade de classe do que é „„ser estivador‟‟ e „„ Conclusão‟‟. Palavras-chave: História; Identidade; Trabalho.

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Abstract This article aims to understand the modes of production workers in the stevedoring in Parnaíba/ Pi, in their universe of work. Analyzing the identity Process from the theoretical framework class identity using as theoretical basis the social history (THOMPSON. 2011). Methodologically working with documentary sources and analyzing Crossing Oral sources. The article is divided as follows: „„Estivar (to) over living‟‟; „„Leaving the „„margin‟‟, work organization and process of class identity that is being stevedore‟‟ and „„Conclusion‟‟. Keywords: History; Identity; Work.

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Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.

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Estivar para (sobre) viver A palavra estivar significa serviço de movimentação de carga a bordo de navios nos portos, desde quando se passou a utilizar as embarcações como transporte de cargas existiam pessoas que auxiliavam nesse serviço. No entanto os serviços da estiva só foram regulamentados no Brasil no ano de 1943, através da Consolidação das Leis de Trabalho, no decreto da lei de n° 54521. Procura-se mostrar nesse trabalho a simbologia do estivador, cujo teve início a sua profissão ligada ao porto, que historicamente é preenchido por sujeitos pouco aceitáveis pela sociedade, como as lavadeiras de roupas, as prostitutas, os pescadores, os vareiros entre outros que habitavam a zona portuária2, é preciso ter um olhar minucioso e uma ampla bibliografia referente ao modo de vida e de trabalho dos sujeitos que habitavam esse universo. É importante analisar aspectos da cultura operária portuária como o trabalho, o lazer e a economia, para entender o modo de vida daqueles que antes habitavam a margem, e que agora exploram outros lugares em busca da sobrevivência. O recorte cronológico é de (1995 – 2016) utilizando o depoimento do estivador mais velho confrontando-o com fontes e dados, analisando os modos de organizações desses trabalhadores e sua identidade de classe forjada ao longo dos anos. Os estivadores na cidade de Parnaíba tem um papel importante sobre a sua economia, pois é através desse grupo de trabalhadores que as mercadorias são carregadas e descarregadas. Todavia é necessário analisar o papel das trans1

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del5452.htm Acesso em: 07/03/2016. 2 Para mais informações ver: MORAIS, Erasmo Carlos Amorim. Uma história das Beiras ou nas Beiras: Parnaíba, a cidade, o rio e a prostituição (19401960). Parnaíba: Sieart, 2013.

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formações na classe através do tempo, analisando tanto a economia parnaibana que gerou diversos empregos, como a beira do cais, seguindo para a ferrovia e atualmente espalhando-se pela cidade. A princípio a economia parnaibana era alimentada pelo Rio Igaraçu, era por lá que as mercadorias iam e vinham e o comércio passava a fluir. Vejamos algumas das mercadorias que circulavam na cidade: Diante disso podemos afirmar, com base na documentação da época, que na primeira metade do século XX Parnaíba passou por mudanças significativas no seu espaço urbano, transformações percebidas principalmente a partir de incremento produtivo de importação e exportação de produtos de origem extrativista, onde pelo porto das barcas eram exportados o látex da maniçoba, a amêndoa do babaçu e a cera da carnaúba. Além destes, produtos como o algodão em pluma, pele de cabra, arroz pilado, couro, cera de abelha, sebo animal, banha de porco, tucum, mandioca, sal e mamona, marcaram o cenário exportador da região (MORAIS, 2015. p.24). As atividades do porto estavam em alta, o comércio naquele local era fervoroso. Como podemos notar no texto acima a diversidade de mercadorias que eram comercializadas, os armazéns ficavam abarrotados de produtos, e quando comercializados ficavam expostos à beira do cais, prontos para serem transportados para as embarcações, „„ali na frente, uma pilha de sacos de cereais parece querer impedir o tráfego de aviões, acolá uma fila de homens corta em linhas sinuosas uma boa distância para vir depositar fardos de algodão em grandes alvarengas ao cais” (ALMA-

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NAQUE DA PARNAÍBA, 1938, p.71), ainda sobre o trabalho árduo: [...] Dois „„titans‟‟, junto a um lote de fardos de algodão fazem uma demonstração despretensiosas de suas musculaturas. Estão afeitos aquele serviço. Suarentos, sujos, dizendo graçolas, músculos de aço contraídos pelo esforço violento ao levantar os fardos de 200 quilos, não se deixam, entretanto, abater pela fadiga do labor nem pela ardência do sol [...]. (ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1938, p.71).

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Pode-se observar no documento o quanto era indispensável a presença dos estivadores, pois estes eram os responsáveis pelo deslocamento das mercadorias dos transportes para os armazéns e dos armazéns para os transportes3. Vejamos o relato de Renato Castelo Branco sobre o cotidiano desses trabalhadores na década de 1930: [...] E entre as sacas e os armazéns, fervilhavam os estivadores, a catraia, os vareiros, os embarcadiços, só de tangas, pés descalço, tronco nu, uma faca de marinheira pendurada na cintura, ou um grande punhal, o “espin”, que é sua arma, seu companheiro, seu tudo. À cabeça levavam um saco de estopa, ora em carapuça para proteger do sol e da chuva, ora em “rodia” para amortecer o peso das cargas. E 3

Para (MENDES, 2008, p. 71) [...] a cidade de Parnaíba, paulatinamente, transformou-se no grande empório comercial do Piauí, com dezenas de casas de representações, comissões e consignações de firmas nacionais e estrangeiras; construção de armazéns para estocagem de mercadorias, surgimento de associações profissionais e sindicatos e trabalhadores, ligados á atividades marítimas e comerciais e até mesmo um núcleo de despaches aduaneiros para o desembaraço de mercadorias importadas.

entre essa população, inquieta , brincalhona , debochada , passava em manga de camisa os empregados dos escritórios, lápis atrás da orelha, caderninho na mão, contando as mercadorias, controlando as sacas transportadas pelos estivadores das barcas para os armazéns, dos armazéns para as barcas. (BRANCO, 1981. p. 20) Os estivadores que margeavam a beira do cais eram comuns, trabalhavam para seu próprio sustento, eram predominantemente homens, que „„ao cair da tarde, terminadas as descargas, vinham àqueles homens estirar-se no largo passeio do estabelecimento e á sombra dele as mãos cruzadas por baixo da cabeça trocando pilhérias grosseiras (...)” (CAMPOS, 1983.p. 306307). O sistema das atividades operacionais do porto necessitava de dois tipos de estivas, a terrestre e a marítima. „„Do caminhão para o cais do porto, até a metade da rampa, funcionava a terrestre; e dessa metade da rampa a embarcação, a marítima. Havia assim duas estivas, e a relação da firma com elas não era amena‟‟ (REGO. p. 108). Ambas eram pagas por toneladas e havia um supervisor pago pelos demais. Ainda sobre os aspectos de cada estiva (REGO, 2010.p. 108-109) dar seu parecer: [...] a estiva que seguia na embarcação era parte da estiva marítima. Esta era paga pela empresa que fazia o transporte da carga de Parnaíba para o porto marítimo. Dentro dessa força de trabalhadores não existia diferenças hierárquicas formais, mas de fato os encarregados privilegiam os mais dedicados e competentes nos seus ofícios. Não

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havia estrangeiros nos trabalhos braçais [...]. Outro meio de transportar as mercadorias durante anos na cidade de Parnaíba foi o trem. Foi através dele que as mercadorias passaram a ser escoadas para o interior. A primeira linha férrea interna da cidade começou a ser instalada a partir da Rua Grande; atualmente Av. Getúlio Vargas4, partindo do Porto das Barcas em direção a principal linha férrea localizada na Esplanada da Estação, essa construção tinha como objetivo facilitar a locomoção por terra dos materiais imprescindíveis para a instalação da via permanente. A ferrovia levava até o porto marítimo mercadorias que eram produzidas internamente5, um complementaria o outro, e as mercadorias que chegassem através do porto eram descarregadas até o trem, seguindo seu destino. O constante deslocamento de mercadorias aumentava seus preços, pois utilizaria a estiva a todo instante, em 1941 surgem sindicatos6 na cidade de Parnaíba relacionados à navegação e que tiveram apoio da Associação Co4

Anteriormente recebeu a denominação de Rua Grande e Avenida João Pessoa. Era a via que ligava o Porto à estação de trem. A mudança do nome para Getúlio Vargas foi uma homenagem a este Presidente. 5 O Piauí, apresentando uma economia favorável no setor primário e terciário, primeiro pelo extrativismo e segundo pelo comércio. Assim a necessidade de uma ferrovia para essa região era indispensável para o desenvolvimento e crescimento do Estado, o período ferroviário teve seu inicio em 1922. 6 Alguns dos sindicatos existentes: Sindicato dos oficiais de máquinas dos motoristas e dos condutores em transporte fluviais do Estado do Piauí, Sindicato dos foguistas, Sindicato dos práticos, anais e mestres de cabotagem, Associação profissional dos operários e carpinteiros navais , Sindicato dos marinheiros, moços e taifeiros, Sindicato dos trabalhadores de armazéns e trapiches, entre outros. (ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1941).

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mercial de Parnaíba7, entre eles estavam o Sindicato dos Operários dos Estivadores. Os comerciantes se queixavam da estiva sindicalizada cujo era amparada pela legislação trabalhista, observa-se: A lei ferroviária, no que concernia à estiva, obrigava o uso de três grupos de estivadores: Um para a descarga de gênero do trem para o chão, outro do chão para o veículo transportador – caminhão – e um terceiro para a descarga do caminhão para o armazém do destinatário, o que tornava essa forma de transporte antieconômica, pois no caminhão havia um carrego na origem (onde não havia fiscalização da estiva) e a descarga no armazém do destinário. Os exportadores e industriais não podiam ter sua estiva interna, sendo obrigados a utilizarem a estiva sindicalizada. O mesmo se dava na estiva terrestre e marítima no transporte fluvial de exportação. A burocracia representava um auto custo no manuseio dos materiais. (REGO, 2010.p. 121). Quando esses dois meios de transportes, tanto o fluvial quanto o ferroviário, começaram a entrar em decadência, um pela inviabilidade do Rio Igaraçu e o outro pela falta de investimentos que acarretou o seu sucateamento e em seguida o seu declínio, os trabalhadores do cais tiveram que seguir novos rumos, e com os operários da estiva não foi diferente, desamparados pela falta de serviços, estes buscavam agora explorar novos lugares economicamente ativos na cidade 7

A Associação Comercial de Parnaíba foi uma das mais atuantes em prol de melhoramentos para o Estado e a primeira reunião da classe comercial de Parnaíba que legitimou sua fundação ocorreu em 28 de janeiro de 1917.

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de Parnaíba, percebe-se que geograficamente estes trabalhadores saíram da margem, mas na historiografia local eles ainda permanecem. Os estivadores são um conjunto de individualidades que juntos formaram uma classe social. Segundo (SILVA. 2015 p.53), que relata processos organizacionais no qual estivadores passaram ao longo do tempo, trazendo a tona documentos do Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, também conhecido como „„almanaque Larmmert8‟‟ que em sua edição 1921-1922, deram conta da existência na cidade de Parnaíba, da „„Sociedade União dos Estivadores‟‟. Outro fato marcante que evidencia a união dos estivadores junto com outros sindicatos9 foi à luta por seus direitos durante a ditadura civil militar, Franco (2014.p 72) procura mostrar a organização e a resistência destes sindicatos destacando a BNM n° 349: Foi fundado pelo líder estivador TIAGO JOSÉ DA SILVA um Comando Geral dos Trabalhadores, conhecido pela sigla CGTP, ou vulgarmente “Cegetesinho”, intimamen8

III Vol, “Estados do Norte”. p. 3910. Outros sindicatos que lutaram por seus direitos: Sindicato dos Estivadores no Estado do Piauí; Federação dos trabalhadores em Transportes Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos Foguistas Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos Operários e Carpinteiros Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Parnaíba; Federação dos Trabalhadores nas Indústrias do Estado do Piauí; Sindicato dos Contramestres, Marinheiros, Moços e arrumadores Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos oficiais de Máquinas, Motoristas e Condutores em Transporte Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos Trabalhadores em Oficinas Mecânicas de Parnaíba; Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Preparação de Óleo Vegetal e Animal de Parnaíba; Sindicato das Indústrias de Construção e do Mobiliário do Estado do Piauí; Sindicato dos Contabilista do Estado do Piauí. 9

te ligado ao CGT Nacional, pois recebia instruções do Sr. RAFAEL MARTINELLI e tinha conhecimento da greve geral que seria deflagrada em todo o País. Orientado pelo Engenheiro ALBERTO SOLHEIROS, Superintendente da Estrada de Ferro Central do Piauí (EFCP), atualmente foragido, foi deflagrada uma greve entre os ferroviários daquela autarquia, em sinal de protesto pelas prisões de inúmeros ferroviários, notadamente os da Guanabara. A greve em questão foi iniciada na tarde de 31 de março último, mas não teve prosseguimento em face dos acontecimentos políticos da época. Sob a orientação do Sr. JOSÉ ALEXANDRE CALDAS RODRIGUES, exprefeito e deputado com o mandato cassado, e participação direta do SR TIAGO JOSÉ DA SILVA, houve uma assembléia Geral de Todos os Sindicatos de Parnaíba, para a deliberação de uma passeata em apoio ao ex-presidente João Goulart. O que se pode perceber no parágrafo acima é que o processo de identidade dos estivadores foi sendo moldado em diferentes tempos históricos, mas com objetivos em comuns, ou seja, seus direitos. Seja em 1921-1922 com a então ascendente „„Sociedade União dos Estivadores‟‟, ou na época do regime militar em 1964, essa classe unia-se. Saindo da „„margem‟‟, modos de organização de trabalho e o processo de identidade de classe do que é „„ser estivador‟‟. Atualmente no ano de 2016 os estivadores estão divididos estrategicamente nos lugares onde os armazéns comerciais precisam de sua força de

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trabalho. As turmas 10 estão espalhadas do norte ao sul da cidade, ou seja, desde a rodoviária ao centro, cada região tem sua peculiaridade comercial, que vai desde materiais de construção, setor comercial de móveis, produtos agrícolas e etc. Segundo Pedro Silva, também conhecido como „„cara branca‟‟, 23 anos de idade e há três anos no sindicato, é um dos estivadores que se enquadra nesse contexto, ele fala com convicção sobre o sistema estrutural e organizacional dos operários estivadores, sobre as divisões das turmas ele dar seu parecer: - „„As turmas; são divididas em três turmas aqui na rua, são Corrêa, Shell e Rodoviária, sendo em cada turma dessas tendo um homem a mais, Corrêa são dose homens, Shell parece que são 15 e rodoviária 16‟‟.11 A história oral considera que a história abrange a todos, e que todas as experiências individuais são, por isso, históricas. Assim, prestigia o sujeito, qualquer sujeito, tão significativo quanto outro, dentro de seu grupo, como agente histórico. Em nenhuma comunidade de destino há indivíduos mais importantes ou emblemáticos que outros, são o caso dos estivadores, cada um tem o seu valor, fazem parte da história, inserindo-se de acordo com suas narrativas pessoais. Lucien Febvre (1989, p. 249), por exemplo, afirma que „„A história pode fazer-se, ela deve fazer-se sem os documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe usar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais‟‟. Pode-se perceber que cada turma tem seus respectivos nomes, a „„turma 10

Conceito utilizado pelos próprios estivadores para identificar o grupo de operários de cada localidade. 11 SILVA, Pedro. Depoimento concedido a Fernando Emílio Alves dos Santos, 27 de janeiro de 2016, Parnaíba- PI.

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Shell‟‟ tem origem de um antigo posto de gasolina localizado no bairro da Guarita, local onde essa turma encontra-se, já a „„turma da rodoviária‟‟ é encontrada nas imediações da rodoviária da cidade de Parnaíba, cujo abrange o bairro com o mesmo nome. A „„turma da Corrêa‟‟ é localizada no centro da cidade, seu nome se originou da Rua Francisco Corrêa. Ainda existe a turma do Elizeu, essa turma foi desconsiderada por Pedro Silva, mas ela também faz parte do sindicato, tem esse nome por ser terceirizada por uma empresa do ramo alimentício. Juntamente a essas turmas existe o Gango, que é um conjunto de homens que um dia foram estivadores sindicalizados e por algum motivo saíram, e que também conta com aqueles que nunca tiveram o interesse de se sindicalizar. Não há disputa comercial com esses homens, pois estes tem plena consciência que o serviço é primeiro designado ao sindicato, quando não há turmas de estivadores sindicalizados disponíveis para ser deslocados aos armazéns, ou por estarem ocupados ou por escassez de homens, o Gango assume o serviço ou complementam o restante de trabalhadores designados para o serviço. Cada localidade tem sua peculiaridade comercial, são cercados de pequenos comércios, micro empresas e armazéns, mas prevalecem alguns setores. O Bairro Rodoviária, por exemplo, é cercado por comércios de materiais de construções, na Guarita, além disso, existem transportadoras e armazéns de produtos agrícolas, no Centro da cidade prevalece o setor comercial de grandes e pequenas lojas do setor moveleiro, cada turma de estivadores fica responsável pela abrangência de sua área. Quando os caminhões de mercadorias chegam ao seu destino, o arma-

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zém se encarrega de solicitar o capataz12 da turma local, este encaminha ao local os operários da estiva, ou seja, homens suficientes para a quantidade de serviço. Dentro de cada turma não existe hierarquia, porém o estivador pode se identificar ou ter mais habilidades em uma determinada função, assim seu trabalho é mais voluntarioso, agilizando o descarregamento ou carregamento de determinado depósito em pouco tempo, podendo pegar outros serviços no mesmo dia. A divisão do operariado fica a cargo de suas habilidades, podendo ser trabalhador de linha; responsáveis pelo deslocamento das mercadorias do transporte ao armazém, batedor; estes colocam a mercadoria na cabeça do trabalhador de linha, facilitando seu trabalho, loteiro; fica a cargo de receber a mercadoria dentro do armazém através do trabalhador de linha, organizando e loteando a mercadoria nas suas devidas proporções e por último costurador; quando necessário, fica responsável pela costura das sacas. Pela diversidade das atividades a serem exercidas e por preencherem espaços diferentes da cidade, é grande a quantidade de homens que logo pela manhã colorem as ruas de azul rumo ao trabalho. O estivador é motivado pelo trabalho, mesmo que ele seja mais intenso do ponto de vista físico, existe a empolgação pelo mesmo. O operariado da estiva é facilmente distinguido de outros profissionais, por usar a farda azul, as botas que é algo obrigatório no trabalho, e seu boné que segundo (HOBSBAWM, 2014.p.337) é o símbolo internacional do proletariado e que serve para amortecer o peso das mercadorias.

A primeira etapa do trabalho se refere a todos os estivadores comparecerem ao sindicato, para poder ver a sua chamada, isso é devido a um sistema de rodizio que ocorre entre os trabalhares e a turma. Segundo Pedro Militão13, que tem cinco anos de sindicato, a chamada é feita pelo presidente e o tesoureiro. A partir dai os estivadores partem para as turmas que foram alocadas de acordo com o seu número de chapa. O Sindicato dos Arrumadores no Comércio Armazenador e Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral, MMG de Parnaíba, foi fundado em 27 de agosto de 1944 e reconhecido em 04 de dezembro de 1945, é popularmente conhecido como sindicato dos estivadores, onde se tornou um refúgio para aqueles que estão desempregados, a procura de um novo meio de vida, segundo Pedro Silva: Rapaz o sindicato na minha vida mudou, mudou muitas coisas, mudou que já estou conseguindo minhas coisas através do sindicato, estou tendo meu dinheiro todo santo dia, estou tendo meus bens, meu alimento; o principal né? Está dando. Minha casa desmanchei, a casa da minha mãe, estamos fazendo uma casa nova , e só melhoras a cada dia. O sindicado, como é que posso falar? é uma forma que muita gente quando está desempregado procura ele, por que é um meio de vida fácil , e que a pessoa todo dia ganha seu dinheiro ,e como eu posso explicar mais ? A pessoa trabalha todo dia , quando chegar o fim da tarde o apurado do dia é dividido entre a turma que trabalhou,

12

A função do capataz é manter o diálogo entre a estiva e o sindicato, a estiva e os empresários, os empresários e o sindicato, além de negociar os valores e fiscalizar a sua turma.

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MILITÃO, Pedro. Depoimento concedido a Fernando Emílio Alves dos Santos, 28 de janeiro de 2016, Parnaíba- PI.

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sendo tirando 15% para o sindicato e o restante divido para a turma. Observa-se que a remuneração do dia retira-se 15%14 para o sindicato, o resto é dividido pela turma que está trabalhando e isso inclui o presidente do sindicato15. Em seu livro, José Candido Filho toma para si o seguinte comentário de Karl Lowenstein quando o assunto são as organizações econômicas e financeiras utilizadas pelo sindicato para manter seus fins:

acontece de a turma ficar parada e sem serviço e o dinheiro apurado apenas por aquele que trabalhou será dividido para todos. Como o trabalho é por produção, se torna instável a remuneração por dia, visto essa problemática, Pedro Militão tenta arranjar uma solução: É por que ai o cara, vamos supor, a gente trabalha por diária não trabalha? E por produção né? Se tiver, se tiver (serviço) o cara ganha né, se não tiver ai tu não ganha. Diária e produção, por que se combinasse dava para fazer tipo assim: - Negada vamos supor (que eu seja um diretor) aqui, vocês recebem o dinheiro de vocês todo dia né? Vamos tentar organizar aqui um acordo bom, vamos supor todo dia a gente vai tirar um pouquinho de vocês, pra quando não der, ou então final de mês, embora que o mês dê fraco (pouco trabalho) vamos supor, se der trinta, ai tira dez, se der cinquenta, tira vinte, entendeu? Que é para final de mês o cara, mesmo que não aceitasse, „‟não num sei o que‟‟ (imitando alguém descontente com a proposta), não lá na mão dele está mais seguro, na tua mão não está seguro, o cara já fica sabendo que uma coisa esta certa lá no final do mês (a remuneração).

O sistema como foi planejado e no pouco até agora realizado é denominado por um paternalismo estrito e decidido e não deixa nenhum espaço para um futuro desenvolvimento de um movimento operário independente. Mantêm-se as organizações sindicais sobre uma exploração desavergonhada das massas assalariadas. O patrimônio formador por eles (art. 548 da CLT) compreende: a) a contribuição sindical (imposto sindical); b) as mensalidades dos associados; c) os bens e valores adquiridos e as rendas produzidas pelos mesmos; d) as doações e legados; e) as multas; f) a reversão ao sindicato de parte de aumento salarial por ele conseguido mediante atividade coletiva. (FILHO, 1982 p. 182). O estivador também pode ser solicitado individualmente, visto a necessidade do trabalho, mas muitos costumam não gostar, pois geralmente 14

Porcentagem destinada à manutenção do espaço físico do sindicato, como pagamento de contas de água, luz, telefone, manutenção das máquinas de costuras, pericia entre outros. 15 Art.272- Revogado pela Lei nº 8.630, de 25.2.1993. http://www.soleis.com.br/ebooks/TRABALHISTA62.htm Acesso em: 02/ 03/2016.

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A divisão interna do sindicato é composta pelo presidente, vicepresidente, tesoureiro e diretor, o sindicato abre ás seis horas da manhã e ás sete horas os trabalhadores pegam suas chapas, o final do expediente só acaba quando a última turma prestar as contas. Edílson16, que tem vinte um anos de sindicato, mostra que: 16

Edílson, Depoimento concedido a Fernando Emílio Alves dos Santos, 30 de janeiro de 2016, Parnaíba- PI.

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De seis horas, quando nós chegamos para atender a chapa, ai sai todo mundo, e os chefes ficam até onze, onze e meia, ai abre uma hora, ai vai até quando a derradeira turma prestar conta, para fechar também não tem hora, até a última turma esperando, tanto ele (presidente) quanto o tesoureiro. Para Edílson, que entrou no sindicato em 1995, alega que antes as paredes eram de tijolos comuns, no caso do teto, era melhor está no meio da rua do que dentro do sindicato por medo de desabar, o piso era „„morto‟‟, segundo ele, a estrutura física do sindicato só foi melhorando cada vez mais, quando Zé Maria assumiu o cargo da presidência: Foi depois que o Zé Maria entrou, lá atualmente tem uma garrafa de café cheinha, tem o freezer, eles lhe recebem bem. O tesoureiro o quarto dele é aqui, a sala fria que nós chamamos é a sala com computador e tudo, o salão de reunião pega cento e poucas pessoas, é um casarão todinho, tem a cozinha e tem uma sala para guardar camisas, botas e coisas assim.

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Muitos são os fatores que trazem a identidade17 dos estivadores á tona, por exemplo, sua razão social, saúde, local de moradia, cargo ou função dentro da estiva. Seu próprio trabalho vai se amarrando e moldando sua vida, além disso, o trabalho na maioria dos depoimentos é lembrado com gosto, motivo de orgulho, ele compõe uma parte da identida-

de desses sujeitos, pela própria sensação de pertencimento a um espaço social. O trabalho vai marcando o corpo (pela saúde desgastada) 18 e a consciência dos sujeitos, e isso influência na maneira de se expressar, de refletir e de transmitir as memórias através de suas falas. Fromm (1964, p.48), na sua leitura dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Karl Marx, compreendeu que: O trabalho é a expressão própria do homem, uma expressão de suas faculdades físicas e mentais. Nesse processo de atividade genuína, o homem desenvolve-se a si mesmo, torna-se ele próprio; o trabalho não é só um meio para um fim – o produto – mas um fim em si mesmo, a expressão significativa da energia humana; por isso, pode-se gostar do trabalho. As experiências desses estivadores no ambiente de trabalho também são marcadas por momentos de descontração entre os colegas, principalmente quando fazem dos apelidos de cada um as brincadeiras, e muitos acabam por ser batizados e conhecidos através disso. Dentre os apelidos destacam-se: Pedro Cara Branca, Edílson Bigode, Denílson Caju, Guaxinim, Dezenove, Macaco, Cachorrão, Louva – Deus, no entanto esses apelidos nem sempre são levados na brincadeira por quem recebe principalmente se forem pejorativos ou de baixo calão. Ao analisar essa classe social formada por operários da estiva, percebemse então diversos conflitos entre os trabalhadores e as empresas que os contratam, como sua remuneração; que é pelo peso da tonelada e isso varia de acordo

17

Pollack também define a identidade como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação e também para ser percebida da maneira que quer por outros.

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Muitos carregam para toda vida as marcas do serviço no corpo, cicatrizes, insolação, problemas nos ligamentos dos membros superiores e a tão temida hérnia, ocasionada pelo excesso de força, consequência de seu trabalho árduo.

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com o salário mínimo, nota-se claramente o motivo do aumento no contrato destinado a um Armazém: Pelo presente devidamente assinado, eu, JOSÉ MARIA DE AGUIAR NUNES, Presidente do Sindicato dos Arrumadores de Parnaíba, obedecendo a Medida Provisória editada ao dia 23 de Dezembro de 2009, reajuste do Salário Mínimo o qual passa a vigorar a partir do dia 01/01/2010, com percentual de aumento de 9,67% (nove inteiros, e sessenta e sete avos), comunico a V.S. que a partir da referida data o serviço desempenhado por este Sindicato, obedecerá á tabela em anexo. O comunicado á cima comprova o aumento de 9,67% no preço do serviço, e isso ocasiona então conflitos com diversas empresas e armazéns que não querem pagar o valor atualizado, outra problemática é o tamanho dos lotes de mercadorias, cujo não pode exceder a altura de 15 sacos, suficiente para que o trabalhador de linha possa alcançar, caso contrário, o dono do armazém é obrigado a pagar outro valor referente ao esforço do estivador, e isso acarreta uma série de conflitos entre essas duas classes. A estiva se nega a trabalhar para determinados armazéns enquanto o capataz ou o presidente do sindicato não chegam a um acordo com os proprietários, a partir dai percebe-se a classe organizada em prol de seus direitos, reforçando então o conceito de consciência de classe bastante utilizado por Thompson. O „„ser estivador‟‟ está ligado aos afazeres profissionais, com seus status sociais e financeiros, ou seja, sua relação com o outro. O surgimento de uma identidade de classe estivadora ocorre tanto em conflito com outro, ou seja, com diferentes categorias profissionais,

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como também a união destes em prol de objetivos em comum, por exemplo, a luta por seus direitos, além da proximidade com o outro, seus locais de moradia que também é um elemento unificador e transformador da identidade coletiva. Percebe-se assim que a formação da classe não deriva apenas do sistema econômico, mas principalmente da construção histórica das experiências19. É preciso olhar para as perdas e os ganhos desses subalternos em suas experiências históricas enquanto trabalhadores, pois só assim se pode entender os conflitos sociais e suas transformações. Percebe-se ainda melhor na visão de Edward Palmer Thompson em sua obra, A formação da classe operária inglesa, a árvore da liberdade: A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõe) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. (THOMPSON, 2011, p. 10.). Nesse sentido, podem-se compreender alguns aspectos identitários que compõem a percepção do „„ser estivador‟‟ a partir da escolha e identificação pessoal como profissional, bem como 19

Para mais informações ver: A formação da classe operária inglesa, a árvore da liberdade (THOMPSON, 2011).

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Fernando Emílio Alves dos Santos

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poderia emergir de uma identificação memorialística coletiva, ao discutir o conceito de classe, na perspectiva de Thompson, entende-se que a noção relacional da existência de classe perpassaria uma relação com outras classes, no qual nenhuma classe surge sozinha, mas sim a partir de determinadas relações de produção; em uma relação com outros dentro da mesma classe, no qual esta seria um conjunto de pessoas, podendo reunir grupos diferenciados, profissões variadas, unidos por experiências e um modo de vida em comum, e por fim, seria também uma relação histórica, pois uma classe se forma a partir de suas próprias vivências, modo de vida e trabalho. A partir desse entendimento, podemos compreender também que a identificação de sentir-se e de ser um estivador se constrói através de seus simbolismos, dos afazeres profissionais ligados à arte da estiva, de suas diferenças, de seus hábitos, roupas, remuneração e saberes técnicos perante os demais indivíduos. Esses elementos significativos estariam enraizados nas relações sociais de poder e sociabilidade dessa categoria com outras profissões. Sobre a identificação do que é ser um estivador Edílson resume: Se eu estiver em casa sem serviço, ai as turmas estão todas aperreadas e não tem mais ninguém, ai vem outro e diz assim: - Rapaz fulano de tal esta desocupado vou ligar para ele aqui. Rapaz vem para tal armazém! Ai eu já pergunto onde é e se ele quer só eu ou quer mais pessoas , ai já posso te „„convidar‟‟ para ir me ajudar , ai nós vamos para aquele lugar , agente já se uni. Nas palavras de Edílson fica claro o sentimento de união entre os profissionais da estiva, pois estes procu-

ram ajudar uns aos outros, se unindo em busca de melhorias individuais ou coletivas. E foram através dessas atitudes os estivadores superaram as dificuldades que sofreram no decorrer do tempo, reforçando assim a sua consciência de classe por meio de suas experiências. Conclusão A arte de estivar vai muito além de uma profissão, é a própria experiência de vida multifacetada. O seu ambiente de trabalho é composto por indivíduos de diferentes localidades, com experiências de vida individuais, mas que com o tempo foram possuindo a capacidade de absorver os saberes técnicos da estiva, repassado dos mais experientes aos mais novos ao longo do dia a dia do trabalho. São homens fortes, muitas vezes castigados pelo próprio esforço do trabalho, e isso reflete na sua saúde prejudicada pelo grande esforço físico, mas que além de tudo são guerreiros e tiram do seu suor a sua sobrevivência, essa é a imagem que esboça o trabalhador da estiva. O processo de estivar é tão intenso que ultrapassa o ambiente de trabalho e passa a se tornar um modo de vida. A sua identidade individual ou coletiva são forjadas através da experiência de vida desses trabalhadores com o meio de produção em que estão envolvidos, é no fazer-se enquanto classe que estes se transformam, unindo-se em busca de pontos convergentes e também na sua relação com o outro, suas aproximações e diferenças é o que vai moldando a sua imagem através do contexto social e cultural em que está inserido. Referências Bibliográficas ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1938, p.71.

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berdade. Tradução de Denise bottmann. 6. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

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ROMPENDO AS CERCAS DO LATIFÚNDIO: A ocupação da fazenda Marrecas e a formação do MST no Piauí Gisvaldo Oliveira da Silva1 Resumo O presente artigo trata do processo de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Piauí, desencadeado com a experiência de ocupação da Fazenda Marrecas, um latifúndio improdutivo situado no município de São João do Piauí, a 493 km da capital Teresina. Nesse sentido, realizo uma análise da trajetória de mobilização das famílias camponesas para a ocupação da terra e das primeiras iniciativas para a organização do acampamento, entendido como momento em que as famílias socializaram experiências e organizaram a luta para a conquista definitiva da terra ocupada. A metodologia adotada para a construção deste artigo foi a da história oral, acrescida de análise bibliográfica e de fontes hemerográficas relacionadas à questão agrária brasileira. Palavras-chave: Formação. MST. Piauí.

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Abstract This article deals with the process of formation of the Movimento dos Trabalhadores Sem Terra in Piauí, unleashed with the experience of occupation of Marrecas Farm, an unproductive large landholdings located in São João do Piauí, 493 km from Teresina capital. In this sense, realize an analysis of the trajectory of mobilization of peasant families for the occupation of land and the first initiatives for the camp organization, understood as a time when families socialized experiences and organized the fight for the final conquest of the occupied land. The methodology adopted for the construction of this article was the oral history, increased by bibliographical analysis and newspaper sources related to the Brazilian agrarian question. Keywords: Formation. MST. Piaui.

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Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor na rede particular de ensino em Teresina. E-mail: gisoliveira@yahoo.com.br.

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São João do Piauí é um município localizado na região Sudeste do Estado do Piauí, distante 493 km da capital Teresina. Com uma população estimada em 19.540 habitantes, tem sua economia concentrada na agricultura familiar, na pecuária e, mais recentemente, no comércio, sendo uma das cidades mais importantes do Estado.1 Cortado pela BR-020, que liga Fortaleza a Brasília, o município tem como uma de suas principais atrações a Praça Honório Santos, a maior do Piauí, com mais de 34 mil metros quadrados de área. É nesta praça que acontecem os festejos em homenagem ao seu Santo Padroeiro – São João Batista. Em São João do Piauí encontra-se também uma das maiores subestações de energia do país, a Barragem do Jenipapo. Além disso, o município é um dos portais de entrada para o Parque Nacional Serra da Capivara, uma área de preservação arqueológica e ambiental constituída por centenas de sítios de pinturas rupestres, declarada patrimônio cultural da humanidade em 1991, pela UNESCO. Em Dissertação de Mestrado publicada em livro – A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí: 1900/1920, a historiadora Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz (1994) situa São João do Piauí no período entre os primeiros colocados na produção e comercialização do látex de maniçoba. Sua história insere-se no contexto do aparecimento de quase todas as povoações piauienses: a concessão de grandes extensões de terras a particulares, para implantação das fazendas de gado e cavalo, utilizadas para viabilizar a penetração e a consequente colonização das terras do sertão. Habitado inicialmente por famílias baianas e pernam1

Fonte: IBGE/Censo Populacional 2010. IBGE/Produto Interno Bruto dos Municípios 20042008.

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bucanas, o município tem sua origem na fazenda de gado “Malhada2 do Jatobá”, que pertencera ao bandeirante Domingos Afonso Mafrense. A povoação começou às margens do rio Piauí, devido à existência de terras férteis na região. Elevado à condição de município em agosto de 1871, foi extinto e anexado a São Raimundo Nonato em junho de 1896, tendo sua autonomia restaurada em julho de 1906.3 Não por acaso, foi no território de São João que se efetivou a primeira ocupação de terras coordenada pelo MST no Piauí. As articulações para essa ação iniciaram em 1985, logo após a realização do 1º Congresso Nacional dos Sem Terra, e estão associadas ao trabalho de setores católicos vinculados à luta pela terra, de sindicatos de trabalhadores rurais da região de Picos e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que forneceram o apoio necessário à constituição do movimento no Estado. A partir do 1º Congresso Nacional do MST, as CEB‟S e a CUT passaram a fazer articulações e a formar lideranças no Sudeste piauiense. Havia na região uma luta de posseiros resistindo à expulsão. A preocupação do MST era justamente preparar uma primeira ocupação, para ser a base da formação do Movimento no Estado. Os agentes pastorais e outras entidades que atuavam na luta pela reforma agrária não incluíam a ocupação entre as formas de lutas locais.

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Designação típica dos sertões de criar, que indica o local onde o gado se reunia ou era reunido para ruminar e dormir. Geralmente local medianamente alto, arejado e necessariamente protegido com árvores copadas de grande porte. 3 Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico. Acesso em 05 julho de 2011.

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Até junho de 1989, o MST ainda não havia conseguido seu intento.4

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No contexto da luta pela reforma agrária, a ocupação pode ser vista como alternativa política diante das precárias condições de vida experimentada nos momentos de seca. Sob a perspectiva das autoridades governamentais, a seca é apresentada como um fenômeno cíclico da natureza, que provoca a ocorrência de uma escassez periódica na região do semiárido nordestino. Por outro lado, movimentos sociais como o MST consideram que a persistência da pobreza e a falta de infraestrutura adequada nessa região não são devidas ao clima, mas resultado da ausência de políticas sociais destinadas a contornar a situação de vulnerabilidade vivenciada pelos camponeses pobres. No livro A Multidão e a História, Frederico de Castro Neves analisa as interpretações formuladas sobre a seca e observa que: [...] a seca pode ser entendida também a partir da idéia de que a “estrutura fundiária e econômica do Nordeste condena o pequeno produtor a cultivar apenas essas culturas de ciclo curto, sensíveis às variações do tempo e às chuvas irregulares”, que “não se adaptam ao meio físico”. As relações sociais, nesta outra perspectiva, tornam-se o ponto central na distribuição da riqueza social e se relacionam diretamente com a escassez, que, de certa forma, beneficia aqueles que controlam as linhas de força sobre as quais estas relações são produzidas, através da ampliação dos latifúndios nos momentos de seca e da redução periódica do valor comercial das culturas produzidas pelos pequenos pro-

dutores num sistema de agricultura tradicional, onde se objetiva tãosomente obter uma precária “segurança alimentar”.5 Em pesquisa junto à Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), tivemos acesso ao Processo Nº 157/89, que reúne informações sobre a desapropriação da Fazenda Marrecas, imóvel rural que pertenceu à empresa agropecuária ZEBUBRÁS, sendo posteriormente transformado num espaço de convivência social conhecido por Assentamento Marrecas. No referido processo, podemos encontrar relatórios de viagens, correspondências oficiais, documentos reivindicatórios e matérias de jornais, que permitem o conhecimento da formação histórica deste assentamento. A articulação de sindicatos, movimentos e pastorais católicas envolvidos com a luta pela terra no Piauí pode ser comprovada através de documento reivindicatório encontrado no referido processo. Neste documento, assinado por representantes de 23 sindicatos de trabalhadores rurais, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e várias organizações católicas com atuação em Teresina e na região de Picos, as entidades denunciam a concentração de terras no Estado e o descaso quanto às condições de vida da população camponesa: O Piauí é ainda, um Estado eminentemente agrário [...] Os dados do Censo Agropecuário de 1980, dão conta que dos 25 milhões de hectares de terras que o Estado possui, algo em torno de 9 milhões se prestam às 5

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MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p. 188.

NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000, p. 154.

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atividades agrícolas. Porém, essa mesma fonte informa que desses 9 milhões de hectares aptos para a agricultura, apenas 995 mil estão efetivamente ocupados com lavoura. O restante faz parte da imensa quantidade de terras que neste Estado constitui o latifúndio improdutivo: mácula política, chaga social e deterioração econômica. Muito embora ocupe pouco mais de 19% da área agricultável do Estado, são as pequenas propriedades, aquelas com até 100 hectares de terras que respondem por mais de 69% da produção agrícola.6 Os primeiros passos para a formação do MST no Piauí foram dados durante a XI Assembleia Estadual da CPT, realizada em 04 de novembro de 1985. Na ocasião o militante Justino Rafagnim, articulador do MST no Paraná, “fez um confronto da situação brasileira com a caminhada das organizações no Piauí”. Após sua exposição, as questões levantadas foram discutidas em grupos e os presentes concluíram pela seguinte avaliação: [...] não estamos preparados. O número das pessoas conscientizadas é pouca e falta organização. Por outro lado, vimos que precisamos reforçar o trabalho das CEB‟S, a luta por um sindicalismo autêntico, a formação de lideranças sendo que o importante é partir de ações concretas.7

saudou a todos os presentes com uma reflexão sobre a conjuntura política do país. Em tom de empolgação, o missionário assim se expressa: Vivemos um momento especial na história do Brasil e não podemos perder as oportunidades de espaços que se abrem para lutar por uma sociedade justa, pois temos fé e acreditamos na dignidade humana. Devemos incorporar na nossa vida o projeto de vivermos como irmãos e de lutar pelo bem de todos.8 A fala de Dom Augusto evidencia o caráter do trabalho pastoral da CPT, centrado no incentivo à organização política dos camponeses pobres, apoiando e se somando a eles em suas lutas e reivindicações. Por isso a CPT sempre se envolveu com as mobilizações em favor da reforma agrária. Este compromisso de acompanhar os camponeses em suas lutas explica o papel ativo da CPT na formação do MST no Piauí. O processo que marca o início da história do MST no Piauí é narrado por agentes pastorais que atuavam nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟S) e ajudaram na articulação da primeira ocupação do movimento. É o caso de Maria Gorete Souza, responsável por acompanhar o militante que veio articular o MST no Estado. Em entrevista, ela comenta sobre sua trajetória e o processo de gestação do movimento. Comecei em 1986, quando ainda militava nas comunidades eclesiais de base. Era ligada à igreja Católica em Oeiras, no Piauí, onde morava. Nessa época, organizações ligadas à igreja estavam trabalhando para que

Na mesma Assembleia, Dom Augusto Alves da Rocha, Bispo da Diocese de Picos e presidente nacional da CPT, 6

INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989, p. 05. 7 Ata da XI Assembleia Estadual da CPT-PI. 04 de novembro de 1985. Comissão Pastoral da Terra Regional Piauí. Arquivo sem catalogação.

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Ata da XI Assembléia Estadual da CPT-PI. 04 de novembro de 1985. Comissão Pastoral da Terra Regional Piauí. Arquivo sem catalogação.

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o MST fosse conhecido em todo o Brasil. Fiquei responsável, em minha paróquia, por acompanhar o trabalho da pessoa que veio organizar o MST no Piauí. A partir do momento em que conheci os objetivos do movimento – que eram lutar por uma sociedade sem explorados e exploradores e pela reforma agrária -, me identifiquei. Naquele período, já lutava por uma sociedade mais justa, queria construir um Brasil diferente. Onde vivia, a pobreza, a miséria e a exploração me deixavam infeliz. Achava que era preciso construir algo diferente e o MST me deu essa possibilidade. [...] Vi o movimento pequenininho, ir crescendo, crescendo até ser o que é hoje.9

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No que diz respeito à influência exercida por setores católicos, Maria Gorete confirma o apoio dado pela CPT no processo de formação e organização política do MST no Piauí. Conforme explicitado em sua narrativa: O Movimento Sem Terra iniciou no Piauí em 85, logo após o Congresso Nacional do Movimento Sem Terra em 85, começou então uma articulação aqui no Piauí, e essa articulação ela se deu no início basicamente através da CPT, a CPT que articulou o Movimento Sem Terra no início. [...] A CPT deu toda a sua estrutura sim, sua estrutura para fazer a articulação do Movimento. Então veio uma pessoa do Paraná, que se chamava Justino e a mulher dele que eu não me recordo o nome, se era Paula ou Ana, vieram para o Piauí para começar a articular o Movimen9

SOUSA, Maria Gorete. Entrevista. Luta pela terra: além de ocupar as terras, precisamos ocupar as letras. Edição Especial. São Paulo: IBASENET, 2005. Disponível em: http://www.ibase.org.br. Acesso em 20 dez 2010.

to Sem Terra. Essa articulação se dava basicamente nos encontros da CPT, então onde a CPT tinha articulação o Justino ia até lá para fazer reunião, explicar o que era o Movimento Sem Terra, quais eram os objetivos do Movimento Sem Terra, ele participava das reuniões que a igreja fazia, articulada pela CPT, ou mesmo pela paróquia na qual ele ia.10 Seguindo as orientações de sua XI Assembleia Estadual, a CPT passou a articular famílias camponesas na região do semiárido piauiense,11 através de visitas e reuniões em comunidades e áreas de conflito. As atividades eram organizadas com a participação de representantes do MST e visavam preparar o terreno para a primeira ocupação do movimento. Além disso, a CPT investiu nos chamados mutirões de evangelização, eventos em que os padres abriam espaço para que se falasse sobre a trajetória do MST e a importância de sua organização no Piauí. [...] nesses mutirões de evangelização, tirava um tempo, aí o Justino falava o que era o Movimento Sem Terra. A partir daí se discutia é possível organizar o Movimento Sem Terra aqui? Existe sem terra aqui? E obviamente tinha muito sem terra. Então a partir desse primeiro contato, dessa primeira articulação, foi surgindo as comissões municipais que nós começamos a organizar lá no Pi10

SOUSA, Maria Gorete de. Entrevista referente à Pesquisa Memorial, maio de 1997. Cedida a este pesquisador pela Coordenação Estadual do MST – PI. 11 Região caracterizada pela ocorrência de chuvas irregulares. No Piauí essa região abrange 125.692 km2 – dos 252.378 km2 totais do Estado – ocupando boa parte do setor central e sul, fazendo fronteira com os estados do Ceará, Pernambuco e Bahia, e correspondendo a 13,96% da área do semiárido brasileiro. (Cf. Carvalho e Oliveira, 2010, p. 18).

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auí. Então essas comissões municipais eram compostas por lideranças da igreja. [...] Quando eu digo assim lideranças da igreja eu estou falando dos leigos, das comunidades de base. [...] Os padres eles cumpriram o papel no sentido de dar o espaço para fazer as reuniões.12 O trabalho de mobilização se fazia, ainda, através de cursos de formação política, organizados com o objetivo de estimular o engajamento das famílias camponesas na luta pela reforma agrária. Nos cursos as famílias articulavam estudos teóricos com a realidade social em que estavam inseridas, discutindo temas como a história da luta pela terra e o funcionamento da sociedade capitalista. Qual era a nossa tarefa básica no movimento naquele momento? Era fazer cursos, nós fizemos muitos cursos sabe, aqueles cursinhos de base de uma semana, de final de semana, estudar como funciona a sociedade, a história da luta pela terra, a questão política, a questão sindical, a questão da América Latina. Então a gente trabalhava muito essa questão da formação política. [...] A militância do Movimento Sem Terra no início, basicamente tinha essa tarefa, essa tarefa de ir para outros municípios, para as comunidades, organizar as comissões, os núcleos nas comunidades, fazer cursos de base.13 A partir dessas iniciativas, foram surgindo as primeiras comissões de trabalho, formadas por pessoas que atuavam nas fileiras da CPT e das CEB‟S.

Aos poucos o trabalho de base foi gerando lideranças e incrementando a consciência da organização dos camponeses para a busca de soluções coletivas. O desafio que se apresentava era reunir um número significativo de famílias dispostas a participar da experiência da ocupação. De acordo com Morissawa, entre outubro de 1988 e janeiro de 1989 ocorreram eventos importantes no Estado, que foram fundamentais para a concretização dessa ação. Até junho de 1989, o MST ainda não havia conseguido seu intento. Nesse intervalo, houve eventos importantes no Estado. A 1º Romaria da Terra, em Oeiras, promovida pela CPT, contou com a participação de 8 mil trabalhadores, em outubro de 1988. Foi realizada em dezembro do mesmo ano uma manifestação em frente à sede do Mirad, em Teresina, reivindicando a regularização das posses e a implantação de assentamentos. Em janeiro de 1989, semterra organizados pelo MST e pela CPT ocuparam a Assembléia Legislativa para pressionar os deputados a votarem contra a venda de 450 mil hectares a grupos privados.14 Após quase cinco anos de trabalho de base, o MST realizou sua primeira ocupação no Piauí. O ato aconteceu no dia 10 de junho de 1989, quando 120 famílias vindas dos municípios de Picos, Paulistana, Padre Marcos, Pio IX, Dom Expedito Lopes, Itainópolis, Oeiras e Simões, entraram na Fazenda Marrecas ou Zebulândia, uma área de 10.506,6 hectares, situada no município de São João do Piauí. Adquirida pela empresa agro-

12

Ibidem. SOUSA, Maria Gorete de. Entrevista referente à Pesquisa Memorial, maio de 1997. Cedida a este pesquisador pela Coordenação Estadual do MST – PI. 13

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MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p. 188.

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pecuária ZEBUBRÁS, esta fazenda tinha sido beneficiada com financiamento da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), para a exploração de gado bovino. Todavia, na época da ocupação estava desativada, pois o Governo havia suspendido o financiamento.15 O jornal Diário do Povo, fundado em setembro de 1987 pelos empresários Aerton Cândido Fernandes e Clementino Costa, com o apoio do então governador Alberto Silva16, publicou reportagem especial sobre a ocupação organizada pelo MST, destacando a situação de abandono em que se encontrava a Fazenda Marrecas. De acordo com relatórios encontrados na casa principal da fazenda, na propriedade desenvolvia-se a criação de gado, tendo funcionado até fevereiro de 1987, quando depois foi abandonada pelo pecuarista Fernando Brasileiro. Os 10.604 hectares em sua maioria foram desmatados para a plantação de capim, estão cercados e divididos em piquetes. Próximo a uma lagoa, situada às margens do Rio Piauí, funcionava a sede da fazenda, onde contém além da casa principal, outro poço jorrante, 14 casas – uma espécie de conjunto habitacional para os funcionários – um galpão para máquinas e um curral. Todas essas benfeitorias estão abandonadas. Segundo os trabalhadores da ocupação, na área a empresa agropecuária Zebubrás desenvolvia com apoio da Sudene, a criação de bovinos e ovinos. A explicação sobre o abandono revela que o pecuarista Fernando Brasileiro desistiu da fa-

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zenda tão logo a Sudene tenha deixado de custear sua manutenção.17

Foto 1: As 14 casas da área de ocupação em completo abandono. Fonte: Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989, p. 4.

Às 13 horas da tarde, após uma longa e cansativa viagem, as famílias chegaram ao local da ocupação em caminhões superlotados. Traziam consigo roupas, utensílios domésticos, alguns gêneros alimentícios e a esperança de conquistar a “terra prometida”. Sobre a chegada das famílias, o depoimento de uma assentada é bastante esclarecedor: A ocupação se deu no dia 10 de junho de 89, quando a gente chegou no Capim Grosso, era uma hora da tarde. A gente já vinha um pouco desconfiado: “onde era mesmo esse local?” Todo mundo com sede, com fome, criança já chorando, e a gente já preocupado se não ia chegar. E a gente chegou naquele local onde tinha um poço jorrante com muita água, aí muita comida que o pessoal trazia. E a gente, a partir daquele momento, a gente achou que a vida já teria mudado, que a gente já ia viver uma vida nova, uma vida coletiva. É muito difícil, mas a gente conseguiu, naquele período eram 120 famílias, e a gente acabou... algumas

15

Conforme explicitado no processo de desapropriação da Fazenda Marrecas. 16 Engenheiro civil que governou o Piauí por duas vezes (1971 a 1975, indicado pela ARENA; 1987 a 1991, eleito pelo PMDB).

17

Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989, p. 4.

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pessoas ainda conseguiram ir embora, mas a maioria ficou, é quem resiste até hoje.18 A imagem seguinte ilustra os momentos iniciais da formação do acampamento.

Foto 2: Localidade Capim Grosso, onde foi erguido o acampamento logo após a entrada das famílias camponesas na terra. Fonte: Imagem extraída de vídeo produzido pela direção nacional do MST em 1989.

Após o conhecimento formal da ocupação, a Chefia de Recursos Fundiários do INCRA promoveu uma reunião com representantes das entidades que articularam a ocupação e a direção central do Instituto de Terras do Piauí (INTERPI), onde foi proposto o deslocamento das famílias para imóveis de domínio do INCRA ou do INTERPI. A referida proposta foi apresentada e discutida pelas famílias acampadas que, por unanimidade, rejeitaram o remanejamento e decidiram permanecer na área ocupada. Em 13/06/89, uma comissão de agricultores compareceu ao INCRA/PI, quando comunicou ao representante do Sr. Superintendente Regional o fato consumado de uma 18

JESUS, Arcanja Pedrina de. Depoimento concedido a Gisvaldo Oliveira da Silva. São João do Piauí, 28 de novembro de 2008.

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invasão no imóvel Zebulândia, envolvendo cerca de 120 (cento e vinte) famílias e patrocinada pelo MST/PI. [...] Posteriormente, houve uma reunião realizada na sede do INCRA/ PI em 21/06//89, desta vez com os seguintes representantes: João Alfredo Gaze (INCRA), José Maria Madeira (INCRA), João Batista Dias (INTERPI), José de Ribamar da Silva Seabra (INTERPI), José Ribamar Pedrosa (INTERPI), Francisco Elias de Araújo (MST/PI), Inácio José dos Santos (MST/PI), Pe. Hermeto Mengarda (CPT), Luís Balbino (CUT) e José Olímpio da Silva Moura (PT - Partido dos Trabalhadores). Em clima de cordialidade, os que falavam pelos trabalhadores rurais (MST/PI, CPT, CUT e PT) solicitaram urgentes providências com vistas à desapropriação do imóvel invadido, mesmo porque a situação das famílias invasoras era de total desconforto; [...] Em nome do Governo, os representantes do INCRA e do INTERPI, após explicar ser a desapropriação um processo que demanda lapso de tempo razoavelmente dilatado, propuseram o deslocamento das famílias para áreas de propriedade dos órgãos, podendo haver a escolha entre os municípios de Castelo do Piauí, Canto do Buriti – PI, e até mesmo S. João do Piauí – PI, onde o INTERPI possui um imóvel. Os representantes do Movimento dos Sem Terra MST/PI se comprometeram a discutir o proposto diretamente com os acampados. [...] finalmente, a decisão unânime dos acampados em permanecer na terra. Ao rejeitarem o remanejamento proposto pelos órgãos do Governo, responderam em forma de uma palavra de ordem, entoada a plenos pulmões: “decidimos é aqui, ocupar e resistir”, “ocupar, resistir

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Gisvaldo Oliveira da Silva

e produzir”, e Reforma Agrária, esta luta é nossa”.19 Em matéria intitulada “Trabalhadores ocupam latifúndio improdutivo”, o jornal Diário do Povo aponta as razões que teriam motivado as famílias acampadas a recusarem o remanejamento proposto pelos órgãos do Governo:

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A versão dos trabalhadores é de que as áreas propostas são muito distantes da ocupação, além da qualidade ruim das terras oferecidas. “A intenção do Incra é conciliar, evitar o conflito, deixar as coisas como estão, para que a terra não cumpra sua função social, continue improdutiva e também abandonada, como é o caso desta que estamos ocupando”, disse um dos representantes da comissão de negociação da ocupação.20 Chama atenção a maneira como o jornal Diário do Povo apresenta a posição das famílias acampadas. O trecho em evidência parece sugerir a ideia de neutralidade, ou seja, uma imagem do periódico como veículo que fornece ao leitor uma visão imparcial dos acontecimentos. Entretanto, Vernieri explica que este jornal “foi criado por um grupo de empresários locais para apoiar o governo Alberto Silva”21, que estava em pleno exercício de mandato no período da ocupação. A mesma autora informa ainda que: Um fato bastante relevante na história dos meios de comunicação do 19

INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989, p. 28 e 29. 20 Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989, p. 4. 21 VERNIERI. Sâmia de Brito Cardoso. História da Propaganda e da Publicidade no Piauí. In: Cadernos de Teresina, Ano XVIII, Nº 38, agosto, 2006, p. 52.

Piauí, foi a implantação de uma prática adotada, em 1971, pelo governador do Estado Alberto Silva, “o qual passou a subsidiar os órgãos de comunicação com verbas públicas”. Tornou-se comum o sistema de “cotas”.22 Construir a imagem de “imparcialidade” seria uma estratégia do jornal para tentar esconder seu vínculo com a política governamental e, ao mesmo tempo, uma jogada política para ampliar sua expressividade e, assim, alcançar uma melhor colocação na preferência da população. Sobre a posição do proprietário da fazenda, os técnicos do INCRA relatam que o mesmo optou por não tomar qualquer atitude em relação às famílias acampadas, preferindo aguardar o pronunciamento dos órgãos governamentais, bem como afastar do local as pessoas a ele ligadas. Conforme explicou o representante da propriedade, o já citado sr. José Wilson, o proprietário reserva-se uma atitude de cautela: nenhuma ação desenvolveu, até o momento, em relação ao fato, aguardando o pronunciamento das autoridades para, só então, agir. O próprio sr. José Wilson foi orientado a não se aproximar da área do acampamento, o mesmo se aplicando ao vaqueiro que reside na fazenda.23 O jornal O DIA também repercutiu a ocupação do MST, destacando o apoio concedido por setores da Igreja Católica, notadamente agentes pastorais ligados às CEB‟S e à CPT. É o que podemos observar em matéria publicada 22

ibid. id. INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989, p. 31 e 32. 23

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por este periódico, na edição do dia 13 de junho de 1989. Com o slogan „ocupar, resistir e produzir‟, a invasão de terras ociosas no interior do Estado está sendo organizada por uma entidade denominada Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Piauí, com o apoio de setores progressistas da igreja católica. O coordenador do movimento, Elias Araújo, afirmou que as invasões são uma conseqüência do não cumprimento da reforma agrária pelo governo. A primeira ação organizada pelo Movimento Sem Terra aconteceu no último dia 10, no município de São João do Piauí. [...] Os invasores levados pelos líderes do Movimento Sem Terra em caminhões para São João vem dos municípios de Simões, Paulistana, Padre Marcos, Oeiras, Bocaina e Dom Expedito Lopes, áreas onde as Comunidades eclesiais de Base (CEBs) têm maior organização no Estado. Nos municípios existe um trabalho pastoral sistemático feito por agentes e religiosos da Diocese de Picos, dirigida pelo bispo Augusto Rocha, presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). 24 A propósito, convém um breve comentário sobre o teor da matéria em referência. Ao utilizar as expressões invasão e invasores, o jornal deixa transparecer a ideia de que a ação realizada pelo MST representaria um ato de ilegalidade. Sendo assim, o periódico trata os sem-terra como transgressores da ordem, como grupo de pessoas que teriam

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Jornal O DIA. Teresina, 13 de junho de 1989, p. 5.

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cometido crime, afirmando uma versão parcial do acontecimento. Em outra matéria sobre a ocupação, o mesmo jornal destaca a posição do presidente da União Democrática Ruralista (UDR) no Piauí, Miguel Area Leão Filho, que reage defendendo o direito da propriedade da terra, afirmando que as ações do MST teriam uma motivação desordeira e político-partidária. A estratégia da entidade é defender o direito de propriedade através da Justiça de maneira “veemente”. A cada invasão haverá uma reação. Pedimos imediatamente reintegração de posse na Justiça. [...] as invasões de terras promovidas pelo Movimento dos Sem Terra têm como objetivo criar conflitos com a Polícia e beneficiar a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva (PT) para a Presidência da República.25 O trecho citado possibilita inferir uma tentativa de criminalização do MST por parte da UDR, entidade criada em 1985 com o objetivo de contrapor o avanço da luta empreendida pelos camponeses sem-terra. A acusação feita pelo representante da entidade no Piauí, vinculando as ações do MST à campanha do então presidenciável Luís Inácio Lula da Silva, remete ao contexto de redemocratização do país marcado por um intenso debate sobre a questão fundiária. Em 1988 foi decretada e promulgada a nova Constituição Federal, que instituiu a reforma agrária como meta política obrigatória. Para tanto, toda propriedade que não cumprisse com sua função social deveria ser desapropriada para o assentamento de famílias semterra. Porém, conforme evidencia Filho “a bancada ruralista continuou assegurando seus interesses e direcionando po25

Jornal O DIA. Teresina, 15 de junho de 1989, p. 8.

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líticas públicas para os grandes produtores rurais”.26 Como desdobramento desse contexto, o autor explica que: As eleições de 1989 foram determinantes para o aumento das ocupações de terra, que em relação ao ano anterior apresentou crescimento de 21,12% e famílias em ocupações, quase dobrando com um aumento de 93,97%, evidenciando que os movimentos camponeses estavam fortalecendo suas lutas, querendo participação ativa nos governos e que as ocupações de terra deveriam ser encaradas como um sinal de que a população demandava a realização da reforma agrária e transformações políticas no país que sinalizassem a realização da reforma agrária e melhores condições de vida.27

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ção, ao alvo, portanto, das intervenções previstas constitucionalmente.28 A respeito das providências para a desapropriação do imóvel ocupado, os técnicos do INCRA fazem menção a um telex da Direção Nacional do MST, encaminhado ao então Ministro da Agricultura, Iris Resende, no qual o Movimento informa sobre a decisão das famílias em permanecer na terra e de uma possível disposição do proprietário em negociar a área. Cautelosa, a equipe técnica propôs que fosse confirmada a veracidade das informações, a fim de melhor subsidiar a decisão do órgão. Ainda assim, a equipe admitiu a possibilidade de uma intervenção com fins expropriatórios. Uma informação recente, que pode facilitar os acontecimentos, está contida no telex do Sr. Isaías Vedovatto, da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, segundo o qual, “o próprio proprietário está disposto a negociar a área”. A ser um fato, nenhuma dúvida há sobre a validade de uma vistoria com fins expropriatórios, paralelamente à negociação com o titular do imóvel. Sugere-se, então, o contato formal com proprietário, para definir taxativamente sua real posição acerca do problema.29

Em relatório de viagem da equipe técnica designada pela Superintendência Regional do INCRA, que se deslocou ao município de São João do Piauí com o objetivo de vistoriar a área ocupada, técnicos do órgão atestam o pioneirismo do MST em terras piauienses, reconhecendo a legitimidade da luta pelo acesso à terra. Na avaliação técnica classificam a propriedade como improdutiva e passível de desapropriação segundo previsão constitucional. De fato, esta é a primeira incursão dos sem terra em plagas piauienses, havendo perspectivas plenas de ser o início de um ciclo. Por outro lado, o desejo de possuir terra é por natureza legítimo e, de qualquer forma, a propriedade é um latifúndio por explora-

No início de outubro de 1989, quatro meses após sua primeira investida, o MST promoveu a ocupação de mais um latifúndio na região de São João do Piauí. Dessa vez na Fazenda Agropecuária Lisboa, de 9.976,6 hectares. Segundo Morissawa, “150 famílias a ocuparam e começaram a fazer suas

26

FILHO, José Sobreiro. Ocupações de terra no Brasil (1988-2010): uma leitura geográfica e a conjuntura política da luta pela terra. Universidade Estadual Paulista, 2011, p. 12. 27 Ibidem, p. 13.

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INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989, p. 32. 29 INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989, p. 32.

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roças”.30 A partir das ocupações de Marrecas e Lisboa, o MST se expandiu para outras regiões do Estado, onde foram articuladas novas ocupações. A formação do acampamento representa uma nova etapa na luta pela terra. É nesse espaço que as famílias reorganizam seus viveres e preparam a luta para a conquista definitiva da terra. É um momento de transição em que surgem muitos desafios e dificuldades. Nesse sentido, os primeiros tempos em Marrecas foram bastante difíceis. Não bastasse a fome e o sol castigante que caracteriza o sertão piauiense, as famílias ainda tiveram que enfrentar a rejeição da população são-joanense, que, a princípio, mostrou-se indiferente ao drama das famílias camponesas. No primeiro momento, não tinha apoio da sociedade. Que a sociedade não conhecia, não sabia que história era aquela, chamava nós de „invasores‟ e não sei de quê. A gente se sentia um pouco chateada, mas na verdade eles tinham uma razão pra que aquilo pudesse acontecer, né? Que eles não tinham conhecimento o que que era mesmo a luta pela terra, que que era a reforma agrária... Então isso aconteceu. Depois a gente foi virando o jogo, né? E conseguimos ganhar a sociedade, a sociedade entendeu porque a gente tava ali, porque que a gente fez aquilo e aí começou a vir as ajudas, né?31

nova experiência de vida. Ao mesmo tempo constituíram equipes de trabalho com atribuições delimitadas. É o que podemos constatar em matéria do jornal Diário do Povo, publicada nos dias 10 e 11 de setembro de 1989: Os trabalhadores da ocupação são provenientes de oito municípios da região de Picos. [...] São pequenos arrendatários, posseiros, meeiros e moradores de periferias de cidades. Chegaram ao local em 4 caminhões. A primeira iniciativa foi a divisão do trabalho para levantar o acampamento, depois formação de equipes de trabalho: alimentação, produção, segurança, negociação, formação, saúde, educação e uma equipe de coordenação geral do acampamento.32 As famílias permaneceram acampadas por cinco anos. A firme determinação de permanecer na terra transformou em realidade o sonho de homens e mulheres que historicamente estiveram alijados do acesso à terra. O Projeto de Assentamento Marrecas foi criado pela portaria 426, de 30 de junho de1994, sob o regime de compra e venda. Para o Departamento Rural da CUT no Piauí, a venda da terra para o INCRA teria representado mais uma forma de lucro para o proprietário da fazenda, como informa o jornal Diário do Povo: Segundo o Departamento Rural da CUT no Piauí, o fazendeiro tem “o maior interesse” que seja feita a desapropriação, porque poderá lucrar novamente às custas do dinheiro do povo; a primeira foi quando através de empréstimos e incentivos fiscais da Sudene estruturou a fazenda, e agora depois do abandono, poderá requerer

Após a ocupação da Fazenda Marrecas, as famílias logo trataram de montar o acampamento, seu novo ambiente social, de onde iniciariam uma 30

MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p. 188. 31 JESUS, Arcanja Pedrina de. Depoimento concedido a Gisvaldo Oliveira da Silva, São João do Piauí, 28 de novembro de 2008.

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Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989, p. 4.

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do governo além do valor da terra a indenização das benfeitorias.33

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Após 26 anos da ocupação, as famílias do Assentamento Marrecas produzem alimentação suficiente para sua sobrevivência e a população local, sendo esta área reconhecida como uma das mais produtivas do Estado. A atividade econômica prioritária é a agropecuária. As culturas predominantes são feijão, milho, arroz, tomate, abóbora, melancia, banana, goiaba e caju. Atualmente o Assentamento Marrecas possui uma boa infraestrutura. Todas as casas são de tijolo, com rede de água, eletrificação, torre com captação de sinal telefônico fixo, estrada em bom estado de conservação, escola que oferece toda a educação básica, sistema de irrigação, dentre outros. Fazendo-se sujeitos na luta pela terra, os camponeses que participaram da experiência de ocupação da Fazenda Marrecas contribuíram para fazer emergir no Piauí um sujeito social e político: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Um sujeito não homogêneo, que representou para eles uma alternativa para a conquista da terra naquele momento.

Referências e fontes CARVALHO, Rosângela Ribeiro de; FILHO, José Sobreiro. Ocupações de terra no Brasil (1988-2010): Uma leitura geográfica e a conjuntura política da luta pela terra. Universidade Estadual Paulista, 2011. MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001. NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: Saques e outras ações 33

Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989, p.4.

de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000. OLIVEIRA, João Evangelista Santos. O Sonho Construído em Mutirão: Uma experiência de convivência com o semiárido. Cáritas Brasileira Regional do Piauí, 2010. QUEIROZ. Teresinha de Jesus Mesquita. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí: 19001920. Teresina: Ed. da Universidade Federal do Piauí. Academia Piauiense de Letras, 1994. VERNIERI. Sâmia de Brito Cardoso. História da Propaganda e da Publicidade no Piauí. In: Cadernos de Teresina, Ano XVIII, Nº 38, agosto, 2006. Fontes Orais JESUS, Arcanja Pedrina de. Depoimento concedido a Gisvaldo Oliveira da Silva. São João do Piauí, 28 de novembro de 2008. SOUSA, Maria Gorete. Entrevista. Luta pela terra: além de ocupar as terras, precisamos ocupar as letras. Edição Especial. São Paulo: IBASENET, 2005. Disponível em: http://www.ibase.org.br. Acesso em 20 de dezembro de 2010. SOUSA, Maria Gorete de. Entrevista referente à Pesquisa Memorial, maio de 1997. Cedida a este pesquisador pela Coordenação Estadual do MST – PI. Periódicos Jornal O DIA. Teresina, 13 de junho de 1989. Jornal O DIA. Teresina, 15 de junho de 1989. Jornal Diário do Povo. Teresina, 10 e 11 de setembro de 1989. Documentos Consultados Ata da XI Assembleia Estadual da CPT-PI. 04 de novembro de 1985. Co-

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missão Pastoral da Terra – Regional Piauí. Arquivo sem catalogação. IBGE/Produto Interno Bruto dos Municípios 2004-2008. IBGE/Censo Populacional 2010. INCRA/PI, SR (24). Processo de desapropriação da Fazenda Marrecas, 1989. Sítios eletrônicos visitados http://www.ibase.org.br. http://www.cidades.ibge.gov.br/painel /historico.

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Romildo de Castro Araújo

Reconfiguração do Sindicalismo docente na Rede Estadual de Educação no Piauí no final dos anos 1980 Romildo de Castro Araújo1

Resumo O presente artigo discute concepção e prática sindical no processo de reorganização do movimento docente na rede estadual de educação no Piauí, na segunda metade dos anos de 1980, quando se origina o denominado “Novo Sindicalismo” entre os professores. Partiremos de três questões norteadoras: i. Que concepção de sindicato optou o professorado nesse contexto? ii. Quais formas de ação foram empreendidas pela categoria? iii. Como esta nova prática e concepção influenciaram a reorganização dos professores? Dialogamos com a concepção materialista histórica e dialética e as noções de experiência e memória coletiva. As fontes de informações consistem de periódicos das entidades, publicações em jornais de circulação estadual e depoimentos de lideranças que participaram dessas lutas. Palavras chaves: Novo Sindicalismo. Concepção e Prática. Professores.

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Abstract his article discusses design and trade union practice in the teaching movement reorganization of the state system of education in Piauí, in the second half of the 1980s, when it gives the so-called "New Syndicalism " among teachers. We leave three guiding questions: i. That union of design chosen the teaching profession in this context? ii. What forms of action have been undertaken by category? iii. As this new practice and design influenced the reorganization of teachers? We dialogued with the historical materialist and dialectical conceptions and notions of experience and collective memory. The information sources consist of periodic entities, publications in state newspapers and testimonials from leaders who participated in these struggles. Keywords: New Syndicalism. Conception and Practice.Teachers.

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Doutorando em educação pela UFU e professor da Universidade Federal do Piauí - CSHNB. E-mail: araujo_romildo@hotmail.com

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Introdução A década de 1980 entrou para a história do movimento de professores como um dos momentos de maiores desafios encontrados na trajetória organizativa desses profissionais no Piauí. É quando se concretiza o processo de superação da concepção e prática de organização ao velho estilo sindical, utilizado até então. Só foi possível essa superação com as mudanças no contexto da situação política. Ao longo dessa história, diferentes estratégias surgem em contextos distintos da luta do professorado. Isso ocorre tanto nas lutas mais gerais como nas mais específicas. A discussão sobre sindicalismo de professores vem sendo marcada historicamente por um debate sobre a natureza do trabalho docente. Que tipo de trabalho realizaria o professor? Quanto a isso, Diniz afirma: “A isto chamamos de trabalho social. Nesse trabalho, aqueles que antes eram considerados “intelectuais” são inseridos mais diretamente no processo produtivo e sofrem um processo de proletarização, com uma queda visível dos níveis salariais, e suas condições de trabalho e de vida são precarizadas.” (DINIZ, 2015, p.07) Compreendemos o fenômeno de reconfiguração do movimento de professores como um processo de reorganização, que se iniciar a partir de uma tomada de consciência dos professores que definem as novas estratégias de organização e ação que vão constituindo o Novo Sindicalismo docente no Piauí. Procuramos perceber nesse trabalho, sobretudo, as estratégias de organização e ação docente. Assim, visamos reconstruir a história das mobilizações, dialogando com as falas que buscam compreender a importância da ação coletiva. No resgate da história da organização sindical dos professores, destacamos a ascensão das mobilizações, o caráter das reivindicações, a consolidação

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do sindicalismo classista e a emergência do professorado como uma força social de grande relevância na sociedade piauiense. Assim destacamos uma nova prática docente sindical, ressalvando os espaços dos movimentos grevistas, seus embates, nos quais o coletivo é redescoberto como representação das necessidades da categoria. O presente trabalho se divide em três tópicos: o primeiro trata da concepção de sindicato pela qual optou o professorado nesse contexto; em seguida aborda as formas de ação empreendidas pela categoria e, por último, discorre acerca de como a nova prática e concepção influenciaram na reorganização dos professores. Concluímos reconhecendo que uma movimentação acirrada aconteceu no enfrentamento com o Estado, os governos e as políticas educacionais adotadas, culminando em movimentos grevistas. A fase anterior, marcada pelo caráter associativista, mudaria como parte de longas transformações, cujas experiências vão traçando novos caminhos. Um extenso fio conduz o movimento até a segunda metade dos anos de 1980, quando mudanças qualitativas ocorrem no movimento de professores. O fio condutor das experiências coletivas O trabalho que aqui apresentamos nasce do interesse de contribuir com o campo que vem se formando no resgate da história da organização sindical docente. É parte da reflexão que surge das experiências das lutas coletivas e que tem na historiografia a possibilidade de uma crítica da realidade. Olhamos para a história dos trabalhadores em educação como parte da totalidade das relações existentes na sociedade capitalista. Como sugere Bauer (2011),

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O estudo do passado não é uma atividade ou um esforço intelectual voltado para o seu próprio universo umbilical, como um fim em si mesmo, alicerçado numa pretensa autonomia do conhecimento histórico em relação às ciências humanas, sociais, políticas e, por conseguinte, à própria sociedade. O que conta para nós é pensar a sociedade e as suas permanências e transformações politicamente e o conhecimento histórico, profundo e sistemático, se coloca como probabilidade de fazê-lo.

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O autor vai mais adiante e afirma: “A história nos ajuda na muitas vezes necessária elaboração de uma imagem do passado, porém é preciso reconhecer que esta está demasiadamente comprometida com os interesses hegemônicos na sociedade do presente” (idem, p.4). Mas é preciso entender que [...] o Estado, por exemplo, dispõe de numerosos canais mediante os quais impõem sua versão do movimento social, evidentemente, comprometidas com a preservação do poder econômico e político que é o seu sustentáculo. O controle do Estado, argumenta esse autor, sobre a vida social e a construção da memória coletiva, atua sobre as fontes, desde a sua produção, circulação até o seu uso e tratamento analítico. (BAU-

ER, 2011, p. 04) A experiência vivenciada e pensada no calor da ação, permite, por sua vez, a formação de uma consciência social. Esta precisa ser entendida como aspiração e só ocorre como especificidade histórica. A história social compreende a complexidade em que os sujeitos se unem na construção da sua própria experiência, que, por mais imperfeita que seja, é indispensável ao his-

toriador já que se traduz numa resposta individual ou coletiva aos acontecimentos. Os atores que protagonizaram o movimento de professores no Piauí, nos anos 1940, sequer cogitaram a organização sindical para além do associativismo dos catedráticos vitalícios. Embora fosse um empreendimento voltado para a rede particular, também estavam nas suas fileiras os professores da rede oficial de ensino teresinense. Pelas reminiscências, um tanto raras, seria possível afirmar que este sindicalismo de professores, durante muito tempo, visou às escolas da rede particular, da qual os professores tiravam parte significativa de suas recompensas materiais. As esporádicas reuniões na casa Anísio Brito (antiga biblioteca pública) pautavam quase sempre problemas imediatos e as assembléias gerais quase sempre ocorriam para renovar a diretoria, como ocorreu em 1947. Reuniramse para estudar a transformação da associação existente em sindicato e eleger a nova diretoria, quando assume sua presidência o prof. Celso Barros Coelho, quem, em uma entrevista com o autor deste texto, revelou que a mesma tinha sido fundada na casa de um professor, localizada numa das esquinas da Praça João Luís Ferreira. Ainda revelara que, na prática, não havia muita movimentação e que a mesma, por pouco, não ficava só no papel. Esse “por pouco” certamente se refere ao fato de que havia lutas esporádicas de professores na cidade. Durante muitos anos, os professores secundários se organizaram independentemente das professoras primárias, as primeiras a se lançarem em manifestação pública com suas reivindicações. Para Galvão (Jornal do Piauí, 23/01/60), isso ocorreu através de uma campanha por melhores salários, organizada pelo Centro de Estudos e Recre-

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ação do Magistério Piauiense (CERMAP). Como Coloca Silva (2012), a feminização do magistério primário piauiense foi uma política dos governos para recrutar as mulheres visando a tratá-las como mão de obra mais barata voltada aos cuidados com as crianças, o que levaria o governo a minimizar os investimentos, principalmente com os salários. Evidentemente, essa visão do papel da mulher professora primária por parte dos representantes do Estado, sugere a aposta na sua incapacidade de organização. Havia uma distinção entre professores do nível de ensino secundário e primário, embora ainda não existisse no Piauí uma agência voltada para a formação universitária dos mesmos. Os salários também eram diferenciados, e os primeiros recebiam os melhores e tinham padrão social mais elevado. Mas suas jornadas extensas de aula na rede particular e oficial geravam recorrentes reclamações reverberadas pela imprensa local, mas com poucas ações concretas, limitandose a uma resistência mais latente. “Agita-se o mestre piauiense o dia inteiro, de um canto para outro, catando no comércio do ensino os magros cruzeiros com que pretende o milagre da sobrevivência” (SILVA, última página, 1964). “O professorado do Piauí – público particular - viveu até há pouco tempo apático e indiferente às lutas reivindicatórias de melhores salários e vencimentos [...]” (DE UM OBSERVADOR, 1963, p. 01). Mas essa situação viria a ser superada nos anos de 1960, quando os professores inauguraram uma nova forma de organização e ação coletiva. Os contratos a título precário (remunerados com 150,00 cruzeiros) na rede oficial agrava a situação de crise do ensino público. Isso levaria à busca de estratégias de ação concretizada na realização

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da primeira greve de professores no Piauí. A importância de tratarmos aqui sobre a primeira greve, de 1963, se deve ao fato de que a mesma sinaliza mudanças de estratégias que indicam a admissão de outra concepção política no seio do sindicalismo docente, embora as amarras da legislação em vigor limitassem essas ações. Essa nova forma de pensar e agir mudou a organização do movimento e seus desdobramentos foram para além do esperado, pois a greve prevista para acontecer apenas na rede particular de ensino estende-se também para o setor público. Inaugurase assim a greve como instrumento de luta do professorado oficial. “O que se deve ressaltar nesse momento; o que se deve chamar a atenção da opinião pública, é que a classe, oprimida pelo salário de fome, sentiu na própria carne o doloroso aguilhão da necessidade, e por isso transformou a indiferença, a passividade em ação decisiva”. (LEITE, 1964, p.07) Aqui cabe lembrar Lênin no texto “A vida ensina” sobre a importância das greves: “A luta ensina. A luta real é a que melhor resolve as questões que ainda há pouco tempo eram tão discutidas” (LENIN, 1979). Ou seja, para este a luta educa a classe explorada, descobre o volume de sua força, amplia seus horizontes, eleva sua capacidade, clareia sua inteligência e forja sua vontade. Aos professores da rede pública coube repensar suas práticas como resposta concreta aos problemas e aspirações, o que os levou à fundação de uma entidade representativa, que passou a representá-los a partir do ano de 1967, reforçada pelas mudanças nos marcos legais da carreira, além do crescimento quantitativo e da proletarização. A Associação dos Professores do Ensino Médio Oficial do Piauí (APEMOP) era uma entidade de natureza as-

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sociativa, mas com fortes características sindicais. Pode-se dizer que era uma entidade semi-sindical. Esse fato marca a abertura de um novo ciclo no movimento, diferindo-se pela sua organização sindical de caráter estadual, antes restrito a Teresina. (CASTRO, 2011, p.02). No início da década de 1970, ampliou-se a base de representação, transformando a entidade existente em Associação dos Professores Piauienses (APEP), unificando a todos os níveis de ensino, inclusive universitário, quando passam a atuar em conjunto. Até o final da década, o movimento se limitou a defender a reestruturação da carreira, realizar o trabalho social e promover um direcionamento político para um processo de institucionalização das ações, devido à aproximação entre lideranças do movimento e os governos de Alberto Silva (ARENA - 1971-1975) e Dirceu Arcoverde (ARENA-19751978). Realizações e apoio do governo, com verbas para financiar projetos como o Clube dos Professores e definição de um estatuto da carreira foram bases para essa aliança política. Esse período encerrou-se com o governo do Lucídio Portela, quando se recorreu a enfrentamentos mais diretos. Castro se refere a esse momento, afirmando que O homem rancoroso e vingativo, o governador Lúcido Portela não dava colher de chá para professor. Na única audiência que concedeu, quando já eram tensas as relações com a classe, o irmão do senador Petrônio fez ouvido de mercador às reivindicações dos mestres e tratou seus representantes com estrema indelicadeza. Foi curto e grosso. E a partir daí as portas do palácio do Karnak fecharamse para os lideres do magistério estadual e até para o presidente da Confederação dos Professores do Brasil.

Porque professor, fosse daqui ou de fora, era considerado persona non grata para o governo do Piauí. (Ibid) Essa mesma política sindical foi desenvolvida nos anos de 1980, mas com um diferencial. Era cada vez menor a margem da atuação que restou ao velho estilo sindical corporativista, assistencialista e diretamente dependente dos sucessivos governos. Nessa década, os dois governos que se seguiram tiveram a sorte de a hegemonia no movimento de professores ainda estar sob o controle do velho estilo dirigente. A heterogeneidade das novas formas de pensamento do movimento de professores1 levou os professores a optarem por um sindicato com mesma estratégia organizativa e modelo de ação baseado nos sindicatos operários. Isso por que as aspirações existentes eram cada vez mais coletivas, devido ao assalariamento do professorado. Inaugura-se um novo ciclo de lutas, com as concepções e práticas sindicais que têm a greve e a mobilização social como veículos principais do enfrentamento de classes proposto pelo Novo Sindicalismo, uma nova orientação político-sindical que ascende e se torna hegemônica entre os professores. Virada para novo sindicalismo docente A expressão Novo Sindicalismo nomeou o período histórico do movimento sindical iniciado com as lutas salariais(1977) e com a eclosão do movimento grevista do final dessa década que, a partir da fábrica da SCANIA de São Bernardo(SP), dissemina-se pelo país envolvendo muitas categorias. O movimento sindical nascido com as greves de 1978 no ABC paulista, tem suas raí1

Militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) fizeram parte das últimas gestões na direção da APEP em unidade com os grupos do velho estilo que historicamente comandaram a entidade.

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zes num amplo movimento social que veio se desenvolvendo nos anos da ditadura. (ZANETTI ,1993) A década de 1980 foi para o sindicalismo, no país, repleta de novidades, em um novo contexto em que as greves se tornam de massa no campo e na cidade, provocam o confronto com o regime militar nos seus últimos suspiros, dá-se a luta em meio à recessão, surgem novas lideranças e encaminha-se a proposta de fundação das centrais sindicais, além de um forte processo de renovação das direções sindicais e fundação de sindicatos nos serviços públicos. É importante compreender que o Novo Sindicalismo no Brasil é uma renovação de estratégias organizativas e políticas combinada com a renovação das direções e surgimento de uma concepção de sindicatos autônomos. O país começa a década com uma lentidão absurda nos níveis de escolarização e uma taxa de abandono e reprovação consideráveis. O país entrava na chamada década perdida também na educação. A situação de precariedade da educação pública nesses anos, decorrente de uma política tecnicista das duas décadas anteriores, de reformas dos governos militares, motivava muitas reclamações por parte do movimento docente. Os dados do Censo Demográfico do Brasil de 1980, no que se refere ao setor educação, parecem bastante deprimentes. A taxa de escolarização no Piauí era adversa em todos os sentidos e trazia à tona um perfil educacional não muito diferente dos anos de 1970. Os anos de 1980 foram críticos para o magistério que sofreu as conseqüências de um sistema educacional anacrônico com pontos de estrangulamento visíveis (WILLADINO , 1984). As condições materiais podem ser ilustradas na fala do professor Alberico dos Santos, quando diz que [...] “a cada dia os problemas se acumulam, sem que

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haja soluções”. Como exemplo, disse ele que “nas escolas públicas do Piauí, faltam carteiras, giz, lápis, livros e até lâmpadas” (Jornal O Dia, 31/03/1989, p.02). A mudança na política educacional fazia parte das reivindicações para legitimar o movimento frente à sociedade, uma vez que discutindo questões referentes à oferta e qualidade do ensino, seria possível atrair apelo popular também para as questões relacionadas ao salário. Aqui surgem as condições concretas e objetivas para a criação de um sindicalismo de tipo diferente na categoria de professores. Quanto a isso, O atual movimento de professores da rede pública de primeiro e segundo graus no Brasil tende a articular-se em torno de três eixos. Sobre a questão salarial assenta sem dúvida a ampla base de massa do movimento. Há, por outro lado, uma discussão relativa aos rumos da educação e à “qualidade” do ensino. Por último, propõe-se também como necessária uma democratização geral da estrutura de poder no interior do sistema escolar. (PERALVA,1988, p.15)

No país, como expressão maior do Novo Sindicalismo, surge a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras centrais. Estas assumem outros princípios que fundamentaram a organização e estratégias de ação dos trabalhadores naquele contexto de mudanças. No livro “CUT ontem e hoje” os autores elencam como princípios fundamentais da central: o classismo, independência da classe, socialismo, democracia interna como condição indispensável, sindicalismo de base e de massas. Esses conceitos, dentro do ideário cutista estão interligados. São enfoques diferentes de uma mesma idéia, que nasce da crítica ao populismo na política e na prática sindical. “A CUT, comparada com o resto do sindicalismo brasileiro que permane-

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ceu fora dela assumia o ideário e uma prática marcada pela radicalidade (Ibid). São esses princípios que guiaram, por um bom tempo, as práticas sindicais e as formas de organização. A APEP surge como um componente diferenciado do sindicalismo piauiense, ainda assim, como afirma Reses (2015), o sindicalismo de professores se constitui de forma tardia. O autor parte do pressuposto de que a [...] “organização sindical de professores da educação básica ocorreu em dissonância com a necessidade de conquista de direitos há mais tempo, pois as condições de trabalho dos professores eram aviltantes como as dos operários, quando esses resolvem se organizar sindicalmente”. (RÊSES, 2015, p.20) Buscando teorizar e encontrar uma abordagem capaz de responder as razões do seu caráter tardio, identifica algumas características específicas deste movimento como o trabalho não material. Mas é na construção de sua subjetividade que se encontra o elemento capaz de oferecer a resposta. Evidentemente os professores não se apropriaram dos princípios cutistas mencionados anteriormente, como ocorreu com os operários, haja vista o surgimento tardio e as especificidades do sindicalismo docente. Aqui a concretude (se expressa na nova configuração surgida da combinação e relação dos acontecimentos até aqui combinados( KOSIK ,1996) Sem querer conhecer e exaurir todos os fatos, compreendemos que até aqui já é possível falar de uma nova realidade no movimento. O Novo Sindicalismo docente é a expressão concreta de uma concepção e se traduz numa estratégia de ação que tem no coletivo sua propriedade. Com relação às concepções que existiam no interior do movimento que se gestava, havia forte influência de correntes político-ideológicas, que teria um

traço de continuidades, pois, segundo Rodrigues (1991, 41), Ocorre que a reorganização do movimento sindical, notadamente o esforço em direção à formação das entidades nacionais, como as centrais, foram amplamente promovidas por corrente político-partidárias. Algumas delas existiam antes dos regimes militares (caso dos dois partidos comunistas, das organizações trotskistas, do trabalhismo, do nacionalismo populista, especialmente); outras tendências e organizações políticas haviam se formado no processo de luta contra os governos militares, como os movimentos de guerrilha; outras resultam da atuação da igreja e de entidades católicas [...] No tocante aos professores no Piauí, estes grupos vão assumir os debates sobre que estratégias organizativas adotar, já que “[...] a luta sindical é uma luta necessária, não apenas enquanto determinação própria da condição do trabalho assalariado, mas como meio de catalisar a consciência de classe”. (ALVES, 2003, 290) A direção do movimento passa por mudanças em março de 1988, quando a Chapa “Pó de Giz” assume efetivamente a direção da APEP. Depois de duas tentativas, forma-se uma aliança entre as correntes de esquerda contra a direção arenista. Mas como se forja essa nova direção? Sobre as tendências que compõem o Novo Sindicalismo docente no Piauí, Miranda (2015, P.02) ressalta: Do que recordo, as pessoas que estavam na linha de frente da Oposição, vinham do movimento estudantil, das organizações de esquerda e da igreja combativa

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(especialmente da pastoral operária, se não me falha a memória) e isso tudo, contribuiu para que essa relação com o movimento fosse natural. Ademais, havia o Centro Piauiense de Ação Cultural – CEPAC, que apoiava a Oposição e que tinha suas vinculações com o novo sindicalismo. As práticas e experiências sistemáticas de educação ou formação sindical sempre fizeram parte da história do movimento sindical brasileiro, adquirindo características e matizes diferentes (MANFREDE , 1996). O papel do CEPAC era conferir mais planejamento ao processo formativo, dirigido por um grupo de intelectuais orgânicos que promoviam a formação de lideranças e movimentos sociais. O Centro foi importante no despertar da consciência de classe entre as lideranças e no apoio aos grupos que se formavam por categoria na renovação do movimento sindical no Piauí. Embates e politização Para Halbwachs, "não é possível reter uma massa de lembranças em todas as suas sutilezas e nos mais precisos detalhes, a não ser com a condição de colocar em ação todos os recursos da memória coletiva" (HALBWACHS, 2003, p.187). Aqui realizamos o esforço de dialogar com a memória de vários sujeitos na tentativa de extrair uma leitura capaz de entender com que estratégias atuou o sindicalismo docente nessa nova fase. Na segunda metade dos anos de 1980, a representação sindical dos professores colocava como aspiração central o processo de profissionalização, envolvendo a definição de um novo estatuto do magistério, lei na qual se definiria um piso salarial e mecanismos de ascensão na carreira. Anos se

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passaram para que a lei fosse aprovada nos limites da proposta administrativa aplicada durante aqueles anos. O discurso do governo de que os professores receberiam o salário que mereciam, portanto “melhores salários”, esteve presente na imprensa local escrita. Essa expressão “melhores salários” vai fazer parte dos discursos de ambos os lados, governos e professores, nos embates diante da grave situação da categoria. “O que falta ao magistério piauiense é um salário melhor, mas vamos chegar lá, a partir do próximo ano, quando os professores terão os salários que merecem”. (Jornal O Dia, 09/11/1988, p.07) Diferentes grupos de professores alimentavam grande expectativa nas eleições da APEP de novembro de 1988, momento importante de grandes movimentações na disputa dos rumos do sindicalismo docente. Uma nova orientação política ocupava cada vez mais espaço e se credenciava como alternativa à velha direção. A “Chapa Pó de Giz” venceu as eleições numa composição que envolvia vários agrupamentos. Assim foi divulgado o resultado do pleito: No dia 09 de novembro de l988, em meio a mais uma greve, os professores piauienses foram às urnas para escolher o sucessor de Francisco Soares Santos no comando da APEP. Três chapas participavam do pleito: Unidade e Independência, encabeçada por José Rodrigues de Oliveira, com o apoio da diretoria da entidade; Construção e Ação, que tinha o apoio da Secretaria de Educação e era encabeçada pelo professor João Cordeiro; e Pó de Giz, que reunia os professores petistas e tinha como presidente o professor João de Deus. (CASTRO, 2003. 181)

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Aconteceram mudanças significativas no movimento de professores com a chegada das correntes de esquerda à direção da APEP.2 Essas lideranças eram a expressão do Novo Sindicalismo. Ao assumirem a direção da entidade, essas correntes passaram a aproximar o movimento de professores das lutas mais gerais dos trabalhadores brasileiros, procurando desenvolver uma nova consciência da realidade social. Essas lideranças ascenderam gradativamente, pois antes haviam composto representações de base como Comandos de Greve e Comissões de Negociação. Assim, dialogavam sobre suas posições com amplos setores envolvidos na luta. As campanhas salariais assumiam um novo formato e montavam pautas de reivindicações em torno das quais realizavam o chamado trabalho de base para aglutinar os professores. A campanha de 1988, que reivindicou 100% de reposição salarial sinalizou uma grande participação, pois reivindica o piso salarial do DIEESE, cerca de Cz$ 434,89 (quatrocentos e trinta e quatro cruzados e oitenta e nove centavos). Além disso, falava-se em direitos constitucionais, como pagamento de 13º salário, um terço de férias, concurso público, democratização das escolas e salários móveis. (Jornal O Dia, 11/11/1988, p.03), Os contatos com o interior do Piauí cresceram através das campanhas reivindicatórias e fizeram surgir as subsedes, que realizaram um trabalho de base mais amplo que fortaleceria o poder de mobilização. A adesão de 2

Lideranças ligadas naquele contexto construíam o Partido dos Trabalhadores (PT) e Central Única dos Trabalhadores (CUT). Estas lideranças assumiam como correntes tais como: Força Socialista (Lujam Miranda), Convergência Socialista (Lourdes Melo), Articulação Sindical (João de Deus), Ainda tinha influência Alberico Soares (Pastoral Operária).

cidades influentes como Campo Maior, Barras, Picos e Paranaíba (Jornal “O Dia”, 21/04/1989, p.02), torna-se importante para a estruturação e fortalecimento e crescimento da entidade. Essas estratégias desencadearam a publicização do crescimento da entidade, como explica Gonçalves: Na tentativa de aglutinar cada vez mais filiados, a estratégia utilizada pela diretoria envolve a publicização do número de sócios e a relação com outras categorias profissionais para estimular a filiação, bem como a utilização de análise através de gráficos nos jornais da categoria informando as conquistas e os desafios para a construção de uma entidade cada vez mais forte, com um número cada vez maior de sócios. (GONÇALVES, 2013, p.190)

Os núcleos regionais seguem como parte da estrutura da entidade, em sintonia com a representação estadual, para expandir e unir forças no sentido da consolidação da interiorização do movimento. Assim, o ano de 1989 tornou-se significativo para a reconfiguração do movimento de professores da rede estadual de educação por conta dos embates, que consolidam o ciclo no processo de organização e luta dos professores do ensino básico, tendo como signo a estratégia de enfrentamento político que envolvia os professores e utilizava método de ação direta.“Os professores da rede de ensino fazem manifestação às 16 horas de hoje, na Praça da Bandeira. A seguir, sairão em passeata pelas principais ruas do centro comercial até a Praça Pedro II, onde farão um ato público”. (Jornal O Dia, 27/04/1989, p.04).

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A greve de 19893 trouxe novas reflexões acerca do papel do movimento de professores e da sua importância na dinâmica política da sociedade piauiense. A defesa do ensino público de qualidade associado às questões da categoria dava mais força às ações. Era uma maneira de apostar na organização da comunidade escolar a partir das aspirações por melhoria da qualidade do ensino. O Novo Sindicalismo docente passa a dialogar com a comunidade, buscando provocar repercussão e se fortalecer, já que as atitudes políticas questionavam os planos de governo, numa combinação de interesses sociais. Esse caráter diferencia de toda a história recente o movimento na segunda metade dos anos 1980. Tenta-se localizar as greves no contexto social, fazendo desse instrumento algo transformador da realidade social, política e econômica. Nas reinvindicações, percebe-se a tentativa de universalizar um projeto político que contemplasse as classes populares beneficiadas com escola pública estadual, tendo como centralidade o público como bem comum. Essa concepção de sindicalismo envolve também uma compreensão da conjuntura geral, das relações de forças, a produção de uma consciência social e organização da comunidade escolar em torno da defesa da escola pública. As estratégias organizativas também envolviam ações mais gerais estabelecendo as relações entre o particular e o processo mais geral. Pode-se ilustrar isso com as resoluções votadas no 22º Congresso da Confederação dos Trabalhadores em Educação (ex-CPB), que chama à paralisação dos professores da rede oficial de todo o Brasil. Temas como reposição salarial, precarização das 3

Segundo o professor Alborino Teixeira, professor e liderança sindical integrante da Pastoral Operária, essa foi a greve mais longa da história sindical da categoria, tendo durado cerca de 112 dias.

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condições de trabalho, nova LDB e crise da educação (Jornal O Dia, 29/03/1989, p.23), concretizam os discursos orientadores desse movimento, provocando o enfrentamento político com os governos, apesar das intimidações e a repressão policial. De acordo com os policiais civis que interferiram na assembléia dos professores, tomando os instrumentos de propaganda dos grevistas como megafone e panfletagem, a ordem para levar os objetos partiu do secretário de Segurança Xavier Neto. Disse ainda o policial que caso os grevistas tentassem invadir o prédio da secretaria era para haver repressão no sentido de impedir a ação. Temendo agressões maiores, os professores resolveram realizar a assembléia fora do prédio e longe da polícia. (Jornal O Dia, 05/05/1989, p.3). O apelo sistemático ao diálogo por parte do então Secretário de Educação João Henrique sinalizava o receio às novas estratégias de lutas da categoria, identificada com a onda de protestos que assolava o país durante a Nova República, submergida na crise de hiperinflação e recessão. Como parte dos embates políticos, uma guerra de informações sobre a greve se apresentava na imprensa: “Só trinta por cento das escolas param em Teresina”, anunciava o Jornal O Dia, de 24 de abril de 1989, versão dos representantes do governo Alberto Silva, cada vez mais desgastado pela ação do movimento de professores, que só recuou com as medidas extremas do governo. Prisões e espancamentos ocorreram em meio à solenidade de reinauguração do prédio do Colégio Liceu Piauiense. Os professores estavam em greve há 112 dias e realizaram protesto para denunciar a situação das escolas.

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Sob o comando do secretário de segurança, Xavier Neto, agentes do Departamento de Ordem política e Social (Dops) e tropas de choque da Política Militar (PM) prenderam, ontem às 10h, oito diretores da Associação dos Professores do Estado do Piauí (Apep), o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais, Kenard Kruel e espancaram 25 pessoas que participavam de uma manifestação contra o governador Alberto Silva (PMDB). (ibid)

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Foram presas as professoras Maria Moura, Lujam Miranda, Francisca Nascimento, Tailândia Alencar, Sá Batista, Almir Marques, João de Deus, Manoel de Sousa, além do jornalista. Após o acontecido, a greve perdeu força e a categoria, reunida no Clube dos Professores, decidiu retornar ao trabalho em estado de greve. O movimento foi repensado como espaço de politização. Assim, passaram a ocupar cada vez mais as praças púbicas, procurando dar visibilidade ao movimento. Estes novos espaços buscam facilitar a participação dos associados e transformam-se no lócus privilegiado onde se definem formas de organização e ação da categoria, antes limitados aos espaços do Clube do Professor. Outras ações também se fazem necessárias como as passeatas, a concentração pública (no Palácio de Karnak), encontros, congressos e disputas da política educacional. Toda essa movimentação exigiu das lideranças a aquisição de conhecimentos voltados para o funcionamento do sistema educacional, uma vez que os embates precisavam ser feitos de forma qualificada. Algumas conclusões Procuramos discutir as mudanças no movimento sindical de professo-

res piauienses motivadas pelo Novo Sindicalismo, na segunda metade dos anos de 1980. Diferentes configurações haviam surgido na história do associativismo e sindicalismo docente, que, a cada momento trilhou como fio condutor caminhos difíceis e complexos. O fio que conduziu o movimento até o Novo Sindicalismo foi longo, seu salto de qualidade aconteceu com os enfrentamentos na busca de atendimento das reivindicações, defesa de um projeto de escola pública gratuita e de qualidade e o reconhecimento social desses profissionais. O Novo Sindicalismo docente traz consigo uma concepção diferente de sindicalismo de professores. Buscou superar o atrelamento aos governos e o corporativismo, modificando as estratégias de organização e ação coletivas, cujo principio fundamental foi a autonomia do sindicato. As greves foram espaços de mobilização e idealizaram de forma mais consistente os embates, transformando a atividade sindical. Com forte influência das correntes de esquerda, esse sindicalismo vai assumindo a luta política concomitantemente com os embates em torno das aspirações da categoria. Na teia da construção desse Novo Sindicalismo docente, teceram-se as condições para surgimento de uma nova consciência em si, do que seria ser trabalhador em educação como sujeito coletivo, uma aprendizagem cotidiana que nasceu nos embates, trazendo à tona novos ensinamentos adquiridos no processo de vivências e práticas organizativas. Ainda importa concluir que o movimento teve seu papel educativo, um espaço de trocas e reflexões sobre sua própria realidade social e política. Referências BAUER, Carlos. Da importância da teoria na construção da história social da educação brasileira. III Seminário da Rede de

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Messias Araújo Cardozo

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008. 388 pág. Messias Araujo Cardozo* Publicado em 1845, o texto A situação da classe trabalhadora na Inglaterra do filósofo alemão Friedrich Engels que se encontrava na Inglaterra é uma análise profunda e minuciosa das condições miseráveis a que era objeto o proletariado inglês na primeira metade do século XIX. O livro conforme ressaltou Eric Hobsbawm1 é “simultaneamente erudito e apaixonado, articulando a denúncia e a análise, ele é, para dizê-lo numa só palavra, uma obra prima”. Mas que uma análise sobre as condições dos trabalhadores fabris, tanto dentro como fora do ambiente fabril, à obra lança uma perspectiva de superação revolucionária desta realidade miserável do proletariado. Dividida em 11 capítulos, o texto é uma narração histórica e jornalística sobre o impacto do capitalismo, sobretudo do sistema fabril, sobre os trabalhadores ingleses, o jovem filósofo oferece uma análise primorosa sobre as misérias operárias: o trabalho infantil, o exíguo salário (quando não o pagamento em espécie), o trabalho feminino além das péssimas condições de moradia, saúde e alimentação. O autor não queria ter uma visão “abstrata”, ou meramente “livresca” do seu objeto, “[...], eu queria ser uma testemunha de vossas lutas contra o poder social e político de vossos opressores” (ENGELS, 2008, p. 37). Para tanto, além da observação in loco, o autor se utilizou de vários periódicos, folhetins e outros textos para buscar demonstrar a real condição dos trabalhadores, sobretudo os da região de Manchester. Para o autor a classe operária é umbilicalmente formada com a Revolução Industrial, existiria uma equação: fábrica = classe operária certo mecanicismo e economicismo neste ponto. Sobre isto acredito que a contribuição de Edward Palmer Thompson com seus estudos sobre a classe operária inglesa efetuados na década de 1960 indicam uma tese oposta à preposição engelsiana, sendo que para ele classe é um fenômeno cultural e econômico2 (ambos não podem ser dissociados). A obra sustenta a tese de que o capitalismo engendrou uma estrutura social de “guerra social”. E esta aberrante situação, não se encontrava escamoteada, mais aberta, sendo que “[...] ficamos assombrados diante das consequências das nossas condições sociais, aqui apresentadas sem véus, e permanecemos espantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando” (ENGELS, 2008, p. 69).

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Graduando do oitavo período do curso de Licenciatura Plena em História da UESPI (Campus Alexandre Alves de Oliveira), bolsista do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID, Subprojeto de História). Email: messias.histsocial@gmail.com 1 “Cf. o prefácio reproduzido em F. Engels, La situation de la classe laborieuse em Angleterre (Paris, Éditions Sociales, 1961), p. 8”, Citado em Op.cit, 2008, p. 9. 2 “Os operários, longe de serem os „filhos primogênitos da revolução industrial‟, tiveram nascimento tardio [...]. O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica” (THOMPSON, 1987, p. 16-17).

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A introdução e o capítulo 1 têm como ideia principal mostrar o impacto da revolução industrial, da concentração da grande indústria. O capítulo dois oferece um estudo privilegiado para o tema da urbanização e sua interface com o processo de industrialização. No capítulo três o proletariado é aludido ao escravo, no quarto capítulo a imigração constante (sobretudo dos irlandeses) é o grande material do exército de reserva que necessita o sistema capitalista. O capítulo cinco denuncia o assassinato social que acontece na sociedade inglesa da época, o autor enfatiza: “Mas isso não é tudo. É verdadeiramente revoltante o modo como a sociedade moderna trata a imensa massa dos pobres” (ENGELS, 2008, p. 137). As péssimas roupas, os alimentos indigestos, o amontoamento de seres humanos em espaços insalubres, pequenos onde todos os tipos de doenças e violências se propagam, são os resultados sociais do “progresso” da introdução do capitalismo em sua forma selvagem na Inglaterra. Um aspecto importante na minha visão, a que a obra alude e que ainda se encontra (tanto entre os trabalhadores urbanos como rurais sem distinção de ramo de ofício) presente na cultura e no lazer dos trabalhadores é o uso exacerbado do álcool, uma das misérias que o industrialismo maximizou entre os trabalhadores. Pois “todas as ilusões e tentações se juntam para induzir os trabalhadores ao alcoolismo. A aguardente é para eles a única fonte de prazer e tudo concorre para que a tenham a mão” (ENGELS, 2008, p. 142). Os trabalhadores da época eram empurrados para uma condição de desespero, de alienação tamanha, que o álcool e outros entorpecentes eram a única espécie de consolo. Objetos de uma rotatividade incrível (oscilando quase que diariamente da condição empregado/desempregado), morando em péssimas condições, com jornadas de trabalho diárias que iam até às 16 horas (por vezes mais) o trabalhador “[...] tem a urgente necessidade de distrair-se; precisa de qualquer coisa que faça seu trabalho valer a pena, que torne suportável a perspectiva do amargo dia seguinte” (ENGELS, 2008, p. 142). A disseminação endêmica do consumo do álcool que é decididamente um ingrediente determinante da desagregação familiar seria produto direto neste caso, do capitalismo, para Engels “[...] aqui, a responsabilidade cabe aos que fizeram do trabalhador um simples objeto” (ENGELS, 2008, p. 143). As condições sub-humanas onde o proletariado inglês se encontrava foram narradas com maestria, podendo-se creditar a obra o título de uma história social da Inglaterra (a primeira com a utilização da concepção materialista dialética). Além da maestria, a obra é imbuída de uma retórica finalista, certo catastrofismo para empregar uma ideia de José Paulo Netto3, o autor projeta uma revolução que seria iminente, pois a classe operária, o proletariado em geral iria iniciar uma revolução quando da próxima crise do sistema capitalista. A escrita deste texto é surpreendente se levarmos em conta o lugar de produção4 do autor e da obra, pois Engels era de situação social privilegiada de família que possuía grandes posses, porém seu contato com as ideias socialistas dos franceses e alemães logo o fizeram se desvencilhar da ideologia burguesa e se indignar contra a situação social dos trabalhadores ingleses da época. 3

Ver: idem, 2008, p. 34. Ver: “A operação historiográfica”, In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 4

ISSN 2447-7354


Messias Araújo Cardozo

O principal mérito desta obra na minha perspectiva é seu grau de abrangência, seu leque de temas e a coesão interna do texto. Apesar de o fio condutor ser uma concepção dialética, uma perspectiva de movimento (revolucionário) da sociedade, Engels situa o leitor no âmago da condição proletária, lá onde ela se encontra estática, parada na miséria. Nos mostra a alimentação mais que precária (indigesta e inexistente às vezes), os aluguéis que concorriam com a subsistência, os abusos sofridos pelas mulheres nas fábricas, a repetição mecânica, sisífica do ato laboral cotidiano, enfim, um relato da crueldade e da perversidade que o capital insaciável5 impôs na Inglaterra. Acredito ser uma obra de referência, desde que situada em seu tempo e em sua lógica argumentativa e posição ideológica. Existe na obra a ideia de um sentido histórico, que a sociedade capitalista seria uma transição para algo que a ultrapassaria, onde o depois seria revestido de positividade (a superação do capitalismo através da revolução).6 Na minha visão, por causa da condição miserável e deplorável que os trabalhadores analisados se encontravam, o autor lhes dotou de uma essência revolucionária, projetando várias profecias que ele mesmo disse em prefácio a uma edição posterior da obra: “Não me passou pela cabeça tirar do texto as várias profecias – especialmente aquela sobre uma iminente revolução social na Inglaterra – devidas ao meu entusiasmo revolucionário daqueles anos” (ENGELS, 2008, p. 351). A mutação e as várias metamorfoses do sistema capitalista são um dado notável, que se não inválida ao menos redimensiona a análise da opressão e da dominação social. Em artigo7 célebre, Foucault nos indica que “nem a relação de dominação é mais uma „relação‟, nem o lugar onde ela se exerce é um lugar” (FOUCAULT, 1979, p. 25). Os estudos de Edward Thompson já citado, de Eric Hobsbawm são importantes para enfatizar a natureza plural, não apenas e essencialmente econômica da classe operária, de suas lutas e cotidiano. A leitura da obra traz espanto, indignação e uma compreensão sem “véus” (como o autor mesmo se refere à obra) da extrema brutalidade da condição proletária dos primeiros tempos do capitalismo inglês. Serve de ponto referencial quando não incontornável para as pesquisas sobre mundos do trabalho, operariado e condição dos trabalhadores urbanos. Apesar do catastrofismo e das previsões revolucionárias, a obra enuncia a escancara as formas do capital se apropriar do trabalho, exaurindo o trabalhador e empurrando de forma cruel milhões de indivíduos a existências sem as condições mínimas e necessárias para a vida. A “questão social”, o estado de guerra de “todos contra todos” ainda persiste. Subsiste de outras formas, se inscreve sob novos disfarces, de forma não análoga na natureza da aplicação, mais “suavizada” pelas legislações trabalhistas e pelos apelos e combates do setor sindical.

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Ver: MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I, O processo de produção do Capital. 31ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 2013. 6 Esta ideia de um “sentido histórico” foi bastante criticada posteriormente à publicação do texto de Engels por vários pensadores de variadas escolas de pensamento, como Walter Benjamim, Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, este último chegou a escrever que “a história não tem „sentido‟, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente” (FOUCAULT, 1979, p. 5). 7 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

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Todavia, uma condição do trabalho sob a égide capitalista denunciada na obra ainda persiste: a expropriação dos produtos e a exploração do trabalho alheio por uma classe de parasitas, ainda constitui a relação patrão/empregado na atualidade. Se tomarmos como base a elencação dos três tipos de tiranos proposta no século XVI8, pode-se dizer que a dessemelhança dos três (ou quantos forem seus tipos) se complementa pelo fio condutor que os une hoje: o fato de subsistirem através da exploração do proletariado. Haveria espaço a uma reapropriação da obra para uma análise da condição do trabalhador no Brasil hoje? Sem dúvida que sim, tomadas às ponderações citadas, o fio condutor e a tese central (a exploração do trabalho) são uma realidade, fato escamoteado, disfarçado. A questão social (leia-se movimentos dos trabalhadores) no Brasil apesar de sua mutação de caso de polícia para caso de política não mudou o caráter de repressão9 e a natureza da exploração proletária na contemporaneidade no nosso país, o que Engels insinuou em 1845, o que mostrou em seu texto, ainda guarda similitudes incríveis nos dias de hoje.

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Refiro-me ao texto Discurso sobre a servidão voluntária, escrito em 1548 por Étienne De La Boétie. Sobre a passagem aludida ver: LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 33. 9 Ver: MATTOS, Marcelo Badaró. Greve, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964). Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, n° 47, 2004.

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