Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano III, n. 04

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Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano III, n. 04. Janeiro-Julho de 2017. Parnaíba-PI

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Messias Araujo Cardozo

Sumário Expediente .................................................................................. 03 Artigos O CONCEITO DE CLASSE SOCIAL: As contribuições de Marx e Thompson Messias Araujo Cardozo ......................................................................... 04 Dossiê História Social, Trabalho e Natureza O FIM DO TRÁFICO NEGREIRO (1850) e o contrabando de escravos em Itapemirim Laryssa da Silva Machado ..................................................................... 16

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ENTRE MEMÓRIAS E NARRATIVAS: A classe operária da Fábrica de Laticínios dos Campos. João Bosco Pinheiro Ribeiro ................................................................... 30 ESCRAVIDÃO EM FEIRA DE SANTANA, FREGUESIA DE SÃO JOSÉ DAS ITAPOROROCAS (1785-1826): relações sociais e afetivas entre escravizados/as Yves Samara Santana de Jesus ............................................................... 41 EXPERIÊNCIA, TRABALHO E ARTESANATO: as rendeiras de Lagoa do Sobradinho (Luís Correia-PI) e a produção de renda de bilro. Samires Lima Souza & Amanda Maria dos Santos Silva ......................... 53 ENTRE A PRANCHA E A REDE: as contradições entre a prática do kitesurf e a pesca artesanal segundo os pescadores da Praia da Pedra do Sal (Parnaíba-PI). Alexandre Wellington dos Santos Silva & Edgleison Sousa dos Santos ...... 62 Resenhas MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Messias Araujo Cardozo ......................................................................... 69

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Expediente A Revista Piauiense de História Social e do Trabalho é um periódico científico de acesso livre e gratuito, de edição semestral, vinculado à plataforma Mundos do Trabalho Piauí, e tem como objetivo facilitar e difundir investigações teóricas, pesquisas e resenhas que contenham análises, críticas e reflexões sobre o Mundo do Trabalho (urbano e rural), com enfoque no Estado do Piauí, nas mais diversas temporalidades e temáticas variadas, como: formação do mercado de trabalho, trabalho escravo, diversificação do mundo do trabalho, movimento operário, imprensa operária, cultura operária, dentre outros, aceitando também colaborações com análises de outras realidades em localidades distintas.

Apoio: Plataforma Mundos do Trabalho - Piauí: http://mundosdotrabalhopi.blogspot.com.br

Corpo Editorial Coordenação e Edição: Prof. Alexandre Wellington dos Santos Silva Prof. Msc. José Maurício Moreira dos Santos

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Conselho Consultivo: Profa. Msc. Amanda Maria dos Santos Silva Profa. Msc. Ana Maria Bezerra do Nascimento Prof. Msc. Francisco Raphael Cruz Maurício Profa. Msc. Maria Dalva Fontenele Cerqueira Prof. Msc. Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa Prof. Msc. Yuri Holanda da Nóbrega Foto de capa: “Trecho do Piauí na época da seca. São Raimundo Nonato (PI). Maio de 1912”. In.: Fundação Oswaldo Cruz. A ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1992, p. 67.

Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - Parnaíba-PI Janeiro/Julho de 2017. Ano 03, n° 04. contato.rphst@gmail.com www.rphst.com.br

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O CONCEITO DE CLASSE SOCIAL: As contribuições de Marx e Thompson Messias Araujo Cardozo1 Resumo O artigo analisa o conceito de classe na sua acepção teórica em Karl Marx (18181883) e Edward Thompson (1924-1993), no sentido de perceber as variantes conceituais e assim apontar as possibilidades do uso historiográfico do conceito. Abordo o conceito fazendo uma análise bibliográfica e uma incursão sobre textos de autores que versam sobre o tema, buscando escapar de dicotomias generalizantes e análises apressadas sobre o tratamento do conceito de classe efetuado pelos dois autores citados, buscando demonstrar uma evolução e refinamento, até mesmo continuidade do pensamento de Marx e Thompson sobre o conceito de classe. Palavras-Chave: Classe, Marx, Thompson.

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Abstract The article analyzes the concept of class in its theoretical purposes in Karl Marx (1818-1883) and Edward Thompson (1924-1993), in order to perceive the conceptual variants and thus pinpoint the possibilities of historiographical use of the concept. I approach the concept by making a bibliographical analysis and an incursion about texts by authors who consist with the theme, looking for escape generalizing dichotomies and hasty analyzes about the treatment of class concept done by the two authors cited, looking for to demonstrate an evolution and refined, even continuity of Marx and Thompson’s thought about the concept of social class. Keywords: Social class, Marx, Thompson.

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Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (2016). Foi bolsista do Programa de Bolsa de niciação à Docência, subprojeto de História (PIBID/CAPES). E-mail: messias.histsocial@gmail.com.

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“Hoje, não se trata de reativar a noção de luta de classes: ela encontra-se em toda parte, insuperável. Temos necessidade é de uma apreensão renovada da natureza da consciência de classe e de seu funcionamento”. Fredric Jameson

Introdução No que concerne ao conceito de classe, muito pode ser dito sobre sua vigência, pertinência e uso, não apenas para a historiografia como para o âmbito das demais ciências humanas. Neste sentido, o trabalho de Karl Marx (18181883) e Edward Thompson (1924-1993) sobre o conceito em questão, e um estudo das diferenças de abordagem e significado do mesmo nos autores é apenas uma possibilidade entre uma imensa miríade de questões que podem ser levantadas e do vasto leque que pode ser aberto sobre o tema. Antes de adentrar sobre os textos dos dois autores, fazendo um balanço e contraponto, é pertinente situarmos as discussões dos autores em seus tempos. Tanto em termos de contexto social e lugar de produção1 como de possibilidade epistemológica2. São autores de dois séculos distintos, com influências e formações intelectuais igualmente diferentes, mas que em um ponto convergem: a sociedade está divida em classes, tendo a classe operária ou proletariado os encargos da manutenção social.

Karl Marx, filósofo alemão, que iniciou seus estudos sobre o capitalismo quando este ainda estava em formação, é um intelectual que não se limitou a um campo específico. Apesar de filósofo de formação, foi historiador, jornalista, cientista político, sociólogo (dentre outras classificações). Sempre em movimento pelos saberes existentes e emergentes (como a sociologia e a historiografia científica) do século XIX, com uma imensa força3, o materialismo histórico criado por ele com colaboração de Friedrich Engels (1820-1895) é um dos paradigmas do campo da História. Para Marx, o capitalismo apenas tornou mais agudo e forte os antagonismos sociais, para o mesmo a história seria um ininterrupto fluxo de luta de classes que apenas mudaram de nome e de contexto4. No capitalismo europeu do século XIX, o autor indicou que o antagonismo entre o proletariado (classe operária) e a burguesia (classe capitalista) seria o palco da revolução socialista, que poria fim ao conflito de classe, centro do processo histórico segundo Marx. Já Edward Thompson, iniciando suas discussões no âmbito do século XX (mais precisamente aqui tomamos como base para esta pesquisa seus estudos sobre a formação da classe operária inglesa, publicados em 1963), historiador inglês, em um contexto de duas guerras mundiais e de uma revolução socialista na Rússia em 1917, é um autor mais circunscrito ao âmbito da historiografia, 3

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Ver: “A operação historiográfica”, In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 65-119. 2 No caso de Marx a filosofia alemã (Hegel e Feurbach principalmente), a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo) e da filosofia política e revolucionária francesa. Sobre isto ver: LEFEBVRE, Henri. Marxismo. Ed. Porto Alegre, RS: LM&P, 2009.

“A imensa força de Marx sempre residiu em sua insistência tanto na existência da estrutura social quanto na sua historicidade, ou, em outras palavras, em sua dinâmica interna de mudança”, ver: HOBSBAWM, Eric. “O que os historiadores devem a Karl Marx?” p. 210, In: __________, Sobre História. Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2013. p. 200-220. 4 Sobre isto ver: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Ed. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 40.

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não que o uso de seus conceitos e estudos se limite aos historiadores. Não propôs um paradigma, porém renovou um, e neste caso foi justamente o marxismo e seu uso na análise historiográfica que, mas se beneficiou com suas pesquisas. Sem dúvida que Thompson ainda se beneficiou ainda dos avanços no campo da história, a emergência de novos conceitos e de incontáveis estudos sobre o capitalismo e a classe operária, como os de Eric Hobsbawm, Christopher Hiil e Raymond Willians conjuntamente que com o seu, formam o que se convencionou chamar de “escola inglesa do marxismo”5.

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Foi vinculado ao Partido Comunista inglês (tendo saído em 1956), foi sido professor de escolas para trabalhadores e membros da classe operária e pobre6. É um autor que diferente de Marx não propõe uma visão conjuntural e muito menos uma proposta definida de ação política revolucionária. Se em Marx formulação teórica e proposta de modelo social se imbricavam (como se pode ver no Manifesto Comunista de 1848) em Thompson é metodologia e teoria que se interpenetram. Ainda neste sentido, a pesquisa de já adverte o seu caráter bastante circunscrito e incompleto, devido as incontáveis 5

Sobre a Escola Inglesa, aponta o historiador José D´Assunção Barros: “Grupo de historiadores marxistas atuantes na segunda metade do século XX que revelam uma especial preocupação com a História Cultural, e que foram responsáveis por uma proposta moderna e flexibilizadora do materialismo histórico, trabalhando dentro de uma abordagem interdisciplinar e ocupando-se de novos objetos que até então eram pouco estudados pelas correntes tradicionais do marxismo” (BARROS, 2012, p. 200). 6 “Os alunos dos cursos de extensão para adultos nas cidades inglesas eram provenientes das classes médias baixas e dos setores de trabalho industrial e comercial mais empobrecidos” (SHUELER, 2007, p. 7).

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possibilidades de estudo sobre os autores. O debate de conceituações e possibilidades do uso do conceito de classe tendo como base Marx e Thompson não se impõe como uma assertiva que almeja estabelecer uma assimetria entre os dois, “qualificando um” e “desqualificando outro”, o diálogo é apenas analítico, com vistas a entender a conceituação dos dois sobre a classe, e os desdobramentos subsequentes, sobretudo sobre a consciência de classe. Na nossa acepção, os conceitos e as teorias são apenas caixas de ferramentas7. Marx: A classe entre a economia a luta e a política revolucionária Marx ao analisar a sociedade capitalista e a classe social em particular, propôs de lado da análise social uma proposta de ação. Esta seria revolucionária e com fins de emancipação do proletariado. O capitalismo teria engendrado um sistema no qual os capitalistas ao extraírem a mais-valia8 da classe operária estariam cada vez mais “produzindo seus próprios coveiros” (MARX, ENGELS, 2010). Certa noção de essencialidade revolucionária em relação a classe operária (proletariado) é visível em alguns textos de Marx, sobretudo os de juventude. Na Sagrada Família (1845) texto escrito em coautoria com Engels, por exemplo, ele diz sobre o proletariado que: “Não se trata de saber o que este ou aquele proletário, ou mesmo o proletariado como 7

Como aponta Gilles Deleuze: “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma” (FOUCAULT, 1979, p. 71). 8 Sobre isto ver: MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I, O processo de produção do Capital. 31ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 2013. p. 220-231.


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um todo, propõe momentaneamente como objetivo. Trata-se de saber o que o proletariado é o que deve historicamente realizar de acordo com seu ser” (MARX apud GORZ, 1987, p. 27, 28). Neste sentido, o papel da classe (no caso de sua ação e movimentações) é central na obra do filósofo. Como desdobramento de um movimento econômico anterior, o capital teria transformado a sociedade polarizando-a, onde os indivíduos impelidos pela economia seriam convertidos em classe pelo determinismo econômico: As condições econômicas, inicialmente, transformam a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. (MARX, 1985, p. 159). Um dos problemas desta tese, é que os indivíduos são determinados apenas por uma única instância social (a estrutura econômica), mas como ressalvamos o autor analisa em um tempo onde as próprias situações da sociedade da época o levaram a tais conceituações. Transparece no texto, um sério peso que o autor credita a dominação do capital9, como um leviatã que empurra em um fluxo inexorável a subjetividade do operário à instância da classe. Em Marx, economia e política estão unidas, tendo a primeira um papel de-

terminante na segunda10, e a classe operária teria um papel chave no processo revolucionário socialista. Dito isto, a classe e a política em Marx teriam uma relação direta (“toda luta entre classes é um luta política”), posto que a visão de Marx grandemente tenha como base a ideia hegeliana da realidade em movimento11, este seria dialético e materialista, tendo por base uma visão estrutural do capitalismo. A visão de Marx sobre a classe12 não é bem definida e única. Ora transparece uma visão onde o econômico é determinante (a classe é para o capital), ora as classes são forjadas por meio de interesses comuns encarnados em uniões políticas entre os membros (sempre esta união pensada em oposição à outra classe), neste sentido: “Marx parece usar o termo classe com sentidos nem sempre equivalentes” (RIDENTI, 2001, p. 13). No Manifesto Comunista (1848), transparece a ideia de que as classes teriam uma existência antes do capitalismo, onde patrícios e plebeus, servos e senhores feudais seriam classes antagônicas13. Porém, um paradoxo é visível, pois anteriormente ao texto do Manifesto, na Ideologia Alemã (1845) escrito também em coautoria com Engels, os autores apontam que a classe é fruto da burguesia: “A diferença do indivíduo pessoal em relação ao indivíduo de classe e o caráter casual das condições de vida para o indivíduo apenas se manifestam 10

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Para Max Weber: “Chamamos ‘classe’ todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe” (WEBER, 2012, p. 199). Porém a situação não se circunscreve única e exclusivamente a instância econômica. Sobre a visão de Marx sobre a classe, Weber afirma ainda que: “O final interrompido de O capital, de Karl Marx, pretendia evidentemente ocupar-se do problema da unidade de classe do proletariado, apesar de sua diferença qualitativa” (WEBER, 2012, p. 201).

Ver: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008. p. 47. 11 Sobre o a ideia de movimento na visão de Marx ver: Op. Cit, 2009. p. 18. 12 “Não há unanimidade entre os marxistas sobre o conceito de classes sociais, se quer sobre o seu significado dentro das obras de Marx, que jamais tratou explicitamente da questão” (RIDENTE, 2001, p. 13). 13 Op. Cit, 2010, p. 40, 41.

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com a aparição da classe que é, por sua vez, um produto da burguesia” (MARX, ENGELS, 2007, p. 104, 105)14. Os textos de Marx acabam transparecendo-nos que o termo classe só pode ser aplicado apenas às sociedades capitalistas, porém ele utiliza o conceito para outras formações sociais anteriores ao capitalismo. Outro ponto onde o autor também indica-nos como ele pensava as classes, suas lutas e paradoxos é: O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852), onde Marx traça algumas considerações sobre os “camponeses parceleiros” franceses e sua adesão (alienada para o autor) ao Bonaparte sobrinho. Sobre os camponeses franceses e suas uniões:

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“Milhões de famílias existindo sob as mesmas condições econômicas que separam seu modo de vida, os seus interesses e a sua cultura do modo de vida, dos interesses e da cultura das demais classes, contrapondo-se a elas como inimigas, formam uma classe. Mas na medida em que existe um vínculo apenas local entre os parceleiros, na medida em que a identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhum fator comum, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, eles não constituem classe alguma”. (MARX, 2011, p. 142, 143). Esta assertiva do autor torna-se paradoxal com outros textos do próprio Marx que já citamos, onde apenas a instância econômica já impelia o trabalhador à classe. Neste sentido, torna-se evidente que Marx ora autoriza (e utili14

Ver: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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za) o uso do conceito de classe aplicando-o unicamente ao sistema capitalista, ora ele o acopla para a análise de sociedades como a romana e a medieval15. O que nos leva a considerar, se ele faz isto apenas para demonstrar a polarização e antagonização entre as classes que seria característica de todas as formações sociais, ou que ele se furtou a uma conceitualização precisa e circunscrita sobre o conceito de classe. A classe em Marx apesar das ambiguidades e usos distintos, tem uma conexão com a economia e a política como já demonstrado, porém esta política é orientada majoritariamente em direção à revolução socialista, onde o proletariado como classe dominante iria destruir todas as classes sociais em geral e instauraria a controversa “ditadura do proletariado”, fase intermediária entre o capitalismo e o comunismo16. Neste sentido o papel do partido, do sindicato e de associações de trabalhadores teria papel fundamental na fermentação progressiva e com fins bem definidos da consciência de classe que seria necessariamente mais desenvolvida e até mais adequada devido ao trabalho17. 15

“No universo de escritos de Marx e Engels, existem textos que ora autorizam o uso generalizado de classe como categoria que pode ser utilizada para qualquer período histórico, e outros que ora sugerem a ideia de que o conceito ‘classe’ aplicarse-ia mais especificamente a sociedade capitalista” (BARROS, 2011, p. 111). 16 Apesar de serem enfáticos quanto à sucessão histórica: capitalismo (revolução), socialismo e comunismo, o último não representa o “fim da história”, pois para Marx e Engels: “O comunismo não é, para nós, um estado (Zustand) que deve ser implantado, um ideal ao qual a realidade [haverá] de se sujeitar” (MARX, ENGELS, 2008, p. 59). 17 Neste sentido, Jean Paul Sartre argumenta: “Por exemplo, no pequeno-burguês, a consciência de classe será objetivamente vaga, obscura e nunca poderá, por razões que Lukács explica, chegar a uma verdadeira consciência de si, ao passo que o proletariado, profundamente inserido no processo


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Ao circunscrever a classe aos limites dado pelo econômico e pelo político e com raras exceções não dotar estes aspectos como determinantes tanto da constituição da classe e, por conseguinte da consciência de classe, Marx não credita a cultura e aos valores advindos de outras instâncias sociais uma relevância quanto às questões de classe, o que limita o seu uso no sentido de Marx para outros contextos que não os estritamente idênticos ou no mínimo mais similares possíveis no sentido econômico. Sem dúvida que a análise de Marx sobre as classes e sobre seu desenvolvimento e condição dentro do capitalismo são valorosas. Ao demonstrar como a sociedade se divide em dois polos antagônicos e creditar a economia as principais causas da miséria humana após a Revolução Industrial, o autor contribuiu decisivamente para a construção de uma análise social sofisticada e uma crítica mordaz aos efeitos do capitalismo para os trabalhadores, sobretudo a classe operária. O trabalho reafirma que não buscamos uma redução simplista do uso do conceito pelo autor sob o epiteto “economicista”. Mesmo tendo textos que Marx limita o uso do conceito de classe ao âmbito do econômico, ou mesmo sua dicotomia “classe em si/para-si”, deve-se ter em consideração que o uso do conceito pelo autor também é arbitrário e não sistemático e sempre com o mesmo sentido de aplicação. A consciência de classe e o papel dos partidos, sindicatos e das “vanguardas” em geral é capital segundo Marx para que as classes atinjam um grau de consciência de si. E é na luta que a consciência de classe se estabelece, manifesta de produção, pode ser levado pela realidade que é seu trabalho, a uma total tomada de consciência de classe” (SARTRE, 2015, p. 29, 30).

sempre em um sentido político, de organização e mobilização para fins emancipacionistas, como mostra Marx: “Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui como classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política” (MARX, 1985, p. 159). Existe, portanto, uma interface necessária entre a formação da classe e a consciência de classe, mesmo que para o autor esta seja mediatizada majoritariamente pela questão econômica. Thompson: O fazer-se da classe, cultura e experiência Em The Making of the English Work Class, obra em três volumes publicada em 1963, Edward Thompson se propõe a analisar a classe operária inglesa entre 1790 e 1840, este período seria o período em que a classe operária inglesa teria estado presente em seu próprio “fazerse”18, ou seja, a partir das experiências e da luta, a consciência de pertencimento teria engendrado entre os operários um sentimento de pertencimento e assim teria surgido a classe. No prefácio ao volume I (1963), o autor indica o que pensa ser a classe e a natureza de sua formação e os desdobramentos necessários anteriores ao seu fazer-se que seria a tomada de consciência. Pois diferentemente de Marx, Thompson credita a consciência e não a instancia econômica ou política a formação da classe, enfatizando a experiência e não a estrutura economia. Conforme Thompson:

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“A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 2011, p. 9).

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“Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas”. (THOMPSON, 2011, p. 9).

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Neste ponto a originalidade do autor se irrompe contra as assertivas de Marx demonstradas anteriormente, e contra o estruturalismo, sobretudo do marxismo ortodoxo e da linha de pensamento de Louis Althusser (1918-1990) que Thompson iria criticar em outro ensaio19 onde o fator econômico é por si mesmo determinante para a formação da classe ao aglutinar um grande número de pessoas dentro de uma mesma posição no modo de produção. Para o historiador inglês, a classe se forma a partir da luta de classes e não do fator econômico. E sua consciência de classe se forma a partir da própria experiência operária, de suas lutas, contradições e movimentos e não por uma força externa atuando na “vanguarda”. O autor então se põe contrário à concepção leninista-vanguardista, onde intelectuais e ou outros sujeitos ideologicamente comprometidos com a causa operária teriam o papel decisivo de “inserirem a consciência de si” a partir de fora da experiência dos próprios operários à classe operária. Para o autor a classe ocorre a partir de outros matizes e não apenas da estru19

Trata-se de: The Poverty of Theory, 1978. Utilizamos nesta pesquisa a edição brasileira: THOMPSON, Edward. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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tura econômica capitalista, do espaço fabril. Neste sentido ele se contrapõe a tese de Engels20 onde: “Os primeiros proletários surgiram com a indústria, foram o seu produto imediato [...]” (ENGELS, 2010, p. 63). No volume II, Thompson irá contrapor-se a tese de Engels enfatizando a experiência e o sentimento de identidade e não o fator produtivo para a formação da classe operária inglesa: “Os operários, longe de serem os ‘filhos primogênitos da revolução industrial’, tiveram nascimento tardio” (THOMPSON, 1987, p. 16). A classe não aconteceria a partir de instancias fora de sua esfera imediata, de sua experiência ao partilhar sentimentos comuns. Indiscutivelmente que o fator econômico é importante, porém o cultural é igual ou superior quando da formação da classe, “visto que a classe é uma formação tanto cultural como econômica [...]” (THOMPSON, 2011, p. 13). Mas para o historiador inglês a cultura e os sentimentos de identidade e de pertencimento a uma instancia maior que sua existência atomizada parece ter um valor mais acentuado do que o mero posicionamento num determinado ponto da produção e do modo de produção. Se a classe não acontece quando a massa é comprimida nos estabelecimentos fabris para a produção da mais-valia 20

O filósofo alemão é enfático ao dizer que: “A história da classe operária na Inglaterra inicia-se na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a processar o algodão” (ENGELS, 2010, p. 45). Thompson rebate igualmente: “Independentemente das diferenças entre seus julgamentos de valor, observadores conservadores, radicais e socialistas, sugeriram a mesma equação: energia a vapor e indústria algodoeira = nova classe operária. Ainda assim, não podemos assumir qualquer correspondência automática ou excessivamente direta entre a dinâmica do crescimento econômico e a dinâmica da vida social ou cultural” (THOMPSON, 1987, p. 13,15).


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conforme Marx ou quando de sua entrada na produção a partir das máquinas e das fábricas como para Engels, então quando a classe acontece para Thompson? “A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas e partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamentee”. (THOMPSOM, 2011, p. 10). Não é a partir do mero aspecto fabril de uma região ou do surgimento de relações de produção capitalista, conforme alguns textos dos fundadores do materialismo histórico citados apresentam, que a classe se forma, surge e acontece. Porém, conforme Thompson mesmo ressalva, ele não deseja com isto negar a condição ou a existência da classe e da exploração de classe quando estas noções de pertencimento não ocorrem: “Mas um erro semelhante é diariamente cometido do outro lado da divisória ideológica. Sob uma forma, é uma negação pura e simples. Como a tosca noção de classe atribuída a Marx pode ser criticada sem dificuldades, assume-se que qualquer noção de classe é uma construção teórica pejorativa, imposta às evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe” (THOMPSON, 2011, p. 10, 11). Além da política e da economia a cultura deve ser levada em consideração para a consciência de classe, que emerge da luta de classes e é central para o autor na formação da classe como um to-

do capaz de atuar com uma identidade de interesses comuns. Todavia, estas ideias do autor são problemáticas. Pois ao rejeitar ou no mínimo por em um plano secundário o fator econômico, o autor acabada deixando de lado o movimento da produção da vida material e “[...] Thompson acaba enfatizando o aspecto político-cultural” (CARRERA, 2014, p. 144)21. Parece que Thompson não credita a economia um fator tão decisivo. Fazendo-o ser acusado de “voluntarista” ao isolar a célebre passagem de Marx em O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte (1852) onde o filósofo afirma que os “homens fazem a história”, se esquecendo de seu final “mas não conforme a sua vontade” (RIDENTE, 2001), outro aspecto criticável é considerar a luta de classes apenas como resultado, fator secundário e não motor e fator primordial no processo histórico da classe operária. Não a economia e a “classe para o capital”, mas a consciência de um antagonismo é que engendra e forma as classes, no texto: Algumas observações sobre classe e “falsa consciência”: “Para dizê-lo com todas as letras: as classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como classe, vindo, 21

“[...] em sua exaltação da experiência Thompson deixa de lada a classe em si, pois a luta é, para ele, uma resultante e não o motor do movimento, não é causadora, mas sim consequência. A experiência que resume todas as experiências é a experiência de luta” (CARRERA, 2014, p. 147).

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pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe” (THOMPSON, 2001, p. 278). Apesar de uma aparente oposição neste ponto em relação à citação de Marx na Miséria da filosofia da classe “para o capital”, no mesmo texto de Marx existe uma similitude clara com a ideia de Thompson de que é a partir da luta que a classe se forma (apesar de Marx enfatizar mais a questão econômica e não falar em termos de experiência), afinal é na “luta que a classe se constitui” (MARX, 1985, p. 176), assim como para Thompson é com luta que a classe se faz (THOMPSON, 2001, p. 278) e não deve ser encarada como uma concepção estática e heurística (THOMPSON, 2001).

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Apesar de amigo e admirador das teses de Thompson, outro historiador inglês, Eric Hobsbawm (1917-2012), afirma que: [...] se o período que Thompson estudou é, neste e em outros aspectos, crucial para a emergência, para o ‘fazerse’ da classe operária inglesa, Thompson me parece estar errado ao sugerir – pois ele não vai além disso – que as classes trabalhadoras do período anterior ao cartismo, ou mesmo durante este movimento, eram a classe trabalhadora como ela iria se desenvolver mais tarde (HOBSBAWM, 2000, p. 281). Neste sentido, as flutuações econômicas e outras correlatas como as metamorfoses da política inglesa iriam incidir de forma mais determinante que a experiência operária estudada por Thompson no “fazer-se” do operariado enquanto classe. O que não quer dizer nem que Thompson negue a realidade opressiva do capital e nem rompa com a dialética marxista, afinal, no volume III ele afirma que: “De 1830 em diante,

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veio a amadurecer uma consciência de classe, no sentido marxista tradicional, mais claramente definida, com a qual os trabalhadores estavam cientes de prosseguir por conta própria em lutas antigas e novas” (THOMPSON, 1987, p. 304). Esta citação corrobora com a nossa visão de que Thompson e Marx não se encontram em um choque antagônico e que suas teses são de todo diametralmente opostas (porém, não existe uma similitude completa, tanto em termos de objeto como de limite epistêmico), e ao analisar o sua obra: A Miséria da teoria (1981) já citada se pode ver como o autor vê a experiência (central para a consciência de classe e para o “fazer-se” da classe) num sentido que guarda referência ao filósofo alemão, para Thompson: A “experiência” (descobrimos) foi, em última instância, gerada na “vida material”, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o “ser social” determinou a “consciência social”. La Strucuture ainda domina a experiência, mas dessa perspectiva sua influência determinada é pequena (THOMPSON, 1981, p. 189). Não como uma relação de causa e efeito, economia = classe ou outros maniqueísmos e abordagens simplistas, que o historiador percebe o processo de formação, conscientização e luta de classes, não como reflexo da estrutura e muito menos pelo simples fato de pertencer a determinado setor do sistema produtivo no interior do modo de produção, mas como resultado de uma relação histórica, de determinados contextos e não como uma “coisa” advinda da economia capitalista22, por isto o autor é 22

“O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica” (THOMPSON, 1987, p. 17).


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tão lido, relido e criticado, assim como Marx igualmente.

Considerações Finais O artigo através de uma análise bibliográfica demonstrou como o uso do conceito de classe, basilar no paradigma histórico do materialismo histórico tem um uso difuso e não sistemático nos textos de Marx, o que inviabiliza generalizações como “economicista” ou “determinista” para uso do conceito de classe por Marx, afinal, enfatizou-se o tempo do autor, seu contexto histórico e lugar de produção, além dos limites epistemológicos (no caso, leia-se a economia política inglesa, a filosofia política revolucionária francesa e o idealismo dialético hegeliano) de Marx no século XIX. A questão econômica e a essencialidade revolucionária do proletariado são marcas determinantes dos primeiros textos de Marx quando o autor pensa a classe, respectivamente aqui Miséria da Filosofia e Sagrada Família, obras do chamado “Jovem Marx”, embora não concordemos com tal corte epistêmico.23 Entretanto quando confrontados com a visão de Thompson em seu prefácio de 1963 a The Making of the English Work Class (3 vol.) onde o historiador inglês enfatiza a luta como produtora da consciência e esta da classe, vimos que Marx na Miséria da Filosofia já alude ao ponto, o que impedi argumentações que coloquem os autores em uma dicotomia (assimétrica ou não) “economicista/culturalista”.

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Tentar mensurar e dividir em esquemas cronológicos uma obra é sempre problemático. Em relação ao “Jovem Marx/Marx maduro”, Fernando Magalhaes ressalta que: “O corte epistemológico althusseriano representa assim, graves riscos a história do pensamento” (MAGALHÃES, 2013, p. 105).

O artigo ao por uma exposição dupla sobre a abordagem do conceito entendido por Marx e Thompson deseja contribuir para reafirmar, concordando com o pressuposto de que a realidade é classista das sociedades capitalistas, buscando seja pela vertente teórica exclusivamente baseada em Marx ou em Thompson (melhor é quando as duas se aglutinam e não se excluem) estudar a sociedade enfatizando o papel das classes e da consciência de classe, da luta de classes e do papel que elas representam na história (HOBSBAWM, 2000). As greves e os conflitos com o Estado ainda presentes na sociedade, servem para nós sermos levados a pensar como as demandas e assuntos da maior parte da sociedade (no caso os trabalhadores e não apenas exclusivamente os operários) estão em constante choque, não sentindo na realidade imediata, no cotidiano os seus interesses serem alvo de consideração24 por parte da esfera política, neste sentido apenas os átomos proletários continuam estilhaçados, atomizados e assim o são continuamente mantidos por intermédio de várias medidas de alienação e submissão por parte do Estado. Como mostramos na epígrafe do trabalho, não se trata de buscar reafirmar a existência da luta de classes, ela é presente, viva e constante, estando para além dos limites do universo fabril e da dicotomia burguês/proletário25, outra 24

Por isto os abalos e conflitos entre a sociedade, neste caso enfatizando os trabalhadores e o Estado. Como Aristóteles já exortava: “Quando se pretende que um Estado dure por muito tempo, é preciso interessar todas as suas partes na sua conservação e fazer com que a desejem” (ARISTÓTELES, 1998, p. 291). 25 Como aponta Félix Guatarri: “A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas

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dicotomia conceitual sobre a abordagem do conceito de classe entre Marx e Thompson, estabelecendo uma hierarquia ou algo do tipo seria igualmente estanque e sem nexo para uma análise das classes sociais na contemporaneidade que cada vez mais subordina milhões ao capital, seja pelo trabalho manual ou outras formas de submis26 são/proletarização .

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O FIM DO TRÁFICO NEGREIRO (1850) e o contrabando de escravos em Itapemirim Laryssa da Silva Machado1

Resumo O presente artigo pretende abordar o tráfico de escravos na região de ItapemirimES, mesmo após a promulgação da lei Euzébio de Queirós, que colocava fim ao tráfico internacional de escravos. De acordo com Relatórios dos Presidentes Provinciais do Espírito Santo, por várias vezes o Porto de Itapemirim, um dos mais importantes da Província neste período, recebeu por vezes, navios suspeitos de transportarem escravos africanos. Isso acontecia porque, Itapemirim era uma região importante economicamente, devido suas lavouras de cana de açúcar e café, exportados para outras regiões do Brasil, dinamizando a economia capixaba no período. Palavras-chave: Tráfico de Escravos, Escravidão em Itapemirim, Porto da Barra de Itapemirim.

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Abstract This article aims to address the slave trade in the region of Itapemirim-ES, even after the enactment of the Euzébio de Queirós law, which put an end to the international slave trade. According to Reports of the Provincial Presidents of Espírito Santo, Itapemirim Port, one of the most important in the province during this period, has sometimes received ships suspected of transporting African slaves. This happened because, Itapemirim was an economically important region, due to its sugar cane and coffee plantations, exported to other regions of Brazil, stimulating the economy of the state of Espírito Santo in the period. Keywords: Trafficking of Slaves, Slavery in Itapemirim, Barra de Itapemirim Port.

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Licenciada em História (2007), Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional (2009), Especialista em Educação Profissional e Tecnolígica (2016). Mestranda do Programa da Pós-graduação em História da UFES. Docente da Rede Municipal de Ensino de Marataízes-ES. E-mail: assyrall@gmail.com.

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Laryssa da Silva Machado

Introdução Desde as primeiras civilizações, a mão de obra escrava era utilizada, servindo como base para construção de grandes cidades. Gregos e Romanos, dentre outros povos, utilizaram a escravidão como base trabalhadora na construção de seus Impérios. Estes escravos eram obtidos, principalmente como pagamento de dívidas, ou eram prisioneiros de guerra, e tinham uma vida social que em muito se assemelhava aos homens livres daqueles povos. Até os Impérios da Costa do Atlântico, no continente africano, escravizavam seus prisioneiros de guerra e seus devedores, podendo, estes, adquirirem com o passar do tempo, a maioria dos direitos dos não escravos, e até receberem heranças e acumularem propriedades. Mary Del Priori e Renato Pinto Venâncio afirmam que Entre os escravos, os mais privilegiados eram os prisioneiros nobres, usados em atividades militares. Aí podiam ver destacadas suas características de coragem e iniciativa. Eles podiam participar da divisão do espólio de guerra e aspirar a possuir seus próprios soldados. A seguir vinham os que trabalhavam nas famílias de camponeses; estes podiam chamar o senhor de “pai” e trabalhar com seus filhos e filhas, freqüentar sua casa e desfrutavam um padrão de vida muito semelhante ao de seu senhor. (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p. 17-18). Sendo assim, percebe-se que a escravidão existente em alguns povos africanos assemelha-se bastante a escravidão greco-romana, e diferencia-se muito da existente na América a partir do século XVI. Esta diferença se dá, devido à comercialização do escravo. Durante a Antiguidade, na Grécia e em Roma e

até mesmo na África, a escravidão fornecia mão de obra e aumentava a população dos povos que dela se utilizava, não existindo distinção de cor. Qualquer um poderia se tornar escravo bastava não ter condições de pagar seus credores, ou então, ter seu território conquistado e se tornar um prisioneiro de guerra. Já durante a Modernidade, o conceito de escravidão se modifica. O tráfico de escravo trazia lucro aos que o praticavam, transformando seres humanos em meras mercadorias. E, além disso, a escravidão estava destinada aos negros. “A diferença da escravidão na Grécia e na Roma antiga, o escravismo moderno reforça o estatuto legal do cativeiro com a discriminação racial: o escravo só podia ser preto ou mulato, nunca branco.” (ALENCASTRO, 1997, p. 88). Dessa forma, as regiões envolvidas neste novo conceito de escravidão muito lucraram, tendo em vista que, onze milhões de escravos foram enviados para o Novo Mundo, sendo quatro milhões para o Brasil (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004), e durante três séculos, seres humanos foram comercializados e transformados em coisas. Um escravo poderia ser “tributado, vendido, herdado, hipotecado” (ALENCASTRO, 1997, p. 16), ou seja, tornou-se um objeto, coisa sem vida. Vendido a um proprietário de escravos, este ficaria a mercê do mesmo, sendo mais importante o direito de posse dos senhores sobre seus escravos, tratados juridicamente como simples mercadorias. A Igreja também apoiava a escravidão moderna, utilizando de passagens bíblicas para legitimar este sistema. No livro de Gênesis, existe uma passagem onde Cã, filho de Noé, gabou-se diante de seus irmãos por ter visto seu pai nu, enquanto este estava bêbado. Como

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castigo, Noé amaldiçoou o filho de Cã, Canaã, que veria sua descendência se tornar servidor de seus irmãos. Estes migraram para o sul, e para cidade da sexualidade maldita, Sodoma, atingindo depois a Gomorra. Lendas dizem que os filhos amaldiçoados de Canaã foram viver em terras iluminadas pelo sol que queimava a pele destes, tornando-os negros. Além dessa passagem, São Paulo, condena a fuga de cativos em suas epístolas, pois Jesus libertara a alma e não os corpos. Para Santo Agostinho e São Tomas de Aquino, a escravidão era uma forma de castigar pecadores e hereges (DEL PRIORE E VENÂNCIO, 2004). Enfim, a Igreja legitimava a escravidão de inúmeras formas possíveis, aceitando que um homem fosse cativo de outro homem.

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Seguindo esta tendência a historiografia brasileira, durante muitos anos, foi dominada por uma corrente que marginalizou a escravidão, e consequentemente, o negro, tratando-os como promíscuos e imorais. A promiscuidade era destacada nos trabalhos realizados no Brasil até a década de 1970, estando presente no dia-a-dia dos cativeiros. Os negros tiveram sua humanidade soterrada pelo regime escravista. Isto justifica a falta de participação do negro na abolição da escravatura. Percebe-se que estes autores tratam os negros não como seres humanos, mas como objetos sem vida, mercadorias apenas e, ainda hoje, se está longe de uma historiografia que questiona a existência de relações familiares entre cativos e muitos continuam a afirmar um decorrente comportamento sexual promíscuo. Essa promiscuidade se devia ao sistema que retirou o negro de seu ambiente social e familiar, colocando-o junto a pessoas estranhas ou, ainda, porque as

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condições do cativeiro eram adversas. Além disso, é preciso se considerar o desequilíbrio entre os sexos, já que, eram transportados mais homens que mulheres, pois aqueles tinham maior atrativo comercial, e a formação de famílias escravas era desinteressante ao senhor, pois dificultava a venda dos mesmos. Porém, ao longo dos anos, esta historiografia foi sendo revista, pretendendo compreender de um modo mais denso o funcionamento desta sociedade, procurando reconstruir estas relações, e esta será a linha interpretativa seguida no decorrer deste trabalho. Segundo FLORENTINO e GÓES, novas fontes passaram a ser utilizadas a partir da década de 1970, e estas mostraram que os cativos eram capazes de “criar e viver sob normas intrínsecas ao humano (...) e a escravidão e o parentesco não são experiências excludentes; o cativeiro não abortou a família escrava” (FLORENTINO E GÓES, 1995, p. 1). Segundo FARIA, em seu livro, “A Colônia em Movimento”, apesar de o escravo ser identificado nos escritos oficiais e relatórios de cronistas e viajantes como mercadoria, sinônimo de “coisa”, eles próprios não se viam assim e nem mesmo os que com eles conviviam cotidianamente. Nesta nova abordagem, o escravo deixa de ser um agente passivo e se transforma num agente ativo. Ele foi, também construtor de sua história, muitas vezes à revelia do senhor. (FARIA, 1998, p. 291). Desse modo, o escravo era gente, não um escravo por natureza. Era um ser humano que se encontrava cativo, mas não porque isto fazia parte obrigatória de sua vida, mas devido a interes-


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ses econômicos desta sociedade a qual foi inserido. Não foi escolha do próprio homem africano a mudança para a América. Após transformar-se efetivamente em escravo, ou seja, responder socialmente ao que lhe era importo, criou laços de parentesco (...) dos mais variados grau. Isto deve ter sido importante como forma de construção de nova identidade. (FARIA, 1998, p.338). Portanto, é preciso que se acabe com essa imagem preconceituosa do escravo alienado, e sem consciência de seus interesses, que tanto é difundida pela historiografia brasileira. Deve-se analisar o escravo como um agente histórico, com desejos e vontades, que, apesar de nem sempre serem atendidas, lutava para que pudesse realizar os mesmos.

A grande lavoura e a escravidão no Espírito Santo Desde os primórdios da colonização do solo espírito-santense, a cana-deaçúcar foi cultivada com relativo sucesso. Em 1545, o Espírito Santo possuía sete engenhos, que produziam mil arrobas, e o excedente do açúcar capixaba era exportado diretamente para Lisboa, mesmo com uma população branca bastante reduzida e heterogênea, sendo este, o principal produto da capitania. Neste período, regiões como Rio de Janeiro e Ilhéus possuía três engenhos cada, e a Paraíba apenas um. Pernambuco e Bahia se destacavam na produção de açúcar, tendo, respectivamente 66 e 36 engenhos. Sendo assim, o Espírito Santo tinha certo destaque, se forem comparadas às outras regiões coloniais (BITTENCOURT, 1989 e BITENCOURT, 1987).

O pau-brasil e o açúcar eram os principais produtos de exportação da capitania do Espírito Santo, sendo este último a mercadoria de maior valor. Porém, os números de produção de açúcar deveriam ser efêmeros, já que por vários fatores adversos, como a localização exclusivamente no litoral e a frequente ameaça indígena, estagnou a produção do açúcar no território capixaba. Além disso, o capital direcionado a esta produção dirigia-se ao Nordeste, uma vez que lá se desenvolveram os maiores engenhos produtores de açúcar da colônia (BITTENCOURT, 1989). A pequena propriedade açucareira não se desenvolveu no Espírito Santo, já que, como este produto destinava-se a exportação, era necessário um grande contingente de capital e mão de obra, para que houvesse êxito na produção do mesmo, o que não ocorreu. Além disso, o açúcar fazia parte do setor secundário da economia, sendo um produto rural complexo, que necessitava de maquinários específicos para sua fabricação, requerendo assim grandes investimentos, que necessitaria de cento e cinqüenta a duzentos trabalhadores (BITTENCOURT, 1987). Assim, poucas propriedades se consolidam em solo espírito-santense. No entanto, o grande engenho açucareiro foi o principal transformador do Espírito Santo, dinamizando a Capitania, já que em alguns engenhos existiam olarias, ferrarias, carpintarias, serrarias e artesanato têxtil. Essas produções provavelmente estavam voltadas à subsistência do próprio engenho, uma vez que a comunicação entre eles era dificultada pela mata fechada e o ataque dos índios presentes na Capitania (BITTENCOURT, 1987). Plantavam-se também alimentos como mandioca, algodão, milho, feijão e arroz, que era utilizado para alimentação dos morado-

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res de cada propriedade (OLIVEIRA, 1975). “O Espírito Santo, que já nascera sob a égide da agroindústria açucareira, apesar das adversidades, criara tradição no setor. Em 1820, contavam-se na província cerca de 60 engenhos e 66 destilarias (engenhocas, talvez). Nessa mesma época, produzia-se ainda: algodão, feijão, arroz, café, milho e legumes diversos, sendo a farinha de mandioca um dos principais componentes da sua base alimentar”. (BITTENCOURT, 1989, p. 36).

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A mão de obra utilizada nos grandes engenhos era a escrava, como nas demais regiões açucareiras do Brasil. Segundo CAMPOS “a mão de obra escrava configurava um ativo bastante difundido na colônia brasileira, incluindo até mesmo centros de pequeno porte como a Capitania do Espírito Santo.” (CAMPOS, 2006, p. 577). Assim, o Espírito Santo recebeu muitos escravos oriundos da África, e outros vindos de outras regiões do Brasil, podendo ser encontrados escravos africanos de diversas partes, e outros negros transferidos, principalmente da Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, e outras regiões do Nordeste (MACIEL, 1994). Sendo assim, segundo Cleber Maciel: Documentos da história capixaba dão indicações de que por volta de 1550 já existiam, nesta terra, escravos negros, talvez trazidos de Portugal pelos conquistadores. Embora, oficialmente, a importação de força de trabalho diretamente da África só tenha ocorrido após 1561 (MACIEL, 1994, p. 11). Podiam ser encontrados em território capixaba, negros saídos do porto de

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Guiné, além de muitos Bantos, Congos, Angolas, Benguelas, Cabindas, dentre outros povos africanos. Segundo Gabriel Bittencourt, “nos primórdios da colonização, estabeleceu-se um triângulo comercial entre Vitória – Portugal – Angola e criou-se a Alfândega da Capitania”. Pode se dizer então, que o Espírito Santo recebia escravos diretamente da África, e, com a criação de uma alfândega, produtos vindos diretamente da Europa também adentravam a região. Os grandes engenhos tinham uma grande quantidade de escravos, já que a produção de cana-de-açúcar necessitava de um grande número de trabalhadores. A princípio, a mão de obra utilizada foi à ameríndia, mas que logo foi deixada de lado, uma vez que o tráfico internacional de escravos estava crescendo, e a coroa portuguesa lucrava muito dinheiro exportando pessoas para trabalharem no Brasil. Embora fossem mais caros, se adaptavam melhor ao trabalho que os índios, sendo assim mais lucrativos. O Espírito Santo também importou uma quantidade significativa de escravos, uma vez que aqui foi realizado o mercado triangular diretamente com Angola. É certo afirmar então que, boa parte da construção das riquezas do estado do Espírito Santo atual se deu através da mão de obra escrava, ou dos livres que também cooperaram: O Espírito Santo era, durante o período escravista, uma Província essencialmente agrícola e totalmente apoiada a força de trabalho dos escravos. Neste caso, é necessário destacar que os negros exerceram todos os tipos de pesados trabalhos rurais e urbanos existentes. Mas é importante destacar que muitas dessas atividades requeriam inteligência iniciativa e conhecimento técnicos. (MACIEL, 1994, p. 38).


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Porém, até a metade do século XIX, poucas embarcações trazendo africanos aportavam em solo espírito-santense. Assim “para a Capitania do Espírito Santo, em fins do século XVIII e inicio do século XIX, a reposição de escravos africanos raramente ocorria pelo abastecimento direto de navios negreiros vindos da África” (CAMPOS, 2006, p. 580). A reposição se dava através de embarcações vindas do Rio de Janeiro. Porém, “os produtores espírito-santense permaneceram necessitando de braços servis, aumentando, inclusive, os números de cativos por meio de importação de africanos.” (CAMPOS, 2006, p. 581). Esse número de escravos oriundos da África aumenta consideravelmente no Espírito Santo com a implantação das lavouras de café, permanecendo elevados até o fim do tráfico negreiro em 1850. E mesmo assim, algumas regiões da província capixaba continuavam a receber embarcações clandestinas durante a década de 1850. Percebe-se, portanto que, o Espírito Santo, desde os primórdios de sua colonização, contou com a mão de obra escrava, nos grandes engenhos de açúcar espalhados por todo território. Mesmo a produção de açúcar não sendo tão significativa como era no nordeste brasileiro, tinha certo destaque se comparado a outras regiões brasileiras. Além disso, o comércio triangular entre Vitória – Portugal – Angola, sem dúvida, trouxe um grande contingente de trabalhadores negros, que sem dúvida alguma, contribuíram muito para a construção e o enriquecimento do Espírito Santo.

Das lavouras de cana-de-açúcar às lavouras de café: a Vila de Itapemirim e sua importância para a Província do Espírito Santo

A localidade de Itapemirim – ES foi, no século XIX, uma das regiões que contou com uma das maiores concentrações de escravos de todo o Espírito Santo, devido ao cultivo de cana-deaçúcar presente na região desde o início de sua colonização, no fim do século XVIII, e existente até hoje em suas terras. “Até por volta de 1700 nada havia de concreto no Itapemirim, porém, nos anos seguintes a região virá a crescer até se tornar a segunda maior arrecadação da província, e importante pólo econômico e político”. (BRANDÃO et al, 1999, p. 1). Portanto, por aproximadamente duzentos anos, a região de Itapemirim ficou praticamente abandonada, não sendo encontrado nenhum registro de empresas colonizadoras (BRANDÃO et al, 1999). No entanto, em 1771, os puris atacaram as minas do Castelo, obrigando quantos ali trabalhavam a abandonar a região. A fim de assegurarem às mulheres e crianças retirada mais ou menos segura, homens monopolizaram a atenção dos atacantes em renhida resistência, destruindo – ao partirem – casas, canais e pontes, outrora construídos com enorme sacrifício. Vieram, os sobreviventes, instalar-se na barra do Rio Itapemirim (OLIVEIRA, 1975, p. 207). Assim surgiu a localidade de Itapemirim, onde os colonos desbravando a região começam a implantar a grande lavoura de cana-de-açúcar, aparecendo em 1787, como um dos distritos pertencentes à Vila de Vitória, capital da Província do Espírito Santo (OLIVEIRA, 1975). Torna-se Vila por alvará em 27 de junho de 1815 (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA, 1868). A Comarca de Itapemirim compreendia

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as Vilas de Itapemirim, de Benevente e Guarapari, e os Distritos de Meaípe, Cachoeiro e Itabapoana (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA, 1857), sendo assim, compreendia um grande território da região sul do Espírito Santo. Esta região que hoje tem tradição no cultivo da cana e fabricação do açúcar começou a ganhar destaque com este produto na província, estando entre as maiores produtoras do Espírito Santo no século XVIII, ficando entre as vilas mais importantes junto a Benevente, Guarapari, Vila Velha, Viana e Almeida (BITTENCOURT, 1989). Segundo Brandão et al(1999), a região do baixo Itapemirim crescia a olhos vistos, aumentando o número de engenhos ao longo do rio e gerando um aumento populacional”.

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De acordo com os Relatórios da Província do Espírito Santo, nos anos de 1839 e 1845, a população no Município de Itapemirim, no ano de 1827 era de 2.332 pessoas, enquanto que na Província era de 35.353 habitantes, ou seja, correspondia a apenas 7% da população do Espírito Santo. Em 1833, a população de Itapemirim era de 3.051 habitantes e na Província, 27.916 habitantes, havendo assim um aumento populacional, representando 11% do total da população do Espírito Santo. Já em 1839, a população do município de Itapemirim correspondia a 2.487 habitantes, 9,5% da população da Província do Espírito Santo, que era de 26.080 habitantes. No ano de 1845 a população de Itapemirim era de 2.365 habitantes, 7,2% da população provinciana. A Comarca de Itapemirim tinha 6.799 habitantes, 20,7% da população do Espírito Santo que era de 32.720 habitantes (RELATÓRIOS DA PROVÍNCIA, 1839 E 1845). Deve-se lembrar que nestes números constam os escravos, bem como homens e mulheres brancas.

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No que se refere aos gêneros produzidos na Vila de Itapemirim, segundo o Relatório da Província de 1852, possuía treze estabelecimentos direcionados ao café, com 415 braços escravos empregados no mesmo, com uma produção anual de 18.600 arrobas por ano, ou seja, 21% da produção provinciana que era de 88.790 arrobas, saíam de Itapemirim. A produção de açúcar contava com vinte dois estabelecimentos, sendo cinco motores movidos a vapor, quatorze a água, e 1.348 braços escravos empregados nestes, tendo uma produção anual de 78.700 arrobas, ou seja, das 153.790 arrobas de açúcar que eram exportadas pelo Espírito Santo, mais da metade, 51%, eram produzidos em Itapemirim. A produção de Aguardente, que devido às lavouras de açúcar também ganhara tradição na região, contava com doze estabelecimentos, sendo cinco motores movidos a vapor, sete a água, com uma produção anual de 622 pipas de aguardente, equivalentes a 51% da produção anual provinciana que era de 1200 pipas, ou seja, mais da metade da produção de cachaça saia de Itapemirim (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA, 1852). Além de uma grande produção de açúcar, Itapemirim contava com plantações de alimentos, como mandioca, cebola, feijão, entre outros produtos, que eram exportados para as outras províncias brasileiras: Era a região do Itapemirim, junto com Vitória e São Mateus (Cricaré), uma das mais importantes do Espírito Santo, contando inúmeras fazendas de açúcar, importantes plantações de mandioca e cebolas, cuja produção, junto com o açúcar, escoado para a cidade de Campos e do Rio de Janeiro, via Porto da Barra. (BRANDÃO et al, 1999, p. 13).


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A Receita do Município de Itapemirim no ano de 1841-1842 era de 11,3% 4:189$ - (quatro contos e cento e oitenta e nove mil réis) da receita provincial que era de 36:916$000 (trinta e seis contos e novecentos e dezesseis mil réis), ficando atrás apenas de Barra de São Mateus com 7:561$ (sete contos e quinhentos e sessenta e um mil réis) e da Cidade da Vitória com 19:586$ (dezenove contos e quinhentos e oitenta e seis mil réis). No ano de 1843 sua receita correspondia a 10% - 6:595$364 – (seis contos e quinhentos e noventa e cinco mil réis e trezentos e sessenta e quatro réis) da receita provincial. Em 1844 a 11% - 4:922$240 – (quatro contos e novecentos e vinte e dois mil réis e duzentos e quarenta réis), em 1842 a 16% - 5:062$605 – (cinco contos e sessenta e dois mil réis e seiscentos e cinco réis), em 1846 à 18%, - 6:063$746 – (seis contos e sessenta e três mil réis e setecentos e quarenta e seis réis) em 1847 à 13% - 6:679$671 – (seis contos e seiscentos e setenta e nove mil réis e seiscentos e setenta e um réis) em 1848 à 10% - 5:329$889 – (cinco contos e trezentos e vinte e nove mil réis e oitocentos e oitenta e nove réis), em 1849 à 17% - 7:352$404 – (sete contos e trezentos e cinqüenta e dois mil réis e quatrocentos e quatro réis) em 1850 à 30% 14:367$036 – (quatorze contos e trezentos e sessenta e sete mil réis e trinta e seis réis), em 1851 à 16% - 7:555$498 – (sete contos e quinhentos e cinqüenta e cinco mil réis e quatrocentos e noventa e oito réis) e em 1866 à 28% 33:368$582 – (trinta e três contos e trezentos e sessenta e oito mil réis e quinhentos e oitenta e dois réis) da receita provincial (RELATÓRIO DA PROVINCIA, 1841-1852-1866). Deve se levar em consideração que menos de 20 municípios aparecem nestes dados da Receita da Província do Espírito Santo.

No ano de 1851, 11 % do café 24:216$600 – (vinte e quatro contos e duzentos e dezesseis mil réis e seiscentos réis), 55% do açúcar - 59:692$520 – (cinqüenta e nove contos e seiscentos e noventa e dois mil réis e quinhentos e vinte réis), sendo o maior exportador deste item da província, e 100% da aguardente - 3:181$200 – (três contos e cento e oitenta e um mil réis e duzentos réis) exportados da província saiam do porto de Itapemirim, tendo este um total de exportações equivalente a 20% 88:138$990 – (oitenta e oito contos e cento e trinta e oito mil réis e novecentos e noventa réis) do total de exportações provinciais, que era de 423:719$020 (quatrocentos e vinte e três contos e setecentos e dezenove mil réis e vinte réis), dentre todos os gêneros exportados (café, açúcar, madeira, algodão, aguardente, miúnças). Em 1857, o Porto de Itapemirim exportava 17% do café (23, 287 arrobas), 63% do açúcar (15, 401 arrobas) e 98,5% da aguardente (9,720 medidas) de todo o Espírito Santo, tendo uma importância arrecadada correspondente a 14,3% - 8:382$172 – (oito contos e trezentos e oitenta e dois mil réis e cento e setenta e dois réis) da provincial. No ano de 1861, a Estação de Itapemirim exportou 28% do café da província (62,813 arrobas), 86% do açúcar (18,807 arroubas) e 94% da cachaça (4,810 medidas); tendo o total de exportações equivalentes a 30% 356:752$416 – (trezentos e cinqüenta e seis contos e setecentos e cinqüenta e dois mil réis e quatrocentos e dezesseis réis) dos valores oficiais da província que eram de 1.181:005$830 (mil cento e oitenta e um contos e cinco mil réis e oitocentos e trinta réis); em 1862 exportou 26% do café (59,621 arroubas), 60,5% do açúcar (18,170 arroubas) e 78% da cachaça provincial (36 medi-

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das), tento 26% - 386:196$866 – (trezentos e oitenta e seis contos e cento e noventa e seis mil réis e oitocentos e sessenta e seis réis) dos valores oficiais que eram de 1.481:254$115 (mil quatrocentos e oitenta e um contos e duzentos e cinqüenta e quatro mil réis e cento e quinze réis); e em 1863 exportou 27% do café (37,561 arroubas), 63% do açúcar (20,541 arroubas) e 59% da cachaça (3,600 medidas) com um total de valores oficiais equivalentes a 23% de toda a província (RELATÓRIOS DA PROVÍNCIA 1852-1858-1864). Percebe-se que ao longo da segunda metade do século XIX, a produção de café foi aumentando, superando a produção do açúcar em arroubas e valores exportados. Porém, a região de Itapemirim continuou a exportar grandes quantidades de açúcar, e também de aguardente, sendo responsável por mais da metade da exportação do açúcar e da cachaça provinciana. No início do século XIX, mais especificamente desde 1811, a cafeicultura começa a ser desenvolvida na província do Espírito Santo, tornando-se mais lucrativa que a lavoura de cana-deaçúcar, havendo um decréscimo da produção daquela em detrimento a produção desta. Muitas lavouras de cana foram substituídas pelo café, e pequenas propriedades que se destinavam a cafeicultura. Produzir café era mais barato, pois necessitava de uma quantidade menor de mão de obra e também de menos capital empregado, trazendo assim, mais lucros para os que o produziam (BITTENCOURT, 1989). Na região sul da província, em localidades como Castelo, Alegre, Muqui e Cachoeiro do Itapemirim, dentre outros o café foi instalado obtendo grande sucesso. Na Vila de Itapemirim a cafeicultura não obteve sucesso, continuando a produção açucareira do ISSN 2447-7354

princípio de seu povoamento. Porem, todos estes locais citados pertenciam a Comarca de Itapemirim. Tudo isso gerou uma nova era de prosperidade para a Província, cujas rendas baseavam-se, quase que essencialmente, na agricultura, registrando os primeiros superávits do período. As vilas canavieiras, entretanto, que não conseguiram substituir a produção tradicional, iniciaram um trajetória de franca decadência, como a Vila de Itapemirim. (BITTENCOURT, 2002, p. 191). A produção do café dinamizou a região sul do Espírito Santo. Segundo Brandão et al, “O crescimento da produção do açúcar, o café que já surge como uma rica opção e o comércio tiram à região do Itapemirim do secular abandono”. (BRANDÃO et al, 1999, p. 14). A navegação a vapor pelo Rio Itapemirim tornou-se de extrema importância para o escoamento do café, sofrendo melhorias significativas, possibilitando a navegação por diversas regiões litorâneas, chegando até o Porto da Barra, em Itapemirim, onde as mercadorias eram encaminhadas até o porto do Rio de Janeiro, para serem exportadas (BITTENCOURT, 1989). Apesar da decadência citada por Gabriel Bittencourt, a Vila de Itapemirim continuou tendo sua importância, já que, a produção do café de Castelo, Alegre, Cachoeiro de Itapemirim, dentre outros era exportada para o Rio de Janeiro pelo Porto da Barra, localizado na foz do Rio Itapemirim, sendo este o porto mais importante da região sul. “Nesse período, grandes navios a vapor ancoravam no porto da Barra (...) em Itapemirim”. As vias fluviais e ferroviárias desembarcavam toneladas de sacos de café que seguiam para outras regiões.


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O porto marítimo mais importante do sul da costa era o de Itapemirim (...). A importância do Porto de Itapemirim derivava de dois fatores fundamentais para o comércio da época: primeiro, a sua localização em uma região grande produtora de café; segundo, a proximidade do Rio de Janeiro. Deve-se observar que os exportadores remetiam o café para o Rio de Janeiro, de onde era embarcado para o exterior. (HESS, FRANCO, 2005, p. 34). O rio Itapemirim, tem seu destaque desde o princípio da colonização capixaba. Desde 1537, já se tem registros do Rio Itapemirim como limite entre as capitanias do Espírito Santo e de São Tomé Perogóis (BRANDÃO et al, 1999). Porém, ganha maior importância a partir do momento que suas terras são colonizadas pelos fugitivos das Minas de Castelo, e 1771. Com o passar dos anos, a região floresceu, surgindo inúmeros vilarejos e fazendas, tornando-se importante na política e na economia provincial. Percebe-se, portanto que, a Vila de Itapemirim, cresceu em torno do rio, que era de fundamental importância para o comércio local, exportando a produção da região, e recebendo os produtos oriundos de outras províncias e até mesmo do exterior. Ao longo do rio (...) multiplicam-se as fazendas de cana-de-açúcar e na mesma medida ia aumentando a importância política e econômica do município, que em meados do século XIX era o mais importante tributário da província, além da cana-de-açúcar, o café já contribuía para este fato (BRANDÃO et al, 1999, p. 14).

Pertenciam ao Município de Itapemirim além do porto da Barra de Itapemirim formado pelo Rio Itapemirim, o porto de Itabapoana formado pelo rio Itabapoana. Nas marés grandes cheias, o rio tinha doze palmos de fundo, nas marés grandes vazias, quatro palmos. Já nas marés pequenas cheias eram oito palmos de profundidade e nas marés pequenas vazias quatro palmos. Este era navegável para os pequenos barcos até a distância de 314 léguas; e para as canoas até oito léguas, onde começavam as cachoeiras (RELATÓRIOS PROVINCIAIS, 1856). Percebe-se portanto que a Vila de Itapemirim tinha um grande destaque para a província do Espírito Santo, tanto pelo seu contingente populacional que para época era bastante significativo, quanto para os produtos que eram exportados das propriedades, engenhos e engenhocas existentes nesta região. Além disso, a Comarca de Itapemirim era de grande destaque, compreendendo uma série de municípios, que muito significavam economicamente para o Espírito Santo, sendo uma das maiores e mais importantes comarcas da província.

1850: O fim do tráfico internacional de escravos e sua repercussão em Itapemirim. A Lei Euzébio de Queirós, promulgada em 1850 deu fim ao tráfico internacional de escravos, que há muito tempo havia sido prometido pelo governo brasileiro, visando atender os interesses externos, já que “a revolução industrial, em marcha, vê nessa forma de trabalho um entrave a expansão do mercado.” (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p. 174). O Brasil foi um dos últimos países a acabar com este tipo de comércio, o que acabou

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também com o abastecimento externo de negros no território brasileiro. Assim, “após o fim do tráfico internacional em 1850, houve um tráfico interno, em que os escravos das cidades, do norte, nordeste e até do sul, passaram a ser vendidos para as zonas rurais do centrosul.” (ALENCASTRO, 1997, p. 92)

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Em algumas regiões do país, houve uma diminuição do número de escravos, pois estes passaram a ser vendidos para outras províncias. Isso fez aumentar o tráfico interno de escravos, onde as regiões que estavam fracas economicamente ficaram responsáveis de suprir a demanda de mão de obra das regiões de economia aquecida. Esse crescimento do tráfico interno, principalmente em meados do século XIX, intensificou a “criolização” dos cativos, trazendo consigo a possibilidade de generalizar a ideia de “cativeiro justo”, reforçando a legitimidade da dominação escravista. Sendo assim, segundo FARIA, após 1850, tal “criolização” se acentuou, o que interferiu sem dúvida, no comportamento dos escravos em relação à vida e à morte. Africanos ou crioulos, escravos do Brasil conviveram de perto com o homem branco, o que os diferenciava de algumas áreas escravistas da América. Aqui, portanto, houve possibilidade de intercâmbio ou, melhor dizendo, maior “circularidade” de culturas: Africanos se “europeizaram” e colonos brancos se “africanizaram. (FARIA, 1998, p. 293). Assim, as comunidades que haviam se consolidado nestas regiões, nos períodos anteriores, foram sendo separadas, pois seus membros eram, paulatinamente, vendidos para essas regiões economicamente mais dinâmicas. Porém, a lei Euzébio de Queirós não foi cumpri-

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da imediatamente pelos portos brasileiros. E o Espírito Santo não fugiu a essa regra. Assim, negros continuaram a desembarcar clandestinamente nas costas dos litorais capixabas, sendo este muito visitado por navios negreiros, continuando assim o contrabando de escravos, apesar da vigilância, que muita vezes, era conivente com o tráfico (MACIEL, 1994). Segundo CAMPOS et al, que estão realizando uma pesquisa junto aos processos da Comarca de Itapemirim na segunda metade do século XIX, “não foram poucos os casos em que escravos, arrolados em inventários, continham, em seus registros, sua origem africana, em datas de entrada posteriores ao ano de 1859.” (CAMPOS, et al, 2007, p. 44). O cultivo do café fez com que a região sul da província recebesse um grande contingente de escravos oriundos da África, principalmente, na primeira metade do século XIX. E mesmo com o fim do tráfico de escravos, “depois de 1850, apesar do fim do tráfico de escravos, os portos das regiões de Itapemirim, de Vitória, de São Mateus e de Guarapari ainda receberam muitos escravos, via contrabando.” (MACIEL, 1994, p. 28). A região sul era a mais visada pelos navios negreiros, por ter uma das maiores lavouras de café da província, tento um policiamento ativo em sua costa, contando às vezes com unidades da Marinha de Guerra (OLIVEIRA, 1975). Os Relatórios da Província do Espírito Santo dos anos de 1854, 1855, 1856 relatam a preocupação com a região de Itapemirim, no que diz respeito ao tráfico de africanos, sempre pedindo às autoridades reforço para esta região. No relatório de 1855, o então presidente da Província Dr. Sebastião Machado Nunes, descreve a seguinte situação:


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Contrabando de Africanos Nem—um fato tem dado na província do desembarque de africanos boçaes (sic), ou de tentativa desse crime. Em fins de setembro dó ano próximo passado apareceu nas costa desta província para o lado de Itapemirim urna embarcação suspeita. Imediatamente o delegado do termo, Dr. Rufino Rodrigues Lapa, deu parte desta ocorrência ao Dr. Chefe de policia, temendo desde logo as mais enérgicas providencias. Pedia auxilio a guarda nacional, da qual lhe foi prestado imediatamente um contingente comandado pelo tenente Joaquim Marcellino da Silva Lima. Com esta força e com a do destacamento de 1ª linha, que ali existe a mando do tenente José Caetano de ’Oliveira Rocha, pôs-se em segurança a costa de modo a tornar impossível um desembarque naquele ponto, caso fosse tentado. Quando aqui chegarão estas noticias achava-se surto no porto o brique (sic) escuna de guerra Xingu: imediatamente o 2º tenente Manoel Antonio da Rocha Faria desempenhou perfeitamente esta Comissão, saindo com toda a diligência e voltando depois de obter a convicção de que se não corria o risco de um desembarque de africanos naquele ponto. A embarcação suspeita, tendo-se afastado para o lado do Sul, foi apreendida em Itabapoana pelo comandante do destacamento pertencente à província dório de Janeiro, e depois relaxada pela autoridade competente em conseqüência de ter verificado que se não empregava no comércio de africanos. Não faço menção deste fato, e suas circunstancias, senão para pôr patente o espírito das autoridades da província, com a da mesma população a cerca do comércio ilícito de africanos; e sinto não ter presentes os nomes de todos os cidadãos guardas nacionais, que compuseram o continente, para fazer deles aqui especificada menção. Todo mundo compreende hoje que, para se não comprometer o futuro do país, é indispensável que a cessação do tráfico de africanos seja uma realidade.” (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO, 1855, p. 7-8).

Já em 1856, o então presidente da Província, o Dr. José Maurício Fernandes Pereira de Barros, apresentou na Assembléia Legislativa o seguinte fato ocorrido: “Tráfico Depois da apreensão do palha bote Maty Smith em 20 de janeiro ultimo pelo brigue escuna Olinda na Barra de São Matheus, duas milha distantes da terra, nenhum mais outro fato de semelhante natureza teve lugar em todo o extenso litoral desta província, nem no seu interior. Todavia Srs. parece que os traficantes tem lembrado de escolher alguns pontos da costa desta província, sobretudo Itapemirim e S. Matheus, para alvos de suas temerárias e criminosas tentativas: mas é de esperar que a ação vigilante do cruzeiro e das autoridades e força de terra consigam frustrar esses planos imorais. E a presidência Srs. por sua própria convicção fiel observadora das ordens terminantes e altamente conveniente do governo imperial em tão grave objeto, saberá rastrear os menores vestígios desse crime e promoverá a sua repressão com todo o rigor da lei.” (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO, 1856, p. 7). Até o próprio Barão de Itapemirim, Joaquim Marcellino da Silva Lima, um dos maiores escravocratas de toda a província, e apontado como negociante de escravos (OLIVEIRA, 1975), escreveu alertando sobre o perigo que o tráfico de escravos representava para o Espírito Santo: “Tráfico de Africanos Suposto seja muito conhecida a extensão das praias desta província, a falta de força pública e o quanto se prestam certos lugares para um fácil desembarque de africanos, nenhum

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se tem dado desde 1851, em que se motogrou (sic) a ultima empresa , graças aos esforços e dedicação do então delegado de polícia Dr. Rufino Rodrigues Lapa, que em Itabapoana apreendeu cento e tantos africanos, e bem assim, toda a tripulação do barco que os trazia ; e pois se pode considerar extinto na província esse ominoso (sic) comércio . Todavia essa presidência não tem cessado de recomendar a todas as autoridades a maior vigilância a tal respeito, com especialidade às de Itapemirim, e seria para desejar-se que o governo imperial assumindo, aos pedodos (sic) ultimamente feitos, houvesse de facilitar certos meios indispensáveis para profligar os traficantes, se por ventura ousarem reaparecer nesta província.” (RELATÓRIO DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO, 1856, p. 14).

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Percebe-se assim que, a região de Itapemirim no período após a promulgação da Lei Euzébio de Queirós continuou recebendo navios negreiros em sua costa, o que gerava preocupação dos presidentes da província, que acatando ordens do governo imperial, deveria proibir o tráfico de escravos em seu litoral. Sendo assim, um grande número de escravos, tanto oriundos do comércio interno quanto do externo que, apesar de ilegal, continuava a chegar à província, no intuito de abastecer as lavouras de café, que estavam em crescente produção na província. Portanto, este trabalho pretende analisar a população escrava da região de Itapemirim após a promulgação da lei Euzébio de Queirós, nos anos de 1860 a 1870, através do levantamento de dados realizado com registros de batismo e óbito.

Conclusão Este trabalho deixa claro que, regiões de pequeno destaque dentro da economia imperial, como Itapemirim, no interior da Província do Espírito Santo, também foram influenciadas pelas consequências das leis brasileiras, como a Euzébio de Queirós, que proibia o tráfico de escravos vindos da África. Por ser uma região com economia em plena expansão, graças ao cultivo da cana e do café, muitos fazendeiros burlavam as leis imperiais, recebendo navios que transportavam escravos africanos. As denúncias presentes nos relatórios provinciais são provas desse tráfico. Isso deixa clara a importância econômica de Itapemirim na segunda metade do século XIX, destacando seu porto como fundamental para a economia capixaba nesse período. Além de ser o ponto de embarque de mercadorias, principalmente do café e da cana, principais produtos exportados no Espírito Santo nesse período, era o local de chegada de mercadorias exportadas, incluindo aí os escravos. O tráfico internacional de escravos então, fonte de mão de obra para as lavouras brasileiras, não foi interrompido com as leis promulgadas para esse fim, como a lei Euzébio de Queiróz. Muitos fazendeiros continuavam adquirindo escravos oriundos da África, abastecendo suas lavouras com esta mão de obra e enriquecendo traficantes de escravos em todo o território brasileiro, não apenas nos grandes centros comerciais, mas também nas pequenas vilas.

Referência bibliográfica RELATÓRIOS da Província do Espírito Santo nos anos de 1839; 1845;

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ENTRE MEMÓRIAS E NARRATIVAS: A classe operária da Fábrica de Laticínios dos Campos. João Bosco Pinheiro Ribeiro1

Resumo Este artigo tem por objetivo analisar a memória dos ex-trabalhadores da primeira Fábrica de Laticínios do Nordeste, assim como muitas de suas práticas cotidianas durante o processo que permaneceram ativos em seus respectivos cargos. A análise ocorre a partir da releitura de fontes orais e midiáticas, desta maneira, visando responder a problemática da pesquisa, será utilizada a metodologia da história oral, que abrangeu uma visão até então silenciada sobre as relações de trabalho narrado pelos próprios trabalhadores. Palavras-chave: Trabalho, Memória, Fábrica.

Abstract

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This article aims to analyze the memory of the former workers of the first Dairy Factory of the Northeast, as well as many of their daily practices during the process that remained active in their respective positions. The analysis is based on the rereading of oral and media sources, thus, in order to answer the research question, the oral history methodology will be used, which covered a previously silenced view on the labor relations narrated by the workers themselves. Keywords: Work, Memory, Factory.

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Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. E-mail: junior09pinheiro@gmail.com

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João Bosco Pinheiro Ribeiro

Introdução Com o objetivo de trazer ao campo os principais atores que contribuíram na construção e consolidação de um dos primórdios da industrialização piauienses, este artigo surge fazendo uma releitura das principais fontes disponíveis e já consultadas, assim como uma análise sucinta e, até o presente momento inédita, de um documentário, pouco explorado, assim, “acendemos as luzes” do palco onde ocorre esse movimento, destacamos a participação efetiva de seus trabalhadores, suas relações sociais e as principais contribuições para o mundo social do trabalho. As relações sociais no mundo tendem a mudar constantemente. O homem é, sobretudo, um produto do tempo, buscando através deste aperfeiçoar suas criações num ideal contínuo de progresso, por muitas vezes certo e outras nem tanto. Assim seria a história do Mundo do Trabalho no Brasil, dotado de diversas evoluções, perceptíveis a todo e qualquer indivíduo, seja ele embebido de conhecimento histórico, ou apenas um mero observador. A transição do findar do escravismo para o trabalho assalariado abalaria as estruturas não apenas econômicas, mas também sociais. As cidades evoluíram, ainda que não com a mesma homogeneidade, a relação do indivíduo para com o seu semelhante também estaria em conformidade com essas mudanças e o surgimento de diversas associações operárias dialogam periodicamente. No Piauí, por volta do ano de 1897, é inaugura a primeira Fábrica de Laticínios do estado, mais precisamente na atual cidade de Campinas do Piauí, com tudo de mais moderno que existia àquela época. É sobre a vivência dos trabalhadores nessa indústria que este

estudo busca dialogar, trazendo à tona a voz daqueles que na historiografia, por vezes, tendem se calar. A importância do estudo, além desta última mencionada, parte também da necessidade de discutirmos cada vez mais as relações sociais no que tange ao mundo do trabalho, como afirma Santos: “Essa escassez de estudos é ainda mais sentida no estado do Piauí, pois são raros os trabalhados acadêmicos sobre a História Operária”. (SANTOS 2015, p, 15). Disto isto, nas entrelinhas deste estudo, algumas dessas premissas serão discutidas. O autor Eric Hobsbawn nos atenta para dois aspectos importantes no que se refere a consciência de classes, o primeiro, objeto de discussão aqui, seria “a questão das relações entre consciência de classe e realidade socioeconômica” (HOBSBAWN 2000, p, 41) a importância dessas “camadas”, no víeis político, se refere a “força numérica”, a capacidade de serem conduzidas a realizar determinados feitos quando bem instruídas por um ou vários líderes, o que o autor chamaria de situações de “beco sem saída”. O segundo ponto, seria a relação de consciência de classe e organização, a ser analisado posteriormente. O próprio processo de desbravamento das terras piauiense se insere neste contexto. É uma fase onde o dinheiro não necessariamente se faz presente, mas as relações que decorrem deste sim. “Nos currais em expansão, predominavam relações de caráter pré-capitalistas. Os vaqueiros recebiam em pagamento crias de gado com as quais fundavam suas próprias fazendas” (R. N. SANTANA, 2001, p, 33). As analogias acerca dos movimentos sociais estão presentes desde o processo embrionário do sertão piauiense, a economia se organizava de modo ocupacional.

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No Piauí, a atividade comercial por volta do século XIX, estava ligada a criação de gado, em maior escala, responsável também, dentre outras coisas pelo desenvolvimento do estado, tanto na esfera econômica quanto ocupacional, mas também para o víeis do extrativismo, extração e exportação de produtos como: cera de carnaúba, borracha de maniçoba e o coco babaçu. “A pecuária piauiense, enquanto atividade extensiva, era desenvolvida em grandes propriedades e não tinha muitas exigências quanto a mão-de-obra, quer em termos qualitativos, quer quantitativos”. (QUEIROZ, 2006, p, 22).

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A estrutura econômica ainda estava buscando se firmar no cenário nacional e internacional, o Piauí contava com poucas manufaturas e indústrias, uma economia agrária. Os primeiros “operários” do Mundo do Trabalho no Piauí eram atraídos pelas facilidades de produção e pela redução de atividades econômicas. O que em termos gerais não significa dizer que era um trabalho totalmente livre e de uma facilidade maior, levando em consideração aspectos climáticos e jornadas de trabalho. Desta forma, compreende-se que as atividades econômicas estavam mais ligas à subsistência, o que penduraria por alguns anos, visto que a economia piauiense não se desenvolveu de forma acelerada. A principal função do vaqueiro é correr campo, o que faz diariamente, durante o inverno, para ver o estado das vacas amojadas, recolher as que deram crias, tratar das bicheiras dos bezerros (quando não curam pelo rastro), marcar e carimbar a bezerra nova, tirar o leite das vacas paridas, etc. (SANTANA, 2001, p. 84).

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O mundo do trabalho no Piauí, à época citada, estaria ligado à atividade de subsistência, é uma economia acessória, que ainda não voava para fora dos currais do sertão de dentro. Mas, é durante do século XIX que teríamos o surgimento de pequenas fábricas, muitas delas ainda assumiram características diferenciadas das indústrias que surgiram na Europa, mesmo que o modelo que tenha sido referência, levando em consideração a Revolução Industrial. “As primeiras fábricas, surgidas no Brasil nas décadas iniciais do século XIX, eram estabelecimentos de pequeno porte e tiveram, em geral, vida efêmera.” (GOMES 2005, p.22). Estas primeiras fábricas se ocupavam mais com atividades artesanais, com “traços específicos”, como menciona o autor, divergindo das indústrias europeias. Porém, esse processo industrial divergia-se nas esferas estaduais do país, onde em alguns estados houve um surto em outros ocorreu de forma mais lenta, influenciado sempre por passado econômico. O processo de industrialização no Brasil (desde o final do século XIX) não ocorreu de forma homogênea, pois, dentro do próprio setor de transformação, as unidades de produção dividiam-se em artesanal, manufatura e fábrica. A manufatura e a fábrica se diferenciam da empresa artesanal pela quantidade de trabalhadores que empregavam. (SILVA Apud SANTOS 2015, p. 29). Esse processo de industrialização brasileira, como mencionado pelo autor, além de não ocorrer de forma homogênea na criação das industrias, da mesma forma se comporta em relação às regiões em que se desenvolveram. Já no Piauí, os primeiros indícios da in-


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dustrialização, moderna por assim dizer, são apresentadas por Odilon Nunes: [...] em geral cultiva-se na província o Algodão, a cana, a mandioca, o milho, o feijão, arroz e o fumo, nos municípios da capital, Amarante, Batalha e Barras; algodão e a cana de açúcar da qual fabrica-se açúcar em pequena escala, rapadura e aguardente. (NUNES 2007, p. 169). O autor aponta para essa tímida industrialização a questão do baixo investimento na região, as dificuldades advindas dos transportes, visto o isolamento regional e pouca estrutura nas estradas, além das principais formas de transportes ainda serem os fluviais. Outro princípio de industrialização moderna, e que este estudo busca analisar suas relações trabalhistas, trazendo diálogos dos que vivenciaram a época, é a Fábrica de Laticínios dos Campos: Um dos fatos destacados da industrialização do Piauí foi a inauguração, em 1897, da fábrica de laticínios do Engenheiro Dr. Antônio José de Sampaio, arrendatário das fazendas nacionais, resultado de contrato celebrado com o Tesouro Nacional em 1889, e este foi também um exemplo de aplicação excessiva do remédio, tamanha foi a ambição do projeto. (MENDES, 2003, p.95). O engenheiro Antônio José de Sampaio era piauiense, oriundo de Nossa Senhora do Livramento, atualmente cidade de José de Freitas, estudou muitos anos na Europa, adquirindo entre suas formações o grau de: “bacharel em letras por Weisthertur, engenheiro industrial pela Escola Politécnica Federal

da Suíça e doutor em ciências físicas e naturais pela Universidade de Zurique”. (PINHEIRO Apud VILHENA 2006, p.41). O engenheiro Sampaio retornaria ao Piauí em 18221, ao que tudo indica já objetivando montar um empreendimento agroindustrial nos moldes suíços, embora fossem duas realidades completamente distintas. O Piauí dessa época era extremamente ruralista, já a Suíça tinha um modelo agropecuário bastante vantajoso e lucrativo. Perante o contanto que teve com as grandes indústrias, com todo o aparato moderno que existia no mundo, Sampaio chegava ao Piauí com uma mentalidade diferente da que havia saído de seu reduto natal, influenciado pelos tempos de prosperidade europeu, sonhou o mesmo para o local que lhe concebeu a vida. Assim o primeiro contado do engenheiro com a sociedade piauiense seria: O devassamento da terra, em toda a sua extensão, traçara-lhe, desde logo cedo, o destino. Importava, antes de tudo, segui-lo. O futuro não deveria contrariar o passado. Com essa compreensão, Sampaio inicia seu caminho. Visita Campo Maior. Reúne fazendeiros e fala-lhes confiante. Diz-lhes, com entusiasmo da organização de uma grande indústria de laticínios. (RIBEIRO GONÇALVES Apud VILHENA, 2006, p. 48). O professor Marcos Vilhena, também biografo de Sampaio, diz que esse contato não obteve muito êxito, ou pelo menos não o que era esperado para a ocasião, ao contrário disso, os moradores daquela região viram a iniciativa como algo para além de suas realidades. 1

Ver VILHENA 2006, p. 47.

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Ainda que seja anacrônico este relato, é relevante salientar que a mentalidade social acompanharia o tempo em que se vive. As únicas grandes trocas que ocorriam no cenário citado eram as de tronos, tão comum no cenário político piauiense. Mas o sonho de Sampaio persistiu, e em 1889 surge uma nova oportunidade de montar seu projeto. Àquela época ele residia no Rio de Janeiro2, por lá firmou contatos. “Essa oportunidade viria em 1889, ano em que assinou contrato de arrendamento das fazendas nacionais do Piauí”. (VILHENA, 2006, p. 54).

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Essas Fazendas Nacionais citadas, eram oriundas dos primeiros currais fincados no Piauí desde o seu processo de colonização. Inicialmente teriam pertencidos aos aristocratas da Casa da Torre e seus agregados, dentre estes a figura ilustre de Domingos Afonso Mafrense, que antes de morrer elaborou um testamento no qual destinaria todo o seu patrimônio latifundiário à Companhia de Jesus, o que sem dúvida tornou os padres Jesuítas os maiores proprietários de terras na época. No Piauí, entretanto, os Jesuítas não se dedicaram exclusivamente as atividades catequistas e educacionais, voltaram-se também para a pecuária. Mas no ano de 1759, toma posse da Capitania do Piauí João Pereira Caldas e como sendo uma das suas primeiras medidas, expulsa os jesuítas das terras piauiense e confisca todas as suas fazendas, que passam a serem denominadas de Fazendas do Fisco

bovinos e equinos foram desaparecendo até restarem apenas as terras e os carnaubais, que eram arrendadas e igualmente, a receita efetivamente recolhida aos cofres públicos e era pouco condizente com a realidade. (MENDES, 2003, p. 143). Nota-se com isso tamanha dificuldade o governo encontrou para controlar tais fazendas, uma incapacidade, no sentido mais amplo da palavra. O que objetivará propiciar lucros só gerava despesas e prejuízos. A solução encontrada seria arrendar à particulares: Em 26 de abril de 1889, Antônio José de Sampaio assinou o contrato de arrendamento das fazendas nacionais do Piauí. O arrendamento englobava as doze fazendas do departamento de Canindé e as cinco fazendas que compunha o estabelecimento de São Pedro de Alcântara, bem como todo o gado e edificações existentes nas fazendas. (VILHENA, 2006, p. 65). Este contrato de arrendamento incluía, contudo, algumas obrigações, dentre elas podemos citar a de fundar núcleos populacionais, formados de nacionais e estrangeiros, desenvolver a criação de gado e diversas outras atividades3.

A administração dessas terras pelo governo em qualquer período foi desastrosa tanto pela inadequação funcional quanto pela facilidade dos desvios. Pouco a pouco os rebanhos

O empreendimento foi construído, sob os cuidados do arquiteto Alfredo Moldrak, que entre outras obras no Piauí projetou o Teatro 4 de Setembro, em Teresina. A fábrica do Dr. Sampaio destinou sua produção aos derivados do leite, como o queijo, manteiga, doce de leite e outros. Funcionou até 1941, dentre os motivos pelos quais a fábrica deixou de funcionar aponta-se as enormes dificuldades financeiras e o isolamento geográfico da região, que era distante de

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Idem, p. 53.

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Ver SAMPAIO Apud VILHENA 2006, p. 65.


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Teresina e Parnaíba, duas principais cidades na época. Agora a fábrica se fechou para sempre. Resta aos velhos habitantes da região apenas a lembrança dos áureos tempos, em que havia ali muito gado, muito trabalho, dando a todos a feliz sensação de paz e progresso. Hoje quem passa por Campos, atualmente cidade de Campinas do Piauí, tem a ver apenas o melancólico espetáculo do imponente prédio, cuja majestosa chaminé aponta, em segredo, ou silenciosamente para o céu, como sinal de protesto, como grito solene contra a ação depredatória que destruiu, transformando numa ruinaria a opulenta fábrica que foi uma das mais importantes da América do Sul. (QUEIROZ, 2004, p. 5). Esse imponente e melancólico prédio, por vezes silenciado e até esquecido, esconde em sua essência a história de luta de um povo, que ao longo dos anos busca reerguer uma cidade que surgiu nos arredores daquilo que um dia fora um sonho do visionário do sertão. O oficio do historiador requer que tenhamos olhos e ouvidos atentos para pequenas e significativas histórias. É hora de acender às luzes e trazes ao palco os personagens principais dessa história, que não deve, sob hipótese alguma ser esquecida. Sobre as relações de memória, esse estudo se apropria das considerações de Pollak: A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. (POLLAK, 1992, p. 4).

Esses conceitos ou estágios da memória devem ser levados em conta ao tentarmos dar sentido as nossas interpretações sobre a classe trabalhadora da fábrica de laticínios, por vezes a história poderia ganhar dimensões contrarias, e até inverdades, mas tão bem sabemos que as verdades nem sempre são estigmatizadas, absolutas, o papel da história seria então tentar “reconstruir” e/ou ligar esses fragmentos históricos, que tem sim sua importância para um determinado povo.

A construção da metodologia de pesquisa e a identificação dos sujeitos estudados Os pressupostos metodológicos dessa pesquisa incluem a revisão bibliográfica sobre as temáticas aqui debatidas, assim como a análise do documentário produzido pela 19ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, intitulado: “A Fábrica de Manteiga e Queijo das Fazendas Nacionais do Piauí: uma história contada pelos seus trabalhadores”, que objetiva dar voz às reminiscências e rotinas dos trabalhadores da indústria de laticínios dos Campos. A historiadora Lucilía de Almeida Neves Delgado conceitua a história oral como um “procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a história em suas múltiplas dimensões” (DELGADO, 2010, p.15). Segundo com Pollak, os relatos escritos são constituídos de memórias e são a partir dessas fontes que o historiador constrói seu objeto de estudo, para isso o trabalho do historiador faz-se sempre a partir de alguma fonte, assim como a

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produção que fazemos do passado, inclusive a construção mais positivista, sempre tributária da intermediação de fontes documental (POLLAK, 1992). Nos apropriaremos das discussões realizadas no campo da história oral, recorrente nos mais variados tipos de pesquisas acadêmicas e extremamente necessário para entendermos as dicotomias presentes nesse estudo. Ainda de acordo com Ecléa Bosi nos assevera que “lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994. p. 55), assim, as lembranças dos entrevistados são instigadas à medida que estes se deparam com seus antigos ambientes de trabalhos.

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A Fábrica de Laticínios, construída onde hoje situa-se o pequeno município de Campinas do Piauí, era abastecida com o leite do gado oriundo das fazendas circunvizinhas. Dessa maneira, desde o manuseio do gado, a extração do leite e o seu transporte, eram gerados empregos para os moradores, que a partir de então, edificaram suas casas nas proximidades. “Seu Zezinho” (José Belém de Sousa) lembra nostalgicamente dessa expedição: O leite vinha de diversos retiros, tinha ali o retiro velho, tinha os pilões, retiro de marculino, canto do Jorge, olho d’água dos bois, tinha os piquis, tinha o castelo, decida da boiada. Cada retiro desse, mais ou menos tinha uns quatro ou cinco homens, agora cada dia tinha um que vinha deixar leite aqui. (DE SOUSA 2007). É perceptível que, a partir desse momento, após o funcionamento da fábrica de laticínios, a agricultura e a ISSN 2447-7354

pecuária de subsistência, deixam de ser as únicas atividades econômicas da região, o empreendimento mudaria não só a questão urbanística, mas também o que tange aos aspectos sociais. Muitas dessas fazendas mencionadas pelo trabalhador da indústria hoje se transformaram em povoados da cidade de Campinas do Piauí, abrigando diversas fazendas no antigo modelo colonial, o que demonstra certa resistência e persistência em manter viva a tradição da pecuária na região. O garimpeiro é o que trabalhava com gado e leite, quando a fábrica trabalhava, isso quem trazia o leite era eu. Chegava aqui com o leite, subia, tinha uma escada bem aqui, subia, lá tinha o lugar de receber o leite, um bocado de caixas, todas “numerdas”, a gente chegava e “ponhava” o leite nas caixas, já ficava toda “numerda”, medida, ali o encarregado chegava, olhava e notava. (DE SOUSA 2007). Através dos relatos adquiridos por meio do documentário, é possível analisar a rotina dos trabalhadores da indústria de laticínio, que iam desde o remanejamento do gado leiteiro ao transporte para as imediações da fábrica, que a partir de então seriam transformados em queijo, manteiga e alguns outros derivados do leite. A subdivisão do trabalho também é fator de destaque em diversas passagens das falas dos entrevistados, a título de exemplo é mencionado a função do “garimpeiro”, que nesse caso, é uma espécie de vaqueiro, responsável pelo manuseio do gado. A relação que a população hoje mantém é de nostalgia e resguardo, é comum ouvirmos histórias de pessoas que


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lá trabalharam e de quão saborosa era a manteiga produzida. A título de exemplo cita o cronista José Expedito Rêgo: A qualidade era de primeira, um dia, peguei uma dessas latas, no armário verde da copa de minha avó, Leonília de Rego, a fim de passar no cuscuz de milho verde, uma delícia. Minha avó não gostou. O produto era reservado para a confecção de pudim de trigo, outra maravilha. (REGO, 2004, p. 5). Outro aspecto que merece destaque se relaciona a questão de gênero, na indústria de laticínio dos Campos eram empregados homens e mulheres, ainda que em trabalhos delimitados, quanto a questão salarial não temos como mensurar suas dicotomias devido a inexistência de fontes até o presente momento. “[...] Na parte de latamento de manteiga trabalhava mais mulher”. (FILHO 2007) O termo “latamente” pode estar fazendo referência ao processo de enlatar derivados do leite em latas para a comercialização. Augusta de Sá, mulher do engenheiro e idealizador do projeto agroindustrial também incutiu esse desejo de trabalho nas mulheres: Ela incutiu nas mulheres o desejo de trabalhar para ganhar dinheiro. Mulher não nasceu só pra fazer de-comer e lavar roupa [...]. Vinha mulher de longe ser rendeira de Dona Augusta. Só se via mulheres, meninas, moças, velha batendo bilros em todas as fazendas. De tarde, as rendeiras de Campos botavam as almofadas na praça da fábrica e Dona Augusta fazia vistoria de uma por uma. Sábado era dia de pagamento. Pagava por metro de renda feito. (ROCHA, 1994, p. 122).

Eram novos tempos na região, a mudança era perceptível não apenas no cenário espacial, com a instalação da indústria, mas também na mentalidade dos que viveram a época. A modernidade europeia figurava nos sertões de dentro do Piauí, ainda que de forma tímida. A hierarquia nas funções empregatícias no âmbito da indústria de laticínio também é apontada por um de seus trabalhadores, ao relatar que substituiu um dos seus familiares em uma das funções: Trabalhei aqui de 1935 até quando ela parou em 44 (1944) por aí assim, substituindo meu avô e colocaram eu como primeiro folguista dessa fábrica, chamava-se José Benedito da Silva e ele não serviu mais pra trabalhar lá na caldeira, ele ficou velho, foi quem começou nas fundação mais o engenheiro que fundou a fábrica aí eu fiquei, quando precisava ele tava trabalhando, botando fogo, pros motores funcionarem. Quando era pra fazer gelo, tinha que ficar aqui 48 horas, com fogo redondo pra máquina girar e fazer bloco de gelo, fechava bloco e aos poucos o folguista ficava quase sozinho, porque os outros ficavam nas outras máquinas. De noite, de dia não, de dia era um transmonte de gente aqui, a gente almoçava e jantava aqui. Lá em riba, no teto saia lá, é dessa altura assim o apito, dois buracos largos assim, fazia como um trem (imitou o barulho do apito de uma chaminé de trem) e botava mais ou menos lá pelas furnas, umas três léguas, uns dezoito quilômetros aí pra baixo escutava. (DE SOUSA 2007). É perceptível, por meio dessa fala rever questões relacionadas também as jornadas de trabalho, não se sabe ao certo o tempo destinado para o este fim, podemos considerar apenas pequenos

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relatos que tratam dessa questão e devido a impossibilidade de solução para esta dúvida, ficam exposto acima um desses pequenos momentos em que a jornada de trabalho é mencionada.

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A origem dos trabalhadores da indústria de lacticinios é um misto de estrangeiros e nacionais. Sabe-se que, os que aqui emprestam suas histórias são brasileiros, descendentes de fazendeiros que já habitavam aquela região antes mesmo da chegada de Sampaio. Mas cabe uma ressalva ao menicionarmos que dentre uma das várias obrigações do contrato de arrendamento encontrava-se a necessidade de fundar núcleos coloniais de nacionais e estrangeiros. “[...] Sampaio decidiu escolher, pessoalmente, na Europa, os colonos que comporiam essa primeira leva de trabalhadores [...]” (VILHENA, 2006, p. 76), desses colonos mencionados pelo autor, encontram-se principalmente italianos. Sabe-se que essa leva de trabalhadores extrangeiros encontraram diversas dificuldades de adaptação, iniciando assim algumas revoltas, o que ocasionou no remanegamento dessa frota de imigrantes, ainda de acordo com o autor mencionado. Outro aspecto relevante na construção dessa narrativa, refere-se a qualidade ofertada na produção da manteiga oriunda da fábrica de lacticínios dos Campos. Em algumas passagens de livros e jornais é possível encontrarmos relatos de apreciadores da qualidade do produto, os próprios trabalhadores relatam esse feito: Produto muito bom, bom como no Piauí nunca deu uma manteiga tão maravilhosa como essa daqui. Nas latas deve ter o nome aí “Manteiga Doutor Sampaio” (FILHO 2007). A qualidade do produto, fez com que o mesmo adquirisse ares longínquos, sendo comercializado não apenas

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nacionalmente, mas para países da Europa como Suíça e Alemanha. Conheci a manteiga fabricada em Campos. Vinha numa latinha amarelada igual às de ‘manteiga do reino’ feitas no sul do País. A qualidade era de primeira. Um dia, peguei uma dessas latas, no armário verde da copa de minha avó, Leonília Rego, a fim de passar no cuscuz de milho verde, uma delícia, minha não gostou. O produto era reservado para a confecção de pudim de trigo, outra maravilha. (RÊGO 2004, p5). O processo de produção, quase que artesanal, apesar de contar com um maquinário moderno para a época, era realizado dentro da própria indústria, pelo menos é o que consta através dos relatos daqueles que ali trabalhavam: [...] de primeiro as latas de manteigas eram feitas aqui, com a fulneraria que ficava ali por traz, lá tinha todo o maquinário de fazer as latas. Os serventes traziam as latas para cá, as mulheres enlatavam aí, tinha uma banca grande ali e traziam pra cá pra a gente fechar. (DE SOUSA 2007). Todo esse processo de produção demandava uma mão de obra ativa e bem diversificada, assim, tanto homens quanto mulheres se dedicavam a arte de produção da manteiga e demais derivados do leite, sendo a manteiga o produto de maior destaque na historiografia sobre o assunto. Seu Zezinho, popularmente conhecido um dos trabalhadores entrevistados lembra que: “Na hora de fechar as latas era eu quem ia fechar, que ninguém sabia, não conhecia as máquinas, eu era burro da carga (risos), tudo era comigo que eles mandavam fazer.” (FILHO 2007). Mais uma vez é


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possível denotar a subdivisão do trabalho algumas vezes mencionada pelos entrevistados ao longo desse feito.

história não pode ser esquecida, dito isto, as luzes do palco estarão sempre acesas à espera de narrativas como essas, que brigam para não serem apagadas.

Considerações Finais

Fotografia 01: Trabalhadores da Fábrica de Laticínios dos Campos. Museu Ozildo Albano, Picos- PI.

A fotografia 01, uma das poucas que estão disponíveis até o presente momento, mostra fazendeiros, escravos, crianças e mulheres nas imediações da indústria de laticínios dos Campos. Sabe-se que muitos desses trabalhadores edificaram suas casas nas proximidades da região, que mais tarde se transformaria na atual cidade de Campinas do Piauí. Nas proximidades da cidade, instalou-se alguns povoados para onde foram alguns desses trabalhadores da indústria de laticínios, principalmente negros. Lá edificaram casas, e quilombos remanescentes, onde até os dias atuais mantem vivas algumas práticas culturais como comidas, vestimentas, danças, dentre outras. Tais descendentes tem suas raízes ligadas a muitos desses trabalhadores que encontram-se na fotografia 01 além de outros. A grande herança deixada pelos que um dia sonharam e constituíram um majestoso empreendimento social no meio do sertão piauienses, é sem dúvidas a existência dessas memórias que se fundem com história desse povo, que ousou e ainda o fazem, sonhando. A

Advogamos que a história da indústria no Piauí teria como um dos primórdios a construção da antiga fábrica de laticínios no atual município de Campinas do Piauí, assim como ocorre em outros momentos da historiografia, a presença daqueles que arquitetaram, deram vez, sentido e funcionamento ao empreendimento muitas vezes são sucumbidos. Figurando quase sempre o nome dos “heróis”, ou daqueles que ocupam espaços privilegiados, e que claramente tiveram sua importância. Nesse quesito, apresentamos por hora a importância de dar sentido e voz aos trabalhadores da fábrica do Dr. Sampaio, que assim como o mesmo, tiveram sonhos ousados em épocas difíceis. Dito isto, acreditamos que o objetivo desse estudo tenha sido atingido, visto tamanha possibilidade de discussão que o mesmo nos apresenta. Por iniciativa do destino, os atores desse estudo não encontram-se entre os vivos, pelos menos não fisicamente, mas fazem parte dos livros de história e de um conjunto de memória que não pode ser compreendido de forma isola, visto que todos se inserem num conjunto e contexto social. Assim, buscamos dar sentido as suas histórias mesmo sabendo de suas paixões e riscos de anacronismos, mas o oficio do historiados requer que tenhamos olhos atentos as diversas possibilidades que a história possui para se apresentar. Fica registrado, nas entrelinhas desse manuscrito, a necessidade de discutirmos cada vez

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mais a história das relações sociais do mundo do trabalho, principalmente daqueles que realmente constroem castelos, fábricas, casas, cidades e sonhos.

ROCHA, Odeth Vieira da. Maranduba: memória do Nordeste contada de viva voz – de mãe para filho, de avó para neto - para que não se percam nossos começos e tropeços. 2 ed. Rio de Janeiro: Sindical, 1994.

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Yves Samara Santana de Jesus

ESCRAVIDÃO EM FEIRA DE SANTANA, FREGUESIA DE SÃO JOSÉ DAS ITAPOROROCAS (1785-1826): relações sociais e afetivas entre escravizados/as.

Yves Samara Santana de Jesus1

Resumo O presente trabalho se propõe a analisar a conjuntura política, econômica e social de Feira de Santana nos séculos XVIII e XIX, uma vez que, os estudos da escravidão têm privilegiado a capital e o Recôncavo Baiano, afirmo a possibilidade de superação dos limites geográficos e conceituais. No tocante da sociabilidade, busca-se compreender o batismo de africanos na Freguesia de São José das Itapororocas no período compreendido entre 1785 e 1826. Palavras-chave: Feira de Santana, Escravidão, Batismo de Escravos.

Abstract This paper aims to analyze the political, economic and social development of Feira de Santana in the eighteenth and nineteenth centuries, since the studies of slavery and capital have privileged Recôncavo, affirm the possibility of overcoming geographical boundaries and conceptual . In terms of sociability, we seek to understand the baptism of Africans in the Parish of St. Joseph of Itapororocas the period between 1785 and 1826. Keywords: Feira de Santana, Slavery, Baptism of Slave.

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Mestre em História Regional e Local na Universidade do Estado da Bahia, Campus V – Santo Antonio de Jesus. E-mail: yves_samara@hotmail.com

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Os estudos sobre a presença de escravos são muito recentes na região de Feira de Santana. A ausência explica-se, em grande parte pelo silenciamento da historiografia feirense sobre esse grupo social. Feira de Santana é considerada a porta de entrada para o sertão desde sua eminência até as os dias atuais. Nos últimos anos, os estudos historiográficos têm o papel de redimensionar a história feirense e trazer á tona os sujeitos históricos ausentes nas discussões, em que, atribuem a necessidade de dar vozes aos excluídos da história e acompanhar o desenvolvimento da história da escravidão no Brasil, mais precisamente, no século XX.

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O ponto de partida das discussões sobre a historiografia feirense pode ser iniciado com a utilização de referenciais teóricos sobre a temática e partir daí fazer uma cronologia dos estudos sobre o processo escravista na região agrestina. As análises feitas pelos autores servem como aportes teóricos para contextualização. A contextualização do período identifica a composição social diversificada da localidade que foi (re) interpretada pelos horizontes teóricos da época. As pesquisas históricas colocam Feira de Santana como uma comunidade de localização privilegiada e desenvolvimento de diversas atividades econômicas (policultura), sem anular a existência de conflitos no espaço público entre os grupos que ocupam esse terreno espacial. Nesta perspectiva interpretativa, utilizarei como referenciais teóricos os seguintes autores que tratasse mais do debate historiográfico: Poppino (1968), Celeste Pacheco (1990), Zélia de Jesus (1990), Clóvis Ramaiana (2000), Luis Cleber (2007), Flaviane Nascimento (2008) e Max Oliveira (2009). O presente trabalho objetiva compor as vagas incompletas sobre a história do ISSN 2447-7354

sertão baiano, pouco se sabem sobre as reminiscências da população negra cativa na região, as experiências cotidianas, resistências, trajetórias individuais e coletivas dos egressos do sistema escravista. Na análise de Freire, o sertão é caracterizado, neste trecho: Num sentido amplo, o sertão compreende o interior afastado das terras do litoral, constituído de caatingas, chapadões, matas de galerias, campos e cerrados. Ocupando a maior parte do sertão e mesmo sofrendo com o fenômeno periódico da seca, a caatinga mostrou-se de fácil adaptabilidade para o desenvolvimento da pecuária bovina. Ela se desenvolve em clima semi-árido, em regiões de baixo índice pluviométrico, onde o calor fatigante durante o dia é compensado pela queda brusca da temperatura à noite. A forragem que cobre o seu solo, juntamente com as árvores e os arbustos, ficam inteiramente nus na época da estiagem, compondo uma paisagem que, vista de longe, aparenta um tom ocre. Entretanto, basta a chuva se manifestar com suas fortes trovoadas e, em poucos dias, a paisagem muda de cor, apresentando-se em toda a sua plenitude encoberta de vários “tons de verde e o solo nu desaparece debaixo das gramíneas rasteiras que florescem em cachos de todas as cores” (2007, p.26). Outro elemento importante é utilizar as vertentes teóricas para desmitificar a ausência negra no processo identitários da região, no qual, são notadamente vinculados á cultura vaqueira1. Os estudos recentes da história da escravidão fizeram um aparato de conhecimento sobre a religiosidade, família negra, formas de resistência, inserção no mercado de trabalho e identidades étnico1

Os vaqueiros, a principio de origem indígena, mais tarde, constituída por mamelucos. (LIMA, 1990, p.41)


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raciais. Pretendendo complementar os avanços dos estudos contemporâneos sobre a história da escravidão no que diz respeito às possibilidades de informações presentes nessas fontes, destacam-se os arquivos paroquiais. Os registros eclesiásticos trazem dados sobre os negros cativos, libertos e livres, além das outras informações presentes nos livros de batismo que são de suma importância para os questionamentos sobre a organização social feirense, de forma múltipla e distinta. A história de Feira de Santana foi construída na lógica de uma região estratégica de passagem de boiadas e vaqueiros e dos grandes personagens históricos da região em detrimentos da negação de outros sujeitos, ou seja, a região feirense destacou-se os referenciais sócios- culturais tidos como importantes para o alcance da tida civilização. Desta forma, as lutas dos grupos sociais pertencentes à sociedade sertaneja foram colocadas em segundo plano, tal como, o esquecimento do passado escravista eminente na localidade. Foi das trocas praticadas entre a Cidade da Bahia e os vastos sertões, para adiante do Recôncavo muitas léguas, que a povoação que um dia seria a que hoje conhecemos, começou a surgir. Tal perspectiva revela a importância do estudo sobre a escravidão em Feira de Santana, para entendermos as redes sociais construídas no seio escravista que foram reelaboradas no pós - abolição. Os estudos sobre a temática, de certa forma, estão avançando com a utilização de fontes documentais inexploradas, como os registros paroquiais. Os registros paroquiais contribuem para acompanhar as trajetórias e memórias dos escravizados/as e os grupos familiares ao longo do tempo da escravidão. Segundo Slenes, além dos registros eclesiásticos existe uma série de diversos

documentos sobre trajetória dos escravizados. Os documentos que permitem compreender o sistema escravista e suas ligações sociais são os seguintes: matrículas e listas de escravos anexas aos inventários post-mortem, assentos de batismo, casamento e registros cartoriais.2 Referentes aos estudos sobre população negra cativa, destaca-se o trabalho de Isabel Reis3, a sua pesquisa sobre família negra na Bahia, a autora utiliza os assentos de casamentos da Freguesia da Sé (Salvador) e das listas de classificação dos cativos a serem alforriados pelo Fundo de Emancipação em Inhambupe (Sertão) e Ilhéus (Extremo Sul da Província) como suportes para o estudo da formação familiar da Bahia no século XIX. Assim sendo, a histografia da escravidão feirense pode ser exploradas pelos pesquisadores e historiadores, devido a gama de fontes inexploradas e disponíveis para o aprofundamento da temática. Além disso, os cruzamentos das informações fornecidas pelas fontes presentes nos inventários, nas listas de matrícula, assentos batismais e casamentos de escravos, nos permitem uma análise mais aprofundada sobre as relações sociais dentro e fora do cativeiro. O estudo sobre Feira de Santana perpassa, pela análise do mito de fundação até as contribuições dos grupos sociais envolvidos no processo histórico para a 2

Ver Robert Slenes. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. 3 Ver Isabel Cristina Ferreira dos Reis. História de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX, Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001. Na mesma linha interpretativa, Cacilda Machado e Manolo Florentino utilizaram no seu trabalho sobre família escrava as seguintes fontes: listagens de escravos constantes de inventários post-mortem, registros eclesiásticos (batismos, matrimônios e listagens de escravos pertencentes à Igreja Católica), oficiais e privados.

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construção identitária da região. O mito de fundação de Feira de Santana foi construído sobre o casal Araújo/Brandão, cristãos, donos de uma grande área na região devido a sua receptividade aos visitantes e comerciantes da época, culminou no povoamento da região. A origem de Feira de Santana esteve atrelada ao mito de fundação do casal protagonista em detrimento dos silenciamentos e/ou exclusão da outra parcela da população na edificação da cidade.

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Um dos primeiros trabalhos percussores sobre a história socioeconômica de Feira de Santana foi o de Poppino. O brasilianista Poppino ao investigar sobre a origem de Feira de Santana nas discussões presentes na sua obra, o autor focaliza suas investigações desde o mito de fundação, desenvolvimento de variadas atividades econômicas na região e a ocupação étnico-racial no espaço. As atividades econômicas realizadas na localidade feirense eram marcadas pelas relações escravistas. O trabalho de Poppino foi o mais significativo no final da década de 60, no qual, é feita uma abordagem das formações econômicas, políticas e sócio-culturais da região do semi-árido4. Os trabalhos de Celeste Pacheco e Zélia Lima das décadas de 90 fogem da história positivista, dos grandes mitos e personagens. As autoras fizeram novas leituras historiográficas críticas, sem imposição de uma verdade absoluta, contradizendo as idéias romantizadas dos autores da história conservadora sobre a história do povoamento de Feira de Santana. Os respectivos trabalhos resgatam os excluídos da história mostrando as suas estratégias de sobrevivên4

Semi- árido – Qualquer região afastada das terras cultivadas e das costas , coberta de vegetação áspera(Mattoso,1992,p.63).

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cia e resistências às modificações do espaço que estavam inseridos. O trabalho de Celeste Pacheco, Origens do Povoamento em Feira de Santana: Um estudo de história colonial contextualiza-se numa rediscussão da historiografia clássica de surgimento do povoado feirense e dos fatos sobre os mitos de fundação de Feira de Santana. Primeiramente, ela faz uma abordagem dos suportes teóricos que enalteciam a idéia estática de surgimento da cidade em torno do casal de católicos, ou seja, não exclui a importância deles na fundação e construção identitária sertaneja, mas, reconhece outros grupos e relações sociais distintas do modelo cristão e patriarcal da historiografia dominante. O trabalho de Celeste Pacheco não objetiva o resgate dos outros grupos sociais na fundação e no povoamento da cidade de Feira de Santana. O trabalho engloba as particularidades e divergências de versões e hierarquização dos grupos sociais feirenses sobre o mérito da fundação da cidade. O trabalho de Celeste Pacheco prossegue as discussões feitas por Poppino (1968) sobre as peculiaridades presentes na região de Feira de Santana. Na linha interpretativa sobre a composição social de Feira de Santana, especialmente, o papel de protagonista do negro escravo na região, o trabalho de Zélia Jesus Lima é bastante convidativo ao refletir sobre Lucas da Feira, a autora aponta o reconhecimento da presença negra na construção do território feirense, mesmo que, em termos numéricos não seja tão significativa. A construção negativista de Lucas da Feira e sobre os negros escravizados/as, fica nítida neste trecho: “Dentro desse modelo constituído contra o negro, atitudes como a de Lucas só poderiam ser compreendidas com relação natural causa e efeito. Á


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má índole, as barbaridades e outros conceitos negativos sobre Lucas residiam, exatamente, nos seus atos criminosos, mas, em uma determinação anterior. Ele seria rebelde porque era negro, e não porque era escravo. (LIMA, 1990, p.225)”. Primeiramente, é feita uma abordagem sobre a estrutura socioeconômica de Feira de Santana nos séculos XVIII e XIX, e posteriormente, a discussão é focalizada na figura de Lucas Evangelista dos Santos – Lucas da Feira. A autora afirma que a ocultação da escravidão em Feira, é devida, a existência de um preconceito bibliográfico em relação à história de Lucas, ou seja, as lembranças e similaridades feitas ao bandido escravo eram renegadas pela comunidade feirense. A retirada historiográfica do escravo era uma estratégia de afirmação de uma hierarquia social e racial, pois, existia a coisificação do escravo na Sociedade Imperial, essa característica fica evidente neste trecho: Do ponto de vista, o escravo era excluído da categoria de cidadão, equiparando-se às coisas, enquanto sujeito à propriedade e ao domínio de outrem e, portanto, privado de quaisquer direitos civis. Porém, ainda que despersonalizado e reduzido a objeto de propriedade, na legislação criminal ele era responsável pelos seus atos: logo, sujeito a processo. (LIMA, 1990, p.184). Neste aspecto, o conhecimento do processo escravista na região agrestina é uma ressignificação de valores socioculturais no plano teórico, a posteriori, uma sustentação étnica e suas implicações na contemporaneidade. Lima analisa a tal questão neste fragmento:

No passado, a escravidão era aceita sem que as camadas dominantes questionassem a legitimidade do cativeiro. Muitos justificavam a escravidão argumentando que, graças a ela, os negros eram resgatados da ignorância em que viviam, sobretudo quando convertidos ao cristianismo. Outros afirmavam que conversão libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação eterna. Para nós, esses argumentos podem parecer cínicos, mas, naquela época, eles tinham o maior poder de persuasão: A ordem social era considerada expressão dos desígnios da Providência Divina, e, portanto, não era questionada. Acreditava-se ser a vontade de Deus que alguns nascessem nobres, outros vilões, uns ricos, outros pobres, uns livres, outros escravos. Deste modo, não cabia os homens modificar a ordem social. Assim justificada pela Igreja e pelo Estado, a escravidão não era censurada e nem imoral. A Igreja limitava-se a recomendar paciência aos escravos e a benevolência aos senhores. (1990, p.231). Eis o cerne do conflito, pois, o convívio e a idéia da escravização negra eram normatizados nas instâncias sociais e o provável surgimento de estudos sobre os sujeitos historicamente excluídos da história contrapõe essa naturalização de exploração de mão- de – obra negra cativa, na qual, o ideal de civilização implantado na sociedade imperial extinguia os resquícios da escravidão na localidade. No decorrer de sua abordagem sobre a presença negra em Feira de Santana, Lima enfoca alguns autores que tentam desvincular o passado escravista e de Lucas da Feira da organização social do sertão baiano, ressalte-se, que tais atribuições são feitas no contexto de interação social dos diversos grupos, ou seja, as características que foram levadas em consideração na formação social são dos grupos hierárquicos e de descendên-

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cia branca da região. A descendência branca na região feirense no contexto escravista era uma forma de prestígio social na sociedade escravocrata, mesmo as pessoas de pele mais clara conseguiam adquirir algum prestígio sociais dentro da complexidade de relações sociais presentes na comunidade feirense. Referente a esta afirmação, Juvenal Carvalho expôs que o fim do tráfico negreiro e a chegada dos imigrantes revelaram a necessidade de implantação da política de embranquecimento no Brasil, ao relatar que:

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As classes dirigentes brasileiras desenvolveram uma política agressiva e deliberada de cortar os vínculos que ligam o nosso país com a África. Todo esforço seria então realizado para dar ao Brasil a aparência de nação européia. O embranquecimento da nação passaria, entre outras coisas, pelo mais completo afastamento da África e pela destruição dos sinais que traduzissem a herança africana. A África passa a ser vista como uma totalidade geográfica e humana homogênea, desconhecida e distante. (2009, p.10 e 11). Em meio a essa tensão social, falar de Lucas da Feira, como referencial identitário para aos feirenses é retirar do imaginário social a visão negativa referente ao sujeito escravo historicamente marginalizado e de descendência africana. O estudo de Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira denominado De Empório a Princesa do Sertão: Utopias Civilizadoras em Feira de Santana (1893 -1937) mostra a importância das contribuições interétnicas na composição social da sociedade agrestina, desde os conflitos nos espaços urbanos até as identidades (re) criadas no espaço. Feira de Santana uma cidade construída no interior da

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Bahia, com sólidas bases rurais, certamente a chegada de tais novidades provocaram conflitos, uma vez que, entraram em choque com as duas características de Feira de Santana de um lado o passado rural e do outro o fortíssimo incremento do comércio e o desenvolvimento urbano (2000, p.25). A cidade de Feira de Santana foi construída como o lugar de entreposto comercial entre o Sertão e a Capital e de passagens de vaqueiros e tropeiros, ou seja, as experiências de outros grupos sociais ao longo do tempo foram esquecidas e/ou negligenciadas pelos os trabalhos historiográficos feirense O trabalho de Oliveira e os demais trabalhos produzidos na década de 90 estão inseridos no programas de pósgraduação em História Social da UFBA. Esses trabalhos foram pioneiros ao trazer novos horizontes de discussões das vivências étnicas nos espaços urbanos e rurais, sobretudo, apontando as bases geográficas como elementos fundamentais para a construção identitária. Na base interpretativa de Oliveira, o seu trabalho permite uma abertura de questionamentos em abertos sobre a construção da cidade de Feira de Santana juntamente com o ideal saudosista das memórias dos povos que ocuparam tradicionalmente a região do Vale do Jacuípe. As fontes utilizadas no processo investigativo possibilitaram uma ampliação do universo de discussão sobre a presença negra na história feirense. As novas fontes são fundamentais para a ressignificação da memória coletiva e individual e assim tecendo novas narrativas sobre a estruturação física, social, política, cultural e econômica do povo sertanejo. Antes de adentrar em estudos contemporâneos, faz-se necessário situar essa temporalidade, no século XIX, ou seja, embora as presenças negras em


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Feira de Santana passassem a ser (re) lidos, enquanto uma experiência “desconhecida” existe uma carência de estudos sobre os laços de solidariedade e sociabilidade dos negros escravos da região feirense e das trajetórias dos exescravos no pós - abolição. Tem-se uma explicação que os laços sociais e os elementos de resistência da cultura negra foram esquecidos e silenciados, em nome de um projeto republicano de utopias civilizadoras. Por outro lado, a retomada temporal, pode ser lida que, comprovando a existência da escravidão negra em Feira de Santana, juntamente com outros elementos constituintes da sociedade escravista, tais como: economia e política e as idéias eugênicas presentes no território feirense apontam uma construção de uma identidade miscigenada. As temporalidades abordadas no trabalho permitem as possíveis descobertas sobre os (re) arranjos cotidianos e construções de possíveis autonomias dos escravizados, especialmente, nos séculos XVIII e XIX. O trabalho de Freire (2007) é esclarecedor, pois, focaliza sua discussão na construção do referencial comercial da região feirense, utilizando como aparato teórico a História Econômica juntamente com a História Social. Suas discussões norteiam também na localização privilegiada de Feira de Santana, destacando – no seu enfoque temático a criação de gado e o avanço da pecuária foram importantes para a ocupação do território feirense. Além disso, ressalta a importância da produção de riqueza proveniente do trabalho escravo nas fazendas que possibilitou o conhecimento dos escravizados/as que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos de um determinado lugar.

O autor analisa a posição estratégica da região baseadas pelos seguintes aspectos: localizada numa região de transição entre o litoral e o sertão, ou seja, nem tanto ao mar, nem tanto a terra, a fertilidade de seu solo permitiu que nele fosse desenvolvida a pecuária e as variadas culturas agrícolas como o tabaco, a cana-de-açúcar, o algodão e a mandioca, dentre outras. A sua posição estratégica como ponto de descanso de boiadas vindas do sertão mais distante em direção ao litoral, foi fator determinante para que florescesse o comércio desses animais. (p.17). Neste sentido, as características geográficas da região feirense influenciaram no desenvolvimento da policultura e do comércio na localidade, ao mesmo tempo em que, eram estabelecidas redes de solidariedade, como trocas comerciais, em face, a ocupação territorial negra no solo agrestino mostrando as experiências sociais são ricas e abertas as contribuições das fontes documentais, arquivos particulares e depoimentos orais sobre as alternativas dos cativos de ganhar a vida dentro e fora do cativeiro. Na mesma linha interpretativa de Freire, Poppino (1968), afirma a existência das diversas culturas agrícolas desempenhadas na região feirense durante o Império. As culturas agrícolas influenciavam nas relações sociais na localidade. A policultura presente na região permitiu as construções das rotas comerciais. Neste sentido, o algodão era plantado nas maiores fazendas, onde havia a exploração da mão-de-obra escrava, mas que antes do fim desse período o seu cultivo declinou. O fumo foi o cultivado por pequenos agricultores pobres, foi um dos mais importantes produtos comerciais do município, da segunda metade do século XIX até meados de 1950. Embora, fosse cultivada certa quantidade de cana-de-açúcar na

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região de Feira de Santana, em áreas próximas a rios ou riachos, o seu solo, que não era tão rico quanto os férteis massapés do Recôncavo, nunca favorecessem um cultivo que justificasse o desenvolvimento dessa lavoura.

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Progressivamente, essa cultura foi sendo abandonada e substituída por pastos de capim para a pecuária bovina. O desenvolvimento da pecuária na região de Feira de Santana, especificamente, a criação de gado, alavancou o progresso econômico da localidade, proporcionou a comunicação com as cidades circunvizinhas e as construções das vias de transporte para o gado5. A ampliação da economia da região tratar-se na verdade, de perceber, como as dinâmicas comerciais influenciam nas relações cotidianas dos sujeitos envolvidos neste processo, especialmente, os escravizados/as. O crescimento da região agrestina, no século XIX em torno dos fatores econômicos atrelava-se ao mesmo tempo, ao crescimento da mão-deobra escrava na região. Neste contexto, a região de Feira de Santana na sua ocupação territorial detinha um emaranhado de relações sociais, as raças perfeitamente definidas sobre estratificação social. Poppino expôs que: Nenhum branco era escravo, nem depois do século dezessete, houve índios escravos, Tanto índios como brancos encontravam-se, contudo, entre os lavradores de terra, tarefa, em regra, entregue a negros e mulatos. Por outro lado, mamelucos e mulatos, ocasionalmente, eram proprietários ou negociantes, embora, 5

O transporte de gado era feito pela Estrada Real do Gado. A estrada tinha função de via comercial e ligações com as cidades circunvizinhas. Ver, especialmente, o trabalho organizado por NEVES, Erivaldo Fagundes. & MIGUEL, Antonieta (Orgs.). Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007. Sertão.

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geralmente, essas posições fossem ofuscadas por gente branca. Conquanto fôssem os vaqueiros brancos, negros ou mulatos, por tradição o vaqueiros brancos, negros ou mulatos, por tradição o vaqueiro ou era índio ou mameluco. (POPPINO, 1968, p.84). Os trabalhadores negros africanos constituíram os novos padrões nas dinâmicas das relações e dos conflitos que emergiram na sociedade escravista feirense. O panorama conjuntural do século XVIII e XIX representa a diversidade dos grupos sociais nas zonas rurais e urbanas de Feira. O desenvolvimento econômico do “Portal do Sertão” contribuiu para o crescimento da população escrava, liberta e livre de cor nas diversas aquisições trabalhistas existentes na região. A população cativa e forra favorecia o crescimento da região com seu trabalho. O processo de crescimento populacional da região pode, em grande parte, as concessões de alforrias e a migração dos ex-escravos no pós-abolição (Poppino, 1968,p.52). A diversidade de grupos étnicos presentes na sociedade feirense esteve atrelada a necessidade de mão - de - obra para a sua realização das atividades econômicas da localidade. Nesta perspectiva, da composição social da região, o tráfico transatlântico foi um setor de depósito de trabalhadores negros africanos nas lavouras agrícolas do Brasil e mesmo nas lavouras de algodão e fumo a população escrava teve uma quantidade significante na estruturação social das comunidades escravistas. Seguindo essa lógica capitalista de obtenção de lucro, os cativos africanos foram essenciais na efetivação da agricultura monocultura em Feira de Santana e mesmo a catastrófica seca que atingiu a Bahia nos períodos de 1860 e 1870, não influenciou na diminuição da população cativa


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na região, ou seja, no declínio populacional desses trabalhadores. A diminuição da mão- de – obra cativa no Recôncavo Baiano foi proveniente de diversos fatores, tais como: seca, as moléstias, o fim do tráfico transatlântico, visto que ,modificou toda a estrutura socioeconômica da comunidade escravista. Como expôs Barickman (1998-1999): A seca de 1857-61 outras se seguiriam. Mas nenhuma parece ter tido um impacto tão devastador quanto à de 1888-91. Justamente no momento em que os senhores de engenho tiveram, pela primeira vez, que organizar a produção exclusivamente na base da mão-deobra livre, o Recôncavo experimentou uma falta quase total de chuva. No primeiro ano, a safra no engenho da Cruz, do recémfalecido Barão do Iguape, rendeu apenas 31.300 kg de açúcar, enquanto na praça de Salvador virtualmente se paralisou a exportação de açúcar. Embora seja impossível distinguir os efeitos da seca daqueles decorrentes da abolição, a documentação não deixa margem a dúvida: 1889 foi um dos piores anos para a população rural do Recôncavo e para sua agricultura. Afinal, as chuvas voltaram depois de 1857-61, e a chamada cana caiana que a "moléstia" atacava foi substituída. Não obstante, a estagnação continuou. Do mesmo modo, ao fim da seca de 1888-91 seguiu-se apenas uma recuperação lenta e muito incompleta das exportações de açúcar. (p.14 e 15). Nos anos de 1872 os escravos do município somavam mais de 4.000 indivíduos, apenas na Freguesia de São José das Itapororocas, cuja área corresponde atualmente ao distrito de Maria Quitéria – onde está localizado o Povoado da Matinha-, possuía 661 escravos, o que equivalia a 9 por cento da população total da freguesia. Após 1850 a escravidão entra em declínio do cativeiro

forçado nesta e em outras regiões da Província da Bahia. O declínio fica evidente quando comparamos os números da década de setenta àquele do inicio do século XIX, na mesma freguesia das Itapororocas. (1968, p.256-7). O alto contingente da população negra na Freguesia de São José das Itapororocas foram devidos aos movimentos migratórios e de deslocamentos desta população, entre o Semi-Árido e Recôncavo, em busca de meios de sobrevivência, almejavam terras para desenvolverem a agricultura de subsistência, ou seja, a conquista de terras garantia sua independência diante os antigos proprietários de terras e escravos. (POPPINO, 1968, p.256-257). A falta de escravos que já não vinham mais da África, e ainda eram vendidos para a lavoura cafeeira do Sul do país, provocou uma oportunidade de crescimento a partir da escassez da mãode-obra africana. Porém, o principal fator da estagnação do comércio do açúcar, para ele, foi o comércio internacional: Portugal já não dava preferência de compra ao nosso produto, e outros países europeus, como a Espanha, Inglaterra, França e Holanda, tinham suas próprias colônias onde produziam açúcar. E assim, “entre 1873 e 1890, a crise no Recôncavo açucareiro, que já vinha de antes, se tornou aguda”. Em Feira de Santana, em 1835, encontramos quatro proprietários de engenhos localizados nas terras de Limoeiro e São Simão, cuja posse de escravos era superior a 20. Já em nosso período de estudo, encontramos onze inventariados com atividade canavieira em suas terras. Tivemos a oportunidade de verificar que os engenhos da região, situados todos na freguesia dos Humildes, não eram voltados unicamente para a fabricação de açúcar, pois em um deles produzia-se cachaça. (FREIRE, 2007, p.64). Quando anali-

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samos o desenvolvimento da população cativa em Feira de Santana, nos séculos XIX, percebemos que os fatores externos e internos não influenciaram precisamente na propagação desse contingente populacional. Como expôs Poppino, neste trecho: Das três raças que povoaram Feira de Santana antes de 1860, só os negros aumentaram em números absolutos e relativos. Em 1872, havia menos de treze mil negros em Feira de Santana. Em 1940, esse número quase dobrara, conquanto a proporção de negros em relação aos outros grupos raciais do município, crescesse apenas de 3%. (p.250)

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Por isso, outras perspectivas teóricas e abordagens acerca da existência da escravidão e de redes sociais em Feira de Santana, destacam-se os trabalhos de Flaviane Nascimento (2008) e Max Oliveira (2009), pois, diferente de estudos anteriores, os historiadores chamam a atenção nos seus estudos para a zona de transição do Recôncavo e o Semi – Árido e as diversas culturas agrícolas, estas são responsáveis para a penetração e manutenção da população negra cativa na freguesia feirense e nas regiões circunvizinhas. Nesta perspectiva, Nascimento aborda no seu trabalho o papel das mulheres negras cativas no período da escravidão, pois, a escravidão negra assegura o papel principal e impulsionador de economia ao homem escravo, as mulheres escravas tinham seus papéis relegados ao lugar coadjuvante. O trabalho da historiadora tem uma característica marcante, pois, protagoniza o papel das mulheres negras e escravas. Os papéis principais dessas mulheres no seu trabalho são referentes à produção da sua própria história, trajetórias

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individuais e/ou coletivas no período escravista, em que, o processo de coisificação dos escravizados/as era determinante para as relações sociais no sistema escravista. A divisão sexual do trabalho ocorria com muito mais freqüência em propriedades cujos/as senhores tinham capital suficiente para adquirir mão-de-obra necessária os mais diversos afazeres, logo, grande proprietários/as. Os papéis sociais com relação às ocupações não estiveram rigorosamente submetidos ao sexo durante a escravidão, variando, como já dito, principalmente num contexto de pequenos e médios proprietários e cuja diversidade produtiva fora preponderante (2008; p.33). A contribuição de Nascimento à história da escravidão em Feira de Santana deu-se pelo trabalho de investigação as cartas de liberdade, escritura de compras e venda de escravos, penhor, hipoteca, procurações e além dos jornais, no qual, foi possível perceber as redes de sociabilidades e resistência criadas pelas mulheres cativas na sociedade agrestina e feirense. O fato da maior parte dessas mulheres terem se concentrado na lida diária da roça indica que a mão-de-obra escrava feminina foi largamente utilizada na policultura agrestina, cujo emprego na roça remonta, inclusive, a uma ancestralidade africana visto que em África as mulheres eram responsáveis pela agricultura de subsistência. A mão – de – obra feminina tem o papel principal desde o continente africano, as mulheres negras tinham várias atividades nas localidades africanas. Como expôs Nascimento: O trabalho braçal, considerado indigno às sinhás, foi relegado às negras. Distanciadas da imagem de mulher frágil – existente apenas no ciclo restrito das classes dominantes


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ocidentais -, as mulheres de África no Brasil foram submetidas a “todo serviço”: da roça, da casa ou nas atividades do ganho, eram sempre elas a realizá-los, mesmo porque aquela imagem de “mulher frágil” se contrapunha à lógica econômica do sistema escravista. (p.30). No conjunto das sociedades africanas elas efetuavam tarefas diversas tanto agrícolas, quanto domésticas, especialmente às mulheres escravizadas, que no outro lado do Atlântico também eram responsáveis pela agricultura doméstica (NASCIMENTO; 2008 p.39). Neste sentido, vale ressaltar a importância das cartas de liberdade e processos cíveis na reconstrução de aspectos importantes da vida escrava, das estratégias de sobrevivência/resistência e das lutas contra o sistema escravista. O trabalho de Max de Oliveira Compadrio, criança e escravidão: Formação das relações de parentesco ritual pelas famílias escravas em Feira de Santana (1866-1880) é de certa forma, inédito nas discussões sobre a história da escravidão em Feira de Santana. O historiador utiliza para a realização do seu trabalho as fontes eclesiásticas, ainda pouco exploradas pelos pesquisadores da temática e encontra algumas respostas nos livros de batismos de Feira de Santana e que podem ser ampliadas com o cruzamento de outras fontes, pois, a compreensão pura dos livros paroquiais não permite tirar conclusões completas sobre as informações presentes no documento, muitas vezes implícitas na entrelinhas de cada batizado. Os trabalhos analisados são essenciais no processo de recomposição dos estudos sobre o território sertanejo destacando a experiência escrava numa região sócio, cultural e economicamente distinta. Portanto, as novas fontes pos-

sibilitam a construção de uma nova história e signos sociais na sociedade contemporânea. Neste contexto, os arquivos paroquiais, quase totalmente inexploradas, podem impulsionar novas frentes de investigação sobre a história da escravidão no agreste baiano desmistificando homogeneizações, modelos explicativos insuficientes, trazendo novas versões para a história dos escravizados, história de vidas encerradas em livros esquecidos por muitos historiadores que já decretaram o esgotamento do tema da escravidão.

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sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007. Sertão. NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampuleiros traficantes: comércio de escravos do Alto sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista. Afro – Ásia, 24 (2000), 97-128. NOGUEIRA, Max Oliveira Santana. Compadrio, criança e escravidão: Formação das relações de parentesco ritual pelas famílias escravas em Feira de Santana, 1866-1880. Feira de Santana: Monografia de conclusão do curso de graduação em História, UEFS, 2009. OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. De Empório a Princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893-1917). Dissertação de Mestrado. - Salvador: UFBA, 200.

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EXPERIÊNCIA, TRABALHO E ARTESANATO: as rendeiras de Lagoa do Sobradinho (Luís Correia-PI) e a produção de renda de bilro. Samires Lima Souza1 Amanda Maria dos Santos Silva2

Resumo O artigo trata-se de um estudo de campo realizado com as rendeiras de bilro da comunidade de Lagoa do Sobradinho em Luís Correia-PI, com o objetivo de identificar as experiências das rendeiras no local. Foram entrevistadas três rendeiras que possuem grande conhecimento na prática do rendar. A partir da utilização da história oral foi possível obter relatos, informações sobre o desenvolvimento do ofício no local e as perspectivas das artesãs sobre a manutenção do conhecimento tradicional na comunidade. Obteve-se como resultado questões de gênero, trabalho e identidade cultural que interferem na prática e na manutenção do saber tradicional na comunidade. Palavras-chave: Renda de bilro. Lagoa do Sobradinho. Rendeiras.

Abstract The article is a field study carried out with the billet lace makers from the community of Lagoa do Sobradinho in Luís Correia-PI, and its objective is to identify experiences of the lace makers in the place. Three of them, who have great knowledge and experience in making laces, were interviewed. By using oral speech, it was possible to obtain their reports and information about the development of the craft in the place and their perspectives on the maintenance of the traditional knowledge in the community. As a result, questions of gender, work and cultural identity have interfered with the practice and maintenance of traditional knowledge in the community. Keywords: Billet lace. Lagoa do Sobradinho. Lace makers.

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Graduanda em Turismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Reis Velloso, Parnaíba. E-mail: samiresjm@hotmail.com 2 Mestre em Educação Brasileira. Bacharel em Turismo. Graduada em História. Professora auxiliar do curso Bacharelado em Turismo da UFPI. E-mail: amssphb@gmail.com

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Introdução A Renda de bilro é um artesanato rico em detalhes e seu patrimônio cultural material está cada vez mais valorizado nas grandes cidades, mesmo com o crescimento de indústrias voltadas a produção da renda, pois ela possui uma delicadeza e confecção diferenciada que promovem uma peça única em detalhes e beleza. Conhecida também como renda de almofada ela pode ser localizada em inúmeros estados do Brasil, como: Santa Catarina, Piauí, Rio de Janeiro e Ceará.

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Este artesanato é encontrado em alguns locais no estado do Piauí, principalmente na zona litorânea, no qual é muito reconhecida na comunidade de Morros da Mariana, no qual já realizaram diversas pesquisas sobre as rendeiras desta localidade que se encontra no município de Ilha Grande de Santa Isabel. Há outros lugares que produzem, mas não possuem tamanha visibilidade e desenvolvimento quanto à área citada, no entanto, este artigo abordou a produção desse artesanato tradicional em Lagoa do Sobradinho, localizado no município de Luís Correia. A comunidade Lagoa do Sobradinho é um povoado pequeno, possui em torno de 900 habitantes, é um povoado humilde, porém as casas construídas são de tijolos, o que diferencia este povoado dos demais, que geralmente vivem em casas de taipa. A maioria dos habitantes sobrevive da pesca, da agricultura e do aposento, e uma pequena parcela sustenta-se através trabalho autônomo. Nesta localidade encontram-se rendeiras que, por lazer, amor ao oficio e questões financeiras produzem renda de bilro. Diante disso, este artigo tem como objetivo identificar as experiências das artesãs, analisando como o artesanato é desenvolvido no local e quais as persISSN 2447-7354

pectivas que elas possuem sobre a prática do rendar na comunidade, observando suas perspectivas relacionadas a produção de bilro na comunidade, também serão analisados as motivações que interferem na sua manutenção, como questões de gênero, cultura e trabalho. . O artigo baseou-se em uma abordagem do estudo qualitativo e bibliográfico, utilizando também o estudo de campo para obter maior aproximação com o objeto de estudo, as rendeiras da comunidade Lagoa do Sobradinho, observando que “o trabalho de campo constitui-se numa etapa essencial da pesquisa qualitativa, que a rigor não poderia ser pensada sem ele” (MINAYO, 2006, p. 202). Ir a campo e conhecer o objeto estudado é fundamental para entender empiricamente o mesmo, além de proporcionar uma maior aproximação com ele, o estudo de campo promove ao pesquisador percepções fundamentais para a compreensão do local de pesquisa e o que será pesquisado. A pesquisa de campo aconteceu entre os meses de novembro e dezembro de 2016, utilizando a observação participante para obter uma compreensão empírica do cotidiano das rendeiras, além da observação, foram realizadas entrevistas abertas e semiestruturadas durante esse período para obter informações mais valiosas no qual: [...] a quantidade de material produzido nesses encontros tende a ser maior mais denso e ter um grau de profundidade incomparável em relação ao questionário, por que a aproximação qualitativa permite atingir regiões inacessíveis à simples pergunta e resposta [...] (MINAYO, 2006, p. 265).


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Foi utilizado como instrumento de coleta um gravador para registrar com precisão as palavras das rendeiras, dando mais confiabilidade aos relatos, facilitando a compreensão da historia do modo de produção do artesanato na comunidade e das perspectivas das rendeiras sobre o ofício. Para proporcionar um maior entendimento acerca dos materiais usados na produção do artesanato foram produzidas imagens. Foi usada a abordagem etnográfica, no qual “inclui pessoas leigas, representações de situações a serem transformadas, de forma orgânica à produção de conhecimento sobre tais situações” (MINAYO, 2006, p. 162). A partir do uso desta abordagem podem-se compreender os questionamentos citados e obter informações sobre as experiências das artesãs empiricamente, adquirindo assim percepções próprias sobre o objeto estudado. Foram entrevistadas as rendeiras, Maria de Lourdes, 55 anos, rendeira desde criança; Maria Vilma, 60 anos, pratica o ofício desde os sete anos e Francisca Soares, 64 anos, pratica o ofício de rendeira desde os vinte e dois anos de idade. A análise dos dados foi realizada a partir da analise do discurso, que é baseado nas falas das entrevistadas para obter conclusões sobre o trabalho realizado. A escolha de entrevistar apenas três artesãs parte da compreensão de que as mulheres escolhidas possuem grande experiência e conhecimento no oficio de rendar. Para coletar as informações do estudo de campo, foi utilizada a história oral, pois, “é através do oral que se pode aprender com mais clareza as verdadeiras razões de uma decisão; que se descobre o valor de malhas tão eficientes quanto às estruturas oficialmente reconhecidas e visíveis [...]” (FERREIRA; FERNANDES; ALBERTI, 2000, p. 34). Esses relatos são fundamentais para

compreendermos o desenvolvimento do oficio e as experiências que ocorreram com as artesãs. A estrutura do artigo parte da compreensão do que é patrimônio cultural imaterial, usando sua definição para então abordar a renda de bilro como um conhecimento tradicional, relatando em seguida um pouco da história do local que se confunde com a história do artesanato, até abordar as experiências das rendeiras, suas perspectivas e a realidade encontrada na comunidade.

Renda de Bilro: Patrimônio Cultural Imaterial O Patrimônio cultural imaterial segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, fundamental para guardar as memórias, tradições e cultura de um povo. De acordo com a UNESCO1, “o Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível compreende as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes”, estabelecendo dessa maneira uma conexão de identidade entre os povos e sua cultura. A Renda de bilro ainda não está no Livro de Registro dos Saberes2, porém está em andamento para ser reconhecida como patrimônio imaterial pelo IPHAN, ela pode ser considerado patrimônio cultural material, a partir de suas peças que são confeccionadas e possuem esse valor, e patrimônio imaterial, a partir dos conhecimentos repassados de geração em geração o saber fazer. É relevante afirmar que: “no património material, o mais importante 1 2

< http://zip.net/bxtM6p> Acesso em 26.12.2016. < http://zip.net/bytMLH> Acesso em 27.12.2016.

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são as coisas, no património imaterial, o principal são as pessoas” (CABRAL, 2011, p. 16), ou seja, o que é palpável faz parte do patrimônio material, enquanto o patrimônio imaterial é representado pelo conhecimento, pelo saber fazer. Porém “a ideia de transformar a renda de bilros em patrimônio cultural se estabelece a partir do momento em que é considerada pela comunidade e pelos espectadores como parte integrante de sua identidade cultural” (ANGELO, 2005, p. 176), através dessa identidade o indivíduo estabelece sua cultura, crenças e tradições, preservando-a e mantendo-a para as próximas gerações.

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A Renda de bilro tem suas origens desconhecidas, pois não há documentos suficientes que comprovem onde ela se originou. No entanto, no Brasil a tese mais aceita entre os pesquisadores é que seu surgimento deu-se a partir dos imigrantes açorianos que segundo, Zanella (1999, p.146) desembarcaram em Santa Catarina no século XVIII. No qual chegaram ao sul do Brasil em busca de melhores condições de vida e ao se depararem com as dificuldades encontradas no Brasil, tiveram que mudar seus hábitos para se adaptarem a sua nova realidade, com isso, a produção da renda de bilro também passou por modificações, pois: Com o advento do turismo [...] a renda de bilro passou a ser economicamente valorizada, pois a sua comercialização possibilitava às mulheres de pescadores das comunidades do interior da Ilha complementarem o orçamento doméstico (ZANELLA, 1999, p. 146). Com o artesanato fazendo parte da sociedade sendo um complemento financeiro para as famílias, as mesmas

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começaram a se difundir no país, desta forma: Pode-se encontrar atualmente o artesanato de rendas na Região Norte (Pará); no Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe); no Sudeste (Rio de Janeiro e Minas Gerais) e no Sul (Santa Catarina) (MATSUSAKI; KANAMARU, 2013, p. 07). Com a renda de bilro difundida em várias regiões, fez com que a mesma desenvolvesse diferentes formas de definição, no qual também é conhecida como: [...] renda de almofada, renda da terra, renda do norte, renda do Ceará. São variados os nomes encontrados no Brasil e no mundo para esse tipo de renda. As duas primeiras denominações se referem aos materiais utilizados para o feitio da renda, que assim a diferem da renda de agulha; as três últimas são denominações que associam o fabrico da renda à região na qual é produzida (MATSUSAKI; KANAMARU, 2013, p. 07). Cada região procura denominar esse artesanato de acordo com sua cultura, na localidade pesquisada ela é denominada renda de birro. A seguir, apresenta-se a relação entre patrimônio cultural imaterial e o conhecimento reproduzido na comunidade Lagoa do Sobradinho.

Rendeiras de Bilro de Lagoa do Sobradinho Situado no município de Luís Correia, Lagoa do Sobradinho é um pequeno povoado, no qual os moradores sobrevivem da agricultura familiar de subsistência, da pesca e da produção de artesanato renda de bilro. Não há in-


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formações que afirmem com precisão a história da comunidade, no entanto a ocupação da localidade é relatada pelos moradores, os quais guardam em suas memórias individuais e coletivas marcas do passado que hoje ajudam a contar o presente. Assim, a rendeira Francisca Soares (2016) relatou: “o lugar não mudou quase nada, a diferença é que antes as casa não era feita de tijolo, era casa de taipa”. Com relação ao nome do povoado Francisca Soares (2016) afirma que: “dizem os mais antigos que o nome do lugar se deu, porque onde ficam as dunas tinha um sobrado com dois andares, aí chamaram o lugar de sobradinho”. Além de relatos de que havia um sobrado onde hoje se localiza as dunas, há suposições que há 100 anos, onde se localiza as mesmas, já foi moradia de índios. A história da comunidade se confunde com a história das rendeiras, pois há relatos que as primeiras moradoras trouxeram e repassaram o conhecimento tradicional na comunidade, no qual até hoje é possível encontrar esse patrimônio imaterial. As rendeiras da comunidade de Lagoa do Sobradinho fazem parte de uma pequena parcela de mulheres do litoral piauiense, que de forma autônoma mantêm o conhecimento na produção da renda de bilro. A partir do relato de Maria de Lourdes, atualmente é possível identificar a atuação de 30 rendeiras, onde a maioria é idosa e donas de casa, com idades entre 40 a 60 anos, praticam o oficio por lazer e por necessidades financeiras. Não foi possível identificar com precisão quando foi iniciada a produção da renda na comunidade, sabe-se que essa tradição veio com as primeiras morado-

ras, sendo repassada de geração a geração pelas mulheres da comunidade. Dona Maria de Lourdes (2016) descreve que: “de primeiro só faziam renda com espinhos, agora que as pessoas tão usando alfinete. No tempo da mamãe ela usava lamparina em cima da mufada3, via a hora a lamparina cair e acabar com tudo”. Além da melhoria dos objetos usados para produzir o artesanato, a produção tornou-se mais eficaz devido os materiais industrializados e dá chegada da eletricidade à comunidade, possibilitando a facilidade de produzir melhor durante a noite. Um aspecto interessante que aproxima a realidade das rendeiras da comunidade, que também é observado em um estudo de Camila Bergamin (2005) sobre rendeiras em Florianópolis, relata que: O trabalho com a renda era necessário a essas mulheres não só como complemento para a arrecadação de dinheiro para manutenção da casa [...] Muitas dessas mulheres eram esposas de pescadores, que passavam longas temporadas em alto mar, acabando por deixar o sustento e a chefia da família nas mãos e nos bilros dessas mulheres (BERGAMIN, 2005, p. 16). Essa situação era encontrada em quase todas as famílias da comunidade, atualmente poucas famílias reproduzem essa forma de vida, pois muitos já se aposentaram e sobrevivem da agricultura familiar de subsistência, do trabalho autônomo e do aposento, dessa forma a produção do bilro transformou-se em

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Segundo as rendeiras, “mufada” é especificamente a almofada própria para produzir o artesanato renda de bilro.

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uma pratica de lazer, deixando de ser a principal fonte sustento familiar. Quando questionada sobre a produção do artesanato na comunidade, Maria de Lourdes (2016) afirma que a prática sempre foi exclusivamente feminina, pois segundo seus relatos: “se algum homem fizesse renda, era visto como viado, e se algum homem fizesse, tinha que ser escondido, ninguém podia saber”. Essa visão parte de questões tradicionais e de gênero, pois enquanto os homens iam para a roça, as mães cuidavam dos filhos e exerciam a produção de renda de bilro para ajudar no orçamento familiar e para distrair-se, usando-a como forma de lazer.

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alguém crivar4, já a mufada geralmente as rendeiras devem saber fazer sua própria mufada, a minha mufada é de palha de bananeira, e é pequena porque a minha renda é pequena, quem faz a renda grande, tem a mufada grande, tem algumas que usam mufadas de folhas de cajueiro, eu não uso porque a folha é dura e intorta os alfinete e quebra os espinhos e a renda sai mal feita. Os instrumentos utilizados pela rendeira para produzir o artesanato, (como apresentado na figura1), são rico em detalhes, além disso, estes instrumentos e a renda são peças frágeis, dessa forma, são de grande importância à organização e o cuidado com os mesmos, pois segundo ela, faz a diferença na obtenção de um bom material.

A questão da tradição pode ser visualizada como representação da cultura material, em especial feminina, [...] uma vez que fazer rendas era uma atribuição feminina que simplesmente foi sendo passada por diversas gerações enquanto tradição e, ao mesmo tempo, era tida como um trabalho de mulher que servia como meio de subsistência ou uma forma de ajudar no orçamento doméstico (ANGELO, 2015, p. 15). O homem participa da produção da renda apenas na fabricação do bilro, peça usada para segurar a linha que será traçada e ajuda a rendeira a encher a almofada ou mufada como elas o chamam. Quando questionada sobre a fabricação dos outros materiais para produzir o artesanato, a rendeira Maria de Lourdes (2016) relata que: Para fazer a renda usamos a linha, o birro, os alfinetes, os espinhos de mandacaru, o papelão e a mufada. A linha e o alfinete nós compramos em loja, o papelão peço para ISSN 2447-7354

Figura 1: Almofada e seus instrumentos. Fonte: Pesquisa direta (2016).

Um aspecto relevante sobre as peças produzidas pelas rendeiras, é que elas além da renda tradicional confeccionam também a renda de bico, (como apresentado na figura 2), ambas segundo a artesã, são vendidas no metro e por encomenda e mesmo assim possuem peças guardadas. Dona Maria de Lourdes 4

As rendeiras afirmam que a palavra crivar no contexto delas, significa furar o papelão, formando figuras, desenhos, no qual os alfinetes serão fixados.


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(2016) quando questionada sobre a diferença dessas peças explica, “a renda mesmo, ela é toda reta, já a renda de bico ela tem uma ponta, por isso o nome”.

Figura 2: Renda de Bico e Renda Tradicional. Fonte: Pesquisa direta (2016).

Quando questionada como as mulheres aprendiam a rendar e como ela aprendeu, dona Maria de Lourdes (2016) relata que aprendeu o oficio observando sua mãe, pois nem sempre ela estava disposta a ensinar. As mães ensinava as filhas a aprender, para aprenderem a trabalhar e tirar um trocadinho meno para roupa, muitos gostavam de fazer aquilo, outras aprendiam por que as mães botavam mesmo. Minha mãe não me ensinou, ela ensinou só as filhas mais velhas, eu aprendi porque quando minha mãe ia mexer na panela, eu ai lá e mexia os birros, eu aprendi assim, mexendo na mufada de pouquinho em pouquinho, quem me ensinou foi outra mulher, depois que eu aprendi, a minha irmã ainda me ensinou a assentar5 a renda, porque eu não sabia. Além da mãe havia uma parcela que aprendia com outros membros da famí5

Segundo a rendeira, assentar a renda é começála.

lia e com amigas, no entanto o aprendizado muitas vezes era imposto para as filhas, pois as mesmas deveriam buscar uma forma de conseguir recursos para comprarem bens materiais, essa realidade pode ser vista a seguir: As mulheres aprendiam a atividade da renda muito cedo. Meninas na idade média de sete anos já possuíam seu espaço do dia reservado a aprender a fazer a renda-de-bilro. E não o faziam, muitas vezes por vontade própria, mas por determinação materna, que via na renda um importante aprendizado que deveria passar as filhas, também como uma tentativa para garantir uma atividade que a sustente em qualquer situação de adversidade financeira (BERGAMIN, 2005, p. 19). Dessa forma esse conhecimento foi sendo repassado de geração em geração, no entanto com o surgimento da modernidade, melhores condições de vida, a reprodução desse conhecimento pelas filhas das rendeiras sofreu uma transformação, no qual resultou em uma diminuição de rendeiras na comunidade, pois sua continuação foi afetada. Quando questionada sobre o repasse desse conhecimento através dos jovens, Maria de Lourdes (2016) declara que: Os jovens tem falta de interesse pra querer aprender, acho que é porque não tem comprador certo, por que se tivesse comprador certo, eles iam conseguir ganhar dinheiro, assim acho que eles se interessariam em aprender e continuar com ela aqui. Essa realidade baseia-se na não inseridade do artesanato na cadeia produtiva, que causa um desinteresse nos jovens, pois eles enxergam a prática de rendar como forma de conseguir recur-

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sos financeiros, no entanto as rendeiras além de questões financeiras enxergam o ofício como forma de lazer. “Fazer renda é uma forma de se distrair, é um exercício pra mão da gente”, relata Maria de Lourdes (2016).

lidade dificulta a ida das artesãs para a praia, deixando seus produtos na condição de não visibilidade e resultando na não inseridade da renda no mercado.

Quando questionada sobre sua perspectiva com relação à continuidade do oficio no local, a rendeira Maria de Lourdes (2016) afirma:

Conclusões

Sinceramente eu tô preocupado com esse trabalho daqui, parece que tá em extinção, mas enquanto pelo meno uma que nem eu, uma como a Vilma, não vamo parar não, mas quando a gente morrer, acho que acaba. Agora esses mais novos aí, só se tiver outro tipo de trabalho para eles aprenderem a fazer, porque se não aparecer comprador vai continuar do mesmo jeito assim.

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Porém, a rendeira Maria Vilma (2016), quando questionada, acredita que sua reprodução não irá acabar, diz: “eu acredito que não vai acabar ainda tem muita rendeira por aqui”. Apesar de opiniões contrarias, a realidade de ambas é parecida, as duas reclamam da falta de compradores, pois não há visibilidade acerca dos produtos vendidos, além disso, todas as rendeiras trabalham separadamente, o que causa certa disputa entre elas, porém foi relatado que uma vez ou outra as artesãs se reúnem para se ajudarem. Dona Francisca Soares (2016), quando questionada sobre a exposição das confecções de bilro na praia que seria uma forma de aumentar sua visibilidade, relata: “eu já fui na praia vender minha renda, mas as pessoas pegam na renda com a mão suja e não compra elas, aí estraga a renda, assim não vale a pena ir na praia vender elas”. Essa rea-

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A partir das experiências relatadas foi possível observar que os métodos na produção continuam tradicionais, além disso, foram poucas as mudanças nos instrumentos para produzir o artesanato, tais instrumentos que são produzidos pelas artesãs e por moradores, usam os mesmos materiais de muitos anos atrás, e a participação do homem na produção da renda apenas e apresentada na fabricação de alguns objetos que fazem parte do bilro. Com relação às perspectivas das rendeiras sobre a continuidade do oficio no local, foi observado que há duvidas entre as artesãs, segundo os relatos existem em torno de 30 rendeiras na comunidade. De acordo com a definição de patrimônio imaterial, a prática de rendar sofre ameaça de não permanecer no local sendo esquecida pelos jovens, porém nada impede que ela não seja reproduzida posteriormente e continue a fazer parte do local. Conforme os relatos foram possíveis analisar as motivações que implicam na valorização e manutenção do patrimônio no local, uma delas é a baixa comercialização do artesanato, o que acarreta na falta de interesse dos jovens em aprender o oficio das mães, pois segundo as rendeiras, a visão que eles possuem sobre esse patrimônio é voltada apenas para as questões financeiras, e as visões das artesãs se referem principalmente como uma prática que lhes oferecem lazer. Além disso, os jovens não foram obrigados a aprender o oficio desde cri-


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ança como suas mães foram submetidas. Essa não imposição determinou que o aprendizado fosse escolhido por suas filhas que enxergam hoje que produzir a renda de bilro no povoado não lhes oferecem recursos financeiros, dessa forma elas não sentem a necessidade de aprender o oficio das mães, e com a industrialização e a falta de obrigatoriedade, as mesmas deixaram de reproduzir o conhecimento imaterial de rendar, procurando outras formas de lazer e de conseguir recursos financeiros. Outro aspecto importante que foi analisado com relação à reprodução do patrimônio é que os jovens por não praticarem o ato de rendar, acabam perdendo a identidade cultural que as mães possuem, sendo essa uma das preocupações das rendeiras, que esse patrimônio, por conta do desinteresse dos jovens se perca, e por consequência seja esquecido na localidade. A partir deste estudo de campo posteriormente será realizado um aprofundamento sobre gênero e identidade, pois são primordiais para entender como a renda de bilro pode ser preservada em Lagoa do Sobradinho, será estudado como estas questões interferem na reprodução do saber fazer na comunidade e em sua valorização.

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ENTRE A PRANCHA E A REDE: as contradições entre a prática do kitesurf e a pesca artesanal segundo os pescadores da Praia da Pedra do Sal (Parnaíba-PI)* Alexandre Wellington dos Santos Silva1 Edgleison Sousa dos Santos2

Resumo

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O presente trabalho é obra dos estudos de campo e debates teóricos desenvolvidos pelo GT “Trabalho e Natureza” do NEAMA - Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente, tendo o seguinte problema: Quais as consequências da prática do Kitesurf na pesca artesanal? Seu recorte espacial situa-se na praia da Pedra do Sal (Parnaíba-PI), e se constrói através de entrevistas com pescadoras/es da região, assim como pesquisas bibliográficas, discutindo as experiências dos pescadoras/es da comunidade da Pedra do Sal e a prática do Kitesurf; expondo a percepção destes a respeito das consequências da prática do esporte em longo prazo. Palavras-chave: História Ambiental; Kitesurf; Pesca Artesanal; Trabalho.

Resumen El presente trabajo es obra de los estudios de campo y debates teóricos desarrollados por el GT "Trabajo y Naturaleza" del NEAMA - Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente, teniendo el siguiente problema: ¿Cuáles son las consecuencias de la práctica del Kitesurf en la pesca artesanal? Su recorte espacial se sitúa en la playa de Pedra do Sal (Parnaíba-PI), y se construye a través de entrevistas con pescadores/as de la región, así como investigaciones bibliográficas, discutiendo las experiencias de los pescadores/as artesanales de la comunidad de la Piedra de la Sal y la práctica del Kitesurf; exponiendo la percepción de estos respecto a las consecuencias de la práctica del deporte a largo plazo. Palabras-clave: Historia Ambiental; Kitesurf; Pesca Artesanal; Trabajo.

* Trabalho apresentado durante a II Semana de História da UESPI (Parnaíba, 2015). 1 Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí. Membro do Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente - NEAMA (GT Trabalho e Natureza). Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista CAPES/CNPq. Email: awss.phb@gmail.com 2 Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí. Membro do Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente - NEAMA (GT Urbanização, Desenvolvimento e Meio Ambiente). Email: edgleisonsouza.18@hotmail.com

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Introdução Por volta do início dos anos de 1970, pesquisadores estadunidenses de diversas áreas, motivados pelas constantes manifestações populares engendradas pelas contradições entre o uso dos recursos naturais e os problemas que estes acarretavam, decidiram por investir seus estudos dentro da área. Através disso, surgem áreas do conhecimento como a Ecologia Política, a Antropologia Ecológica, a Sociologia Ambiental, e a História Ambiental. Destas problemáticas, surge a American Society for Environmental History1 no ano de 1977, um marco de consolidação para as pesquisas concernentes à História e ao Meio Ambiente. A História Ambiental possui peculiaridades consideráveis, se comparadas às outras correntes historiográficas. A fundamental, porém, talvez seja a tentativa de dar “(...) importância ao lugar” e a tentativa de “associar a história humana com os sistemas naturais” (WINIWARTER, 2010. p. 02). Em outras palavras, a busca de perceber as “(...) interações entre os sistemas sociais e os sistemas naturais, e as consequências dessas interações para ambas as partes, ao longo do tempo” (PÁDUA apud CASTRO, 2010. p. 91), isto é, tirar o ser humano do antropocentrismo e considerá-lo como produtor e produto do meio em que vive. Por conta do exposto acima, a teoria da História Ambiental torna-se uma ferramenta fundamental para explicitar as relações entre trabalho humano2 e natureza3, interação esta 1

Sociedade Americana pela História Ambiental Conceito definido pelo filósofo russo Mikhail Bakunin para diferir a transformação do meio em que se inserem realizado por seres humanos das outras espécies de animais, considerando-o categoria fundante da humanização e emancipação destes primeiros: “Todos los animales deben trabajar (…). Todos ellos, de acuerdo con sus necesi2

explicitada neste trabalho através da pesca artesanal, definida como “(...) uma atividade milenar, na qual os pescadores e pescadoras exploram os ecossistemas aquáticos de acordo com as características fisiográficas e condicionantes ambientais locais, determinantes na ocorrência de espécies e formas de captura (...). Assim, as comunidades pesqueiras tradicionais fundamentam suas atividades no conhecimento empírico adquirido, acumulado e repassado através de gerações (...)”. (BASÍLIO & GARCEZ, 2014. p. 43).

dades, su comprensión y su fuerza, toman parte, sin saberlo, en este lento trabajo de transformar la superficie de la tierra en un lugar más favorable para la vida animal. Pero este trabajo sólo se hace propiamente humano cuando comienza a satisfacer no sólo las necesidades fijas e inevitablemente limitadas de la vida animal, sino también, las necesidades del ser social pensante y hablante que pretende conquistar y realizar plenamente su libertad”. (BAKUNIN, 1978. p.84). 3 O conceito de natureza percorre também o debate político, filosófico, sociológico e religioso, uma vez que seu conceito é definido por inúmeros teóricos em diversas épocas históricas. DULLEY (2005) em seu trabalho intitulado “Noção de Natureza, Ambiente, Meio Ambiente, Recursos Ambientais e Recursos Naturais" elenca uma quantidade considerável de tipificações para o termo. Apesar disso, utilizamos para o trabalho a definição de Bakunin (2014, p. 339), quando este afirma que: “Poderia dizer que a natureza é a soma de todas as coisas que tem existência real. Sem dúvida, isto proporcionaria um conceito de Natureza totalmente privado de vida, quando ela nos aparece, pelo contrario, como cheia de vida e movimento. Mesmo assim, o que é a soma de todas as coisas? As coisas que existem hoje não existirão amanhã. Amanhã não desaparecerão, mas estarão completamente transformadas. Em consequência, me encontrarei muito mais perto da verdade se digo: A Natureza é a soma das transformações efetivas das coisas que existem e que se produziram incessantemente dentro dela mesma”.

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Esta modalidade de pesca, por sua vez, não está isenta de interferências exteriores. A prática do Kitesurf4 é um exemplo dessa intervenção. A relação conflituosa entre o exercício do trabalho e a atividade esportiva é a temática abordada na presente pesquisa.

Vozes do Mar

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A praia é o espaço de constituição de relações sociais que unificam as experiências cotidianas entre indivíduos, uma interação que torna obsoleta a diferenciação entre homem-natureza, uma vez que estes se compreendem como integrantes desta. É através do mar que os pescadores consolidam sua atividade como fundante das sociabilidades e das características individuais e coletivas, dando corpo, através disso, às noções de comunidade tradicional, definida juridicamente como “(...) grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. (Decreto nº 6.040, de 7 de Fevereiro de 2007) Para esta pesquisa, foram realizadas entrevistas com cinco pescadores com

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“(...) uma combinação do surf, windsurf e wakeboard (...). Rios, lagos e mar são ambientes propícios para a prática deste esporte (...). Por ter condições climáticas privilegiadas, a prática do kitesurf é favorecida no litoral brasileiro. Este fato tem contribuído para a crescente popularidade deste esporte no país”. (LUCENA et al., 2013. p. 02).

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base na História Oral5, objetivando compreender as interações entre os praticantes de Kitesurf e os pescadores artesanais, e destas, três foram escolhidas para o presente trabalho. Considerando as possíveis retaliações, seus nomes não serão divulgados, sendo representados através dos termos “P1”, “P2” e “P3”. Durante todo o tempo das entrevistas, e em diálogos não registrados eram constantes os relatos de como a prática do kitesurf impossibilita a pesca. A principal contradição reside no fato de que o esporte afasta da orla da praia as saúnas, peixes que são base da alimentação de peixes de maior porte, que por sua vez são pescados e servem para a subsistência e fonte de renta para os pescadores, como afirma P1: “As saúna ficam na beira da praia, e os peixe grande vem comer elas, tá entendendo? Quando esses kitesurf aparece, espanta as saúna por causa do movimento deles e a gente não pesca nada porque os peixe grande não vem, entende?” Segundo os mesmos, sempre que existe um praticante de kitesurf utilizando a praia, não há pescaria, como se pode observar nas palavras de P1, quando declara que “Ainda hoje mesmo eu ouvi (...) que os caras tavam praticando o kite na área deles lá, e foi três dias sem peixe”. A resistência e a passividade de outras comunidades ante o kitesurf são exemplos para estes trabalhadores, e constantemente revelam duas realida5

“(...) metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea”. (CPDOC, s/p).


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des, a da Praia da Barra Grande (PI) e em Camocim (CE). A primeira é reconhecida por conta da ocupação de suas terras por estrangeiros6, e da decadência da pesca e de sua comunidade tradicional de pescadores; a segunda é considerada pela combatividade, sendo apontado que em diversos conflitos entre praticantes do esporte e pescadores, os segundos cortaram as pipas e os expulsaram da praia.

O futuro da pesca e dos/as pescadores/as A prática do Kitesurf não é frequente na Praia da Pedra do Sal. A preocupação dos pescadores quanto a temática aumentou por conta da instalação do complexo residencial e hoteleiro Pure Resorts - Hotels & Residences, que conseguiu, de forma ainda desconhecida, usar parte das terras pertencentes à comunidade para desenvolver um projeto “composto por 400 (quatrocentos) lotes residenciais, distribuídos em 15 (quinze) quadras e subdivididos em 03 (três) etapas de execução7” e um Resort. No projeto do empreendimento, consta uma estação de ensino e prática do Kitesurf para seus hóspedes e visitantes. Diante disso, os pescadores da Praia da Pedra do Sal começam a refletir sobre a condição futura que os aguarda, como aponta P1: “Resort, loteamento, todos eles têm kitesurf. (...) Aí tem Pontal do Delta, Pure Resorts, tem mais outros pra chegar, aí eu posso dizer 6

Existe um trecho da localidade denominado de “Rua dos Gringos”, onde é possível perceber como a especulação imobiliária afetou a vida dos pescadores. 7 Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) do Pure Resorts Hotels & Residences.

assim: Se um dia um tiver praticando kite, outro dia outro, aí a gente tem a certeza que nesses dias não vai ter peixe”. P1 percebe a fragilidade da questão e aponta para que se um destes megaempreendimentos se instalarem, outros da mesma forma virão. Para P2, caso o complexo se aloje na Praia da Pedra do Sal, a prática da pesca artesanal será dificultada ou extinta, e uma vez sem fontes de subsistência, não restará alternativas a não ser a migração para outros locais: “O kitesurf, que vai acabar com a pesca nossa, que eles vão querer andar nessas áreas aqui do litoral todinho aqui dessas praias (...), onde nós pesca a saúna de dia e de noite pra fazer isca, e não só isso como também o pessoal que pesca de rede, Camurim, Pescada Amarela, xicaroa, curumã e outros mais (...). Essas redes que eles pesca, se esse kitesurf entrar, eles vão acabar com todo esse sistema de trabalho desses pescadores. Pra nós isso aí vai ser uma dificuldade muito grande. Eu mesmo já até pensei nos meus planos de sair daqui porque eu vejo que daqui a algum tempo se isso aí for constatado que vai ser montado esse plano dentro dessa área aqui, nós não vamos ter acesso à pesca, e a pesca vai ser muito mais difícil pra nós do que era antes”. P3 aponta as contradições que possibilitam perceber os motivos da atual situação dos pescadores artesanais da Pedra do Sal, e as consequências socioambientais da execução do projeto do resort: “(...) esse bando de amaldiçoado vão acabar com tudo. Dizem que vão fazer o futuro da Pedra do Sal, mas não vão não, vão des-

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truir é isso aqui ó [P3 mostra um camarão com cerca de 10cm], (...) eles vão privatizar, eles vão fazer tudo, eles vão meter esgoto, eles vão fazer o que eles quiserem. Só vai ter lastimação no futuro. (...) nós somos abandonados pelos políticos, nós somos abandonados pelo poder público, nós somos abandonados por tudo, e eu queria que tivesse alguma pessoa de visão e olhasse para a Pedra do Sal e respeitasse a nossa comunidade de verdade e deixassem nós viver feliz do jeito que nós somos”.

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Esta realidade é partilhada por inúmeras outras comunidades pesqueiras do Brasil12 e do mundo, uma vez que se situam a margem do capitalismo nacional e internacional. O ataque às comunidades pesqueiras é uma constante, perpetrado através do poder público e privado, como aponta Freitas & Seixas (2011. p.02) “O pescador artesanal que vive na zona costeira enfrenta desafios relacionados a ecossistemas vulneráveis impactados pela atividade urbanoindustrial intensiva e desordenada, especulação imobiliária, pesca predatória e um modelo de turismo de massa apoiado em grandes resorts e condomínios de luxo”.

Resultados prévios A questão destacada pelo presente artigo tomou foros municipais, sendo discutida por amplos setores da sociedade, como universitários, moradores da região e políticos locais. Gomes (2015, s/p), que responde pela última esfera destacada, declara que os que apoiam a resistência dos pescadores artesanais sustentam-se “no discurso do ‘mito da natureza intocada’ de Diegues”, e esclarece: “O grande desafio do mundo moderno não é a preservação pura, simples e poé-

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tica dos recursos naturais, senão o estabelecimento de uma gestão sustentável”. Seu posicionamento expõe as considerações que as elites políticas locais defendem e encontra reverberação nas teorias desenvolvidas por ALIER (2011), que define a questão ecologista dividida em três grandes eixos: O “culto à vida silvestre”, concebendo a natureza como um ambiente a preservar de forma intocável, e que “(...) surge do amor às belas paisagens e de valores profundos, jamais para os interesses materiais”. (ALIER, 2011. p. 22). O “evangelho da ecoeficiência” é característico dos “ecodesenvolvimentistas”, e “acredita no ‘desenvolvimento sustentável’, na ‘modernização ecológica’ e na ‘boa utilização’ dos recursos”. (ALIER, 2011. p. 26). Por fim, o “Ecologismo dos pobres” (Justiça ambiental ou Neonarodnismo) admite que as comunidades que tem contato próximo com a natureza assumem uma postura de interligação e interdependência desta: “(...) não é uma reverência sagrada à natureza, mas, antes, um interesse material pelo meio ambiente como fonte de condição para a subsistência; (...) muitas vezes os grupos indígenas e camponeses têm co-evolucionado sustentavelmente com a natureza e têm assegurado a conservação da biodiversidade”. (ALIER, 2011. p. 34). Tal percepção é construída através de leituras, estudos de campo e documentários, como o “Vento Forte”, lançado em 2014 pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), mostrando os conflitos socioambientais dos pescadores e pescadoras de diversas localidades no país. Dentro da lógica defendida por Alier, Gomes ancora-se na teoria da “ecoefici-


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ência”, e aponta que os opositores do projeto residencial e hoteleiro do Pure Resorts apoiam “o culto à vida silvestre”. O que não percebe, porém, é que os pescadores e demais moradores da comunidade da Pedra do Sal não só defendem, mas vivem o “ecologismo dos pobres” ou “neonarodnismo”, tendo um sistema de percepção e lógica ecológica determinada pela interação histórica que estes possuem com a natureza e vice-versa. A comunidade encontra-se dividida pelas promessas empregatícias da empresa em curto prazo. A política do “dividir para conquistar”, apesar de efetiva, é combatida por setores organizados da localidade, como os pescadores, artesãs, extrativistas e criadores que percebem o dano de um empreendimento deste porte trata para a comunidade.

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MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Ed. São Paulo, Boitempo: 2010. 271 pág. Messias Araujo Cardozo1 A importância do Manifesto do Partido Comunista revela-se notável e figura entre os textos-documentos fundadores não apenas do que depois se convencionou chamar de marxismo como de toda uma tradição do movimento dos trabalhadores por este texto inspirado. Escrito a quatro mãos como já fora pratica dos autores, os dois jovens filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) lançaram em 1848 as teses centrais de sua concepção histórica, política e social, como a luta de classes, o internacionalismo revolucionário e a ideia de uma revolução comunista proletária. No primeiro ponto: “Burgueses e Proletários”, os autores historicizam sua tese da luta de classes como motor da história, como a característica central e inerente de todas as formações sociais desde a Antiguidade até a modernidade capitalista do século XIX. O antagonismo entre oprimidos e opressores se exterioriza de forma mais aguda com o advento da sociedade industrial e capitalista da Europa oitocentista. A luta de classes entre o proletariado (operários citadinos assalariados) e a burguesia (classe de capitalistas detentores do meios-de-produção) atingira seu ponto clímax. Para tal impasse somente a revolução violenta do proletariado revela-se a solução. A burguesia ao suplantar a antiga aristocracia feudal impôs o regime do capital e uma configuração política igualmente nova, o chamado Estado Moderno, cujo executivo nada mais seria do que seu comitê. Ao se expandir pelo globo, as ramificações do capitalismo com seus tentáculos atingiu expansão planetária, criando a burguesia um mundo a sua imagem e semelhança, submetendo o quanto pode a cidade ao campo, aglomerando populações e os operários em massas compactas, não mais travestindo (como ocorrera no medievo) a exploração por dissimulações religioso-políticas, “(...) a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal” (MARX, ENGELS, 2010, p. 42). A “única’ classe que os autores creditam e vislumbram como capazes de aplacar a dominação burguesa/capitalista é o proletariado. Paradoxalmente a burguesia ao amontoar os trabalhadores nas fábricas e em cortiços miseráveis produziu as armas e os homens que as empunhariam contra ela própria. A “classe média” seria reacionária por sua posição, pois “(...) pretendem fazer girar para trás a roda da história” (MARX, ENGELS, 2010, p. 49). O “lumpén-proletariado” (camponeses, desempregados e outros não operários) que poderia ser arrastado à revolução proletáGraduado em Licenciatura Plena em História da UESPI (Campus Alexandre Alves de Oliveira), foi bolsista do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID, Subprojeto de História). E-mail: messias.histsocial@gmail.com

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ria não seriam pois “suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação” (MARX, ENGELS, 2010, p. 49). Até hoje (1848) todos os movimentos históricos (sobretudo as revoluções) teriam sido característicos de minorias organizadas em favor de si, da minoria. Sendo que “o movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria” (MARX, ENGELS, 2010, p. 50). O caminho, a missão histórica do proletariado para os autores é a destruição da propriedade privada, “o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia” (MARX, ENGELS, 2010, p. 50). Não haveria outra síntese para a dialética senhor/escravo, representada respectivamente pela burguesia/proletariado: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (MARX, ENGELS, 2010, p. 51). Tal prognóstico (teleológico e fatalista) de inexorabilidade revolucionária que deve ser visto de forma crítica, pode ser identificado com o momento da chamada “Primavera dos Povos” e das “Jornadas de Julho” de 1848 que atravessaram a Europa. Onde revoltas e convulsões sociais soavam as trombetas de que a paz restauradora do Congresso de Viena cuja missão era apagar a “mancha” revolucionária da França de 1789 não estava consolidada, o que os autores observam como as dores do parto, como a gênese de uma sociedade pós-revolucionária sem antagonismos de classe.

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No segundo ponto: “Proletários e comunistas”, os autores tratam de distinguir seus objetivos como comunistas e clarificar os pontos de vista de suas concepções políticas e sociais frente aos críticos e outros partidos operários, onde os comunistas divergiriam em dois pontos, que seriam sua indiferença em relação a nacionalidade e a representação dos interesses de conjunto do movimento. Como salientado no primeiro ponto, a luta de classes é política, onde a organização do proletariado em classe é identificada a sua constituição em partido político, cujo objetivo imediato é a “(...) derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado” (MARX, ENGELS, 2010, p. 51), que não diferiria de outros programas dos demais partidos proletários. O caminho que levaria, ou deveria levar ao comunismo estava aí sistematizado. E as conclusões analíticas não procederiam de uma “revelação” ou da especulação provindas deste ou daquele reformador do mundo, mas da análise empírica do social, sobretudo no que tange a produção material, das condições efetivas da luta de classes “(...) que se desenvolve diante dos olhos” (MARX, ENGELS, 2010, p. 52). O comunismo, não aboliria a propriedade como um todo, enquanto conquista do trabalho do homem, mas a ideia era a supressão da propriedade burguesa. Este ponto é importante frisar, pois é esclarecedor para a desconstrução dos jargões direitistas e acólitos do liberalismo que confusamente e às vezes francamente sordidamente identificam termos como: “socialismo”, “comunismo” até absurdamente “anarquismo” como símiles de uma mesma teoria ou pressuposto básico e essencial que desejariam de forma sórdida e injusta (por vezes categorizada de “demoníaca” pelos religiosos lacaios da ordem capitalista) suprimir a propriedade advinda do justo suor do homem. Desnecessário dizer, sobretudo para as mentes inteligentes, que tal identificação não passa de aberração, desconsideradora da hisISSN 2447-7354


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toricidade dos conceitos, e é fruto da ignorância geral, corrente em certos círculos de ufanismo direitista, por vezes pró-golpismo militar, fascista mesmo que graça a sociedade brasileira atual e que já teve seu símile histórico sob a rubrica do integralismo. Os autores são claros: “Não pretendemos de modo algum abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho, (...). Queremos suprimir o caráter miserável desta apropriação, que faz com que o operário só viva para aumentar capital (...)” (MARX, ENGELS, 2010, p. 53). O mesmo vale para as argumentações toscas (ainda hoje correntes no seio mental do anticomunismo à brasileira, regado a nacionalismo e desconhecimento) do propósito dos comunistas de supressão da liberdade e da individualidade. Os autores são novamente categóricos ao circunscrever a proposta de supressão neste ponto: “(...) se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa, a independência burguesa, a liberdade burguesa” (MARX, ENGELS, 2010, p. 51), que são vistas como naturais, atemporais e não como fruto de um desenvolvimento histórico. Tal concepção grosseira de que o comunismo queria abolir a liberdade, a individualidade (hoje se fala em “supressão da subjetividade” como característica básica de uma sociedade comunista) ou da cultura (também burguesa) que para Marx e Engels só adestrariam a maioria os transformando em máquinas, é falsificação. A mesma fraseologia burguesa se aplicaria a uma suposta “comunidade de mulheres” ou a “destruição da família” (sobretudo a “tradicional”, nuclear, patriarcal e machista). Outra questão importante é o nacionalismo. O dispositivo das nacionalidades foi decisivo para as unificações de vários países europeus como Alemanha de Marx e Engels (1871) e era parte do momento histórico da redação do manifesto. “Os comunistas também são acusados de querer abolir a pátria, a nacionalidade” (MARX, ENGELS, 2010, p. 56). Sobre isto a réplica é imediata: “Os operários não tem pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem” (MARX, ENGLES, 2010, p. 56). Aqui o internacionalismo revolucionário é expresso de forma clarividente, onde o proletariado pós-revolucionário tornar-se-ia a própria nação. O término da exploração do homem pelo homem poria fim igualmente à exploração de uma nação pela outra. Cumpre destacar ainda que neste segundo ponto do Manifesto, existe uma identificação dos propósitos políticos da luta proletária com a instância do Estado, que é definido aqui como “(...) proletariado organizado como classe dominante (...)” (MARX, ENGELS, 2010, p. 58). Os pontos 1, 5 e 6 dos 10 elencados como medidas imediatas pós-revolução proletária transparecem como o Estado teria forte peso (na chamada transição do capitalismo para o comunismo, a “etapa intermediária” da ditadura do proletariado que levaria ao socialismo2).

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Extremamente criticada, sobretudo pelo anarquismo. A experiência histórica, sobretudo a soviética, demonstrou como esta tese vanguardista e partidária do controle do Estado para a sua posterior destruição desembocou em ditaduras partidárias, personalistas (frise-se stalinismo) que nunca fizeram o “salto” rumo ao comunismo sem Estado e sem classes. Desnecessário dizer que a experiência soviética desvirtuou os pontos dos fundadores do materialismo histórico e que Marx e Engels, muito menos o Manifesto devam ser julgados como os culpados pelo fracasso do “socialismo real” que em muito se distancia das propostas emancipadoras dos filósofos alemães.

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O terceiro ponto do texto: “Literatura socialista e comunista” pode ser útil, sobretudo para a diferenciação do chamado “socialismo utópico” do “socialismo científico” (advogados por Marx e Engels e até com certo exagero visto sob a ótica da objetividade enquanto o socialismo precedente ou que não encarnavam suas ideias como “veleidades metafísicas”). A crítica ao socialismo feudal, cristão, as teorias de Fourier e a toda sorte de literatura dita socialista, são desacreditadas pelos pensadores, sobretudo e principalmente por não indicarem uma proposta de ação efetiva e de não verem no proletariado o sujeito revolucionário, ator principal da revolução. O quarto e último ponto: “Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição” é o mais breve, e, com efeito, o mais gritante. Finalizando com a célebre frase (em nossa edição aqui usada em caixa alta) “PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!” (MARX, ENGELS, 2010, p. 69), se relaciona diretamente com o segundo ponto, no sentido de esclarecedor e no esforço de distinguir a relação do Partido Comunista, revolucionário e internacionalista, dos outros partidos. O primeiro não se descuidaria “(...) de despertar nos operários uma consciência clara e nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o proletariado” (MARX, ENGELS, 2010, p. 69).

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Aqui retorna a transparecer a concepção teleológico-dialética, sobretudo quando a atenção dada a Alemanha, que à época estaria as vésperas de uma revolução burguesa que gestaria um ambiente propício, “(...) prelúdio imediato de uma revolução proletária” (MARX, ENGELS, 2010, p. 69). O ponto central seria por em relevo a questão da propriedade, sendo os comunistas apoiadores de todo e qualquer movimento contra a ordem (capitalista) existente. Sendo que as classes dominantes deveriam tremer frente a tal proposta, cuja violência seria o caminho natural, vital para a efetivação do projeto revolucionário do proletariado. Do sangue das batalhas finais, da síntese do confronto entre a burguesia e proletariado surgiria a sociedade sem classes. Se a Revolução de Outubro de 1917 deturpou o sonho, o Manifesto relido hoje, depois das considerações do seu lugar, data e contexto é fonte inesgotável para o movimento operário, que como um espectro ronda a pós-modernidade que ainda se assenta no antagonismo de classe. Este texto é manancial vivo para a reconstrução dos movimentos sociais, sobretudo contra os divisionismos.

ISSN 2447-7354


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