Revista Piauiense de História Social e do Trabalho, ano IV, n. 06

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Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano IV, n. 06. Janeiro-Julho de 2018. Parnaíba-PI

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Mágda Xisto dos Reis

Sumário Expediente .................................................................................. 03 AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA AMERÍNDIA e História em Órfãos do Eldorado. Mágda Xisto dos Reis ............................................................................ 04 PATRIMÔNIO E HISTÓRIA na Fazenda Buritizinho-Altos-PI Ivan Francisco Viana de Lima & Márcio Douglas de Carvalho e Silva........................................................ 12 PARAÍSO DO CRIME? Ocorrência policial na imprensa da belle époque parnaibana (1930-1950) Pedro Vagner Silva Oliveira ................................................................... 22

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Resenhas: Costumes Em Comum: Estudo Sobre Cultura Popular Tradicional Hamanda Machado de Meneses Fontenele .............................................. 36 Confrontos invisíveis: Colonialismo e resistência indígena no Ceará Paulo Ênio de Sousa Melo ...................................................................... 40 A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina (1937-1945) Luan Silva Carvalho ....................................................................... 44 História do movimento operário no Brasil Messias Araujo Cardozo .................................................................. 48

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Expediente A Revista Piauiense de História Social e do Trabalho é um periódico científico de acesso livre e gratuito, de edição semestral, vinculado à plataforma Mundos do Trabalho Piauí, e tem como objetivo facilitar e difundir investigações teóricas, pesquisas e resenhas que contenham análises, críticas e reflexões sobre o Mundo do Trabalho (urbano e rural), com enfoque no Estado do Piauí, nas mais diversas temporalidades e temáticas variadas, como: formação do mercado de trabalho, trabalho escravo, diversificação do mundo do trabalho, movimento operário, imprensa operária, cultura operária, dentre outros, aceitando também colaborações com análises de outras realidades em localidades distintas. Plataforma Mundos do Trabalho - Piauí: http://mundosdotrabalhopi.com.br

Corpo Editorial Coordenação e Edição: Prof. Alexandre Wellington dos Santos Silva Prof. Msc. José Maurício Moreira dos Santos Conselho Consultivo: Profa. Msc. Amanda Maria dos Santos Silva Profa. Msc. Ana Maria Bezerra do Nascimento Prof. Msc. Francisco Raphael Cruz Maurício Profa. Msc. Maria Dalva Fontenele Cerqueira Prof. Msc. Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa Prof. Msc. Yuri Holanda da Nóbrega Foto de capa: Inicio da construcção do caes [Amarração]. Revista da Epoca. Rio de Janeiro-RJ. Ano XI, n. 01. Julho de 1913, s/p.

Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - Parnaíba-PI Julho/Dezembro de 2017. Ano 03, n° 05. contato.rphst@gmail.com www.rphst.com.br

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AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA AMERÍNDIA e História em Órfãos do Eldorado. Mágda Xisto dos Reis1

Resumo O presente artigo visa analisar o romance Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum, bem como a representação da literatura ameríndia na tessitura de sua narrativa. O autor compõe a obra por meio da apresentação e representação dos mitos amazônicos, pincipalmente no que tange ao mito do El Dorado, dessa forma a literatura indigenista é contemplada como representação cultural de um determinado povo. Palavras-chave: Amazônia; Ameríndio; História; Órfãos do Eldorado.

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Resumen El presente artículo trata de analizar la novela Huérfanos del Eldorado, de Milton Hatoum, así como la representación de la literatura amerindia en la tesitura de su narrativa. El autor compone la obra por medio de la presentación y representación de los mitos amazónicos, principalmente en lo que se refiere al mito de El Dorado, de esa forma la literatura indigenista es contemplada como representación cultural de un determinado pueblo. Palabras-clave: Amazónia; Ameríndio; Historia; Huérfanos del Eldorado.

Recebido em: 03.03.2018 Aprovado em: 11.03.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1217056

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Graduada em Letras e respectivas Literaturas pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR Pós-Graduada em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade Porto FGV; Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia- UNIR. magdaxreis@gmail.com

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Apresentação da obra e seus desdobramentos No ano de 2008, o autor Milton Hatoum publicou Órfãos do Eldorado, livro escrito sob encomenda para a Coleção Mitos, lançada pela Editora Companhia das Letras. A referida editora possuía como propósito publicar mitos antigos os quais seriam reescritos e reinventados por autores contemporâneos de vários países. Hatoum, de origem amazônica, recorreu a um dos mitos mais conhecidos da história o mito do El dourado, inúmeros exploradores, etnógrafos e estrangeiros aventuram-se na busca pelo enriquecimento rápido que o mito propagava. Em seus relatos de viagem descreviam o maravilhoso, do fantástico, uma Amazônia povoada por mistérios e ouro, eram incansáveis buscas pelas “minas do Rei Salomão” em meio à selva Amazônica. O mito escolhido pelo autor não é o tema central do romance, todavia é através da perspectiva universalizante própria deste tipo de narrativa em que o imaginário social do lugar permeia. Além do mito, há ainda demais lendas regionais de etnias da região. A personagem principal é Arminto, filho de Amando Cordovil, família de um alto padrão social: “Muita gente conhecia meu nome, todo mundo tinha ouvido falar da riqueza e da fama do meu pai (...)” (HATOUM, 2008, p.8). É o protagonista quem narra os acontecimentos ligados a ele, e sua família. Em dados momentos oscilando entre as lendas e os fatos que o mesmo rememora. Hatoum usa simbologias expondo alteridade e memória, uma espécie de discurso mitológico provindo da representação do real e do fantástico em um misto de composições. Na leitura do romance, em primeiro momento, não há como situar onde começam as impressões da personagem e onde as re-

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presentações mitológicas se fazem presente, existe uma homogeneidade que torna incapaz a dissociação. Há uma gama de escritos sobre as lutas dos exploradores coloniais e póscoloniais nas terras amazônicas e dos povos autóctones. Além do mito acima citado há outros da cultura indígena que fazem parte da história narrada compondo um cenário diversificado. Tal tipologia de narrativa, repleta de mitos e lendas, constitui a tradição indígena e esta, por sua vez, encontra-se fortemente ligada à literatura brasileira. Contudo a valorização que se dá as etnias ameríndias ainda é irrisória, tanto no âmbito das artes quando no contexto literário. As obras de cunho indígenas apresentam como foco os mitos de tradição indígena, anteriormente eram repassados apenas por relatos orais, e atualmente passaram a ter registro escrito. Os indígenas passam a ter certo domínio da língua portuguesa escrita, e assim, a escrever suas canções, poemas, lendas e crenças. Partimos do pressuposto que as pluralidades das práticas culturais indígenas estão textualmente ligadas as suas representações, como por exemplo, sua pintura corporal. Na novela de Hatoum percebemos estas nuances referenciadas através dos ritos de purificação bem como dos causos contados, tradição oral, e, ainda dos instrumentos musicais. Mencionar representação é fazer alusão à “imitação” de algo que exista, seja no campo da realidade ou no campo intelectual. A etnia dos Apurinã, indígenas da região Amazônica, de acordo com a narrativa de Hatoum, antes de sacrificarem um animal imitavam-no, como uma espécie de homenagem ou agradecimento prestado àquele que lhe serviria de alimento. Hatoum, sobre sua experiência com os indígenas relata em um documento

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ao Instituto Nacional de Pesquisas do Amazonas, o elo que se dá entre a literatura e os textos etnográficos, assumindo que os utiliza para reproduzir em suas obras ficcionais a composição da estrutura da narrativa bem como das personagens (HATOUM, 2005, p.87). Sobre a relação de literatura e textos indígenas diz:

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Sem dúvida, para esses escritores [José de Alencar, Darcy Ribeiro], o contato direto com os povos indígenas e/ou a leitura de textos etnográficos e antropológicos foram fundamentais para a construção de seus personagens. Mário de Andrade, não conviveu com índios, mas vários mitos e lendas de Macunaíma foram extraídos de sua leitura de Von Roraima zum Orinoco, a obra de Theodor Koch-Grumberg, que ele leu em alemão. Além disso, sua viagem a Amazônia em 1827, quando subiu o rio Amazonas e o Solimões ate Iquitus, foi determinante para a feitura de seu do romance-rapsódia. Em Macunaíma são tantas as referencias precisas de frutas, peixes, topônimos e expressões da Amazônia que um nativo dessa região familiariza-se com o livro logo nas primeiras páginas. Outras obras (p.s Meu tio o Iauarête, de Guimarães Rosa e Los Rios Profundos, de José Maria Arguedas), revelam que os nativos dessa América não são apenas temas potencialmente literários, mas antes fazem parte da busca do diálogo com o Outro, busca que suscita de identidade, poética e linguagem, em que a imagem do indígena se reflete em nós mesmos, na nossa própria constituição e nosso modo de ser. (HATOUM, 2005, p. 83-87). Ou seja, alguns autores que criaram personagens indígenas nem ao menos tiveram contatos com eles, dando cor, ritmo e biografia a partir do olhar de outros, muitas vezes estrangeiros, o que pode vir a provocar algum apagamento em relação ao real cenário cultural das etnias.

O autor de Órfãos do Eldorado preenche sua obra com memória, identidade, e alteridade um resgate tido como descolonial em contraposição com a história da região. A personagem Florita é o ponto de contato de culturas que se diferem dentro da obra, indígena [Florita] que cuidou de Arminto e por ele fora violentada. Existe ainda a necessidade de distinguirmos a literatura ameríndia da literatura indígena, para tanto o crítico Antônio Cornejo Polar será acrescentado à análise. De acordo com o crítico a literatura indígena é classificada quanto àquela que é produzida pelos indígenas. Já a literatura indigenista ou ameríndia é produzida por outrem e não pressupõe versão verossímil do universo autóctone, Cornejo Polar defende, portanto, a existência de uma literatura heterogênea, pois esta se encontra na intersecção de duas sociedades distintas, de duas culturas (CORNEJO POLAR, 2000, p. 158). Corroborando então, com a premissa de que se faz necessário proporcionar os meios para que o próprio colonizado reproduza sua cultura, sua história. Desta forma a novela de Hatoum caracteriza-se como aquela que integra a literatura ameríndia, uma vez que é um escrito de autoria não indígena. Ainda que haja compilações, transcrições e escritas das etnias da região Amazônica é uma espécie de reprodução e não produção por parte do próprio indígena. A mescla que o autor faz com a história deixa a obra um tanto fluida em relação à construção e afirmação da identidade cultural indígena, já que a personagem nos relata os mitos de um ponto de vista de quem está inserido dentro da vivencia daquele povo: “Florita traduzia as histórias que eu ouvia quando brincava com os indiozinhos da Aldeia, lá no fim da cidade.” (HATOUM, 2008, p.7)

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A carga de memória que o protagonista narra perpassa alguns planos: mítico, pessoal e da história. A sua complicada relação com o pai, causada pela morte da mãe no momento do parto, o percurso dos mitos que fazem parte da infância do narrador e também de sua vida adulta, incluindo o El Dorado que está intimamente ligado à construção histórica da região Amazônica. De acordo com a professora Vivian de Assis Lemos (2014, p.56) há homogeneidade da ficção com a história de forma a caracterizar um texto marado pelo criativo, pela precisão, bem como pelo ardor responsável pelo regionalismo de que falam Tania Pellegrini (2004) e Alfredo Bosi (2001) ao descreverem o fazer narrativo de Hatoum. A partir do momento que o autor escreve em torno do mito do El Dorado faz uma releitura da história e uma reconstrução do mito, tornando-os unos, pois esta lenda está intrinsecamente fixada à história regional: Desde o descobrimento da América, quando se acreditava que o El Dorado estaria no Novo Mundo, ele foi associado à febre do ouro, uma busca interminável por riquezas, que foi o verdadeiro pretexto de grande parte dos descobrimentos. Esse é o ponto de vista defendido por Christian Kupchik (2008) em análise que faz dos mitos que circundam o descobrimento da América e a busca pelas riquezas do Novo Mundo. Segundo esse autor, foram muitas as expedições que saíram em busca da cidade encantada, mais conhecida como El Dorado, mas que também recebeu, de acordo com Pizarro (2012), o nome de Manoa ou Paititi. Segundo Christian Kupchik (2008, p.159), Paititi era o nome de uma cidade governada por “el Gran Padre (Yaya)”, um dos reis incas que governou cem anos antes da chegada do europeu. A expedição mais significativa em busca desse lugar mitológico/lendário foi sem dúvida a encabeçada por Lope de Aguirre, em 1550. Esse

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aventureiro partiu em busca do El Dorado fugindo da perseguição que sofria na Espanha. Diante disso, o Novo Mundo, a América recém descoberta, parecia para ele o paraíso, único lugar onde estaria a salvo da realidade abominável a que estava sujeito em terras espanholas. (LEMOS, 2014, p. 59) A história do Brasil associa-se ao mito uma vez que se acreditou que o país seria o paraíso. Contudo, Hatoum apropria-se da lenda para desconstruí-la ironicamente. Ironia que se caracteriza não pelo seu uso corrente, porém pela união da visão externa. A ironia observável, proposta por D. C. Muecke (1995), professor de literatura que analisa de modo sistemático e exaustivo com exemplos relevantes da literatura internacional, o conceito de ironia desde o seu aparecimento em Platão até a atualidade. Em Ironia e o Irônico o estudioso de literatura e teatro, bem como o crítico, encontrarão um dos instrumentos mais instigantes de reflexão e criação literárias (LEMOS, 2014, p.63). Corroborando com isto Lemos assegura que o escritor o qual está ligado a sua região e opta por falar da história em sua obra ficcional desconstrói e recria. O historiador, em tese, tem fatos para elucidar os acontecimentos históricos enquanto o escritor parte da ficção, para reviver a história. Estar em um elo com a região que habita é de suma importância para o desenvolvimento da narrativa, sobre essa assertiva em uma entrevista ao site Revista de história no ano de 2009, Hatoum explicita: RH:Qual é a sua relação com a tradição dos autores amazonenses? MH: Nenhuma. Não apenas os amazonenses, como também os que escreveram sobre o Amazonas, como o Euclides da Cunha ou o próprio Ferreira de Castro. A Selva é um romance com muitos problemas, inclusive de racismo. Não gosto dessa literatura regiona-

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lista amazonense, paraense. Quero distancia dela. RH: Não há nenhuma exceção? MH: Marcio Souza é uma delas. Outra é o Arthur Cezar Ferreira Reis, que não era bem um escritor – era um homem culto, um nacionalista conservador que de fato contribuiu para a compreensão da região. Djalma Batista, médico famoso e fundador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), também foi importante. O seu Complexo da Amazônia é fundamental. E existem muitos bons poetas. Acho que eles são melhores que os romancistas. Falo de gente desconhecida ou esquecida: Max Martins, Aldisio Filgueiras, Jorge Tufic, Nelson Farias, Luis Barcellar, entre outros. Só o Thiago de Mello é mais conhecido. (HATOUM, 2005).

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Em suas histórias, a Amazônia sempre se faz presente. Para escrever sobre a região o autor afirma que o distanciamento, sua saída de Manaus para Brasília aos 15 anos de idade foi relevante, pois de acordo com o autor a distância ajuda a entender e visualizar melhor a região. Segundo Hatoum (2006, p.34) ainda que a visão estereotipada da Amazônia é um problema em consequência do tratamento literário que se dá a esta. Ao falar sobre Cinzas do Norte, em entrevista concedida a Julio Baio Borges (2006), Hatoum desenvolve um pouco mais essa questão: Um dos grandes méritos de Cinzas do Norte, e da sua obra, é consolidar uma linguagem, uma visão de mundo, daquele universo brasileiro em torno da Amazônia, misturado com a colonização libanesa e a presença indígena. Ao mesmo tempo, Cinzas do Norte é genuinamente universal, pelo que contém de drama humano. Como foi chegar a essa síntese desde Relato de um certo Oriente (1989)? Antes de escrever o Relato, eu já estava vacinado contra a literatura regionalista. Não ia

cair na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma região que, por si só, já emite traços fortes de exotismo. Percebi que podia abordar questões a partir da minha própria experiência e das leituras. E fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos técnicos que aprendi com algumas obras. Tive a sorte de nascer e morar numa cidade portuária, onde não faltam novidades nem aventuras ou casos escabrosos. Além disso, os membros da minha tribo manauara, amigos, parentes e vizinhos não eram figuras de uma natureza-morta. Histórias que vinham de todos os lados, de minha casa, da vizinhança, do porto, dos bordéis e balneários e até da casa do arcebispo. Quando penso na minha infância e juventude, percebo que foi a época em que vivi com mais intensidade, dia e noite. Havia tudo, inúmeras peripécias e também a política, pois meus tios participavam da vida política, que era mais um assunto doméstico. Aos 15 anos saí sozinho e fui morar em Brasília, isso em 1968. E depois morei em São Paulo e fora do Brasil, o que foi importante para minha formação. Chegou um momento em que fiz uma pausa e comecei a escrever sobre esse passado. Mas não queria escrever qualquer coisa, me debrucei no trabalho, na forma do texto, na construção dos personagens. (HATOUM, 2006, p.46). Para tanto Hatoum, apega-se ao regionalismo como forma de nos mostrar que está “vacinado” em relação a estereotipar a região com um olhar de ‘fora’, para tanto não é um olhar de quem ficou apenas maravilhado e alheio à história real. Em Órfãos do Eldorado, ao reconstruir o mito problematiza o regionalismo com intuito de promover uma visão diferente da Amazônia, possibilitando trânsito entre o mítico regional e o ficcionalismo universal, mediados justamente pela história e pela memória de forma indissolúvel.

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Contudo, historicamente sabe-se que o mito do El Dorado é uma invenção dos colonizadores para povoar, conquistar e explorar a terra, tendo em vista que a Cidade Encantada, a cidade eu abrigava o ouro, nunca era alcançada, uma espécie de utopia que apenas se afastava que nunca era vislumbrada por ninguém e os “custos foram de sangue”. O próprio título da obra nos dá indícios de que os sonhos pelo El Dorado foram um fracasso, todos ficaram Órfãos. Em Amazonía: elríotienevoces, imaginario y modernización, de Ana Pizarro, publicado pelo Fundo de Cultura Econômica (Chile), em 2009, o qual recebeu recentemente, tradução ao português, dentro da Coleção Humanitas, pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. A autora retrará a Amazônia como mote, a crítica chilena, Pizarro, reúne diversos materiais e recortes sobre a região e com eles muitas “vozes”, isto é, relatos que confirmam o imaginário dos europeus sobre a região: “A Amazônia é uma região cujo traço mais geral é o de ter sido construída por um pensamento externo a ela” (2009, p. 31), afirma a autora. Conforme a assertiva supracitada sobre o El Dourado: O mito descreve a existência de um cacique que se banha numa lagoa e após o banho de água, recebe um banho de ouro em pó. Esta ideia da riqueza patente em palácios é, [..] ‘uma carga de douramento asiático’. [...] A estrutura do mito teria, então, três elementos em suas distintas variantes: o cacique Dourado (o príncipe), uma lagoa e ouro em pó. (PIZARRO, 2012, p.80-81). A novela de Hatoum, no entanto, trabalha na vertente que a “Cidade Encantada”, ou Maravilhosa a qual abriga o ouro do El Dorado, está no fundo do rio, lembrando a cidade de Atlantis. A cidade de Manaus, antiga Manoa – na visão dos espanhóis- é conhecida como

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“Cidade Flutuante” por ser banhada por rios, mito preponderantemente anômalo ao El Dourado, ou seja, a cidade perdida de Atlantis reconfigura a Cidade Encantada a qual inicia e termina a vida do protagonista: Amazonas. Uma índia, uma das tapuias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro o desenho da pintura no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo de urucum. Na tarde úmida, um arco-íris parecia uma serpente abraçando o céu e a água. Florita foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em língua indígena; traduzia umas frases e ficava em silêncio, desconfiada. Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar os carregadores da rampa do Mercado, os pescadores e as meninas do colégio do Carmo. Lembro que ela choraram e saíram correndo, e só muito tempo depois eu entendi por quê. De repente a tapuia parou de falar e entrou na água. Os curiosos ficaram parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava com calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, aí alguém gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram até a ilha, mas não encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou. (2008, p.7) A indígena tapuia buscava a Cidade Encantada e foi para o fundo do rio, matando para si de uma vez a ilusão do mito do paraíso de ouro. Quando decidi viver com a minha amada no palácio, ela sumiu deste mundo. Diziam que morava numa cidade encantada, mas eu não acreditava (...) Os sonhos e o acaso me levavam para um caminho em que Dinaura

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sempre aparecia. Lembro de ter visto na beira do rio uma mulher parecida com ela. Muito cedo, manhã sem sol, com neblina espessa. A mulher caminhou na margem, até sumir na neblina. Podia ser Dinaura. Ou invenção do meu olhar. Lembrei da tapuia que foi morar numa cidade encantada, corri até a margem Ninguém. (...) A Cidade Encantada era uma lenda antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância. Surgia na mente de quase todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem escondidas num lugar encantado. (2008, p. 8-30)

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Contando sua história aos passantes dali de perto do rio, lugar onde permanece todos os dias, Arminto deixa de ser sujeito paciente de sua vida e passa a ironizar sua contação de vida. Sua história à margem das vontades do pai e contrariando os preceitos dos amigos, de forma que inicia e termina sua saga com o mito do El Dorado, desacreditado por quem ouve, apesar de o mito ser fundador da construção histórica regional. Para tanto os rios, lagos e lagoas os quais integram os rituais indígenas, são tidos como sagrados, a água é sagrada, e é onde começa e finda a vida da personagem. Quando o protagonista inicia sua busca pela amada Dinaura, que aparentemente foi para a Cidade Encantada, manda que alguns barqueiros vão à procura da moça, um deles chama-se Ulisses Tupi e é o único que retorna sem trazer mentiras, ou falsas indígenas para Arminto, o nome da personagem caricata é outra apropriação mitológica do autor que faz uma clara alusão ao herói da Odisséia, constituindo uma intertextualidade distinta. A desconstrução do mito em Hatoum se dá justamente porque os valores que eram pregados pelos exploradores do Novo Mundo caem por terra, a busca de riquezas materiais é uma falácia, na obra os verdadeiros tesouros que se bus-

cam são: felicidade e paz de espírito. De modo isolado a busca da personagem é por sua amada, o que simboliza o amor, e não por ouro. O pai de Arminto, Amando Cordovil, era obstinado em sua busca por riqueza, e era através do lucro que obtinha com a borracha, na construção da empresa, o ouro que escorria da seringueira, em cada polo figurativo tem-se de um lado o explorador nato do El Dorado e a personagem “ovelha negra” [filho]. Enfim, o que buscou enriquecimento material, Armando, morreu desgostoso e o que buscou paixão, Arminto, empobreceu, pois esta é fugaz e passageira. De acordo com a professora Pizarro, o El Dorado não “é um lugar, mas um sentimento”, o lugar da plenitude onde somente “quem ama já chegou, já vive nela”. Dinaura era para Arminto o El Dorado (HATOUM, 2008, p.82). Em suma, toda a construção da obra encontra-se interligada ao mito, do nome da obra ao nome do cargueiro que naufraga, percebe-se na tessitura da novela quando o autor mescla a historia com a literatura: “(...) os homens cegos pelo látex só poderiam morar no bairro “Cegos do Paraíso”, ou talvez fosse melhor dizer, “cegos pelo paraíso”. (LEMOS, 2014, p.65) Incluindo ainda, as meninas do convento que eram órfãs, todas sem identidade, o colonizador havia arruinado suas culturas que antes era imaculada, assim como o ar de mistério que finaliza a obra e o leitor não compreende se a personagem amada pelo protagonista foi encontrada na Ilha ou se foram apenas devaneios ou ainda outra lenda indígena repassada pelos mais antigos.

Considerações finais O presente artigo buscou delinear a obra de Milton Hatoum percorrendo a

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tessitura da obra, relações bem como sua relevância. Desta forma apresentouse as características das relações sócias da época ligadas ao látex e ao mito do El Dorado. Esta análise também mediou o estudo sobre a colonização e descolonização presentes na narrativa e como se dá a literatura indigenista e ameríndia assim como sua dessemelhança. A construção da ficção por meio da história foi elemento figurativo para desenvolver as passagens ligadas à verossimilhança dos acontecimentos históricos. Dessa forma podendo ser esse um exercício viável na interpretação da história, e de que forma contribui para consolidação do romance de Hatoum, o resgate que o autor promove dos mitos e tradições indígenas ligados a região da Amazônia. Com propósito de contribuir para a discussão no que tange aos estudos póscoloniais apresentou-se também o problema do local da enunciação, a “voz” da narrativa, tal qual o posicionamento do narrador, Arminto, com discurso colonizador. Por meio da análise do discurso percebeu-se os traços do “homem branco” em detrimento do indígena/colonizado.

Referências CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latinoamericanas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. CUNHA, Rubelise da. (Re) Conhecimento: Um olhar transcultural no Ensino de Literatura Indígena. Revista de Estudos Linguisticos, nº 50, jul/dez., 2014, Salvador-BA: 2014, pp. 06-18. HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2005. ________. A noite de espera.

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Entrevista com Milton Hatoum, 2006. Em: <https://goo.gl/jyKSV2>. Acesso em: 12 Ago 2017. Instituto Nacional de Pesquisas do Amazonas. Entrevista com Milton Hatoum, 2005. LEMOS, Vivian de Assis. Mito, História e Memória em Órfãos do Eldorado. São José do Rio Preto-SP, 2013. PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.

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Ivan Francisco Viana de Lima & Márcio Douglas de Carvalho e Silva

PATRIMÔNIO E HISTÓRIA na Fazenda Buritizinho-Altos-PI Ivan Francisco Viana de Lima1, Márcio Douglas de Carvalho e Silva2

Resumo O presente artigo toma a casa de fazenda Buritizinho e seu acervo documental (cerâmica, vaso, cartas, mobília e a própria arquitetura da casa) para uma análise histórica patrimonial. O que determinamos como patrimônio cultural em análise, tanto preserva a memória quanto constitui herança assegurada à sociedade atual. Utilizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica e de campo. O estudo demonstrou que a casa de fazenda preserva um significativo acervo de informações sobre a sociedade que a construiu e/ou deu significado. Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Sociedade. Abstract

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This article takes Buritizinho farmhouse and its documentary collection (pottery, vase, letters, furniture and the architecture of the house itself) for a historical patrimonial analysis. What we determine as cultural heritage under analysis, both preserves the memory and constitutes an inheritance assured to the current society. We use as methodology the bibliographical and field research. The study showed that the farmhouse preserves a significant body of information about the society that built it and / or gave meaning. Keywords: Memory; Patrimony; Society.

Recebido em: 10.06.2018 Aprovado em: 21.06.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306253 1

Licenciado em História, Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana - UESPI Licenciado em História, Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – UESPI, Mestre em Antropologia – UFPI. 2

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Por meio da memória, as ações dos sujeitos no transcurso da construção de nossa sociedade podem ser relembradas e entendidas pelo o que foi preservado. Uma casa, uma rua, uma ponte que sobreviveu ao tempo e consegue manter-se viva na memória coletiva de um povo, serve como marco identitário, ou seja, contém em sua estrutura parte da história e das lembranças de uma sociedade, pois, além dos aspectos materiais são bens

A ideia de patrimônio vincula-se à de memória, ou seja, consistem em recordações, lembranças de tempos passados que estão presentes no que conseguiu sobreviver e conserva-se sobre a sociedade atual, seja uma casa, uma dança, crenças que fizeram parte de realidades já vividas e, apesar das modificações que sofreram, ainda podem ser identificadas pelo que resistiu ao tempo. O objeto a ser conservado recria um momento singular na história, refletindo uma arte vivida, que define o modo que determinado grupo social pensava e os valores por ele adotados. (LIMA, 2012. p. 31)

Oriundos de processos culturais de construção de sociabilidades, de formas de sobrevivência, de apropriação de recursos naturais e de relacionamento com o meio ambiente, essas manifestações possuem uma dinâmica especifica de transmissão, atualização e transformação que não pode ser submetida às formas usuais de proteção do patrimônio cultural (IPHAN, 2012. p. 9).

Prontamente, esse entendimento que geraria uma identidade entre sociedade e artefato, símbolo do patrimônio, de fato só seria possível com o conhecimento do contexto que perpassam os dois momentos, presente/passado, visto que, o não entendimento de um, recai sobre a incompreensão do outro, assim

Introdução

Dessa forma, para entender a essência do patrimônio é preciso fazermos uma ligação entre o presente e o passado e procurar o que de fato herdamos das sociedades em seu transcurso. Experiência, técnicas e valores não são descartados, e sim conjugados e ajustados aos nossos dias. À vista disso, patrimônio aqui é entendido como toda forma de vida adotada e adaptada pelo homem aos espaços modificados pelo tempo, e que mesmo com as várias sucessões e passagem por diferentes gerações, não perderam sua essência, por estar encravada nos hábitos e valores herdados. Consequentemente, o patrimônio, artefato preservado, estimula a memória a relembrar do passado e do contexto social em que o mesmo se desenvolveu, assim:

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essa solidariedade das épocas tem tanta força que entre elas os vínculos de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente. (BLOCH, 2002, p. 65) No que tange as casas de fazendas do Piauí, a relação espaço-tempo passado, tem forte ligação com o presente, em razão das cidades piauienses ainda estaram muito ligadas aos setores rurais de seus municípios, reflexo do percurso histórico cultural da formação social do Estado. Logo, parte da nossa história pode ser contada pelas casas de fazenda, construções remanescentes ao tempo que o gado era a maior fonte de renda, um passado com características típicas

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da sociedade piauiense, que nasceu junto aos núcleos fazendários. Muitos dos nossos municípios tiveram suas origens em propriedades rurais como fazendas, unidades onde se organizava a economia que girava em torno da pecuária, espaço que reunia na lida do dia-a-dia, vaqueiros, agregados, moradores, rendeiros e trabalhadores escravizados. Foram essas pessoas que deram origem à sociedade piauiense. Por isso, a importância de reconhecer as casas de fazendas como parte da memória do passado, como instrumento de análise de uma sociedade que tinha suas vivências dentro do contexto sertanejo de adaptação a realidade do espaço habitado. A fazenda Buritizinho fica situada a aproximadamente 3 Km do centro da cidade de Altos-Piauí, as margens da BR-343 que liga Altos a Teresina. A fazenda é de propriedade de dona Lina, herança de seus pais. Fundada no ano de 1848, em seus 176 anos de existência sofre com a ação do tempo. Além da demolição de alguns cômodos, há intervenções na estrutura que conseguiu ser mantida. Apesar das modificações, a fazenda conserva significativo acervo documental (cópia da lei que abolia a escravidão no Brasil, emitida pelo imperador, inscrição em azulejo descrevendo ano de fundação e localização da fazenda, além de móveis e da própria estrutura da fazenda que contém muitas informações da sociedade na qual a mesma se ergueu) que nos guia ao conhecimento de uma sociedade que se estruturou nos espaços em que a pecuária era a maior fonte de renda. Dessa forma, tanto a estrutura – arquitetura e matéria prima utilizada – como móveis e documentos que compõe o acervo da fazenda, evidenciam as práticas adquiridas pela sociedade pecuarista. Quando falamos em sociedade pecuarista nos referimos aos senhores, escravos, agregados, vaqueiros; de vida

dura, simples ou luxuosa. Foram esses personagens que construíram os pilares que originou a sociedade piauiense. A cidade de Altos- Piauí, município, onde se ergueu a Fazenda Buritizinho, de início foi povoada por migrantes de outras regiões, fugindo da seca que castigava o Ceará “em 1800, com a chegada do primeiro colonizador, João de Paiva Oliveira, tem início a história do nosso município.” (FERREIRA, 1995, p. 17). Nesse período, a posse da terra era muito disputada, por sesmeiros e posseiros, período em que no território piauiense a legalidade se dava através da doação da carta de sesmaria, que “no ano de 1816 fora concedida a Domingos de Paiva Dias, a sesmaria denominada Batalha, que está ligada aos primórdios do nosso povoamento.” (FERREIRA, 1995, p. 17). Dessa forma, a base econômica da região era agricultura, pecuária e extração vegetal. A criação de animais porcos, cabras e de aves, como galinhas, serviam para o consumo próprio. Os aspectos rurais são fatores ligados aos primeiros núcleos populacionais da região, as fazendas. A cidade de Altos não fugiu à regra de formação das cidades piauiense, pois, “aqui chegando, João de Paiva Oliveira constituiu uma fazenda, dando-lhe o nome de Fazenda São José dos Altos” (DIAS, n/d). Hoje o município de Altos, apesar de ter sua economia movida pelo comércio ainda mantém forte ligação com os setores rurais. Segundo Lima, (2012, p. 37), Os aspectos de ruralidade denotam a relação que o urbano tem com o campo. Parte significativa da população urbana ainda mantém vínculos muito fortes com o campo. Dos quintais, retira-se parte de sua subsistência: a laranja, a manga, a mandioca ou criação de animais, como porcos e galinha, além de cultivarem um canteiro com verduras.

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Isso termina denunciando a relação rural/urbano. Trazem também da zona rural matéria-prima para a produção de artigos como jacás e vassouras, formas de sobrevivência vinculadas à relação que o homem da cidade tem com o campo que se faz presente na comunidade altoense. A ligação entre cidade e campo é natural dos municípios piauienses, à vista disso, conservamos um sistema de ideias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de padrões de comportamento e atitudes que caracterizou uma determinada sociedade. Para construir este trabalho, entramos e saímos da casa de morar do senhor à procura de constatarmos o que os documentos nos revelam de um passado com ligação forte com o presente. O mundo rural em que se originou a sociedade piauiense foi palco de conhecimentos e técnicas de sobrevivência. Esses espaços castigados pelo clima quente e pelas constantes secas acabaram dificultando a sobrevivência nesse território “o clima envolve e condiciona o comportamento das gentes” (LEMOS, 2004, p. 9). As casas de fazendas erguidas com matéria prima da região como carnaúba, para as coberturas das casas, o barro e a pedras para as paredes, refletem a adaptação ao clima e vegetação nativa, os modos de fazer e os modelos arquitetônicos das construções advêm de uma composição que mescla técnicas de adaptações das construções ao espaço e o modismo da época, símbolo do poder aquisitivo dos senhores que desfrutam dos lucros produzidos em suas propriedades. Aos poucos, a arquitetura portuguesa foi se adaptando às condições locais e sabiamente foi determinando partidos compatíveis aos materiais disponíveis e, principalmente, ao clima tão diversificado em nosso país de grandeza continental. No campo da arquitetura foi se

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consolidando, então, uma série de exemplares já definidos como brasileiros, próprios da firmação cultural da colônia miscigenada e afastada onde o índio e o negro logo puderam deixar a sua marca no viver cotidiano. (LEMOS, 2004, p. 16) A casa de fazenda reflete a formação social piauiense que se deu através das grandes possessões de terras, doadas pela coroa portuguesa, que concentrou nas mãos de alguns núcleos familiares o poder sobre as propriedades territoriais do estado, pois “foi a partir da sesmaria que se definiu a economia e o quadro sócio-econômico da colônia,” (BRANDÃO, 1995, p. 48) formando assim, uma elite pecuarista que tomaria de conta da administração política econômica do território. Além disso, as propriedades rurais absorveram boa parte da mão-de-obra disponível na região, dando origem a outro ambiente social mais simples, relacionado com as práticas habituais dos espaços que condicionavam a sobrevivência de vaqueiros, rendeiros, agregados e trabalhadores escravizados “assim esta sociedade era composta por uma classe rica – a dos fazendeiros latifundiários, e uma classe pobre – a dos vaqueiros e demais agregados e sitiantes, correspondendo esta à grande maioria da população” (LIMA, 2006, p. 92). Apesar da classificação por camada social, para conhecer um pouco mais da sociedade pecuarista temos que manter a relação entre ambas as classes. É no contexto sertanejo de vivências múltiplas que se constituíram os modos de saber e viver, com danças e festas como reisados, dança de São Gonçalo, e a culinária com ingrediente cultivado pelo próprio sertanejo como os plantios de mandioca para a produção da farinha, goma e puba, matéria prima dos bolos e beijus; do milho, o cuscuz, a

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canjica, a pamonha. Conhecimentos e técnicas que caracterizam a identidade do piauiense, e revelam um ambiente em que a criatividade humana é a essência da formação dos valores. Consequentemente, as práticas diárias, de produção dos alimentos eram transformadas em momentos de sociabilidade do povo piauiense vejamos:

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A farinhada era outra forma de encontro social; realizava-se após a colheita da mandioca, entre maio e julho. A vizinhança toda era convidada para o processo de beneficiamento do produto, quando a mandioca era transformada em farinha, tapioca, entre outros produtos. O dono do mandiocal construía ranchos de palha para abrigar os convidados. Homens, mulheres, velhos e moços, livres e escravos, até mesmo as crianças, em volta do amontoado de mandioca, descascavam e lavavam as raízes, que depois eram raladas [...] (COSTA FILHO, 2006, p. 58). Por mais que utilizamos a casa de fazenda e seus traços arquitetônicos (paredes de pedra e cal, cobertas com troncos de carnaúbas, grandes cômodos revertidos de janelas e portas para que o ar circule melhor), como base para uma discussão sobre a herança patrimonial que a sociedade pecuarista nos legou, não estamos aqui nos referindo somente ao ambiente vivenciado pela elite pecuarista. A fazenda se constitui como um complexo em que as práticas da sociedade oitocentista coexistiam, ou seja, “a vida do sertão girava em torno das fazendas, estas entendidas como um complexo produtivo formado por um conjunto: casa de fazenda, casa do vaqueiro, o curral, o poço, a casa de aviamento, o cemitério”. (LIMA, 2012, p. 34). Em períodos festivos ou de safra, a comunidade se reunia em torno das propriedades. Nesse período, a capela

da fazenda “se tornava o centro das reuniões religiosas e sociais, durante eventos como batizados, casamentos, festas juninas e dos padroeiros” (FÉ LIMA, 2006, p. 90), promovendo a sociabilidade do calendário anual do sertão nordestino. Uma vez que o gado piauiense fosse criado solto, se alimentando da pastagem natural da região, a pecuária piauiense precisou de homens para administrá-la. O vaqueiro, hoje símbolo da formação social do Estado, montado em seu cavalo, vestido em um gibão feito de couro, para se proteger de galhos e espinhos da mata onde corria atrás do gado que se separavam da boiada, ou mesmo na captura dos que iam ser abatidos. Além disso, a figura do vaqueiro na sociedade oitocentista era, muitas vezes, de intermediar a administração da propriedade, ou seja, ficava sobre sua responsabilidade a direção do domínio do senhor. Esse encargo lhe rendia uma parceria com o fazendeiro que, segundo (BRANDÃO, 1995, p. 46) Competia ao proprietário da terra fornecer o gado, as instalações físicas da fazenda, os instrumentos agrícolas e pastoris e até escravos. O vaqueiro participava com seu trabalho, cujo pagamento processava- se anualmente após os cinco primeiros anos de administração, a razão da quarta parte dos bezerros nascidos. Além do trabalho livre, nas fazendas piauienses, também era utilizada a de mão-de obra escrava, geralmente para fazer os serviços mais pesados, “nos núcleos de produção pecuarista, competia ao escravo a construção e manutenção da infraestrutura como casas, aguadas, currais e roças” (BRANDÃO, 1995, p. 47). Apesar da vida difícil e de ter participação na sociedade como posse de outros homens, os escravos tive-

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ram efetiva contribuição na construção do corpo social piauiense.

Preservação: o acervo documental como patrimônio cultural A história é um discurso construído a partir de vestígios. O objeto do discurso ajuda a construir uma narrativa histórica e a memória perpassada em sociedades anteriores a nossa. Assim, preservar o documento é conservar nossa própria história. Fig. 01: Descrição do ano de fundação em cerâmica

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

Em português arcaico e sobre cerâmica de modelo Francês, a inscrição aponta para o ano de inauguração e localização da fazenda Buritizinho. Documento encontrado e restaurado pelos atuais proprietários da fazenda “a cerâmica foi encontrada no fundo de um poço que ali existia e mandado para a restauração em São Luís, no Maranhão, por Dona Lina, num trabalho de meticulosa atenção e pesquisa dos artistas daquela cidade” (DIAS n/d). A inscrição indica 1848 como ano de fundação da propriedade, período em que algu-

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mas fazendas recebiam as construções de grandes casas para abrigar o proprietário e sua família. Assim: No século XIX, os proprietários passaram a residir nas fazendas de sua propriedade ou em cidades próximas a elas. Sua presença nas fazendas impingiu a necessidade de adequação da estrutura existente ou na construção de novas edificações para abrigar o fazendeiro e sua família. Isto provocou a mudança na arquitetura rural do Piauí: no lugar das toscas casas de taipa e palha, começam a ser erguidas casas com maior apuro na técnica e na estética. (IPHAN apud SILVA FILHO, 2007, p 42). A fazenda fora erguida em uma região pertencente a Vila de Campo Maior, a algumas léguas das margens do rio Poti, lugar que anos mais tarde receberia a capital da província e se tornaria o centro administrativo do Estado. O uso da mão-de-obra escrava no Brasil, perdurou por mais de três séculos, e não se limitou aos trabalhos nas áreas de cultivo da cana de açúcar ou nas plantações de café, o cativeiro foi empregado também nas regiões interioranas do Brasil, onde houvesse trabalho, não se dispensava os serviços de um escravo. Portanto, o Piauí não foi exceção à regra de se manter a produção econômica movida pela força dos braços escravos. Nas fazendas piauienses, os trabalhos executados pelos cativos ia desde o manejo das boiadas passando pelos serviços domésticos até a manutenção da estrutura da propriedade. Havia necessidade de montagem e conservação da infra-estrutura das fazendas, o que ficava a cargo dos escravos. A agricultura de subsistência, a construção de aguadas, cercas, currais e a fabricação de utensílios mais grosseiros, além dos serviços domésticos, eram, sem dúvida, imprescindíveis, básicos na vida das fazendas, mas eram

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também trabalho pesado, pouco gratificante para o homem livre. (BRANDÃO, 1999, p. 28) Mesmo nos locais mais distantes dos grandes centros produtores da monocultura, coexistiam, homens escravizados, livres e libertos, os primeiros estavam sempre buscando conseguir sua emancipação do sistema que lhe mantinha sobre o regime de servidão. A principal forma de resistir à submissão do cativeiro era fugir e buscar locais distantes dos olhos dos senhores e seus comandados, geralmente os quilombos1 eram os destinos de muitos cativos que conseguiam escapar das propriedades que lhes mantinham submisso. O sistema escravista só teve fim na segunda metade do século XIX, por decreto expedido pela princesa Isabel, que dava como extinta a escravidão no Brasil. Uma cópia desse documento se encontra na sede da fazenda Buritizinho (figura 02) enviada pelo Império brasileiro para as propriedades que dispunham de trabalho escravo, e declara a extinção do cativeiro no Brasil, a existência dessa carta na fazenda aponta para utilização de mão–de–obra cativa na propriedade.

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Locais em que se concentravam os escravos que fugiam das fazendas, minas e casas de família, onde eram explorados e sofriam maus tratos. Os escravos, para não serem encontrados, escondiamse nas matas, nos lugares mais inacessíveis, como o alto das montanhas.

Fig. 02: Piso da casa de fazenda Buritizinho

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias Fig. 03: Estrutura do telhado da Buritizinho

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

A estrutura física da casa de fazenda tem muitas informações da sociedade que lhe originou, assim como as intervenções que vem recebendo para se adaptar ao tempo presente. Piso de ladrilho, teto de carnaúba com adaptação de ripa de madeira cerrada fios com instalação de energia elétrica, preservam alguns traços do passado, mas readapta a construção aos arranjos e avanços técnicos contemporâneos.

A casa e seus cômodos: estrutura que conta um pouco de nossa história Para o piauiense a casa é um lugar em que estão presentes, são respeitadas, ensinadas e transmitidas às novas gera-

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ções e, mesmos aos frequentadores (assíduos ou esporádicos): hierarquias, proteções e segurança (físicas, emocionais, morais, sociais, religiosas, culturais, financeiras, psicológicas, etc.), identidade, autonomia, privacidade, divisão de responsabilidades/ atribuições/ tarefas por gênero e idade. (SILVA, 2014, p. 195). A casa tem suas atribuições grupais, pois, agrega em seus espaços os lugares onde atuam os agentes sociais. A relação que a casa tem com a sociedade pode ser entendida pelos espaços que cada um ocupa nesse ambiente.

amenizar o calor, decorrente da região, como dava ao proprietário uma visão, de dentro da casa, privilegiada de sua propriedade. Era também palco de encontros entres os feches políticos da região, ou seja, muitas decisões políticas da região foram realizadas nas sedes das fazendas, geralmente locais de encontros das elites que mantinham o poder político e econômico da localidade. Fig. 05: Sala, com mesa de madeira

Fig. 04: Sede da Fazenda Buritizinho (s/d)

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

Diferente dos modelos de residências do nosso vizinho, Maranhão que tinha como modelo residencial grandes sobrados, os domicílios piauienses têm na verticalidade de suas casas as característica típicas da região sertaneja. A casa de fazenda tem em sua arquitetura traços que simbolizam uma sociedade marcada pelo clima e sua forma de organização. É comum encontrarmos nas estruturas das casas um alpendre, que serviam como local de descanso e sociabilidade dos proprietários “cômodos como quartos alcovas e varandas possuíam armadores de redes em madeiras ou ferro, e tal artefato era perfeito para o descanso nos dias de grande calor. (AFONSO, s/d, não paginado). Localizada num ponto alto do terreno, revertida de portas e janelas que serviam tanto para

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A sala, onde se encontra a mesa para refeição, é lugar de reunião familiar, pois, a hora das refeições é o momento em que a família se relaciona e conversa sobre o dia a dia na propriedade ou mesmo sobre assuntos que envolvem a família com a sociedade circunvizinha. Além da família do senhor, os empregados também estão sempre por perto, repondo a alimentação e acatando os mandos de seus patrões ou senhores. Fig. 06: Cozinha da casa de fazenda Buritizinho

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

A área de serviço e a cozinha eram espaços das mulheres e das crianças. Na

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cozinha havia o fogão feito de barro e movido a lenha, para o preparo das refeições um forno também movido a lenha para os assados e bolos, mesa e cadeiras que serviam para os empregados fazerem suas refeições. Era momento de aprendizado, mas também de sociabilidade, já que as mocinhas se faziam presente para ajudar a providenciar os alimentos e assim aprender as receitas das “mais venhas” e os modos certos de prepará-las. Era dessa relação entre as gerações que provem o que determinamos como patrimônio imaterial, ou seja, o conhecimento que passa de geração a geração.

Considerações Finais

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Identidade, talvez seja o grande elo que nos leva ao conhecimento da realidade presente. Mais o que existe de tão comum entre os hábitos sociais, que determina nossos modos de ser e pensar? No que uma sociedade que se constituiu nos primórdios da colonização do espaço sertanejo, que se adaptou ao meio, vivendo de forma simples sobre os limites que a região lhes proporcionava influencia em outra que não se limita aos espaços, pois, tem como característica o acesso rápido a uma conjuntura social globalizada? A discussão que propomos neste trabalho é justamente a ambientação do que determinamos como patrimônio cultural aos espaços do ontem e do hoje, ou seja, do passado que os formou ao presente que herdou hábitos e costumes e a transmissão dos mesmos de uma geração a outra. Assim, Ao longo do tempo, em decorrência do espaço que ocupa e da sociedade que atua, o homem readapta suas acomodações, o que de fato pode destruir o patrimônio ou somente mudar o cenário preservando a história e a memória das sociedades que nos trans-

mitiram seus hábitos, costumes e valores.

Referências AFONSO, A. Arquitetura e cultura. s/d.(no prelo). BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou oficio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. BRANDÃO, T. M. P. A elite colonial piauiense: Família e Poder. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. _________________. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII; Apresentação de Armando Souto Maior. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999. COSTA FILHO, A. Escola do sertão: ensino e sociedade no Piauí, 18501889. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves. 2006. DIAS, Carlos. Fazenda Buritizinho. Disponível em https://goo.gl/1bah81. Acesso 26 jan. 2011. FERREIRA, Francisco. Cotidiano e memória. Altos: edição do autor, 1995. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O registro do patrimônio imaterial: dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial; organização, Márcia G. de Sant`Anna. 5 ed. Brasília, DF: IPHAN, 2012. LEMOS, C. A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004. LIMA, I. F. V de. Uma foto(grafia) da farinhada em Altos - Piauí. 2012. 96 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em História) – Universidade Estadual do Piauí, Campo Maior, 2012. LIMA, Iracilde Maria de Moura Fé. A Família Moura Fé no Piauí In: ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoino de, João

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Kennedy Eugênio (Org.) Gente de Longe: história e memórias.Teresina: Halley, 2006. SILVA, Samara Mendes Araújo. Da fazenda para cidade: traços da cultura material e imaterial sertaneja nas casas piauienses em fins do século XX. In: SANTOS, Raimundo Nonato Lima dos. (Orgs.) As cidades de Clio: abordagens históricas sobre o urbano. Teresina: EDUFPI, 2014.

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Pedro Vagner Silva Oliveira

PARAÍSO DO CRIME? Ocorrência policial na imprensa da belle époque parnaibana (1930-1950) Pedro Vagner Silva Oliveira1 Resumo Este artigo tem como objetivo analisar as ocorrências policiais impressas nos periódicos que circulavam em Parnaíba-PI, entre os anos 1930 a 1950. A cidade nestes anos, aspirava ares modernos devido as trocas comerciais com várias regiões do Brasil e com o estrangeiro. A dinamização econômica e as transformações sociais adensaram as contradições entre a população. Buscando documentar sujeitos nãohegemônicos e com o fito de compreender as relações e tensões sociais na Parnaíba da belle époque, será usada a prática da micro história, tendo como base, Ginzburg (1989) e Levi (1992). O corpus documental da pesquisa, foi formado por jornais que circularam naquele período. Palavras-Chave: Belle Époque Parnaibana; Crime; Imprensa.

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Abstract This article aims to analyze the police occurrences printed in the periodicals that circulated in Parnaíba-PI, between the years 1930 to 1950. The city in these years, aspired modern airs due to the commercial exchanges with several regions of Brazil and with the foreigner. Economic dynamism and social transformations have heightened the contradictions among the population. In order to document nonhegemonic subjects and with a view to understanding social relations and tensions in Parnaíba da belle époque, the practice of micro-history will be used, based on Ginzburg (1989) and Levi (1992). The documentary corpus of the research was formed by newspapers that circulated in that period. Keywords: Belle Époque Parnaibana; Crime; Press.

Recebido em: 15.06.2018 Aprovado em: 23.06.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306258 1

Mestre em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo-EFLCH/UNIFESP. Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Pesquisador do grupo de pesquisa História Social da Cultura: Literatura, Imprensa e Sociedade (UNIFESP) e professor de História Geral no cursinho popular Evandro Lins e Silva. Email: pedro_w@rocketmail.com

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Introdução Parnaíba, cidade do norte do Piauí, entre os anos 1930 e 1950, vivia sob o signo da modernidade. O tão desejado “progresso” trazido pelas exportações e trocas comerciais ofereciam à cidade requinte nos costumes de uma parcela da sociedade. Os prédios ornavam-se e ilustravam o poderio daqueles tempos áureos. Casas comerciais e firmas de representação nacional e estrangeira, assinalavam a importância das transações e firmavam Parnaíba como uma das principais cidades piauienses. Longe de ser harmoniosa, a Parnaíba de outrora, com as “ruas arenosas, sem jardins elegantes, com passeios de altos e baixos” (O Norte. 01/05/1951, p. 4.), estava conhecendo a partir dos anos 1930, esforços em embelezá-la. Nos anos 1950, a cidade já se encontrava “provida de calçamento, em toda a zona central, com excelentes jardins que encantam os forasteiros, como os das Praças da Graça e de Santo Antônio” (O Norte. 01/05/1951, p. 4.). A urbanização foi restrita ao centro, como bem ilustrou a passagem do jornal O Norte. Os bairros pobres, chamados de subúrbios, ficaram na margem do processo de remodelação. Os anos que vão de 1930 até 1950 é conhecido na historiografia parnaibana, como belle époque. Sobre este período, a memória e a escrita da história documentam a opulência, o comércio e as transformações urbanísticas ocorridas na cidade. A fim de contribuir com este profícuo debate e documentar outros sujeitos e lugares que não as classes hegemônicas, o texto aqui apresentado objetiva analisar, a partir dos periódicos circulados em Parnaíba durante sua belle époque, os retratos que a imprensa fazia sobre as ocorrências policiais. Pesquisamos notícias sobre delitos, crimes, agressões e outros assuntos nos jornais circulados na principal cidade do

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norte piauiense entre os anos de 1930 a 1950. São eles, Aljava; O Norte; Gazeta do Piauí e Diário da Tarde. É preciso estar atento quando se lê os documentos e o historiador Edward P. Thompson adverte sobre isso, afirmando que “a evidência histórica existe, em sua forma primária, não para revelar seus próprio significado, mas para ser interrogada” (THOMPSON, 1981, p. 38). É necessário ater-se ao olhar das fontes e de seu produtores, bem como fazer perguntas às evidências. O material de nossa pesquisa é lacunar. Devido a inexistência de arquivos públicos em Parnaíba e a falta de política de preservação documental, só tivemos acesso à algumas edições dos referidos jornais reunidas em quatro coleções, prejudicando assim, as análises e comprometendo um estudo mais aprofundado. Apesar desta “brecha”, fizemos uso da micro história, “prática historiográfica”, nos dizeres de Giovanni Levi que “é essencialmente baseada na redução da escala da observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental” (LEVI, 1992, p. 136). Este procedimento foi de extrema importância para “contornar” os problemas trazidos pelos silêncios das fontes. Na baliza temporal estudada, Parnaíba respirava o auge econômico, não obstante, inspirava contradições sociais em seus espaços. O centro detinha investimentos de embelezamento e ordenamento, características de uma dita ânsia por modernidade. Por outro lado, segundo o historiador Alexandre Wellington Silva, ficava “distante desse ‘desejo’, uma massa de dezenas de pessoas” (SILVA, 2017, p. 60). Ao passo que os periódicos e demais publicações da belle époque registravam as transformações urbanas de Parnaíba, os mesmos vestígios ilustram tensões sociais.

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Delitos, roubos e crimes ganhavam notas nas páginas do jornais, elucidando tanto o descompasso social trazido pela modernidade, quanto seu efeito em aumentar as desigualdades entre ricos e pobres, que era inclusive nos anos 1930 assinaladas pela linguagem. “Da elite, faziam parte o rapaz e a moça; da plebe, o caboclo e a cunhã” (LIMA REBELO, 1984, p.19), afirmou Goeth Pires de Lima Rebelo em seu livro de reminiscências. O jornal O Norte alertava que no começo dos anos 1950, Parnaíba, “moralmente, tornou-se o paraíso do crime, no Piauí” (O Norte. 01/05/1951, p. 4). Furtos1 e homicídios para a cidade que se dizia caminhar rumo ao progresso, eram considerados atrasos. No geral, notícias sensacionalistas que divulgavam crimes e mortes, não eram incomuns na imprensa brasileira da primeira metade do século passado. Neste período, segundo Maria Helena Capelato, “a maioria dos jornais brasileiros (inclusive os órgãos de partido, como o Diário Nacional) davam destaque à seção de crimes (CAPELATO, p. 1988 16). Meio que atraia leitores, mortes e crimes se transformavam em episódios interessantes e largamente utilizados pela imprensa da época. E os jornais parnaibanos parecem também ter usado este recurso em suas páginas como forma de seduzir leitores. Os jornais parnaibanos permitem compreender normas e condutas, bem como vivências, além de reconstruir a cidade com as tensões sociais do período. Capelato entende que a imprensa possibilita reconstruir o pretérito humano em sua multiplicidade. O uso de periódicos na operação historiográfica “permite compreender como viveram nossos antepassados – não só os ‘ilus1

Cf. Fevereiro cronológico. Aljava. 29/02/1936, p.3.

tres’ mas também os sujeitos anônimos” (CAPELATO, 1988, p.20). A imprensa não é neutra e está longe de ser. Os editores fazem juízo de valor em seus retratos e apresentam sua própria leitura de mundo. Ainda segundo Capelato, “a produção desse documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desvendadas” (CAPELATO: 1988, p. 24-25). Em suas páginas, os periódicos levam concepções de classes, ideologias, projetos políticos e sociais que são lidos, assimilados e/ou apropriados pelos leitores que em Parnaíba, deveriam ser na maioria a elite e quem sabe, a classe média mais abastada. Esta hipótese ganha força quando se leva em conta que a população da cidade nos anos 1940 era de 42.062 habitantes e deste contingente populacional, somente cerca de 5,78% era letrada. Ou melhor, 13.745 parnaibanos sabiam ler. Por sua vez, 21.489 pessoas atestaram não ter recebido educação formal, ou seja, não sabiam ler e nem escrever; 35 pessoas não declararam seu nível de instrução (IBGE, 1940, p.116). Logo, nesta cidade, o que era escrito, era para poucos e poucos liam os periódicos. Fizeram parte do corpus documental desta investigação, além dos jornais, outras fontes que foram cotejadas. Tais evidências são livros de memórias e censos demográficos. Para finalizar, ao invés de analisarmos somente as notas que falavam sobre violência, preferimos neste texto, por questões metodológicas, considerar todo o conjunto. Foram selecionadas quaisquer notícias que retratassem as ocorrências policiais, portanto, são elas o “fio condutor” deste texto. Marcos Luíz Bretas afirmou que “a expansão da imprensa diária no início do século XX motivou uma diversificação de estratégias para conquistar o público, entre as quais o apelo a narrativas e crimes foi das mais empregadas”

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(BRETAS, 2002, p.18). Longe de ser somente anedota, estas notícias descrevem muito mais a violência na sociedade parnaibana dos anos 1930 a 1950. A partir do olhar crítico sobre este material, foi possível entender o ordenamento da sociedade e os conflitos de valores entre classes, bem como os interesses da imprensa sobre o referido tema.

Reportando As ocorrências policiais retratadas nas páginas dos periódicos eram várias. Indo desde a captura de uma dupla de forasteiros suspeitos2, até fugas de presos da cadeia pública do município3; de indivíduos vagando bêbados pela cidade4, até a agressão de uma menor feita por uma meretriz no Tucuns5. Ao analisamos a documentação hemerográfica, observamos que alguns6 dos jornais parnaibanos, na primeira metade do século XX, possuíam espaços fixos que se destinavam somente aos casos policiais. O noticiário “na polícia e nas ruas”7 era um deles e tinha como intento, não somente informar. Sem autoria e geralmente bastante curto, tal espaços teria também o objetivo de publicar notícias sensacionalistas sobre a segurança pública parnaibana entre os anos 1930 a 1950. As matérias noticiavam acontecimentos policiais ocorridos nas três 2

O Norte. 16/03/1951, p.1 Diário da Tarde. 14/09/1946, p. 1. 4 O Norte. 21/10/1944, p.1. 5 Diário da Tarde. 01/01/1949, p.1. 6 Dos quatro jornais, apenas o Aljava não tinha um espaço definido para as ocorrências policiais em seu projeto editorial. As ocorrências policiais encontradas neste periódico foram encontradas nas cronologias mensais. 7 O noticiário era presente em três dos quatro periódicos estudados: O Norte; Gazeta do Piauí e Diário da Tarde. Todos adotavam o mesmo nome para as notas policiais, este último jornal, vez ou outra trazia em alguma edição a coluna com o mesmo tema, todavia com o nome “reportagens policiais”. 3

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zonas do município: centro, subúrbio e zona rural8. Cotejando os periódicos com outras fontes da mesma baliza temporal - exercício necessário para a compreensão da complexidade das tramas e conflitos sociais em Parnaíba -, fomos capazes de reconstruir o dia a dia da “Princesa do Igaraçu”. Um destes vestígios é o Livro do Centenário da Parnaíba, publicado em 1945. Segundo a citada publicação, nos anos 1940, a cidade possuía quatro bairros: Coroa, Nova Parnaíba, Campos e Tucuns9. No que tange à divisão policial, a fonte documenta que no período, Parnaíba tinha a presença da polícia estadual representada por um delegado e destacamento militar, “a divisão do município está feita em onze distritos” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 93). A delegacia encontrava-se na sede do município. Além das estatísticas, o Livro do Centenário, informava no capítulo dez sobre a segurança pública e a criminalidade em Parnaíba. Sobre a última, afirmava ser “diminuto o coeficiente dos criminosos habituais ou por índole em nosso meio” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 237). Amenizando as razões e os tipos de delitos, o documento justificava que as maiores causas das delinquências eram o álcool, a ignorância e também, o próprio gênio dos parnaibanos, “o temperamento amoroso de nossa gente, demasiado tropical, que também nos fornece contingente de delitos” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 237). Naturalizando as causas dos crimes, o Livro do Centenário trazia a concepção de sociedade mediterrânea e de honra. 8

Cf. Situação política do município In: CORREIA, Benedito Jonas; LIMA, Benedito dos Santos (orgs.). O livro do centenário da Parnaíba: 1844- dezembro - 1944. Parnaíba: Gráfico Americana, 1945, p. 62. 9 Idem.

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Seus organizadores comungavam com as ideias do período de que os latinos, pelo sangue quente que corria em suas veias, estavam propensos à ira era movida pelas paixões, sendo assim, uma característica cultural. Boris Fausto, no clássico Crime e cotidiano explicou que “a ‘naturalização’ do crime não implica o desinteresse. Pelo contrário, ele se torna componente integrante do dia-a-dia como alimento cotidiano de uma parte do público letrado” (FAUSTO, 2014, p. 26). Desta forma, a posição dos organizadores do Livro do Centenário seria talvez, uma tentativa de minimizar as ações que fugissem à ordem vigente, ilustrando que Parnaíba era uma cidade calma e pacata - a violência seria “aceita” pelo contexto cultural. Esta interpretação parece não estar equivocada quando lemos no Livro do Centenário, as estatísticas criminais da cidade. Este mesmo livro trazia informações retroativas à sua publicação, isto é, anteriores a 1945. Até este ano, Parnaíba possuía no total 25 reclusos: “8 por homicídio e lesão corporal; 6 por sedução; 2 por furto; 6 por rapto 1 por falsificação de documento e 1 por inviabilidade de domicilio” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 237-238). Se a partir dos números se observa que as infrações eram insignificantes e que portanto, não é importante a discussão apresentada neste texto, sugerimos ao leitor continuar com estes dados em mente e “ler” as matérias policiais. É mister abandonar a frieza do quantitativo e ir para o calor das contendas, ouvir os insultos proferidos nas ruas e nos bares, olhar os conflitos ocorridos nos subúrbios e para os “amigos do alheio” que invadem alguma casa. Folheemos os periódicos. No ano de 1936 foi publicada a primeira edição do Aljava, custando $400(quatrocentos réis) o número do dia e 1$000(mil réis) os

números atrasados. Fundado em Parnaíba pelo comerciante Benedicto dos Santos Lima, este jornal mensal de grande circulação se preocupava com as questões comerciais e sociais da cidade, trazendo aos leitores as mais variadas informações que iam desde resumos do mês até o resultado da loteria federal. Em suas matérias sobre a vida urbana, encontramos algumas notas sobre ocorrências policiais na cidade e/ou a ação policial. No ano de lançamento e mesmo depois, o jornal resumia o mês da edição lançada, fazendo a retrospectiva dos últimos acontecimentos da cidade. No resumo de maio de 1936, com o título “maio cronológico”, o jornal na segunda página reportou que no primeiro dia daquele mês, “a polícia local recolhe[u] ao corpo de guarda, em sua delegacia, vários indivíduos surpreendidos na prática da macumba” (ALJAVA. 31/05/1936, p.2). Na mesma edição, o mensário dedicou uma matéria inteira sobre o sinistro. Na quarta página podia-se ler sobre “os acontecimentos que movimentaram a cidade nos primeiros dias deste mês, com a denúncia e consequente captura de polícia de indivíduos moradores no Macacal” (ALJAVA. 31/05/1936 ,p.4). Atual Bairro de Fátima, o antigo Macacal segundo o cronista Caio Passos, tinha este nome “devido a grande quantidade de saguis, macaquinhos de caudas felpudas e cumpridas, existentes nas matas desta região, na época, de seu povoamento” (PASSOS, 1982, p. 30). Embora mencionado, o Macacal não pareceu ter sido um bairro de Parnaíba nos anos 1930. Era provavelmente uma povoação que a julgar tanto pela descrição de Passos, quanto pela do periódico, deveria possuir pouca urbanização, sendo somente depois dos anos 1950 considerado oficialmente um bairro de Parnaíba, mudando seu nome para bairro de Fátima.

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A notícia diagramada em forma de coluna que ia do topo da quarta página até o seu final, foi intitulada de “o animismo fetichista”. O título chamava a atenção do leitor, direcionando-o para a matéria. Além das informações trazidas sobre o ocorrido no Macacal, a notícia oferecia subsídios adicionais ao tema e também a opinião do jornal sobre o retratado em sua página. A ação policial deu-se, pois os indivíduos capturados eram “dados a prática de magia negra ou ‘macumba’ ou ainda, espiritismo inferior” (ALJAVA. 31/05/1936 ,p.4). A fim de situar o leitor sobre a prática religiosa em questão, o mensário contextualizou na mesma matéria – ou tentou – com uma boa dose de jogos de valores, as práticas reprimidas pela polícia. Ora afirmando que as chamadas “ciências experimentais” tinham estudado “a realidade dos fenômenos produzidos nas sessões de magia negra” (ALJAVA. 31/05/1936, p.4), ora asseverando que no nordeste ela vinha do candomblé, o Aljava tentava explicar aos leitores a origem e a história destas práticas e quem sabe, sua possível veracidade à luz do conhecimento científico da época. O que importa é a concepção10 classista do jornal, bem como suas ideias sobre as manifestações religiosas reprimidas no Macacal. Em tons excludentes, a nota afirmava: “com a absorção e progressivo desaparecimento da raça negra, declinará o florescimento dos cultos de sua gente, remanescendo porém entre as classes baixas essas práticas de baixo espiritis-

mo ou candomblé” (ALJAVA. 31/05/1936 ,p.4). Afirmar que era preconceito racial – embora fosse-, não ajuda a analisar o texto citado, afinal, não basta constatar, é necessário ainda reconstruir a sociedade da época, assim como a visão de mundo que o jornal comungava naquele momento. Segundo o Código Penal de 1890, promulgado no limiar da república brasileira, era considerado, com base no artigo 157, crime contra a saúde pública “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública” (BRASIL, 1890). Reservado a estes, um a seis meses de prisão e multa de 100$ (cem réis) a 500$000 (quinhentos mil réis). Em 1932, o Código Penal foi consolidado pelo decreto 22.213 de 14 de dezembro de 1932 de autoria do desembargador Vicente Ferreira da Costa Piragibe, vigorando até 1940. A notícia não revelou se os “detentos” estavam enquadrados na descrição do código isto é, se estavam ou não, fazendo uso de poções e/ou afins na intenção de ludibriar as pessoas. Embora haja essa lacuna, é provável que a ação policial tenha sido feita sim por esta motivação. Outras fontes indicam que tais práticas eram comuns na sociedade parnaibana dos anos 194011, apesar dos seus 41.906 habitantes se declararem católicos12.

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Vinte anos mais tarde, já na segunda metade dos anos 1950, o mesmo jornal publicou um texto de Alarico da Cunha sobre os tratamentos “populares”. Sob o título “medicina cabocla”, por meio de sua pena, o autor afirmava que “as coisas mais absurdas e mais repugnantes são aplicadas como remédios para as várias moléstias”. Conf. Alarico da Cunha. Medicina cabocla In: Aljava.04/07/1956, p.5.

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Não foi possível citar os dados do Censo de 1930, tendo em vista que este não foi realizado. 12 A população de Parnaíba nessa década era de 42.062 habitantes. O censo mostra um silenciamento sobre as religiões de matrizes africanas. As religiões computadas, a saber são: Católicos romanos, Protestantes, Ortodoxos, Israelistas, “Maometanos”, Budistas, Xintoistas, Espiritas, Positivistas, De outra religião, Sem Religião e por fim, Pessoa de condição religiosa não declarada. Cf. Recense-

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O advogado e escritor Renato Castelo Branco em seu livro, Tomei um Ita no Norte, relatou que quando criança, em Parnaíba, uma de suas vizinhas conhecida por dona Ana Calango possuía uma série de conhecimentos sobre poções “milagrosas”, filtros amorosos, balsamos, enfim, uma gama de fórmulas mágicas e que por isso “muitas pessoas acreditavam nos seus poderes extra-naturais, na força dos seus despachos, nos acontecimentos bons ou maus que deles resultavam” (CASTELO BRANCO, 1981, p. 97). No Tucuns, dona Ana Calango era uma yalorixá que recebia entidades e fazia consultas. O livro de memórias indica que a população de Parnaíba possuía em seu imaginário, imagens de que nos cultos afro-brasileiros encontravam-se soluções mágicas para muitos dos problemas da vida privada, como por exemplo, filtros do amor ou abortivos. Outra obra memorialística contribui para esta interpretação, trata-se do livro de Raimundo Souza Lima, o qual pode-se ler tia Chica curar um homem de facada com “um pinto vivo pisado no pilão e mais as rezas do ritual, que serviam também para a cura e fechar o corpo do enfermo” (LIMA, 1987, p.33 e 35). Tais práticas eram concebidas como atrasadas e condenadas pelo código Penal de 1890 e de 1932, entendidas tanto como charlatanismo, quanto atentado à saúde pública. Sobre este tipo de delito, O Livro do Centenário da Parnaíba afirmava: “podese dizer negativa a prática do curandeirismo e baixo espiritismo em nosso município” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 237). O documento descrevia que era pouco o número desta ocorrência e que apesar do baixo índice, “as medidas de saneamento, neste sentido, tomadas amento Geral do Brasil – Série Regional. Parte V- Piauí. 1940: Rio de Janeiro, 1955.

pelas autoridades policiais, têm conseguido bom êxito na repressão de tais delitos” (CORREIA; LIMA, 1945, p. 237). A historiadora Elizabeth Cancelli ao estudar o aparato policial e a repressão na era Vargas, afirmou que “o Estado inaugurado pelos revolucionários de 30 via no poder da polícia um caráter administrativo para a sociedade” (CANCELLI, 1994, p. 23). O do novo regime instaurado, era o de sanar comportamentos e técnicas, alinhando a sociedade ao ideário defendido pelo Estado, “uniformizando” os indivíduos. A censura se justificava pela “fuga” do que era moralmente aceito. Thompson entende que “o sistema social é ‘governado’ pelo sistema de valores que, inclusive seleciona as metas do sistema” (THOMPSON, 1981, p.91). Apesar disso, as pessoas não recebem ou reproduzem os valores de maneira passiva e submissa. Normas e valores vindas de cima, podem ser rejeitadas e revistas. Destarte, “conflitos de valor, e escolhas de valor, ocorrem sempre” (THOMPSON, 1981, p.194). Num contexto em que a eugenia ganhava força no Brasil e que era inclusive, defendida pelo Estado, percebe-se no Aljava e em outros jornais da época, o que acontecia quando que se fugia da norma defendida, as práticas tidas como à margem com seus atores e o conflito de valores. Segundo o Aljava, a “macumba” era feita não apenas pela população negra13, mas também pelas cama13

É interessante a discrepância étnica contida nos dados do censo de 1940 sobre Parnaíba. Os números indicam que a população era majoritariamente branca. Apesar de relevante, dado o espaço deste texto, achamos melhor não problematizar com mais afinco estes números, muito embora, achamos de extrema importância e pertinência, fazer menção a estas estáticas para futuras pesquisas. Segundo os dados encontrados, Parnaíba tinha como “população de fato”, o total de 42.062 habitantes. Destes, 30.335 se declaravam brancos,

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das pobres, moradores dos subúrbios, como por exemplo, Tucuns e lugarejos como o Macacal. A população pobre de Parnaíba que não tinha condições de pagar consultas médicas e tratamentos na Santa Casa de Misericórdia, buscava outros meios que não a medicina científica, a cura de seus males. Aqui o problema é eugenista, defendendo tanto o branqueamento da raça: “absorção e progressivo desaparecimento da raça negra”, quanto um preconceito classista e excludente contra a população mais pobre de Parnaíba que recorria aos terreiros, rezas e mezinhas. Aos olhos do jornal, tais práticas beiravam entre o curioso e o lúdico: “é interessante, todavia, os fatos presenciados nas reuniões de candomblé, onde as circunstâncias, por meio de passes e invocações orais dançam, cantam e provocam fenômenos estranhos, as vezes assaz divertidos” (ALJAVA. 31/05/1936, p.4). Adjetivos como “estranhos” e “divertidos” eram empregados no sentido de desqualificar os praticantes, levando aos leitores o retrato classista de que o que era descrito, pertencia aos ignorantes e atrasados, às “classes baixas”. Seja como for, o Aljava defendia categoricamente que aquelas práticas “merecem, justamente a repressão dos órgãos de policiamento social” (ALJAVA. 31/05/1936, p. 4). Passemos para outras notícias. O jornal O Norte, matutino fundado em 25 de janeiro de 1930, veiculou numa de suas páginas do dia cinco de fevereiro de 1940, que o morador da Ilha Grande, Sebastião Rodrigues da Silva, “levou queixa à polícia contra os indivíduos de nomes Lino Inácio e Inácio Rodrigues da Silva, acusando-os de teassim, totalizando 72,12% dos parnaibanos. Por sua vez, 11.569 habitantes se declaravam pretos (27, 50%) e 134 (0,32%) pardos. Conf. Recenseamento Geral do Brasil – Série Regional. Parte VPiauí. 1940: Rio de Janeiro, 1955.

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rem-no agredido e espancado, na noite do dia 31 do transato, naquele mesmo lugar, onde são moradores” (O NORTE. 05/02/1940, p. 4). Segundo o jornal, “a polícia puniu o acusado” (O NORTE. 05/02/1940, p. 4). Ilha Grande era sede do segundo distrito policial e englobava Fazendinha, Labino, Pedra do Sal, Bom Jesus, Vazantinha e Sorocaba14, localidades situadas no outro lado do Igaraçu, fora do perímetro urbano na época. Não foram ditas as razões pelas quais Sebastião fora agredido, o jornal não nos permitiu obter esta informação. Se observarmos com atenção, vemos que Sebastião e Inácio possuíam os mesmos sobrenomes, podemos afirmar que provavelmente eram irmãos, ou no mínimo, parentes próximos. Se forem ou não, a matéria afirmava que todos os três homens moravam no mesmo local. Sugerindo contenda entre vizinhos, algo bastante recorrente nos periódicos estudados. Vejamos outros casos. Novamente, em Ilha Grande, houve outra agitação envolvendo vizinhos. Na edição do O Norte do dia seguinte, foi veiculado que Maria Freire Vaz, moradora do local citado anteriormente, “queixou-se à polícia contra o indivíduo de Domingos de Tal, residente naquela ilha e trabalhador do Sr. Domingos de Freitas” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). Segundo Maria Freire, aquele primeiro homem teria “agredido e espancado um irmão da queixosa de nome João Freire Vaz, ferindo-o no pescoço com um facão” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). O jornal encerrou a notícia afirmando que “a polícia puniu o acusado e abriu o competente inquérito” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). 14

Divisão policial In: CORREIA, Benedito Jonas; LIMA, Benedito dos Santos (orgs.). O livro do centenário da Parnaíba: 1844- dezembro - 1944. Parnaíba: Gráfico Americana, 1945, p. 91.

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É intrigante como o uso da coerção foi primeiro empregado e somente depois da punição, é que a investigação foi feita, suscitando abuso de poder e de violência policial. Por outro lado, notemos algo que poderia passar desapercebido diante dos nossos olhos. Dos três personagens desta história, somente dois tiveram os sobrenomes divulgados. Por qual razão? Não temos respostas definidas, mas o silêncio acerca do sobrenome do primeiro envolvido, ou melhor, o emprego da palavra “de tal” após o nome de Domingos, nos faz refletirmos sobre o retrato deste sujeito e seu lugar social. Notemos que fora identificado como trabalhador de outra pessoa e aqui, fazemos duas considerações. Primeira, o ocorrido data do começo dos anos 1940, o presidente Getúlio Vargas, eleito indiretamente em 1934, três anos mais tarde fechou o Congresso e instaurou uma ditadura: o Estado Novo. Para Ângela de Castro Gomes, nos anos 1940, no Brasil, “ser trabalhador era ganhar o atributo da honestidade, que neutralizava em termos de honra o estigma da pobreza. Pobre, mas trabalhador, isto é, um cidadão digno dentro do novo Estado Nacional” (GOMES, 2005, p. 223). Enormemente apreciado, o trabalho neste momento, estava longe de ser apenas uma ação humana para se prover. Segundo Cancelli “construir uma raça brasileira forte, saudável e capaz estava plenamente de acordo com a tonalidade de um projeto político, onde a glorificação do trabalho tornara-se o único caminho viável de enobrecimento do homem” (CANCELLI, 1994, p. 24). Possuir uma ocupação, ter um trabalho, era a prova da boa conduta dos cidadãos brasileiros a partir dos anos 1930. Ideário este amplamente veiculado no rádio, jornais, livros e revistas.

Embora o acusado, Domingos não tenha tido boa conduta, o jornal fez questão de afirmar que ele era um trabalhador. O problema é que o periódico apaga parte da existência de “Domingos de Tal”. Atrelado ao seu empregador, é como se este homem não tivesse rosto, idade ou história, importando ser somente mão de obra de uma terceira pessoa. Era mais um entre tantos outros, um anônimo. O que importava era somente que ele “pertencia” a outra pessoa e que trabalhava. A escravidão jurídica e institucionalmente tinha se findado há 52 anos, entretanto, os laços de senhorio e o tratamento servil ainda permanecia dentro da sociedade de Parnaíba. No tocante ao trabalho, o periódico informava aos leitores que apesar de infrator, “Domingos de Tal” não era um “vagabundo”, possuía uma ocupação, um trabalho, principal valor brasileiro defendido nos anos 1940. A violência ou o abuso de poder da polícia não era caso isolado a este. O vespertino, Diário da Tarde de 1949, em sua primeira página afirmava que o carroceiro João Alves “com lagrimas nos olhos e o corpo marcado de pancadas, nos veios pedir que divulgássemos o que abaixo se segue” (DIÁRIO DA TARDE. 22/02/1949, p. 1). Tratava-se da denúncia deste trabalhador contra o emprego abusivo da força policial em Parnaíba. O jornal, aproveitando-se da história de João Alvez, chamava atenção da população da cidade, “pincipalmente daqueles que não acreditam que alguns policiais, abusam de sua autoridade” (DIÁRIO DA TARDE. 22/02/1949, p. 1). A prática existia e o relato do carroceiro documenta isto. A matéria de duas páginas não informa o local onde João Alvez morava, entretanto, o incidente aconteceu domingo à noite. Narrando o episódio, o periódico afirmou que o car-

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roceiro “encontrava-se no ‘Ninho de Xezeu’, uma espelunca localizada no bairro Coroa, ali foi agredido pelos indivíduos Pichica e Zébarrceo, dois conhecidos arruaceiros, tendo sacado uma faca para reprimir a agressão” (DIÁRIO DA TARDE. 22/02/1949, p. 1). Contando a história, o periódico faz em suas páginas vários julgamentos de valor. Acerca disso, Sandra Jatahy Pesavento afirmou: “o jornal estetiza o fato, ou seja, reorganiza a narrativa, encadeia o enredo, exprime um juízo de valor” (PESAVENTO, 2004, p. 29). A forma que os editores escreviam a narrativa ajuda a perceber os valores da sociedade parnaibana em sua belle époque, bem como os retratos de alguns lugares da cidade e os brios de parte dos parnaibanos de décadas atrás. A história descrita e levada ao público recebeu tratamento estilístico que mostra valores sociais e o contraste entre eles, isto é, do que era moralmente aceito ou não. O episódio do carroceiro João Alvez e a narrativa da história no jornal nos remete às cartas de perdão estudadas por Natalie Zemon Davis(2001). Deve-se obviamente guardar as especificidades das fontes e dos contextos históricos, afinal, as evidências analisadas por Davis eram recursos utilizados na França do século XVI para obterem o perdão real ante algum crime especifico. Então quais semelhanças guardariam com um jornal piauiense da primeira metade do século XX? Do ponto de vista técnico, nenhum, mas o modelo de análise de Davis é bastante proveitoso para a discussão proposta. Tentemos então e analisemos com maior afinco a matéria do Diário da Tarde. Ater-se aos detalhes, ao miúdo, como ressaltou Carlo Ginzburg, “é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis” (GINZBURG: 1990, 144), pois ali en-

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contraremos respostas para nossas perguntas. Ao ser provocado pelos conhecidos “arruaceiros”, o reclamante, trabalhador também conhecido por todos, tirou uma faca que possivelmente levava consigo na cintura em seu dia a dia, um costume masculino que perpetua ainda hoje em pequenas cidades interioranas e que era comum aos trabalhadores da Parnaíba de outrora, como por exemplo, os vareiros15. Na intenção de se defender, ele fez uso de um objeto de seu cotidiano e que apesar de ser letal, foi usado como legitima defesa. A partir daí, observa-se a construção da história e a oposição de valores. Continuemos. Este carroceiro, sujeito trabalhador e conhecido em toda cidade pela sua labuta diária para se manter vivo, foi acossado não em qualquer lugar de Parnaíba, mas na Coroa, um de seus subúrbios, antítese do que era considerado civilizado e ordenado. Os indivíduos que abordaram João Alves eram símbolos da desordem, do que foge à norma naquele contexto social: “arruaceiros”. Se olharmos atentamente, nem os nomes foram informados. Aparece na matéria os apelidos, denominações informais, o que ajudaria o leitor da época a identificar melhor os acusados por talvez serem mais conhecidos por eles. O jornal não noticiou se Pichica e Zébarrceo estavam também armados ou não, muito menos foi dito se alguém se feriu na luta. Caso não estivessem armados, o Diário da Tarde talvez no sentido de não macular a imagem de João Alves construída naquela página, escondeu ou silenciou tal informação. Seja como for, o carroceiro pela manhã “foi preso e conduzido a um dos xadrezes de Delegacia, onde foi recebi15

Cf. LIMA, Raimundo de Sousa. In: Vareiros do Rio Parnaíba & outras histórias. Parnaíba: Fundação Cultural do Piauí, 1987.

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do por dois policiais a socos”. O periódico chama atenção para o abuso de poder policial e nas entrelinhas da notícia, pode-se ler que o carroceiro foi preso injustamente, afinal, ele era um trabalhador e que embora tivesse se envolvido em uma briga nas vias públicas, só estava na “hora errada e no lugar errado”? É interessante como os “pequenos” procuravam meios para se proteger. Um carroceiro buscando a imprensa para denunciar o excesso de repressão, era uma forma de lutar contra a truculência daqueles que o oprimiram, tentativa de ser feita justiça. Não podemos ser ingênuos e afirmarmos que o Diário da Tarde ao divulgar as penas passadas pelo carroceiro tenha sido uma tentativa do jornal de amparar o trabalhador. Se aquela história foi imprensa em suas páginas, alguma intenção editorial aconteceu. Enquanto “espaço privilegiado de poder e mobilização da opinião pública, a imprensa atua sobre normas e condições que expressam uma determinada correlação de forças com as quais interage de forma ativa” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 267). Retornando para a geografia da cidade, alguns lugares pareciam ser mais perigosos que outros. Os “subúrbios” tinham mais ocorrências16 policiais que o centro. A oposição centro/suburbios era reflexo da divisão social de Parnaíba da segunda metade do século XX. Neste contexto histórico, segundo Josenias Silva, Parnaíba “era uma cidade movimentada, pulsante, e que oferecia um paisagem de contraste entre o ‘chique’ 16

Fazendo um mapeamento preliminar, observamos que dos 20 casos policiais registrados nos periódicos analisados, 3 ocorreram no centro. As outras 17 ocorrências aconteceram em vários cantos da cidade: Tucuns, 1 ocorrência; Campos e Macacal tiveram 2 cada um, Coroa, 3 ocorrências e Ilha Grande, 4 ocorrências. Nas 4 restantes, os jornais não os situam geograficamente, apenas dizem ter sido em Parnaíba.

dos palacetes e bangalôs em estilo moderno do centro, com o ‘popular’ dos casebres de palha nas áreas periféricas” (SILVA, 2012, p. 51). Coroa e Tucuns eram lugares pobres cujas casas constituídas de palha e durante o inverno, se desmanchavam com as enchentes do Igaraçu. Castelo Branco em seu livro de memórias descreveu ambos os bairros “com seus botecos sórdidos à beira dos barrancos, onde os embarcadiços iam tomar cachaça todas as noites”. (CASTELO BRANCO, 1981, p. 20). Em oposição ao centro dos jardins e das ruas calçadas, encontravase outra Parnaíba, suja e desarticulada, oposta da “modernidade”. O Norte, na coluna “na polícia e nas ruas” publicou a queixa do morador do bairro Campos, Francisco Pereira. Segundo ele, um homem teria “agredido sua mulher com palavras injuriosas” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). Chocada, a mulher “que estava gravida abortou, achando-se bastante doente” (O Norte. 06/02/1940, p. 4). Se o leitor pensava que o acusado morava no mesmo bairro que o queixoso, ledo engano, “o incriminado, Sebastião de Tal, vulgo “Babá”, [era] residente na Ilha Grande” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). O caso foi encerrado - ao menos no jornal - com Sebastião se comprometendo a “ficar responsável pelas despesas do tratamento da esposa de Francisco Pereira” (O NORTE. 06/02/1940, p. 4). Embora saibamos parte do desfecho, mais um acusado teve o nome silenciado. Não nos foi permitido pelo jornal saber quem era, e tampouco o que fazia Sebastião. Desta vez, o apelido, “nome” pelo qual deveria ser conhecido no lugar que morava, foi divulgado. As injurias e suas causas são desconhecidas, também não temos a versão do acusado. Na geografia parnaibana, a Ilha era um lugar em que imperava a desordem e o crime. Raimundo Pereira Leal, habi-

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tante do lugarejo Cipoal, em Ilha Grande, queixando-se à polícia que Bernardo Teófilo do Santos, morador do mesmo lugar, apesar de “ser casado civilmente, é tido naquela zona como afamado conquistador das mocinhas da redondeza feito várias vítimas, impunemente” (O NORTE. 09/02/1940, p. 4). A questão nesta nota era a honra familiar e o escândalo social. O reclame foi feito, pois o acusado “enamorou-se da menor R.P.L., de 6 anos de idade, filha do queixoso” (O NORTE. 09/02/1940, p. 4). Fausto ao analisar as queixas afirmou que estas sugerem “que a ‘honra’ continua a ser um bem precioso, cuja perda deve ser objeto de algum tipo de reparação” (FAUSTO, 2014, p.60). É possível usar tal lógica para interpretar esta notícia do jornal o Norte. Aqui existem duas afrontas contra a honra. A primeira delas, a sedução de menores, no qual um pai ao denunciar, pedia reparos à honra de sua filha e tendo em vista a sociedade machista do período, à sua própria; não obstante, há o rompimento da instituição matrimonial – um homem casado cometia adultério, embora socialmente “aceito”, a polêmica dava-se visto que o marido seduzia menores, logo, imoral. Em outros subúrbios, também prosseguiam os casos policiais. 23 de junho de 1940, O Norte registrou que nos Tucuns, atual São José, ocorreu uma contenda cujas causas não são esclarecidas, mas que foram classificadas como “motivos fúteis”. Segundo Bretas, “a incompreensão e a atribuição do ‘motivo fútil’ vinha de cima, do discurso dos setores moralizadores da elite” (BRETAS, 2002, p. 20). O retrato classista e normativo do diário parnaibano silenciou os motivos da contenda que teve um trágico desfecho. “Manoel Estevam da Silva e Osvaldo de tal travaram-se de discussão, no bair-

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ro Tucuns” (O NORTE. 23/06/1940, 4). Depois do bate-boca, os ânimos se exaltaram e os envolvidos partiram para o combate corporal: “no meio da contenda, Osvaldo de tal lança mão de uma pá de boi e bate, com muita força, na cabeça de Manoel Estevam”. Devido ao golpe, um dos “lutadores” foi à lona, caindo atordoado pela pancada, ao se levantar, “Estevam investe contra o seu agressor, armado de uma bem amolada ‘peixeira’, produzindo-lhe diversos golpes” (O NORTE. 23/06/1940, 4). De acordo com Sousa Lima, o Tucuns era “onde mata cachorro[miliciano] não era aceito nem à paisana. A polícia, para ele [o vareiro] era indesejável, não lhe perdoava as faltas, mesmo em suas áreas de influência, que iam do Tamancão à Coroa. Essa animosidade cresceu com o tempo, perdurando por largos anos. (LIMA,1987, p.19). A descrição ilustra os limites do poder normativo e os conflitos sociais entre milicianos e a população. De acordo com Thompson, “valores, tanto quanto as necessidades materiais, serão sempre um terreno de contradição, de luta entre valores e visões-devida alternativos” (THOMPSON, 1981, p. 194). Segundo o historiador inglês, o sistema social é “governado” por valores, que nem sempre são aceitos. A partir disso, pode-se compreender o retrato do Norte. O jornal entendia ser “natural” aquele tipo de acontecimento no Tucuns, pois, era um espaço da cidade em que o poder normativo era contestado. Os conflitos entre os agentes da “ordem”, isto é, dos milicianos e dos que moravam e frequentavam este lugar, eram contínuos - a presença daqueles primeiros, possivelmente não era bem vista no Tucuns. Silenciando os conflitos sociais entre os “agentes da ordem” e os moradores, o jornal fez um retrato classista sobre o subúrbio, mostrando-o em suas

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páginas como desorganizado, em que a desordem se fazia presente e lhe era característica. Os motivos foram silenciados no jornal, já a violência empregada por Estavam foi cristalizada pelas letras, oferecendo aos leitores atitudes que iam contra a “civilidade”, a harmonia e a boa conduta, valores bem quistos pela elite. Mas o que poderia se esperar? Afinal, o evento ocorreu n’um dos subúrbios da cidade, espaços em que eram “comuns” tais casos. Nada de novo sob o sol, talvez. Pode-se ver n’outras notas policiais, a naturalização da violência nos subúrbios e os conflitos de valores entre classes. Durante o Carnaval de 1940, o Norte publicou alguns artigos sobre a folia de momo, dentre eles, notícias sobre desfiles de corso, a eleição do Rei Momo e regras sobre as ruas e vias públicas que foliões poderiam ocupar ou não. Em sua coluna “na polícia e nas ruas”, o diário iniciava reportando: “só para que não diga que os festejos carnavalescos deste ano nesta cidade passaram sem uma nota distoante, ocorreu na noite do último dia uma agressão nas circunvizinhanças da Munguba e Quarenta” (NORTE. 09/02/1940, 4). A notícia policial não acabava por aí, segundo o diário, aquele arrabalde era “zona, aliás, celebre em acontecimentos dessa neturêse” (NORTE. 09/02/1940, 4). Conflitos e ocorrências em ambos os lugares, segundo a nota, eram corriqueiros. Os motivos da agressão não aparecem no jornal e segundo ele, não foram esclarecidos. O que se sabia era apenas que “a desordem começou a altas horas da noite, prolongando-se por mais de uma hora” (NORTE. 09/02/1940, 4). O lugar e o horário ilustram o inapropriado. De um lado, há a imagem de parte da cidade a qual a violência era quase certa, dado às pessoas que a constituíam; do outro, uma imprecisão de

horário, mas que já passava da hora de trabalhadores se recolherem para o próximo dia de labuta. Na contenda, “saíram feridos, por espancamento, os contendores Pedro Rubim de Melho, vulgo Pedro ‘Batata’ (magarafe), residente nesta cidade e José Francisco de Souza, residente no lugar Barro Duro” (NORTE. 09/02/1940, 4). Os leitores do período, certamente liam atônitos estes episódios dramáticos. A imprensa com suas letras, ao retratar estas ocorrências policiais e lhes atribuírem lugar na cartografia parnaibana, cristalizava e perpetuava no imaginário da cidade, a dicotomia ricos/obres, moderno/atrasado, centro/subúrbios.

Considerações finais Embora esta pesquisa ainda esteja em desenvolvimento, é possível apontar alguns resultados. Primeiro, os jornais, como se percebeu, não eram neutros. Ao noticiar prisões, contendas entre vizinhos e mesmo abuso do poder policial, os periódicos parnaibanos em suas páginas normatizavam condutas e valores sociais, levando em suas páginas, o ideário de uma elite dita moderna. Retratando uma cidade que vivia em transformação pela exportação da carnaúba e de outros produtos, as notas policiais permitem perceber as tensões sociais e uma Parnaíba heterogênea. Se de um lado a “modernidade” trouxe embelezamento para as vias, espaços e prédios públicos da cidade; por outro, a divisão social entre rico e pobres se tornou mais abrupta, marcando dentro da geografia da cidade, lugares mais “perigosos” que outros e devido isso, a violência e por conseguinte, as ocorrências policiais, eram mais comuns. Sobre as posturas e ideários que os periódicos suscitavam naquele período, pode-se perceber que o trabalho, dado o contexto histórico, era um valor fortemente difundido. Por outro, eram

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reprimidas atitudes e práticas que não combinavam os tempos de progresso, que fugiam aos valores da elite de Parnaíba, assim, cultos afro-brasileiros e a medicina popular, por exemplo, eram o oposto das “modernas” práticas médicas do período, devendo, portanto, aquelas primeiras serem combatidas. Crimes tanto contra o bem público e privado, isto é, furtos, assim como os homicídios, iam na mesma lógica. Eram episódios do pretérito, comuns, segundo a matéria que dá título a este artigo, “ao passado recuado, aos tempos primitivos, à idade da pedra, em que ainda vivem os nossos selvícolas” (O Norte. 01/05/1951, p. 4). Percebemos a concepção etapista e progressista sobre o tempo e a sociedade parnaibana. A cidade devido aos crimes que aconteciam em suas vias e subúrbios, estaria retornando ao passado, prejudicando assim, sua marcha rumo ao “desenvolvimento”. Percebe-se uma vez mais, o olhar preconceituoso dos jornais parnaibanos, embriagados por um suposto “progresso”.

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THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: estudo sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 528 pág. Hamanda Machado de Meneses Fontenele1 Recebido em: 03.06.2018 Aceito em: 05.07.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1312312

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A obra intitulada “Costumes em comum: estudo sobre cultura popular tradicional”, publicada no Brasil em 1998, foi escrita pelo historiador britânico Edward Palmer Thompson (1924-1993), considerado um dos maiores historiadores da concepção teórica marxista do século XX. Organizada em oito capítulos, a obra tem como objetivo analisar hábitos dos setores populares britânicos, em especial, a economia moral desses setores baseados nos costumes tradicionais da sociedade em paralelo ao avanço social tipicamente capitalista, através do diálogo com a antropologia, o direito e a economia. A obra se adequa a vertente de História Social Inglesa uma vez que Thompson toma como protagonista da investigação historiográfica os sujeitos que correspondem as camadas populares (trabalhadores, artesãos e camponeses). Para Thompson, a história deve ser narrada para além dos “grandes fatos” da história oficial e seus heróis, mas, especialmente pela observação dos fatos ocorridos com pessoas que fazem parte do coletivo negligenciado, entre eles: os operários, os camponeses, os artesãos, etc. Assim, ao tornarem-se protagonistas da narrativa, enquanto sujeitos históricos dotados de singularidades, motivações pessoais, autonomia, racionalismo e outras características que se agregam ao homem social, o historiador aponta as ações dos sujeitos motivadas primariamente por seus costumes de ordem moral, consuetudinárias e resistências que se chocam com as inovações impostas pela “cultura de cima”. Desse modo, Thompson apresenta a cultura para além do marxismo ortodoxo que se explica pela relação base/estrutura. O autor apresenta a cultura como um corpo dinâmico que está em constante construção pela relação entre os demais fatores sociais, como a própria economia, conceituando como “cultura popular” o comportamento manifestado com base nos costumes herdados por gerações, percebidos por Thompson através das ações judiciais que nas entrelinhas narram o cotidiano dos trabalhadores. Assim, o historiador propõe em sua obra compreender o passado à luz de sua própria experiência ou da “consciência social”. Sobre o aspec-

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Graduanda da curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Pesquisa Científica (PIBIC/UESPI 2016-17). Email: hamandafontenele@gmail.com

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to investigativo empregado por Thompson, o historiador Peter Burke2 nos fala que o historiador britânico não se limitou apenas a identificar o problema geral da reconstrução da experiência de um grupo de pessoas “comuns”, mas a perceber a necessidade de compreensão à luz da experiência e das reações ao experienciado. Para tanto, o historiador reconstrói fatos como a resistência ao uso comunal das terras no processo de cercamentos, a venda da esposa em leilão como estratégia de divórcio, as novas noções de tempo que partem da implantação do capitalismo e as sátiras como métodos disciplinador de quem fugia dos padrões morais no qual eram contemporâneos. . De início, Thompson analisa o espaço entre o gentry e demais trabalhadores pobres no capítulo “patrícios e plebeus”. O autor considera tecer uma crítica a partir dos termos paternalismo e patriarcalismo, inclinando-se prioritariamente a discutir sobre o não passivismo dos trabalhadores em relação as imposições do gentry, havendo nesse espaço um campo de disputas que existiam em decorrência da aplicação de novas legislações e tentativas de modernização contrárias aos costumes da plebe, implicando assim, na busca de uma disciplina social através, principalmente da alfabetização, que seria fundamental para quebra da cultura transmitida oralmente. No capítulo seguinte, intitulado “Costume, Lei e Direito comum”, Thompson discute sobre o confronto entre pobres e ricos em torno da disputa por direitos. O confronto dar-se entre relações burocráticas e relações culturais aplicando-se no contexto da política de cercamentos na Inglaterra, no qual, pelo direito consuetudinário e tradicionalismo dos costumes, a plebe não poderia cercar as áreas comunais destinadas ao pasto do gado pertencente a população pobre. Segundo Thompson, ao tirarem as terras comunais dos pobres, os cercamentos os transformaram em estranhos em sua própria terra. Assim sendo, os sujeitos são forçados a construírem um novo costume, uma nova forma de resistência em cima de sua nova configuração. Já nos capítulos, intitulados “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII” e “a economia moral revisada”, Thompson explica inicialmente os “motins de fome” na Inglaterra do século XVIII através da ampliação do conceito de “homem econômico” para a economia moral, que consiste na “conduta não econômica baseada nos costumes que estão em conflito consciente e ativo, como que numa resistência aos novos padrões de consumo (“necessidade”), às inovações técnicas ou a racionalização do trabalho que ameaça desintegrar os costumes”3. Conforme nos é explicado, os motins de fome ocorriam nos tempos de escassez de alimentos em decorrência do mal procedimento dos comerciantes, desviando-se do senso comum acerca da conduta dos comerciantes frente às atividades comerciais. As ações realizadas pelos trabalhadores pobres são vinculadas na narrativa ao modelo paternalista, instaurado por elementos como o costume, o direito consuetudinário e a lei estatudinária cuja apoderamento estava vinculada as tradições da sociedade inglesa. Todavia, Thompson ainda destaca que a resistência ao novo padrão se dar quando representa ameaça aos pobres, mas quando os favorecia, o novo 2

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989 / Peter Burke; tradução Nilo Odália. – São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991 3 THOMPSON, 1998, p.21.

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padrão poderia ser aceito em determinada proporção. Ao se referir a economia moral, Thompson ainda tece uma crítica acerca da resistência de inserção dos pobres enquanto sujeitos históricos na construção historiográfica. Ele nos diz que estes sujeitos se inserem no cenário histórico quando são submetidos a perturbação social, movimentando-se em busca da manutenção das suas práticas. No capítulo seguinte, intitulado “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial”, Thompson inicia uma discussão sobre a percepção e medição do tempo. Nesse sentido, o tempo é concebido como um regulador produtivo. Ao final do século XVIII o relógio é concebido como um sistema de disciplina e controle dos trabalhadores fabris, tendo em vista que o tempo é concebido como sinônimo de dinheiro. Segundo Thompson4, no sistema de trabalho do final do século XVIII, “o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido ao dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta”. No capítulo sete, intitulado “A venda das noivas”, Thompson discute sabiamente a prática bárbara de venda das esposas na Inglaterra que permanecia, ainda que rara, no século XVIII. o historiador destaca que frente a uma sociedade de moral cristã, fechava-se os olhos a prática de venda das esposas, fato considerado intrínseco a cultura pagã. Thompson argumenta que tanto nas pesquisas literárias quanto nas pesquisas hemerográficas de 1760 a 1880, percebe-se a venda das mulheres como meio para obtenção de dinheiro ou meio para livrar-se da esposa, porém, o historiador nos adverte que o objetivo da prática consistia na prática cultural do “divórcio popular britânico”, isto pois os aspectos entre os casos se assemelham, dentre eles, destaca-se o consentimento entre as partes e a venda ocorria por uma troca quase sempre insignificante, seja monetária ou material, dentre outros fatores. O costume só findou quando foi desaprovado dentro da própria cultura popular, em função principalmente das fontes evangélicas, racionalistas, radicais e sindicais. No capítulo oito, intitulado “Rough Music”, Thompson encerra sua obra. Neste último capítulo, o autor aponta a rough music como uma prática cultural que tem por fim a desmoralização pública dos contraventores da ética camponesa frente a cultura patriarcal e portanto, conservadora. Para que ocorresse tal difamação usava-se canções de cunho satírico pelos espaços públicos, dirigidos especialmente aos agressores de mulheres, adúlteros, fofoqueiros e etc. Essa prática rebusca as cantigas de maldizer e de escárnio típicas do trovadorismo medieval, configurando-se assim, como continuidade histórica na Inglaterra. Portanto, a Rough music “indica modos de autocontrole social e o disciplinamento de certo tipos de violência e ofensas antissociais (insultos às mulheres, abuso infantil, espancamento das esposas) que nas cidades de hoje pode estar diminuindo”.5 Sob a análise de Thompson e do termo “experiência” pensada pelo mesmo, o desenvolvimento econômico está relacionado a mudança cultural e pleno desenvolvimento da consciência social, assim sendo, não pode ser planejado pois ocorre espontaneamente. Desse modo, debruçar-se sobre “Costumes em comum” significa abrir portas para interpretações que visam primariamente os sujeitos invisibilizados, rompendo o mito da inércia populacional ao fundamentar a participação popular dos sujeitos em busca de sobrevivência e manutenção dos seus costumes. Assim, 4 5

Ibid., p. 77. Ibid., p. 396-397.

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Thompson contribui para a historiografia rompendo com a ortodoxia marxista, construindo um novo conceito de classe que movimenta-se num processo contínuo de “fazer-se” derivado do processo cultural a qual se encontram. Ademais, Thompson proporcionou à ciência histórica a vinculação com outras ciências, em especial a antropologia, o que desencadeia uma série de críticas dos historiadores mais conservadores, todavia, foi o revisionismo historiográfico vinculado a História Social Inglesa pensada por Thompson que inaugurou uma nova percepção dos fatos, deu voz aos sujeitos, e consequentemente fez de si um dos maiores historiadores do século XX.

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BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos invisíveis: Colonialismo e resistência indígena no Ceará. Fortaleza: Annablume, 2002. 100 pág. Paulo Ênio de Sousa Melo1 Recebido em: 11.06.2018 Aceito em: 26.06.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306266

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O livro em questão é fruto da eficiência de pesquisas realizadas durante o processo de formação do autor ao longo do curso de história. O assunto abordado nesse livro é uma maturação de pesquisas realizadas desde a graduação, tendo seus frutos mais relevantes com às investigações teóricos metodológicas voltadas ao mestrado. Às investigações contidas nos estudos pautados nesta produção abordam a colonização do Ceará e a resistência indígena dentro desse contexto histórico. Logo, o autor objetivando contribuir com suas pesquisas sobre a participação indígena na formação do Estado do Ceará e, apontar as variadas formas de participação dos povos nativos na região, apresenta as especificidades do tema com às investigações abordadas por meio da história social elegendo os agentes sociais supracitados e suas variadas formas de participação. A tese que resultou no livro foi apresentada em 1997 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Posteriormente, o trabalho foi editorado pela Annablume em São Paulo, sendo publicado na Bienal do livro de Fortaleza em 2002. O resultado das questões primárias está presente no livro abrangendo um recorte cronológico que vai dos idos do século XVII à primeira metade do século XVIII, período que teve mais ênfase das investidas processuais para a colonização da capitania do Ceará. Nessa pesquisa, são apontadas as principais formas de resistência indígena dentro do vasto território que compreendia a capitania. Para isso, foram analisados dados e fontes variadas, mostrando o processo de colonização ibérica ensejando uma releitura da historiografia sobre a história do Ceará, compreendendo os povos indígenas como protagonistas nos processos de relação com o colonizador. O autor trabalha seus argumentos em contramão as fontes produzidas no processo de colonização no século XVI. As fontes analisadas foram os registros, diários de navegantes, arquivos e núcleos especializados que compreende o século XVII ao XVIII. A exemplo, Arquivo Histórico Ultramarino (AUH), cartas de sesmarias ce1

Acadêmico do Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Professor da Rede Estadual de Ensino do Estado do Ceará em Hidrolândia na E.E.M Priscila Maciel de França. E-mail: pnsousa_100@hotmail.com

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didas à colonos, como também por as dadas aos povos indígenas da Serra Grande. Muitas das doações eram resultantes da boa relação com os colonos que avançavam nos sertões em 1701. Nesse sentido, uma análise que apresenta as relações estabelecidas entre colonos e povos autóctones, pejorativamente nomeados de “tapúia”, o bárbaro dos sertões, inimigos dos portugueses que dificultavam o processo de expansão, segundo o homem branco daquele tempo. O estudo proposto por Paulo Sérgio Barros, compreende em desnaturalizar os documentos oficiais referentes aos períodos de colonização, mostrando a participação dos nativos nos assuntos de formação do Ceará. Mesmo os colonos agindo segundo seus interesses, pois, eles estavam a serviços de “El Rey” com desejos diversos almejando um reconhecimento do monarca português pelos trabalhos realizados em nome da coroa portuguesa. Nessa perspectiva, estas informações postuladas na obra, inovam em despolitizar os termos cunhados pejorativamente quando se referi aos povos nativos. Por conta disso, atualmente existem diversas pesquisas que têm mostrado outras formas de se referir aos povos nativos por meio de reelaborações culturais, relações étnicas e contatos interéticos pelas interpretações interdisciplinares, uma relação entre História e Antropologia. Desta maneira, o livro “Confrontos Invisíveis: Colonialismo e resistência indígena no Ceará” enseja novos olhares referentes aos indígenas na historiografia respaldando novas críticas que tiveram efervescência a partir da década de 1990, da segunda metade do século XX compreendendo os povos indígenas como protagonistas da História. Além disso, repensar a história do Ceará sobre viés da história social. As novas pesquisas estão logrando novas interpretações das relações que os povos indígenas estabeleceram com os colonos nos processos de colonização da América e, sobretudo, reconhecendo-os como formadores do Estado moderno brasileiro. Estas novas posturas estão quebrando velhos paradigmas historiográficos que ditava um lugar muito específico aos povos indígenas, o passado. Tendo como ponto de partida estas discussões sobre a história do Ceará, as análises referentes aos povos indígenas tomando como base as pesquisas de Paulo Sérgio, é possível identificar as apropriações culturais, resistência e protagonismo em relação aos processos de encontro de povos distintos iniciado no século XVI. Antes estas interpretações não eram reconhecidas, pois, segundo discursos do passado da historiografia do século XIX, eram mediados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) criado em 1838 a serviço de D. Pedro II, que moldava uma ideia de nação brasileira, aquela que somente visualizava as elites como agentes políticos. O livro encontra-se dividido em três partes: “Conquista e ocidentalização”, “Colonialismo, resistência e conflitos coloniais” e “Confrontos invisíveis”. Na primeira parte, o autor explica o processo de encontro das culturas diferentes no “novo mundo” nos idos do século XV, perfazendo uma introdução ao assunto de resistência indígena nos primeiros momentos de relação do homem branco com os nativos. A tese principal do capítulo introdutório é compreender as formas que os colonos utilizaram para manter uma relação com os nativos, para posteriormente exploraralos em seus objetivos alguns com sucessos, outros não, devido existir resistência dos povos nativos que também tinham interesse pelas relações que eram estabelecidas.

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O autor defende uma nova interpretação sobre as relações estabelecidas e um novo discurso historiográfico com ênfase regional. Os povos indígenas representados nos diários de cronistas, foram aqueles indígenas imaginados sobre o ponto de vista europeu, eram análises simplista, com a filosofia da falta. Eles não conheciam, segundo os cronistas, nem L, R e F; “Não tinham Lei, nem Fé e muito menos Rei”. Logo, Paulo Sérgio, apresenta novas noções culturais para a análise de culturas diferenciadas desmitificando à falta e mostrando o excesso. O século XVI é marcado pela supremacia do homem branco do ponto de vista da ideologia defendida pelo homem branco daquele século. Em relação aos “novos povos”, autóctones, estavam ligados diretamente ao sucesso ou fracasso do projeto político de colonização que visava expandir as dependências do Rei de Portugal. Para tanto, Paulo Sérgio Barros tece uma apresentação dos primeiros momentos de relação dos primeiros portugueses descrito nos diários de navegantes como os de Pero Vaz de Caminha, além de pontuar, entre outras relações descritas em outras capitanias, a exemplo as de Pernambuco, Amazonas e Grão Pará, informando ao leitor que houve resistência em todo o domínio português nas destemidas relações do colonizador com os nativos. Em todo o processor de “colonização” a relação dos colonos descrita pelo o autor se configura em mão dupla, por um lado estavam os “tupis”, o nativo que realizou relações amigáveis com o colono e, por outro, existem os temidos “tapuias” que habitavam na mata adentro dos sertões. O autor explica os erros relativos a estas denominações genéricas das relações e nominações que os portugueses realizavam durante o século XVII. Pautada na utilização daqueles topinômios simplistas que não considerava a etnia ao qual o povo pertencia, sendo nomeados segundo os troncos linguísticos, tupi que compreendia a maior parte dos indígenas do litoral, enquanto aqueles que habitaram nos sertões não falavam “tupi” e eram nomeados pelos “tupis” de “tapuia” por não pronunciarem o nome do troco linguístico com a mesma intensidade. Portanto, os portugueses logo perceberam as distinções entre os grupos e que era difícil de estabelecer relações amigáveis. Vale lembra que os “tupis” agiam segundos seus desejos e preceitos buscando a todo momento benefícios, mesmos que quase impossíveis no mundo hierárquico português. Contudo, o homem branco não conhecia os caminhos que existiam nos sertões, e como eles estavam buscando também riquezas como ouro e prata, muitas vezes cediam benefícios aos nativos para levá-los aos locais de “minas”. O segundo capítulo explica as formas encontradas pelos portugueses para iniciar a “colonização” do “Siará Grande”. O Ceará até século XVI era desconhecido, somente após a implantação de uma nova forma econômica e geradora de lucros, o incentivo à pecuária no sertão, que se dará somente na segunda metade do século XVII, quando é dado início à “colonização” efetiva. O autor busca compreender os motivos que levaram a se investir na capitania do Ceará para que as relações com os povos denominados de tapuias se estreitassem. Por fim, o terceiro capítulo “Confrontos invisíveis”, destaca as formas de resistências utilizadas pelos povos nativos em várias regiões dos Sertões do Ceará, desde a Serra Grande à capital, conhecida hoje como Fortaleza. As pontuações do autor

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vigoram desde as formas quase invisíveis da política desenvolvida pelos nativos no processo de formação do Ceará até as mais concisas. Paulo Sérgio Barros, traz à luz a participação dos povos indígenas na formação do Estado do Ceará no início e durante à efetivação da colonização no século XVII. As resistências indígenas apontadas pelo autor se desenvolveram de forma incorporada segundo os desejos dos povos nativos. Enquanto os missionários batizavam os povos de etnias diversas para inclusão ao catolicismo, os nativos resistiam e praticavam as suas expressões culturais entre a comunidade, como manter relação com mais de uma mulher da tribo adoração dos seus encantados e reconhecimento de determinados lugares como sagrados, a exemplo, os rios e florestas e espíritos. Portanto, às resistências dos povos nativos na história do estado do Ceará não se resumiam somente à prática cotidiana de negação da nova prática religiosa. Mas, sobretudo, se apresentavam de maneiras variadas de reinvindicações que iam desde à movimentos de reivindicações das sesmarias para a prática e a manutenção de suas culturas à negação das relações amigáveis.

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Luan Silva Carvalho

NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina (1937-1945). Teresina: EDUFPI, 2015. 358 pág. Luan Silva Carvalho1 Recebido em: 14.06.2018 Aceito em: 26.06.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306268

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O livro resenhado resulta da tese de doutoramento do professor Francisco Alcides do Nascimento realizada na Universidade Federal de Pernambuco, concluída em 1999. O autor é atualmente professor titular na Universidade Federal do Piauí e membro do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí - FAPEPI. É ainda, líder do grupo Cidade, Tempo e Espaço do CNPq e suas publicações abordam temas sobre história, memória, cidade, Teresina, rádio e escrita de si. O livro, dividido em três capítulos, tem por baliza temporal os anos que decorrem de 1937 a 1945 e buscou problematizar o processo de modernização de Teresina, centrando seu olhar no caráter autoritário dessa modernização. Para suas análises, o autor utilizou como fontes relatórios de Interventores, jornais, mapas, fotos, relatos provenientes da metodologia da História Oral, boletins regimentais da polícia, dentre outros. Os objetos que o autor toma para o tema são os incêndios e a modernização de Teresina no período de 1937 a 1945. Dessa forma, Nascimento elabora perguntas orientadoras de sua tese: esses objetos estiveram correlacionados? Quais as características do discurso de modernização produzido no período? Por que não houve uma reverberação na mídia quanto aos incêndios? E os intelectuais, por que não difundiram suas ideias a respeito do tema? De que forma os governantes construíram a memória sobre o Estado Novo? Primeiramente, para orientar o leitor à maneira de ver a urbe, pontua que o modelo europeu ocidental serviu de paradigma para os brasileiros, por exemplo, cidades como Paris, Londres e Viena são referências em seu aspecto urbano. O autor 1

Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Professor Alexandre Alves de Oliveira. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas em Extensão Universitária (PIBEU 2017-2018) sob orientação da Profa. Ma. Lêda Rodrigues Vieira. Bolsista pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Estadual do Piauí (PIBIC 20162017) realizando pesquisa no projeto “Cidade, Memória e Trabalho: experiências, conflitos e relações de poder dos trabalhadores no espaço urbano e do trabalho no Piauí”, sob orientação da Profa. Ma. Lêda Rodrigues Vieira. Membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Cidade, Memória e Patrimônio (NUPECIMP) sob liderança da Profa. Ma. Lêda Rodrigues Vieira. Email: carvalholuan01@hotmail.com

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ressalta que da forma como ocorreu a modernização no Brasil os menos abastados foram empurrados para as periferias das cidades. É o caso do Rio de Janeiro e de São Paulo, e isso não seria diferente em Teresina. Desta feita, destacamos que o período a ser abordado é o Estado Novo varguista, marcado, dentre outros aspectos, pelo controle dos meios de comunicação. Nascimento mostra que conforme as fontes analisadas, nessa época ocorreram muitos incêndios que atingiram residências da população pobre que morava em casas de palha na cidade de Teresina, na baliza a que se reporta em sua pesquisa, e que haviam poucas notícias a respeito nos jornais da cidade, demonstrando a atuação da censura na imprensa. Nesse âmbito, é necessário pontuar que um dos aspectos do autoritarismo estadonovista é a aproximação entre o Estado e a elite intelectual. Isso revela uma forma de governo que busca no imagético da população, seja por periódicos, pelo rádio ou mesmo nos discursos patrióticos, representar a boa figura do governo de Getúlio Vargas. Aliado a isso, fora criado, em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que servia como porta-voz autorizado a expor a imagem do governo, sendo o principal órgão de censura da liberdade de expressão da época. O DIP, por sua vez, tinha o papel de examinador crítico da mídia social, intervindo quando necessário para manter a boa imagem do presidente Vargas e de sua ditadura. Incêndios, crimes e outras formas de subversão à ordem pública não eram bem quistos para serem divulgados à população. A forma de coerção estatal deu-se ostensivamente pela polícia. Assim, em 1936, o governo central diminuiu o poder dos governadores sobre a polícia, colocando-a como reserva do Exército. Por conseguinte aumentou, também, o equipamento bélico das mesmas e a conjuntura de sua instrumentalidade. Em seu próximo capítulo, o autor tratou do processo de modernização da cidade de Teresina: a vinda de Getúlio Vargas à capital e a ressignificação do imagético populacional em relação à diminuição do tempo de viagem com o avião; o projeto de uma Teresina com ares de modernidade; o poder simbólico2 que as construções na urbe emitiam; e a arquitetura da urbe. Com isso, Alcides Nascimento retratou a cidade em suas sensibilidades e seus entendimentos. O processo de surgimento de Teresina, segunda capital do Piauí, no século XIX, deu-se entre dois rios, Parnaíba e Poti, com ruas em formato xadrez, retas e alinhadas, e pouca população. Nesta época, em Teresina, não havia ainda uma divisão bem definida entre campo e cidade, sendo grande parte de seus habitantes pessoas de classes menos abastadas. A presença de animais nas ruas era comum, e a maioria da população vivia em casas “miseráveis”. A cidade fora designada para ser a capital do estado, mas apesar de ter sido planejada, não apresentava aspectos urbanos. Alcides do Nascimento trata do processo de entrada da modernidade na capital com o advento do Estado novo. Para isso, aponta que a chegada da modernidade significou a ruptura com o passado e discute as mudanças ocorridas na cidade. 2

Conceito abordado por Pierre Bourdieu.

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Debatendo sobre a urbanização de Teresina no período do Estado Novo, é posto em cena o poder simbólico que as praças e avenidas trouxeram à capital. São discutidas as ruas calçadas, as belas praças que serviam como logradouros para, principalmente, a população que morava no eixo central da cidade. No entanto, observase que aperfeiçoamentos que a cidade recebia serviam para reforçar o ideário de ordenamento estadonovista. Posteriormente, é problematizado a questão dos prédios, que trariam o tom de “beleza” para a cidade. O Hospital Getúlio Vargas, por exemplo, era considerado um hospital “monumental”, uma “obra de apreciável proporção” em relação aos que existiam na região. Repleta de simbolismos, as formas das arquiteturas dos lugares remetiam, também, ao Presidente: Avenida Getúlio Vargas e Hospital Getúlio Vargas são, todavia, lugares de memória3. Por conseguinte, Nascimento explanou o processo de melhoria nas formas de locomoção e de que maneira são inseridas na cidade; as formas as quais os teresinenses tinham não só de prover contato viajando para outras regiões, mas também de manter o comércio com pontos estratégicos do estado, pelo menos era o que tentava-se. A ferrovia, por exemplo, só conseguiu ter o plano inicial, o de ligar Amarração (atual Luís Correia) com Teresina, concluído em 1969. São debatidos, também, os problemas referentes aos ônibus, com suas inviabilidades por conta dos custos; os bondes; e o “alvoroço” com a chegada do avião, um grande marco da modernidade na cidade, assim como a ferrovia e o Hospital Getúlio Vargas.

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Prosseguindo em seu terceiro capítulo, logo no primeiro parágrafo, Nascimento narrou as permanências da história quando afirma que em Teresina, nos anos de 1990, ainda eram significativas a quantidade de casas de palha na cidade. O autor mostra o processo de expansão das casas de palha na capital do estado, e a forma como as autoridades do município se preocuparam, em relação aos incêndios, mais com as casas localizadas na zona urbana às situadas na periferia. Para o autor, ocorreu em Teresina um processo de afastamento das camadas populares para a periferia, tendo por base, a análise do Código de Posturas (1939) que proibia as construções de residências com um só pavimento na zona urbana, contrastando com a permissão dessa forma de moradia para a zona rural. Esta proibição, segundo Alcides Nascimento, está relacionada com o discurso de modernização da cidade, visando afastar as casas consideradas, por alguns, como “feias” e que manchavam a cidade de Teresina. Os pobres que eram acometidos pelos incêndios, geralmente, perdiam todos os seus pertences. Os mesmos, ou iam afastando-se cada vez mais para as zonas periféricas ou acabavam por deixar a capital. O medo era constante diante de tantos boatos espalhados durante o período e, para melhor controle da situação, a polícia proibiu qualquer tipo de boato sobre os incêndios. Os discursos proferidos sobre esses incêndios no decorrer da década de 1930, afirmavam que se dava pelos descuidos dos habitantes, mas a partir dos anos de 1940, já é mencionado a ação criminosa. A ação policial contra os presos acusados de serem incendiários é relatada que deu-se por meio de torturas, com espancamentos, intrigantes mortes e omissões quanto a desvelar a sua causalidade. 3

Segundo Pierre Nora.

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Na medida em que os incêndios aumentavam e o governo não conseguia dar uma resposta satisfatória à população, decorrente da falta de provas, o problema ganhou o nível de questão de segurança nacional. Na época das eleições, na redemocratização, cada partido político acusava o outro de ser o autor dos incêndios. Isto torna-se um jogo político entre os partidos. Para acabar com os incêndios e tranquilizar a população e as autoridades municipais e estaduais, foram apontadas a substituição de tetos de palha para cobertura de telhas. Nascimento relata que o governo federal disponibilizou a liberação de verbas públicas para a construção de moradias populares para várias cidades do Piauí, entretanto, este auxílio não condiz com a memória coletiva de quem presenciou os incêndios. Por fim, essa proposta constituiu-se com muitas notícias na mídia, mas pouco avanço no setor da construção. Alcides Nascimento, como já fora dito, baseando-se nas análises de suas fontes, afirma que os incêndios tiveram papel relevante no processo de limpeza das áreas próximas do centro, afastando a comunidade menos abastada para a periferia, ou mesmo para fora do estado. O autor consegue explanar sua problematização com clareza e com exemplar apreciação das fontes. Desse modo, analisando vários segmentos sociais, aponta como os incêndios incutiram na memória coletiva as aflições e tensões de quem viveu determinado período.

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Messias Araujo Cardozo

REZENDE, Antonio Paulo. História do movimento operário no Brasil. Editora Ática: São Paulo, 1994. 88 pág. Messias Araujo Cardozo1. Recebido em: 15.06.2018 Aceito em: 25.06.2018 DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306270

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O texto em questão que se pretende uma visão não homogeneizante do movimento operário brasileiro é composto de sete capítulos cobrindo um recorte que vai de 1892 a 1968. A ideia básica é enfatizar a diversidade e a dinâmica do movimento social dos trabalhadores brasileiros. No brevíssimo capítulo 1. “Escrever a História, mas que história?” O autor reflete sobre os reducionismos historiográficos em relação à temática e enfatiza a multiplicidade de formas de agrupamento social dos trabalhadores (ora contrapoder frente a ordem burguesa ora cooptados pela mesma) sendo que: “O nosso objetivo neste trabalho é analisar, de maneira sintética, a prática política da classe operária entre 1892 e 1968” (REZENDE, 1994, p. 8). No capítulo 2. “Resistir é preciso (1892-1928)” o autor enfatiza o período da resistência operária para ele mais forte, fixando pontos importantes para o estudo sobre o movimento social dos trabalhadores frisando as “raízes remotas” do mesmo nas sociedades mutualistas, a criação do Partido Operário (1890), o I Congresso Operário Brasileiro (1892) contrastando assim certa visão historiográfica que vê na Primeira República apenas coronéis e acordos oligárquicos, todavia, “esse proletariado, em sua fase inicial de constituição, encontrava dificuldades imensas para se organizar” (Idem, p. 10). A imprensa operária presente e a ação do Estado reprimindo (via Lei Adoldo Gordo) também são citadas. A presença do anarquismo era forte, segundo o autor a tese anarcossindicalista foi vitoriosa no Congresso Operário Brasileiro realizado em 1906 no Centro Galego do Rio de Janeiro, “embora detivesse a hegemonia dentro do movimento, o anarcossindicalismo não estava sozinho, além dos socialistas, com sua estratégia reformista, o sindicalismo cristão se fez presente [...]” (Idem, p. 13). O autor trata das grandes greves gerais como a de 1917 em São Paulo iniciada no Cotonifício Crespi, sendo que “outras greves, merecedoras de destaque e que demonstram a presença efetiva do movimento operário, ocorreram nas principais cidades brasileiras” (Idem, p. 19). Em Março de 1922 é fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e já em Julho fora posto na ilegalidade, sobre isso o autor cita uma informação relevante: “Só em 1924 o PCB seria aceito pela Internacional” (Idem, p. 25). O que 1

Graduado em História pela UESPI (2012). Mestrando em História Social pela UFMA (2018-20). Email: messias.histsocial@gmail.com

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demonstra a articulação crescente do fator partidário nas lutas sociais dos trabalhadores. No capítulo 3. “A tutela estatal (1928-45)”, Antonio Paulo Rezende inicia falando do Bloco Operário lançado em 1926 propondo a participação nas eleições municipais e federais marcadas para 1927. Citando Bóris Koval2 o autor aponta a existência de três correntes predominantes no período dentro do movimento operário nacional: 1. A sindicalista de esquerda, 2. A reformista de direita e a 3. Comunista de esquerda (Idem, p. 27, 28). Em 1928 o Bloco Operário e Camponês é lançado, embora para o autor, a aliança efetiva entre os grupos não tivesse ocorrido (talvez o agrarismo/industrialismo tivesse os dividido mais que os unido), para o autor: “Já se nota em 1927 que o PCB detém a liderança expressiva sobre alguns setores do operariado” (Idem, p. 29). O autor não poderia deixar de lado o movimento de 1930 que ele denomina de “a revolução que não houve” (Idem, p. 30). Para o professor Antonio Rezende o significado de 1930 para o PCB era a identificação do mesmo com o fascismo. A Aliança Liberal era engodo fascista que alçou Vargas ao poder. A criação do “Ministério da Revolução” (Ministério do Trabalho) em Novembro de 1930 representou a perda da autonomia do movimento operário, a partir daí “está claramente definido o atrelamento do sindicato ao Estado, retirando-lhe a autonomia política, tão defendida pelo anarcossindicalismo” (Idem, p. 34). A cooptação e a resistência a mesma se potencializam recíproca e dialeticamente. Os trotskistas praticamente se esfacelaram e a diminuição grande dos anarquistas e sua influência também são notáveis. Apesar da Aliança Nacional Libertadora (1935) e o PCB tendo Luís Carlos Prestes como seu presidente de honra e as suas e suas diretrizes de luta contra o imperialismo, o liberalismo e o latifúndio (mesmo na ilegalidade), o golpe de 1937 representa a intensificação de uma maior intervenção do Estado sobre o movimento dos trabalhadores, “na verdade, fortalecia-se toda uma ideologia que criava a ideia de um Estado acima das classes, onde o Ministério do Trabalho encarregava-se de tornar o operário dócil e útil” (Idem, p. 41). No capítulo 4. “A classe operária e populismo (1945-64)”, o autor problematiza a “redemocratização” em sua relação com os trabalhadores, afirmando que o movimento é cada vez mais limitado, sobretudo em termos de estrutura sindical, “[...] fala-se e, ‘redemocratização’, mas sem um questionamento sobre o conteúdo dessa democracia, o que configura um quadro mais imaginário do que real” (Idem, p. 46). Apesar do crescimento do PCB, em 1947 novamente ele é posto na ilegalidade. A força do discurso faz Vargas (re)aparecer na cena política tentando legitimar-se diante das massas urbanas, sendo esse discurso marcadamente paternalista (Idem, p. 51). Vargas chega ao poder, porém a forte oposição e o isolamento acabam levando-o ao suicídio. Seu sucessor Café Filho é empossado, e: “Dentro desse contexto, a classe trabalhadora foi seriamente prejudicada pelas medidas adotadas pelo Governo” (Idem, p. 55). Com Kubitschek na presidência nada de novo no front operário, sua política econômica mais uma vez excluía a classe operária dos benefícios dos cinquenta anos em cinco. Com Jânio Quadros e sua posterior renúncia, a crise político2

História do proletariado brasileiro (1857-1967), 1982.

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institucional se instala e a retórica anticomunista ganha cada vez mais espaço. O avanço da organização sindical em São Paulo nessa época concentrando a maior parte do operariado é a mais forte. O contexto é do pré-Golpe (1964). No capítulo 5. “A luta, apesar de tudo (1964-68)”, a repressão aberta como política de “segurança nacional” via golpe de Estado se instala. A despolitização de amplos setores sociais e a proibição expressa de qualquer greve eram as diretrizes básicas, “a classe operária, sob controle garantiria o sucesso do modelo econômico a ser implantado pela tecnocracia” (Idem, p. 67). O cerco fecha-se, todavia as esquerdas destroçadas ainda sonhavam com a revolução. Frise-se que durante esse período: “A prática política da classe operária gera controvérsias não só ao nível da análise dos cientistas políticos e historiadores” (Idem, p. 69). O autor aponta o crescimento das organizações sindicais mesmo dentro desse contexto adverso/repressivo. Entretanto qualquer mobilização era inaceitável por parte do Estado autoritário.

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Nesse capítulo o autor põe em evidência duas grandes greves ocorridas em 1968: As de Osasco Contagem, ambas no estado de São Paulo, para o professor Antonio Rezende: “De uma maneira geral percebe-se que as greves de Osasco e Contagem colocaram novas questões para o movimento operário, tornando-se bastante evidentes os limites que o cercam” (Idem, p. 79). Em síntese 1968 significou a redefinição dos objetivos políticos do movimento operário, todavia o silêncio se impôs violentamente, onde para o autor somente a partir de 1973 é que a rearticulação do movimento sindical se tornou historicamente mais evidente. O capítulo 6. “Vocabulário crítico” traz 12 verbetes bem interessantes e úteis para quem estuda mundos do trabalho. O capítulo 7. “Bibliografia comentada” traz 16 referências que são substanciais com pequenos adendos explicativos de valor enorme para pesquisadores sobre movimentos operários no Brasil (nomes como Michael Hall, Bóris Fausto e Daniel Aarão Reis têm estudos comentados). No geral a obra transcende em muito a ideia de um simples “manual” ou um texto estilo “síntese”. A abordagem que o autor faz dos movimentos sociais dos trabalhadores no Brasil pluralizam as visões históricas sobre o movimento operário nacional. As críticas que podem ser aventadas são mais de abordagem que propriamente de conteúdo como o seu tratamento mais do movimento operário no âmbito da região sudeste (que não pode ser identificado como movimento do país como um todo isso seria homogeneizar a partir de uma particularidade) e o seu recorte, porém, isso são pormenores. A obra é valiosa para o estudo dos mundos do trabalho no Brasil e do movimento operário no sentido plural, dinâmico e heterogêneo como um tudo, uma leitura se não obrigatória ao menos importante quando não um ótimo ponto de partida.

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