SONHOS E DESILUSÃO

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DIAMANTINO D. BALTAZAR

SONHOS E DESILUSÃO

EDIÇÃO PÓSTUMA E HOMENAGEM NOVEMBRO DE 2014


DIAMANTINO D. BALTAZAR

Autor:

BALTAZAR, DIAMANTINO DUARTE Título

SONHOS E DESILUSÃO Depósito Legal

384232/14 Editor

Ana Paula Moreira Pedroso Baltazar Local de publicação

Lisboa Edição

Primeira (póstuma) - Novembro de 2014, em 500 exemplares Impressão

ONDAGRAFE Foto da capa licenciada por SHUTTERSTOCK/mRGB (Nov 2014)

Nota: Este livro foi escrito de acordo com a antiga ortografia


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PREFÁCIO

(DAS REALIDADES À FICÇÃO)

Todos nós precisamos, em qualquer momento da nossa vida, de estabelecer uma relação com um tipo de pessoas que é mais ou menos decisivo, ou no nosso presente ou no nosso futuro. Na infância, ocorresse ela nos tempos passados da guerra ou ocorra actualmente na galáxia das chamadas “novas tecnologias”, um professor, mais do que o que nos ensina, fica na nossa memória pelo que nos estimula, e pelo que nos ajuda a ser persistentes face aos desafios da vida. Esses “encontros" decisivos acontecem também com os médicos. Se para além de serem dotados de uma autoxigência profissional, primarem pelo afecto pelos seus “doentes”, como se de família se tratasse, então marcam-nos até ao último minuto da vida. Para se ser médico as razões podem ser múltiplas: segue-se o mesmo percurso dos pais (por vontade própria ou daqueles), é-se envolvido pela necessidade de encontrar as “curas” (como actividade de grande complexidade) ou reflecte-se na compensação financeira. Mas seja qual for a razão inicial, há sempre uma atitude 5


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de solidariedade social que marca sempre qualquer tipo de profissional da medicina. O autor deste livro - em edição póstuma - é um desses casos que merecem a nossa melhor admiração pelo seu desprendimento pessoal e angústia permanente com o estado de saúde de todos para quem trabalhava. Fazer com que a necessidade de terceiros marcasse sempre os seus horários fez também que esse “sacrifício” pessoal se projectasse naturalmente na família que, só com uma excepcional união - e compreensão do que estava em causa - permitiu que a sociedade portuguesa (e durante alguns anos, a americana) reconhecesse o valor de tal contributo. Diamantino Baltazar, médico e sociólogo, teve também no seu pai, um excelente guia espiritual e amigo que, durante anos, o ajudou a estabelecer os limites reais da ética, em especial quando como empresário veio a descobrir, no turismo e no desenvolvimento habitacional do seu país, um novo interesse de vida.Mas é na avaliação dessa qualidade (o sentido ético das pessoas, ou a falta dele) que encontrou novos desafios, que por vezes são de esperança, muitas vezes de forte desilusão. A suposta “acção" deste livro, que romanceia, através de um típico modelo jornalístico de investigação (tendo em atenção, por vezes, o excesso de detalhes), retrata uma série de confusos e manipuladores interesses de personagens sombrias, e por isso, não seria impossível que se passasse em Itália continental, e na Sicília e (como acontece) envolvesse banqueiros, políticos e outros intermediários. Na vida real, em Itália tem sido óbvia a interferência das várias “FAMÍLIAS" da Cosa Nostra/Mafia em vários negócios da economia local que acabam por desferir rudes golpes na própria democracia. Para o autor, Diamantino Baltazar, independente6


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mente da aproximação a factos que tenham estimulado esta ficção, é fácil compreender que o personagem principal, é um homem que se sente invadido por todos os lados por actos incontroláveis de grupos ou de indivíduos, que colidem com a sua herdada boa fé nos outros. Em qualquer lado - mesmo fora de Itália - é comum que no linguajar do cidadão comum, latino, “os esquemas” sejam - oralmente - obra de “mafiosos”, gente de má fé, desonesta, que não age com regras. Muitas das negociatas com que o personagem principal (qual narrador) se confronta, geram-lhe essas tensões interiores. Para além de ter escrito diversos documentos científicos na área da medicina e alguns ensaios sociológicos, Diamantino Baltazar teve também uma dedicada actividade de cidadania política. Um anterior livro, “MÉDICOS - do Campo de Santana à América” é também uma maravilhosa peregrinação literária que pode ajudar o leitor a perceber o seu fascínio pelos “pequenos” seres humanos que, por vezes, face às adversidades, são grandes heróis (desconhecidos).Pode também o leitor, eventualmente, não se emocionar com os factos descritos, mas descobrirá de certo que, por vezes, o personagem principal procura viver das coisas simples, regressar às origens, recomeçar um caminho . Como dizia o título de um filme francês recente “De tanto bater o meu coração parou”, referindo-se a alguém que tentava sobreviver no meio de tempestades humanas. Tanto como autor, médico, amante da natureza, pai, filho, empresário, o coração de Diamantino Baltazar manteve um impressionante ritmo de vida, pelo que é inimaginável que a memória dele alguma vez se possa apagar. Paula Pedroso

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CAPÍTULO I

A IDA PARA PALERMO

I

Quando o doutor Marcelo terminou o curso de medicina em 1957, já casado e com uma filha, sentiu-se seduzido a aceitar um lugar de adjunto do titular da Saúde do Governo Regional da Sicília. Já pouco se lembrava da terra onde nascera. Não era muito da sua simpatia fazer carreira em lugares do Estado, mas para ele tornara-se imperativo ganhar a vida com total independência do pai, não obstante este ter sido sempre um pai generoso e com fortuna. O salário no primeiro ano dava para alugar uma casa nos arredores da cidade e para as despesas correntes do lar. Além do trabalho de gabinete, o contrato de dois anos renováveis dava-lhe a oportunidade de ganhar outro tanto igual ao salário se aceitasse dar um curso de formação dos enfermeiros 9


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nos principais municípios da província de Palermo. Para as deslocações tinha carro do Estado com “chauffeur”. As deslocações entre a capital e os municípios onde necessitaria deslocar-se não eram muito longas. Também, como as aulas com que se compremeteu dar aos funcionários não iam além de duas horas em cada um dos sábados programados, tinha nesse caso, no regresso, algumas horas livres para estar com a família. Após a primeira semana de serviço na Secretaria Regional - tempo que lhe foi suficiente para conhecer as pessoas que trabalhavam no serviço e tomar contacto com a maioria dos problemas do seu gabinete - foi convocado pelo chefe do governo local (antigo amigo do seu pai) para uma reunião com vista a apresentá-lo aos outros membros do governo da ilha. – Meu caro doutor Marcelo, tenho muito prazer em saber que é filho de um velho amigo meu. Há quanto tempo não vinha o doutor à sua terra? – Senhor governador, agradeço em primeiro lugar as suas simpáticas palavras e a oportunidade de conhecer os distintos membros do seu governo. É uma grande satisfação saber que Vossa Excelência é amigo de meu pai. Aliás, ele pediu-me que, antes de eu partir para cá, lhe dissesse que mandava um abraço e que espera, sempre que vá a Roma que o avise porque gostaria de o convidar para um almoço com todos os velhos amigos. – No princípio do mês que vem tenho marcada uma audiência com o Secretário de Estado do Turismo e com o ministro da Justiça. Vou tentar convencê-los a olhar para esta ilha como uma parte de Itália. Temos necessidade de muita coisa, mas o que mais me preocupa é a falta de juízes e de uma cadeia com o dobro da capacidade da que temos. Você sabe que esta ilha é uma terra onde ocorrem todos os anos muitos crimes de sangue. Normalmente têm origem em problemas nascidos há quase um século entre fa10


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mílias da “Mob”. Os juízes não querem vir para cá porque têm medo. Há falta de polícias e torna-se urgente dar tranquilidade ao povo que aqui vive, pois muita gente tem a convicção de que na Sicília têm mais poder as Famílias do que o Estado. Para esta gente, a ilha é também um paraíso fiscal. Depois de tratar destes assuntos oficiais irei visitar o seu pai e certamente teremos o nosso desejado almoço para falarmos de coisas dos velhos tempos. – Senhor governador, transmitir-lhe-ei essa intenção. Entretanto, talvez possamos juntar-nos aos meus novos colegas que estão na sala ao lado, à espera de entrar para a reunião. – Certamente - e abrindo a porta: Meus senhores, façam o favor de entrar. Antes de nos sentarmos, quero apresentar-lhes o doutor Marcelo que veio de Roma para nos dar uma ajuda na preparação dos quadros superiores do sector administrativo. Como sabem, a nossa tentativa de convencer os médicos locais a tomarem esse encargo, falhou. Uns porque disseram já estarem velhos demais para esse trabalho e outros porque não concordavam com os honorários que propusemos. Convoquei esta reunião para agendarmos os assuntos que eu vou apresentar a alguns membros do Governo na minha ida a Roma, no princípio do mês que vem. – Ainda espero por uma resposta do Ministro das Obras Públicas, a quem solicitei audiência na data em que me vou deslocar a Roma. Assim, agradeço que me entreguem, tão cedo quanto possível, relatórios sobre os assuntos que vão hoje ser aqui tratados. Comecemos pelo senhor Secretário da Justiça. – Senhor Governador, é de todos sabido do estado degradado dos nossos tribunais. As salas de audiência são já demasiado exíguas para o tipo de julgamentos que hoje temos. Na história desta ilha nunca se registaram tantos crimes, os quais pensamos terem origem nos grupos mafiosos ou, mais recentemente, na leva 11


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de imigrantes clandestinos fugidos à justiça de países do norte de África e até do nosso próprio país. A Justiça arrasta-se com processos que duram anos devido à falta de juízes e de procuradores de Justiça. Alguns são demasiado novos e devido às ameaças de morte que lhe são feitas, a eles e às suas famílias, depressa pedem transferência para o continente. O destacamento de carabinieri que reside nesta ilha não é também suficiente para fornecer protecção aos magistrados. Nos próximos dias apresentar-lhe-ei um relatório detalhado sobre estas questões e prováveis custos da reforma do meu sector. – Passemos ao relatório do Secretário de Turismo, no qual eu ponho muitas esperanças para o desenvolvimento desta parte do território nacional. – Como V. Excelência sabe, eu sou um entusiasta do desenvolvimento turístico desta província de Itália e, com franqueza, entristece-me ver que a iniciativa privada não seja estimulada pelo Estado a investir em hotéis, golfe e outras estruturas complementares que chamem turistas à nossa ilha, como por exemplo casinos de jogo, agora que já temos um aeroporto com categoria internacional. – Como você sabe, meu caro senhor Rico, já arranjámos verba para aquilo que eu acho que devemos fazer em primeiro lugar, que é a publicidade das condições turísticas que os visitantes encontram na Sicília. Nós sabemos que os sucessivos governos de Itália têm sempre olhado muito mais para a Côte d´Azur italiana do que para o sul do país, do qual fazemos parte. Mas nós vamos lutar e estou certo que vamos vencer. – Vossa Excelência terá o meu plano de trabalhos, quando voltar da capital. Em primeiro lugar acho que devemos dirigir a publicidade aos investidores, quer nacionais quer estrangeiros. – Como tenho um compromisso para daqui a meia hora, 12


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vamos ficar hoje por aqui e continuaremos amanhã para ouvir os restantes senhores Secretários. II

Após vários meses de trabalho de gabinete e de missões nas vilas do concelho na sua função de instrutor administrativo, o doutor Marcelo pôde fazer um juízo da parte da ilha onde tinha que exercer. Fora dos meios urbanos, a pobreza era extrema. Quando voltava ao fim da tarde a Palermo, o carro em que circulava nas suas missões servia constantemente de ambulância para um, dois e, às vezes, três doentes que necessitavam de internamento urgente num hospital da cidade. No interior da ilha, apesar da desertificação humana que ocorrera com a guerra, ainda persistiam uns aglomerados de casebres onde viviam pessoas idosas que tiravam penosamente da terra a sua subsistência. Não tinha a mínima dúvida que a ilha necessitava com urgência de criar condições para que a pobre gente do interior pudesse evitar a perda de sua dignidade como cidadãos do país onde haviam nascido. Esta miséria do interior da ilha contrastava com a riqueza do norte do país e da capital. Aos poucos, Marcelo, um rapaz de vinte e seis anos ainda motivado para a vida pelos ideais do ambiente académico, uma vez em contacto com o mundo real, foi tomando consciência de que a corrupção tão atacada pelos jornais não grassava somente nas grandes cidades. A ilha onde nascera era um santuário de gente que, usando as suas fortunas feitas na América, comprava decisões políticas da sua conveniência. Uma destas era manter a sua terra empobrecida e tranquila, onde tinham deste modo um bom lugar para se refugiarem e se protegerem da justiça e da vendetta inimiga que os perseguiam. Instalados em antigas e luxuosas 13


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vilas, protegidos por capangas, consagrados criminosos da vida americana, os mais ricos, que gozavam o temido título de padrinhos, nunca abdicavam de dar um sinal de vida, manipulando à distância os seus impérios económicos deixados na terra do Tio Sam e os chefes da política de seu refúgio insular. O médico não queria deixar de cumprir o contrato de dois anos que havia assinado com o governo da ilha, mas ao fim de seis meses já desistira da ideia de montar consultório em Palermo, como originalmente planeara. A indecisão quanto ao seu futuro como clínico iria, porém, dar lugar a uma esperança optimista, num encontro imprevisto com um antigo colega da escola médica - Nicolò - que emigrara para a América e estava a passar férias na ilha, de visita a seus pais. – Amigo Marcelo, fiquei bastante surpreendido quando soube pelo meu “velho” que tu tinhas vindo trabalhar para cá. Gosto muito de encontrar-te, mas tenho que ser franco contigo. Tu, ao fim dos meses que cá estás, já deves estar certamente convicto que nesta terra não podes pôr grandes esperanças, quer para fazeres o teu pé-de-meia, quer para progredires profissionalmente. – Foi também para mim um prazer rever-te, meu caro Nicolò. Porém, quero desde já dizer-te que estou a pensar deixar a nossa ilha no fim do meu contrato. Tenho, porém, uma certa ansiedade quando penso no futuro. Voltar para a capital e abrir aí um consultório é um risco porque, como tu sabes, os hospitais pagam muito mal o nosso trabalho e abrir um consultório pode ser um fracasso, porque não é fácil ter clientes particulares nos primeiros anos. Trabalhar mal pago para a Previdência Social, em regime de convénio, e receber os honorários passado um ano, é absurdo. Como sabes, os lugares de médicos contratados estão fechados e qualquer vaga é de antemão preenchida por algum filho ou parente de um padrinho da Máfia. 14


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– Tenho lido nos jornais que vêm da capital. É frequente re-

latarem casos de negócios ilícitos entre pessoas conotadas com a Máfia e políticos. Onde o nosso país chegou! – Devo dizer-te que actualmente quando no nosso país se fala em Máfia, pode estar a falar-se quer de uma organização criminosa, que funciona pela extorsão, pelo assassinato, pelos raptos, etc., quer de uma rede com cariz secreto, de indivíduos influentes, muitos deles homens da política cujo pecado social é essencialmente o tráfego de influências, fenómeno que tem a óbvia consequência de uns cidadãos se sentirem tratados como filhos e outros como afilhados. Digo-te isto porque nós, no tempo da faculdade, não tínhamos consciência do país real em que vivíamos e tu saíste daqui para a América após o fim do curso e não tiveste tempo de conhecer o polvo em cujos tentáculos caem sempre os afilhados. – O teu problema seria fácil de resolver se não tivesses já família constituída. Eu, como sou solteiro, tomei a decisão de ir para a América trabalhar nos hospitais de Boston. De princípio pagam muito pouco aos internos, mas temos alojamento, refeições gratuitas e melhor que tudo isso é o muito que aprendemos no dia a dia da vida hospitalar. III

Quando chegou o Verão, Marcelo pediu licença de duas semanas para férias. Ele e a esposa acordaram em gozar a primeira semana nas praias de Cefalù, uma pequena cidade situada a menos de cinquenta quilómetros a nascente de Palermo. Porém os poucos hotéis da zona balnear estavam completamente lotados. Faziam questão de frequentar a praia, atendendo ao facto de que o ar do mar e os banhos de água salgada seriam tonificantes para 15


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o casal e muito salutares para sua filha de dois anos. A segunda semana de descanso pensaram passá-la em Roma, com os pais de ambos. Na impossibilidade de alojamento na praia, tiveram que optar por passar a primeira semana de férias em Roma e os restantes dias no campo, alojando-se num dos pequenos hotéis que se integravam em muitos dos empreendimentos turísticos que haviam nascido nos arredores da capital, depois da guerra. O médico, desiludido com o contratempo, pois já tinha informado os pais - pelo telefone - dos seus planos, comunicou-lhes a contrariedade ocorrida e que estariam em Roma daí a dois dias, no início das suas férias. No dia seguinte, o pai telefonou-lhe para o informar que já tinha feito a reserva no hotel e que ele e a mãe iriam passar dois dias com eles. Deviam por isso tomar o caminho directo para o empreendimento onde se encontrariam no dia seguinte. O pai revelara uma certa urgência em trocarem impressões sobre um negócio que recentemente lhe haviam proposto. Foi um encontro de família de genuína alegria. A miúda tinha crescido, o seu cabelo era agora farto e louro quase dourado. Como os avós já não a viam há uns largos meses tiveram a sensação que ela tinha crescido um par de anos. Num instante tornou-se o motivo das conversas desse dia. – Queres adivinhar a surpresa que o avô te vai mostrar além dos brinquedos que a avó traz ali naquele embrulho e que tu disseste que gostavas de ter, antes de irem para a Sicília? Vem comigo que eles não se zangam.De mão dada com a neta o senhor Manzinni atravessou o longo corredor que levava ao jardim do Hotel onde havia uma grande piscina para os “crescidos” e, um pouco retirada, uma piscina redonda para os “miúdos”. – Vês, aqui está o que tu tanto gostas. 16


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A alegria da menina era visível e desde logo descalçou os sapatos e fez gestos de saltar para a água. Só não o fez porque o avô segurou-a, lembrando-lhe com doçura que tinha primeiramente que subir ao quarto para vestir o fatinho de banho. Depois de mudar de roupa, a família seguiu para o jardim onde a pequenita pôde brincar na piscina com outros miúdos, sob vigilância dos pais e dos avós. Foi muito contrariada que a menina saiu da água para acompanhar a família no lanche. Mas ficou muito feliz quando, na conversa entre o pai e os avós, ouviu estes dizerem que os três podiam ficar no hotel todo o tempo de férias, porque o avô tinha desde logo feito a reserva para o filho, para uma estadia de dez dias, contando voltar com a esposa daí a uma semana, para passarem com eles mais alguns dias. – Bem, alvitrou o senhor Manzinni, agora nós vamos todos descansar da viagem e encontramo-nos para o jantar na sala de estar às oito horas. Apesar do médico não esconder a sua curiosidade pelo assunto sobre o qual o pai lhe havia dito que queria ouvir a sua opinião, o senhor Manzinni mostrou vontade de deixar a conversa sobre o possível negócio para o dia seguinte e, após uma breve conversa sobre o trabalho do filho em Palermo, tomaram o café e de seguida dirigiram-se para os seus aposentos. No dia seguinte, depois do pequeno-almoço, passaram a manhã solarenga junto da piscina. Enquanto o senhor Manzinni e o filho abordavam o assunto do negócio adiado para esse dia, a esposa e a nora vigiavam com atenção as piruetas da sua pequenita Bela na piscina dos “miúdos”. – Meu filho, encontrou-se comigo há umas semanas o teu amigo Arturo que me perguntou por ti. Ao informá-lo de que tu tinhas ido trabalhar para Palermo ele falou-me de que, se tu planeasses ficar por lá, nós tínhamos uma boa oportunidade de ga17


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nhar um bom dinheiro investindo em terrenos da praia de Cefalù uma vez que as perspectivas de desenvolvimento do Turismo naquela zona haviam começado a interessar empresários italianos e estrangeiros. Os Bancos estavam a dar grandes facilidades nos empréstimos para as actividades turísticas. Eu disse-lhe que tinha algum dinheiro disponível mas que não chegaria para adquirir grande coisa. No entanto lembrei-me que, fazendo um empréstimo hipotecário, já nos poderíamos abalançar a comprar uma pequena quinta junto à praia onde poderíamos construir uma casa de férias e loteá-la para negócio. – Quando o pai estiver com o meu amigo Arturo diga-lhe por favor que eu lhe mando um abraço e que quando eu for a Roma irei procurá-lo. Quanto a comprar uma quinta na ilha, eu teria muito gosto em comprometer-me no desenvolvimento que viéssemos a projectar se pensasse em ficar em Palermo. Não estou nada contente com o meu trabalho nesta terra. Preferia fazer clínica, frequentar um hospital e ter consultório próprio em vez de tratar de burocracias e ensinar gente cuja maioria nem possui o ensino secundário. – Então quando deixares o teu actual trabalho de adjunto do Secretário de Saúde, o que é pensas fazer? Tu sabes como é difícil um médico no princípio da carreira conseguir fazer vida na capital quando não se tem um padrinho na Faculdade ou um político amigo de influência. O mérito não chega para subir-se na tua profissão. Podes sempre contar com a minha ajuda e podes até ajudar a tua economia dirigindo ao mesmo tempo um dos meus negócios do qual podes tirar um bom dinheiro ao longo dos anos. – O meu pai sabe que eu gostaria de especializar-me em cirurgia. Depois de muito pensar como realizar esta minha ambição, que parece ser razoável para quem gastou anos a estudar sempre 18


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com a convicção que poderia ser um pouco mais do que um vulgar clínico geral em alguma cidade de província, hoje estou convencido que isso só será possível se me aventurar a fazer o meu treino hospitalar de especialização num país tecnicamente mais avançado e onde não seja preciso ter padrinhos para subir na vida. Não tome isto como orgulho, é apenas um problema de autoestima. O pai conhece-me, não é? – Quanto a ires para o estrangeiro estou de acordo contigo. Mas como é que vais poder sustentar-te a ti e à tua família com o salário de um simples interno. Segundo tenho ouvido amigos meus que viveram no estrangeiro, os internos, por exemplo na Suíça e na América, têm oportunidade de aprenderem em poucos anos o que no nosso país só é possível ao fim de mais anos, mas os salários, dizem-me, nos primeiro anos são muito baixos. – Há dias, quando estive com o nosso patrício doutor Nicolò que veio da América ver os pais, falámos sobre a possibilidade de eu me especializar no hospital onde ele já é interno residente há dois anos. Mas isso obrigar-me-ia a estar separado da minha mulher e da nossa pequena Bela por alguns meses até eu arranjar qualquer trabalho extra com que pudesse ganhar uns dólares além do ordenado do hospital que ajudasse a manter a família. Se ao fim de uns meses não conseguisse isso, voltaria para Itália e cá arranjaria maneira de governar a vida. O que é que me diz acerca desta espécie de lotaria? Como sabe, a América é a terra das oportunidades. – É como tu dizes. Ir para lá nessas condições é mesmo uma lotaria. É caso para pensares em conjunto com a tua mulher. Parece-me que ela gostaria de passar uns tempos na América mas tem a contrariedade de terem que estar separados por algum tempo, o que não é agradável para um jovem casal. – Eu estou convencido depois de conversar com o meu co19


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lega que essa será a solução, ainda que isso imponha sacrifícios à minha família. Começar a vida nos Serviços da Previdência na capital seria sobretudo para mim um desespero. O senhor tem ideia do que é chegar de manhã a um posto de consultas da Previdência e logo na entrada encontrar dezenas de pessoas à espera depois de estarem desde as quatro horas da madrugada na fila para conseguirem uma senha de consulta, a qual na grande maioria dos casos é marcada para daí a dois meses? E quando os edifícios têm cinco e mais pisos e os elevadores estão avariados durante semanas e os idosos além da longa espera pela consulta têm que subir dezenas de degraus se têm o azar de seu médico ter o gabinete nos últimos pisos? Alguns, quando chegam ao médico vão mais doentes do que quando saíram de casa. Aliás, quantas vezes não é o médico que vê o doente, mas sim este que vê o médico. E para obter os exames complementares são mais outros dias ou semanas de martírio. – Eu conheço o sistema, meu filho. Lamento é que os senhores ministros da Saúde antes de chegarem ao poder não tenham necessitado dos serviços médicos oficiais para poderem ter uma ideia realista do que os pobres sofrem neste país - que se diz católico - para alcançarem umas migalhas do nosso pobre sistema de saúde. Tenho um amigo médico uns anos mais velho que eu, com quem convivo bastante. Reformou-se o ano passado. Não há vez que nos encontremos que ele não lamente o facto dos médicos reformados não terem direito a um subsídio oficial nas consultas particulares ou nos exames necessários para o diagnóstico dos seus males. Ele, como não é rico, sempre se queixa da vergonha que tem de apresentar-se como médico a um colega mais novo que provavelmente nunca ouviu falar dele. Quando se identifica como colega, fica 20


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sempre na dúvida sobre o pensamento menos ético de quem o atendeu. Está sempre a dizer-me que lamenta que os diversos ministros que passam pelo Ministério da Saúde não têm formação para compreenderem que aqueles que trataram doentes uma vida inteira, alguns já com idade avançada, sentem-se desprezados pelo sistema político ao terem que socorrer-se dos serviços da Previdência e esperar meses por uma consulta. – Eu compreendo bem esse problema dos médicos mais idosos e dou razão ao seu amigo e meu colega. Estas queixas que tem ouvido dele só reforçam a minha convicção que isto não é terra que garanta futuro a ninguém, a não ser aos influentes e poderosos. Vou falar com a minha mulher sobre a hipótese de eu avançar para os Estados Unidos ainda que ela tenha que esperar algum tempo antes de eu ter condições para estarmos juntos. IV

Poucos dias antes de regressar a Boston o doutor Nicolò convidou o seu colega Marcelo para almoçarem a título de despedida. A conversa entre ambos, além da costumeira crítica sobre a situação política do país constou sobretudo sobre a possibilidade de Marcelo ir estagiar no hospital onde aquele trabalhava. – Já conversei com a minha mulher sobre uma eventual ida para a América no ano que vem. Não senti na nossa conversa que ela tivesse dúvidas sobre as vantagens de passarmos lá uns anos. Desconhecia que ela estava bem informada acerca das condições de vida dos internos nos hospitais americanos e sobretudo nos hospitais da cidade onde tu trabalhas. Explicou-me que, antes de casarmos, tinha estado algumas vezes com uma amiga de infância que fora com os pais viver na cidade de Cambridge, porque o pai 21


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que era engenheiro e tinha trabalhado na Fiat, quando viveram em Milão, fora convidado para director do departamento de pesquisa da engenharia automóvel de um importante instituto da cidade. Segundo ela, a instituição onde o pai trabalhava é conhecida mundialmente como escola de referência em diversos projectos científicos. A amiga tinha-se formado em medicina e tirado em Boston a especialização de cirurgia maxilo facial. Nunca me tinha referido este seu relacionamento mas pude deduzir que as conversas que tiveram sobre a vida americana - já lá vão quatro anos - tiveram influência na sua boa receptividade a irmos passar lá uns anos. Até me disse que, sendo necessário, estaria disposta a trabalhar, mesmo como ”babysitter”. Fiquei deveras contente com o seu apoio. – Bem meu caro Marcelo, vejo que vou ter brevemente a tua companhia em Boston. No meu regresso vou falar com o director do hospital no sentido de reservar uma vaga para ti no quadro de internos do próximo ano. Já te disse que o internato hospitalar começa em toda a América nos primeiros dias de Julho. Parece-me que esta data não prejudica o teu contrato com o Governo porque, conforme me disseste, podes deixar o trabalho na ilha, no fim de Maio. Nos meses que restaram até ao fim do contrato com o Departamento de Saúde da ilha siciliana, Marcelo sentiu-se um homem feliz porque, constantemente durante as suas ocupações diárias, a sua mente era animada pela perspectiva de deixar aquele princípio de carreira que lhe causava intensa frustração e por vezes forte angústia. No seu sonho de médico recém-formado jamais aflorara o papel de mestre-escola que estava agora fazendo. Em vez de melhorar os seus poucos conhecimentos que adquirira no estágio hospitalar em Roma sentia que o embrutecimento se apoderava da sua vida no dia a dia. O trabalho que aceitara para 22


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ganhar os primeiros dinheiros com o fim de sustentar a família e não ficar mais tempo na dependência do pai, tornara-o uma pessoa duvidosa da bondade da profissão que escolhera ainda nos tempos do liceu.

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CAPÍTULO II

MARCELO NA AMÉRICA

I

Quando chegou a Boston, Marcelo comoveu-se de alegria ao ver que seu colega Nicolò o esperava no aeroporto. Eles haviam combinado pelo telefone esse encontro. Nicolò aconselhou-o a não sair da sala de espera não fosse dar-se o caso de se atrasar por causa de algum engarrafamento do trânsito. A hora de chegada dos vôos vindos da Europa era sempre de grande tráfego de carros com pessoas a caminho de seus empregos. Para contentamento de ambos puderam, porém, encontrar-se logo após a passagem de Marcelo na polícia de fronteiras na qual teve apenas que apresentar o passaporte e no controle de bagagens onde nem um olhar deitaram à sua mala. Só mais tarde teve conhecimento que as demoras no despacho de alguns passageiros se devia ao facto do aeroporto de chegada ser avisado pelos serviços do aeroporto de origem que algum 25


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passageiro era suspeito de tráfego de drogas. Os outros eram despachados por rotina com brevidade e simpáticos votos de boa estadia. Marcelo, como todos os estrangeiros que entravam nesse tempo na América, era portador de visto de turista para trinta dias. – Dá cá um abraço pela coragem de teres decidido fazer a tua carreira nesta santa terra. Estou certo de que não vais arrepender-te. E a tua mulher ? Chorou certamente por não ter podido vir contigo e com a tua pequena Bela. O tempo passa depressa e quem sabe se não se dá o milagre, já no mês que vem, de vocês os dois arranjarem um trabalhinho extra e desse modo poderem estar juntos ? – Deus te ouça, porque não será nada fácil para mim e para a Sofia estarmos separados muito tempo. Não quero parecer precipitado, mas devo dizer-te que estou ansioso em saber o que é que eu vou fazer a partir de amanhã. – Esta noite convido-te para um jantar num bom restaurante. Vais dormir no meu apartamento e amanhã vou apresentar-te ao director do hospital. Ele vai certamente pedir-me para te mostrar os diversos departamentos e se houver a oportunidade apresentar-te a alguns colegas. Julgo que será bom apresentares amanhã os documentos comprovativos da licenciatura que te recomendei trazeres. Julgo que depois de amanhã a tua documentação já estará registada e enviada para o Conselho dos Médicos Estrangeiros no estado de Michigan. Se tudo isto ficar resolvido em vinte e quatro horas, no dia seguinte já deves entrar ao serviço.Verás que a burocracia nos States não é a empatocracia do nosso país. Cá também há corrupção e actividades mafiosas como na nossa querida terra, mas não te preocupes que tudo isso passa-se a outros níveis da sociedade americana. De facto, dois dias depois de chegar à América o doutor Marcelo já estava a trabalhar como interno no hospital e não foi, cer26


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tamente por acaso, que o director o colocou no departamento onde o seu conterrâneo exercia o cargo de residente graduado, facto que foi muito gratificante para o novo interno. – Alô minha querida, como vão todos? A nossa Bela tem-se portado bem na minha ausência? Já tenho saudades de todos. Os meus pais têm passado bem? A minha mãe ainda chora pela minha partida? Eu mando-lhes muitos beijos e para ti um abraço muito apertado do teu marido que te ama muito. Tem esperanças que estarás cá em breve com a nossa pequenina. Eu já estou a trabalhar. Não queria acreditar que o processo da minha admissão, tratado à distância pudesse correr tão bem e tão depressa. Estou muito grato ao Nicolò. Estou a trabalhar com ele no mesmo departamento, o que me tem facilitado bastante a adaptação à velocidade com que que se trabalha neste hospital. Adeus e até breve. Logo no primeiro mês da sua estadia no país, Nicolò propôs Marcelo para sócio do Clube ítalo-americano. Ambos frequentavam o Clube nos dias de folga. – Amigo Marcelo, isto de vir almoçar ao Clube todos os dias da nossa folga pode parecer-te monótono para quem chegou a Boston há pouco tempo, como é o teu caso. Mas este é o ambiente social onde tu podes conhecer os nossos compatriotas e fazer amigos. Nos States cada nacionalidade tem um Clube em cada cidade. Na área metropolitana de Boston encontram-se cerca de seis grandes associações do género. Em Cambridge e em Sommerville encontras clubes importantes como o de Boston. O nosso pessoal é muito unido e solidário quando vive fora da nossa terra. Tu precisas de encontrar um trabalho em part time e será no nosso Clube que mais facilmente vais ter a chance de arranjar o que necessitas. Eu vou começar a falar com alguns amigos sobre o teu caso e estou convicto que alguém daqui te vai dar uma mão. – Tu ficas a ser o meu padrinho na América e eu estou muito 27


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grato pela tua ajuda. A minha mulher bem me disse que ficava mais tranquila por saber que nós íamos estar juntos no mesmo hospital. II

Uma das heranças que os italianos de hoje tiveram da antiga Roma é notória sempre que um grupo se junta à mesa para um repasto com horas para começar mas sem horas de acabar. Não se cansam de falar, comem e bebem muito. Falam sempre enfatizando seus dizeres com uma linguagem gestual como se as mãos dessem um reforço às suas convicções. Na Roma antiga ninguém chegava a senador se não tivesse o predicado do discurso oral e gestual, muitas vezes com habilidade teatral. – Foi num desses repastos, barulhentos e avinhados que o doutor Nicolò apresentou o seu amigo e colega no Clube ÍtaloAmericano de Boston após consultar previamente os seus companheiros de grupo, se gostariam de conhecer mais um patrício médico, seu amigo de infância. – Meus caros patrícios, este é o meu amigo Marcelo de quem lhes falei e se não se esqueceram do que lhe disse, é um excelente camarada e vai ser um grande médico. Trabalhamos no mesmo hospital nesta bela cidade deste grande país que nos acolheu como filhos desta terra. Vocês gostariam de ouvir o doutor Marcelo dizer algumas palavras antes de começarmos o jantar? – Teremos muito gosto em ouvi-lo, exclamaram em simultâneo dois dos convivas. O doutor Marcelo foi apanhado de surpresa com a sugestão do colega mas achou oportuno o poder agradecer a amabilidade dos presentes em convidá-lo para jantar no primeiro dia que frequentava o Clube. Habituado a fazer palestras no emprego que tivera na Sicília foi-lhe fácil o improviso. 28


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– Conhecer-vos e ser por vós recebido tão amavelmente, é

para mim algo que me alegra e dá-me o prazer de me sentir na nossa terra. Como todos vós sabeis, porque já passaram também pela angústia de abandonar a nossa terra, conhecer patrícios amáveis nesta parte do mundo tão distante do local onde sempre vivemos, dá-nos mais força de alma para vencermos o desconhecido. Estou-vos grato por me admitirem na pequena Itália que é este clube. Fico ao vosso dispor no meu local de trabalho no caso de algum dos patrícios necessitar de uma mão amiga em caso de aflição. Um dos presentes, homem de verbo fácil e elegante, levantou-se para saudar o doutor recém-chegado. – Meu caro doutor, como vós sabeis os nossos companheiros desta mesa são todos veteranos na vida americana. Praticamente todos os que estão a jantar nas mesas em redor de nós vieram de Itália para tentar a sorte de uma vida melhor. Isto porque a América é afamada no nosso país como uma terra de oportunidades. Não é de menor importância sabermos que além disso temos aqui a felicidade de vivermos em democracia o que nos dá uma dupla felicidade. Quero dizer-lhe em nome dos presentes que agradecemos as suas palavras e seus préstimos e queremos também oferecer-vos os nossos. Qualquer coisa que precise, conte connosco e do coração desejamos-lhe sorte na vossa nova vida aqui nesta santa terra. Durante o jantar, o doutor Marcelo foi alvo de muitas perguntas por parte de seus patrícios que mostravam grande interesse sobre a política da terra natal, visto que a maioria deles, por falta de tempo, já havia anos que tinham deixado de lá ir. Outros, mais velhos, porque já não tinham lá familiares não eram seduzidos a fazer uma grande viagem com receio de não encontrarem nas suas aldeias ninguém do seu tempo. Era visível que os presentes tinham sido absorvidos pela vida 29


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da sua nova pátria ainda que em suas casas e nas reuniões sociais os velhos costumes da sua terra continuassem bastante vivos. O jantar dessa noite, pela abundância dos cozinhados italianos, pela tagarelice na língua materna e pela música com que dois guitarristas animaram a noite era a melhor prova que no íntimo daqueles emigrantes americanizados ainda vivia a sua velha Itália. III

Tinham-se passado dois meses desde que o doutor Marcelo tinha começado a trabalhar no hospital. Apesar de ter, muito próximo do seu local de trabalho, bons transportes públicos e muitas vezes ter boleia para o centro, no carro do seu patrício Nicolò, sentia que para certas deslocações fazia-lhe falta ter um carro. Começou por homologar a sua carta de condução italiana e, como tinha disponíveis umas centenas de dólares do dinheiro que tinha trazido de Itália, resolveu comprar um carro em segunda mão, com o aconselhamento do patrício e companheiro Para sua surpresa conseguiu um automóvel em segunda mão com seis anos e em bom estado de mecânica por duzentos dólares. Nicolò amparou-o nas primeiras saídas pela cidade . Numa das deslocações ao Centro, para solicitar no consulado um atestado de residência - e como ignorava as regras de estacionamento - ao voltar para o hospital, concluiu, ao ver um sinal de trânsito em frente, que tinha estacionado fora do horário permitido. Duas semanas antes do Natal recebeu, com um certo espanto, um aviso da Câmara Municipal para pagar um dólar de multa por aquela infracção. Sem demora, enviou logo no dia seguinte, por vale de correio, a quantia solicitada pelos serviços camarários. Absorvido pela intensidade do serviço do dia a dia, o tempo 30


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passava-se para ele com uma rapidez que nunca havia sentido quando fazia o internato no seu país. O regime de trabalho era tão rigorosamente organizado que muitos dias só tinha tempo para comer uma sandwich e uma coca-cola como almoço. Lembrava-se porém, muitas vezes ao dia, com um aperto no coração, que a esposa esperava com ansiedade que ele a mandasse chamar, mais a pequenina Bela. Nos telefonemas semanais que recebia de casa dos sogros ele podia notar na voz delas um tom choroso que o deixava sempre abatido e algumas vezes arrependido de as ter deixado. O salário mensal que era pago aos internos do primeiro ano equivalia a um quarto do salário de um carteiro. Marcelo não podia correr o risco de chamar a mulher e a filha sem ganhar dinheiro suficiente para sustentar a família. Precisava com urgência procurar um trabalho extra que lhe garantisse o mínimo de conforto para a sua família. Ainda que soubesse que o pai os podia ajudar, isso confrontava-se sempre com o seu natural orgulho de homem independente capaz de vencer adversidades. Sendo a América, como ele sempre ouvira dizer aos amigos, a terra das oportunidades para quem quisesse trabalhar, havia na sua mente essa ideia de esperança que mais dia menos dia ele ia conseguir o que tanto precisava. Começar a vida sem grandes meios, numa terra distante da sua é sempre um problema penoso para quem não tem amigos verdadeiros. Porém, Marcelo tinha em Nicolò um grande amigo e este sentia o problema, o qual na melhor das intenções, ele havia criado ao seu colega entusiasmando-o a continuar a preparação profissional na América. Nas suas diligências para o ajudar o doutor Nicolò abordou um dia o chefe sénior dos internos, o doutor Karp, que ele conhecia 31


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como uma pessoa de grande bondade, não só com os doentes mas também com os internos e contou-lhe a preocupação do seu amigo. – Meu caro Nicolò, daquilo que tenho observado ao longo dos anos que tenho o encargo de zelar pelo corpo de internos e residentes criei a convicção de que a maioria de vocês, estrangeiros, vêm para a América impelidos por um verdadeiro espírito de aventura. Vou ver o que posso fazer pelo seu amigo Marcelo. – Dr. Karp, tenho a certeza que todos os meus colegas fariam suas as minhas palavras, o senhor é tido por todos nós como um homem bom e médico de grande mérito. Agradeço-lhe a sua boa vontade e estou certo que vai conseguir dar uma boa ajuda ao meu patrício Marcelo Manzinni. Eu posso afirmar-lhe que o grande anseio dele ao vir para esta santa terra baseou-se na ambição de adquirir bons conhecimentos profissionais que em Roma lhe levaria três vezes mais tempo do que vai necessitar aqui para ser um bom profissional. Fico-lhe muito grato pelo seus bons ofícios. Passadas duas semanas, era uma sexta-feira, Nicolò recebeu uma chamada telefónica do Dr. Karp para lhe comunicar que o director do hospital tinha-o informado que iria receber o interno Marcelo Manzinni na segunda-feira seguinte para saber se ele aceitaria um trabalho extra no próprio hospital em regime de part time e depois das horas de serviço. A secretaria geral precisava de admitir um arquivista dos registos das histórias clínicas dos doentes, trabalho que, feito por um médico, seria certamente mais correctamente elaborado. O salário tinha carácter profissional, rondaria duzentos e cinquenta dólares mensais. Haveria ainda um bónus traduzido pela cedência gratuita de um pequeno apartamento dos vários que o hospital possuía no próprio parque, no qual o interno poderia alojar a sua família. – Amigo Marcelo, parece-me que a sorte bateu à tua porta. O doutor Karp telefonou-me hoje para te informar que o director do 32


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hospital quer fazer-te uma proposta de trabalho em regime de part time. Nesta próxima segunda-feira, às três horas, quer falar contigo sobre esse assunto. Vamos ver se te agrada. – Mas como é que o doutor Karp soube que eu preciso de ganhar uns dinheiros extra? Eu nunca falei com ele sobre esse assunto. Estou vendo, foi obra tua. Seja o que for fico mais uma vez em dívida contigo. Logo que eu fale com o director eu entro em contacto contigo. Estás de serviço até às cinco da tarde. Quero informar-te do resultado da conversa com o director antes de saíres. – Não vou sair esta noite portanto, se não me encontrares no serviço, é porque estou na biblioteca. Tenho que estudar a anatomia para um caso que vamos operar ainda esta noite. Eram quatro horas da tarde quando Marcelo saiu do gabinete do director. Este tinha-se atrasado meia hora para o receber porque o Presidente da Câmara tinha almoçado com ele na cantina do hospital e a conversa entre os dois havia-se prolongado a discutir um orçamento para a abertura de mais um bloco operatório. O hospital não se podia dar ao luxo de ter listas de espera de mais de uma semana. Para tal era necessário providenciar condições às equipas de cirurgia, que de outro modo tinham que trabalhar horas extraordinárias à noite, o que inevitavelmente aumentava a verba anual calculada para os médicos. Marcelo entreabriu a porta da biblioteca e fez sinal a Nicolò para sair. – Dá cá um abração. Tu és o meu anjo da guarda. Está tudo resolvido. Em meu nome e da Sofia agradeço-te do coração. Sabes que além do salário ainda tenho o bónus de poder ocupar com a família um apartamento num dos blocos do ground do hospital? – Já sabia, mas quis que isso fosse surpresa. Esta gente é realmente de um carinho com os internos que em nada podemos comparar com o sistema hospitalar da nossa terra. Fico contente por ti 33


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e pela Sofia pois assim já pode vir quando vocês entenderem. Não sei quantas horas vai levar o enxerto da aorta que o doutor Shewartz vai fazer esta noite por isso ver-nos-emos amanhã. São horas de telefonares para a tua mulher que a esta hora deve estar a jantar. IV

Não há coisa que mais sobressalte um cidadão cumpridor da lei do que receber uma citação para comparecer num tribunal às tantas horas de um dado dia, sobretudo quando está de consciência tranquila. Marcelo estava a almoçar com os colegas no refeitório, quando um mandarete do hospital se aproximou da mesa e perguntou pelo seu nome. O rapaz solicitou-lhe que assinasse uma folha de recepção de uma citação judicial. Quando Marcelo abriu a carta ficou pálido e já não foi capaz de continuar a refeição, o que foi notado por seus companheiros. Ninguém se atreveu a inquirir o motivo porque a carta recebida naquele momento o havia incomodado. Acabrunhado e em jeito de quem pede ajuda para compreender o conteúdo da carta-citação estendeu-a ao seu colega Nicolò. – Marcelo meu maroto, o que é que andaste a fazer por aí para te quererem ver no tribunal? Se te meteste nalguma aventura, vais dentro. Se atropelaste alguém com o teu novo pópó, vais dentro. E se disseste mal do Presidente também podes ir dentro. Certo que o motivo da citação não seria nada de preocupante, Nicolò brincava com o seu amigo tentando desse modo serená-lo. – Aqui, como em Roma, os que têm dinheiro para contratar bons advogados é que dificilmente vão dentro. Nestes casos quando a Justiça quer fazer justiça já o caso prescreveu, não é assim patrício? 34


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– Tu ainda brincas com o caso, mas é um facto que esta cita-

ção deixa-me bastante incomodado. Já não vou conseguir dormir esta noite porque não faço a mais pequena ideia porque tenho que comparecer no tribunal. Um outro colega americano, certamente mais familiarizado com o sistema judicial, tentou sossegá-lo explicando-lhe que possivelmente não teria pago alguma multa de estacionamento e nesse caso a Câmara Municipal costuma mandar o caso para o tribunal. Ele já tinha sofrido um susto do género. De qualquer modo convinha consultar um advogado não se desse o caso de, sendo ele estrangeiro, ter algum processo relacionado com a entrada e estadia no país. Nessa tarde, o atribulado doutor Marcelo consciente de quanto devia ao seu patrício Nicolò, muito constrangido, pediu-lhe ajuda. – Sabes Nicolò, eu não conheço nenhum advogado. Tu podes indicar-me alguém lá do Clube que possa ajudar-me a esclarecer esta chatice? – Não fiques preocupado com o assunto. Se no Clube não encontrarmos um advogado disponível, tenho lá bons amigos que te vão ajudar certamente. Mas como a citação é só para daqui a quinze dias porque é que não vamos primeiramente ao nosso Consulado? Eles fecham às quatro horas da tarde mas um amigo, que aliás é sócio do Clube, recebe-nos mesmo depois de fecharem a porta. – Um colega americano disse-me à hora do almoço ter tido já uma citação idêntica por falta de pagamento de uma multa de estacionamento. Isto não me tranquilizou porque de fui há um mês multado por estacionar fora do horário autorizado em frente do nosso consulado, mas no dia a seguir de ter recebido o aviso da Câmara mandei para o departamento de trânsito o dólar da multa. 35


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No dia seguinte de manhã, Nicolò telefonou ao seu amigo do consulado com o qual ficou combinado os dois médicos aparecerem por lá às cinco da tarde. Ainda francamente nervoso o doutor Marcelo explicou ao funcionário, amigo de Nicolò, que estava preocupado com a citação judicial e que ficaria mais tranquilo se ouvisse um advogado e que solicitava o favor de lhe recomendarem alguém de confiança mas que não fosse careiro. – Bem meu caro doutor, o consulado tem há anos recomendado um advogado que tem escritório no Centro. Não temos conhecimento de alguém que se queixasse de ter sido explorado. Toda a gente que aqui volta tece elogios a Mister Adams pela sua amabilidade e por ser muito moderado na questão dos honorários. Todos nós sabemos que os advogados na nossa terra não têm uma boa reputação porque quando podem, complicam as coisas para apresentar honorários exagerados, mas na América os profissionais de advocacia são francamente mais sérios até porque a Ordem cai-lhes facilmente em cima com suspensões da profissão quando há queixas de algum por prevaricar com frequência ou por exageros de honorários. – Mas explique-me o seguinte, o senhor referiu um Mister Adams. Então ele não é doutor? – Meu caro senhor aqui na América só os médicos têm esse título. Não é como lá na nossa terra onde muita gente que só tirou o liceu se intitula doutor. Vá descansado ouvir o conselho de Mister Adams, que estou certo que ele lhe resolve o caso se houver algum problema. Tendo a crer que essa citação é para pagar alguma multa de estacionamento. O doutor diz-me que enviou o dólar para a Câmara, mas lembre-se que estamos na época de Natal e que os correios nesta altura andam semanas atrasados com a carga enorme de cartas de boas festas e de presentes que vêm de toda a parte 36


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deste enorme país. Tem aqui o endereço e o telefone do advogado. Convém telefonar para o escritório dele e pedir à secretária para lhe marcar a entrevista. – Bem amigo Marcelo, amanhã vamos marcar o nosso encontro com o dito advogado porque não me agrada saber que tu vais andar preocupado com este mistério durante as duas semanas que faltam até o dia de te apresentares ao tribunal. A conversa tida naquela tarde com o funcionário do Consulado deixou Marcelo menos preocupado o que lhe permitiu nessa noite dormir sem pesadelos. A secretária de Mister Adams, talvez sensibilizada porque o doutor Marcelo lhe solicitou a marcação da entrevista não com o mister mas com o doutor Adams, mesmo lamentando que o advogado tinha uma agenda muito preenchida nessa semana, depois de uma breve pausa, acomodou simpaticamente a entrevista para a sexta-feira dessa semana depois das seis horas da tarde. Daí a três dias, tempo de espera que para Marcelo foi angustioso, os dois amigos sentavam-se na sala de espera do escritório do advogado, com meia hora de antecedência. – Ainda bem que os senhores chegaram antes da hora marcada porque o cliente das cinco horas despachou-se mais cedo e Mister Adams está só a acabar uns apontamentos e vai de seguida atendê-los. Vou avisá-lo que os senhores já chegaram. – Diz aos doutores que podem entrar. Entretanto traz-me o meu chá por favor. Os dois amigos entraram um tanto acanhados no gabinete do advogado, facto que ele notou pondo-os à vontade. Mister Adams era um homem alto e de aspecto muito fino, cujo tom de voz dava para perceber que devia ser uma pessoa muito educada. – Então meus amigos, qual de vós é que está a contas com a justiça? Telefonaram-me do Consulado a recomendá-los como 37


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bons rapazes e daí deduzo que o problema que os traz não é certamente de grande importância. Os meus clientes médicos, se bem me lembro, nunca me trouxeram casos de monta. Marcelo com a voz afectada pela preocupação como se fosse réu de uma grande causa, dirigiu-se respeitosamente ao advogado e entregou-lhe a citação. Depois de ler a carta do tribunal, Mister Adams sorriu e num monólogo de homem paciente exclamou: – Os nossos tribunais deviam ser mais civilizados dando, nestas citações, ao cidadão que paga os impostos que eles consomem, tantas vezes com ninharias, pelo menos uma explicação sumária da razão porque são citados, uma vez que a mesma vem em carta fechada. Há um certo despotismo da parte da Justiça nesta maneira de notificar as pessoas. Caro doutor, na minha opinião, muito provavelmente o pagamento que você fez à Câmara Municipal não chegou ao seu destino e nesse caso foi citado para o fazer coercivamente e com multa. Não se preocupe com isso. Se a razão for outra, esteja à vontade para voltarmos a falar. Não falte à convocatória porque isso complica sempre estes assuntos. Tive muito gosto em conhecê-los e vamos aproveitar para sairmos juntos. – Mister Adams, fico desde já menos preocupado com o vosso parecer e agradeço-lhe que me diga quanto é que eu lhe devo pela consulta. Descendo as escadas e sem responder à pergunta do médico, ao chegar à rua o advogado estendeu a mão para se despedir dos dois e a jeito de graça respondeu: – Quando eu algum dia precisar de alguma cirurgia você far-me-á um preço especial, concorda? Quando chegou o dia da audiência Marcelo acordou muito cedo porque temia chegar atrasado e com a antecipação de uma hora já estava sentado na sala onde se encontravam já umas deze38


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nas de pessoas. Chegou a inquirir-se se toda aquela gente estaria ali para assistir ao seu julgamento. Porém, quando o oficial de justiça começou a chamar os presentes um a seguir ao outro e após cada um passar pelo juiz, o qual sem levantar a cabeça da lista dos arguidos lhes fazia apenas a pergunta se era culpado ou não culpado a que todos respondiam culpado, Marcelo concluiu que aqueles julgamentos deviam ser devidos a causas insignificantes. À chamada de seu nome levantou-se rapidamente e perfilou-se perante o juiz o qual sempre de cabeça baixa sem olhar para ele, lhe atirou as mesmas palavras já ouvidas nos casos anteriores, culpado ou não culpado. – Senhor doutor Juiz eu vim cá mas não sei porque é que estou a ser julgado. O oficial de justiça delicadamente advertiu-o de que era devido a uma multa de estacionamento e que devia responder: culpado. – Mas eu mandei o dólar para a Câmara. – respondeu Marcelo. – Responda já ao juiz que é culpado senão vai ter que voltar cá com um advogado, – aconselhou-o novamente o ajudante do Juiz. – Passe pela secretaria e pague dois dólares. Pensando nas despesas que lhe ia acarretar não seguir o conselho do ajudante do juiz resolveu com muita relutância pronunciar a palavra culpado, com um tom de voz de falsa submissão mas abanando negativamente a cabeça. Depois de passar pela secretaria, para pagar os dois dólares, ainda parou por uns instantes na sala onde fora interrogado com duas palavras, para apreciar o espectáculo que era a ladainha das acusações seguidas daquela monótona pergunta do juiz, o qual sempre de cabeça baixa nem sequer olhava para a cara do cidadão que tinha na sua frente. Quando voltou para o hospital, Nicolò esperava-o na recep39


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ção cheio de curiosidade pelo resultado do julgamento de seu amigo. – Então vais preso ou provaste que eras um pobre imigrante inocente? – Nicolò amigo, a coisa era mesmo por causa de uma multa de estacionamento. E estive eu preocupado todo este tempo porque estes idiotas notificam judicialmente o cidadão sem o avisarem do que é que se trata. Vou telefonar ao Mister Adams para lhe comunicar o resultado do tribunal. Todo este incómodo para pagar uma multa de um dólar.

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CAPÍTULO III

OS NOVOS CONHECIMENTOS DE MARCELO

I

Um dia, no segundo mês de trabalho como interno no Boston City Hospital, estava o doutor Marcelo de serviço no Banco de urgências, ocorreu receber-se naquele serviço uma mensagem de rádio de uma ambulância, que avisava estar levando para o hospital um homem gravemente ferido num acidente de automóvel. A equipa de Marcelo preparou-se para recebê-lo, pondo de aviso o serviço de Raios X e o bloco operatório. Após um exame muito sumário e pensadas as feridas pouco profundas da face e do pescoço o doente foi imediatamente radiografado. Não foram reveladas lesões internas mas verificouse que o doente além de estar a entrar em choque tinha sofrido várias fracturas dos membros inferiores. 41


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O pobre homem mal podia articular palavra quando deu entrada na Urgência. Porém antes de perder a consciência rogou ao doutor Marcelo para telefonar para sua casa indicando-lhe com esforço o bolso superior do casaco, gesto que o médico percebeu tratar-se de informação a utilizar para o contacto com sua família. De facto tratava-se da sua carta de condução pela qual foi identificado o seu nome e residência. Por esta, uma das enfermeiras conseguiu de imediato obter o número de telefone de sua residência. – É de casa do senhor Giancarlo Fachini? Daqui é do Boston City Hospital. Fala o doutor Marcelo. – Doutor aconteceu-lhe alguma coisa? Fala o filho, John Williams. – Seu pai entrou há cerca de meia hora no Banco de Urgências com várias fracturas das pernas. Teve um acidente de automóvel, quando se dirigia para casa. Neste momento está a recuperar do estado de choque. Meia hora após o telefonema do médico, este recebeu no seu bip a mensagem da telefonista a solicitar a sua presença na sala de espera para dar informações sobre o estado do senhor Fachini, a um dos seus filhos. Pegando num telefone mais próximo o doutor Marcelo solicitou à telefonista que informasse o familiar do doente que estava a passar visita aos doentes na sala de cuidados intensivos com seu chefe de serviço e que dentro de meia hora estaria disponível para prestar informações sobre o estado do doente. Ao chegar à sala de espera teve a surpresa de ver que se dirigia para ele o advogado mister Adams. – Meu caro doutor Marcelo, não esperava vê-lo tão cedo. Eu sou amigo e advogado do John Williams e estava em casa dele quando o senhor telefonou e por isso vim acompanhá-lo. Ele foi 42


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lá fora fumar o seu cachimbo enquanto esperava pelo doutor. Está muito nervoso com a notícia do acidente do pai. Como está o senhor Fachini? Corre perigo de vida? Aí vem o John! – Este é o médico teu conterrâneo que te telefonou e de que te falei há dias, o doutor Marcelo Manzinni. – Tenho muito prazer em conhecê-lo e estou-lhe muito grato por me ter telefonado. Como está o meu pai? A vida dele corre perigo? – O senhor Williams pode ficar tranquilo porque felizmente a situação dele já está estabilizada. Tem várias fracturas dos membros inferiores mas já saiu do estado de choque. Daqui a uma semana, se não houver complicações já poderemos começar a tratar do problema das fracturas. Sei que gostaria de vê-lo mas ele ainda está nos cuidados intensivos e aí o regulamento do hospital não autoriza visitas, como deve saber. A conversa teve que ficar por ali porque, pelo” bip”, a telefonista chamou Marcelo para atender um doente na enfermaria que estava a necessitar de assistência de um médico com urgência. II

Tinham passado pouco mais de duas semanas desde o internamento do senhor Giancarlo. As cirurgias dos membros inferiores, devido às fracturas que sofrera, foram bem sucedidas e a convalescença do doente corria normalmente. O doutor Marcelo informava regularmente o filho do doente e que se previa que o mesmo poderia ter alta dentro dos próximos quinze dias, no caso de tudo correr normalmente como acontecera até aí. Dois dias antes da data prevista para ter alta, o senhor Gian43


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carlo recebeu em seu quarto um telefonema do director do hospital porque necessitava de falar pessoalmente com ele. – Meu caro senhor Giancarlo, desculpe tomar-lhe uns minutos antes do almoço, mas ainda esta tarde tenho que me deslocar a Nova York e tornava-se necessário que lhe falasse ainda hoje do seguinte assunto: Tive esta manhã uma chamada telefónica dos escritórios do F.B.I. a pedir-me autorização para dois agentes o visitarem porque estão investigando a causa do seu acidente. Falei com o seu médico assistente que me informou que sob o aspecto clínico não haveria inconveniente com a visita dos agentes pois o senhor irá ter alta daqui a dois dias. Não quero deixá-lo preocupado com esta informação e por isso desejo adiantar-lhe que o F.B.I. precisa de alguns esclarecimentos seus sobre o acidente que sofreu porque a polícia local que o socorreu, minutos após o seu carro ter capotado, foi informada por duas pessoas que assistiram ao acidente que o mesmo fora causado pelo choque de um jeep com o seu carro. Pareceu às testemunhas que o condutor do jeep teve um propósito deliberado de lançá-lo para fora da estrada. Nessa própria tarde, após o lanche, a enfermeira do piso entrou no quarto do senhor Giancarlo para lhe anunciar que dois cavalheiros, depois de se identificarem, lhe haviam pedido licença para visitá-lo e que a tinham informado que a sua visita já estava autorizada pelo director do hospital. O doente confirmou já ter sido avisado dessa visita e pediu à enfermeira para os mandar entrar. – Folgo muito em saber que o senhor tem tido uma rápida convalescença – observou o mais velho dos agentes, estendendolhe a mão de um modo cortês, para o cumprimentar. O mais novo ficou uns passos atrás e cumprimentou o doente com um gesto de cabeça e um “boa tarde senhor” muito convencional. 44


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– Eu sou o tenente Brown e este é o meu colega Preither.

Somos ambos dos escritórios do F.B.I. de Boston. Como já deve ter sido informado pelo director do hospital, viemos conversar com o senhor Giancarlo a pedido da Polícia Metropolitana para tentarmos averiguar se o senhor foi vítima de uma tentativa de homicídio, porque duas testemunhas oculares informaram que alguém conduzindo um jeep teria propositadamente causado o acidente de que foi vítima, empurrando seu carro para a ravina, fazendo-o capotar. O senhor lembra-se de algo que confirme este testemunho? – Meu caro senhor, eu lembro-me apenas do meu carro ter sido abalroado por um outro veículo de cor vermelha, mas naquele instante só me ocorreu pensar que o choque teria sido devido a embriaguês do condutor. – O senhor tem inimigos que possam ter querido acabar naquele dia com a sua vida? – Nos últimos vinte anos dos quase oitenta que já tenho não me lembro de ter feito inimizade com alguém. Não creio que passados todos estes anos algum maluco queira matar-me por causa de alguma prisão que eu tenha realizado quando estava no activo da polícia de Boston . – O nosso departamento irá fazer uma investigação sobre a eventualidade de terem atentado contra a sua vida. Muito obrigado pela sua colaboração e estimo que regresse a sua casa em breve. III

Já restabelecido, o senhor Giancarlo deixou o hospital após quase dois meses de internamento. Na saída despediu-se das enfermeiras que segundo ele dizia, tinham-no tratado com muito 45


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mimo. O filho John que o fora buscar, levara para cada uma das enfermeiras que haviam dado assistência ao pai, uma grande caixa de chocolates suíços importados. Receoso de incomodar o médico não resistiu ao pedido insistente do pai, para chamar o doutor Marcelo na hora de deixar o quarto. A enfermeira chefe do piso, sabendo que o doente considerava aquele interno o seu salvador, não se fez rogada e pediu à telefonista para solicitar a presença do interno no quarto do senhor Giancarlo. – Meu querido doutor, desculpe a minha ousadia em perturbar o seu serviço, mas ficaria muito triste se não me despedisse de si, a quem considero o meu salvador pelo cuidado que teve comigo quando entrei nesta casa quase morto. Espero que me dê a honra de aceitar o meu convite, quando eu já estiver restabelecido, para jantar comigo e com o meu filho no nosso Clube. Com a promessa do médico de aceitar o convite, o senhor Giancarlo, com lágrimas nos olhos disse adeus a todos os que zelaram pelo seu bem-estar naquela casa e partiu com John para a sua residência. – Sabes John, ainda bem que o acidente que sofri não veio nos jornais. Já pensaste na quantidade de amigos lá da minha Itália e vizinhos que viriam visitar-me? Felizmente que só poucos deles souberam do meu internamento e vieram ver-me porque de outro modo não tinha descanso e não me tinha restabelecido tão depressa. Eu vi na saída que tu foste ao guichet da secretaria para pagar a conta do meu internamento, das operações e da assistência do médico ortopedista. Eu vou querer saber quanto é que custou tudo isso para apresentar ao seguro. – Meu pai, já sei que o seguro só te pagará alguma coisa depois do inquérito sobre a tentativa de homicídio for terminado. A polícia, depois da peritagem, chegou à conclusão que alguém quis 46


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liquidar-te. Agora, com o assunto em segredo de justiça, continua o processo de investigação sobre a autoria do crime. Só depois de terminado todo o processo é que a companhia de seguros decide se vai pagar ou não. É sabido que, num acidente provocado por terceiros, as companhias de seguros querem que os autores sejam levados à Justiça e que, como responsáveis, estes paguem, apesar da condenação de que forem alvo. IV

John Williams estava muito preocupado com as informações que tinha obtido da polícia de Boston. A audição das pessoas que haviam testemunhado sobre o acidente, a peritagem do carro de seu pai e do local onde o carro fora empurrado para uma ravina, não tinham deixado dúvidas da intenção de que alguém o tentara matar. Desde a hora que teve conhecimento das circunstâncias em que ocorreu o acidente ele temeu que seus inimigos da Mafia tivessem escolhido seu pai como um acto de vingança contra si porque nunca haviam conseguido localizá-lo. O senhor Giancarlo fora polícia na cidade de Nova York até à idade da reforma, altura em que mudou sua residência para a cidade de Boston. Foi só nessa altura que John regressou a Boston onde se tornou industrial. Os serviços de protecção da C.I.A. com a qual colaborara anos antes em Miami, haviam-no convencido, para sua própria protecção a aceitar uma nova identidade. O seu verdadeiro nome, Tommaso Fachini fora eliminado de todos os ficheiros oficiais e substituído pelo nome americano com que era agora conhecido. Passou-se um ano sobre a data do atentado contra o senhor Giancarlo. Como antigo sargento de polícia era estimado pela sua 47


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corporação pois quando se reformou foi condecorado por ter dedicado a sua vida ao serviço da cidade de Nova York. Recorrendo à pressão sobre um hispânico que fora condenado recentemente por homicídio, o F.B.I. que havia tomado o caso em suas mãos conseguira a identificação dos autores do atentado sofrido pelo ex-sargento Giancarlo, os quais foram imediatamente localizados e detidos para interrogatório. Após grande resistência pela apresentação de alibis, que foram sistematicamente desmontados, os homens acabaram por confessar terem sido os autores da tentativa de assassinato e que eram agentes da polícia secreta cubana. Como nunca haviam conseguido identificar o ex-Tommaso Fachini pensaram atingi-lo atentando contra a vida do pai. Num jantar, após a detenção dos cubanos, mister Adams achou que podia agora revelar ao doutor Marcelo a dramática história do seu amigo de quem era além disso confidente e advogado. John Williams tornara-se membro de uma das famílias da Máfia de Nova York quando tinha vinte e quatro anos. Depois de dois anos de exercer a tarefa de guarda-costas de um dos patrões da Máfia daquela cidade, fora destacado para Miami onde durante um ano teve a missão de fiscalizar os dinheiros provindos dos negócios imobiliários do seu patrão, na Florida. Tido como um homem de confiança foi promovido a “capo” e destacado para dirigir o Hilton Hotel-Casino em Havana, explorado indirectamente por aquela organização. Quando Fidel Castro tomou revolucionariamente o poder em Cuba, nacionalizou todos os bens americanos e com isto feriu de morte grandes investimentos da Máfia em Cuba. John tinha nessa altura trinta e dois anos. Seu ajudante e braço-direito era um cubano de nome José Gonçalez. Ambos tiveram que fugir para Miami. Tendo John (aliás Tommaso nesse tempo) e Gonçalez for48


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mado em Cuba um capital razoável, constituíram uma sociedade com a qual se dedicaram ao negócio de terrenos na pequena cidade de Fort Lauderdale, a norte de Miami, onde a Máfia ainda se havia interessado pouco em estender seus tentáculos. Durante dois anos de negócios muito rendosos, seguiram com atenção o movimento dos cubanos exilados que se haviam congregado com a ideia de invadirem Cuba e derrubarem do poder “ El Comandante” cognome que lhe haviam dado os guerrilheiros de Fidel. A C.I.A., referida por seus agentes como a Company, que ao princípio tomara a ideia de uma contra-revolução anti-castrista a partir de Miami, como uma utopia, decidiu ao fim de alguns meses infiltrar alguns de seus agentes nos meios contra-revolucionários. Ao fim de quase dois anos de observação do projectado movimento dos refugiados cubanos, foi resolvido por Washington que a Agência se mostrasse interessada em apoiar o mesmo com o fornecimento de armas. Desde seus tempos de Nova York que Tommaso Fachini (mais tarde John Williams) tinha seu nome fichado no F.B.I. como elemento da Máfia, porém, sem cadastro criminal que pudesse levá-lo a tribunal. Ele era o que F.B.I. chamava um mafioso “limpo”. Devido a este facto e por ser um cidadão americano, nascido e criado na América, conhecedor da língua castelhana, a C.I.A. convidou-o a ser um dos principais intermediários entre as diversas facções que se opunham a Castro. Começou por ser um dos principais investidores no jornal Cuba Livre que nascera em Boston, de onde fora transferido para Miami por penúria de meios financeiros. Tommaso, por isso e pelas ajudas financeiras que sua firma 49


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providenciara aos cubanos exilados mais carentes, tornou-se um alvo a abater pela polícia secreta cubana infiltrada na Pequena Cuba. Esta, que no início da fuga dos primeiros cubanos para a Florida após a revolução, era apenas um pequeno gueto, tornouse em poucos anos no maior bairro residencial da periferia de Miami.

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CAPÍTULO IV

A PROMOÇÃO DE UM INVESTIMENTO AMERICANO NA SICÍLIA I

Robert Gordon sabia que estavam à sua espera àquela hora. Atravessou rapidamente a sala de recepção do escritório de Mister Adams e sem bater previamente à porta da sala de reuniões onde o grupo o esperava, entrou de rompante com um ar triunfalista. – Boa tarde meus amigos. – saudou o recém-chegado os circunstantes apontando com o indicador direito para o relógio. – Alguém me disse na última reunião que eu justificava os meus crónicos atrasos porque vinha de longe. O meu relógio diz-me que hoje cheguei à hora marcada não obstante a longa viagem aérea, non-stop, de S.Francisco para Boston, que fiz para conversarmos sobre o negócio que estamos a intermediar. Os dois presentes acenaram com a cabeça, como para mos51


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trar o seu crédito dado àquelas palavras de auto elogio da sua pontualidade naquele dia. Do topo da mesa, John Wiliams, interrompendo a mordida no cachimbo, disparou a pergunta que ia na cabeça dos presentes: – Meu caro Bob, a proposta foi aceite pelos teus amigos VIPs ou tu vieste a Boston mais uma vez para algum outro negócio? Era a quinta vez em dois anos que se reuniam naquele escritório Mister Adams, John Williams e o Bob Gordon. Pela quinta vez também Mister Gordon voava de S.Francisco para Boston com o fim de conferenciar com os seus associados sobre o andamento de suas diligências na promoção do que eles consideravam ser o maior investimento americano num projecto turístico europeu. No primeiro ano as reuniões destes três associados foram na prática dedicadas à recolha de material para a apresentação do negócio a um investidor privado ou uma empresa que o tomaria em mãos se visse nos seus cálculos que iria ter algumas vezes mais lucros na Europa do que em idêntico projecto nos Estados Unidos. O controlo fiscal dos negócios imobiliários na Sicília, a zona europeia onde o negócio estava a ser estudado, era nos anos sessenta, antiquado em relação ao que já existia nos Estados Unidos facto que tornava o negócio duplamente sedutor. A ideia de promover este negócio nascera no último jantar em casa do senhor Giancarlo onde Mister Adams mencionou a John Williams as intenções de Marcelo voltar para Itália quando acabasse o estágio hospitalar. O filho do senhor Giancarlo ficara tão grato ao doutor Marcelo pelos cuidados dispensados a seu pai que lhe garantira o sucesso na sua carreira em Boston com a ajuda da comunidade italiana da cidade em que ele pontificava como 52


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um industrial de influência, para o médico continuar a sua vida profissional na cidade. Porém Marcelo sentia-se muito cansado e sua mulher ansiava por viver em Itália próximo de seus pais. Ambos revelavam muito gosto em ver crescer e educar sua filha junto dos avós. Pelas cartas que recebia do pai, Marcelo sentia-se seduzido a participar com ele na aquisição de uma propriedade agrícola junto ao mar em Cefalù onde teria a possibilidade de construir uma casa de férias e se o futuro da ilha proporcionasse, desenvolver nessa propriedade um complexo para o turismo. O pai tinha muito bom relacionamento com um banqueiro de Roma e com facilidade poderiam obter um empréstimo com hipoteca sobre a propriedade. A convicção que Marcelo mostrara a seus amigos sobre o futuro turístico da ilha onde já trabalhara, despertara neles a ideia de mediar investimentos de companhias americanas do ramo imobiliário na Sicília. Robert Gordon, que eles conheciam como um vendedor exímio, deslocara sua actividade para a Califórnia. Como ele ia com frequência a Boston em negócios e era considerado como o homem ideal para mobilizar investimentos na Europa, com os quais já mostrara ter tido sucesso, foi convidado pelo advogado a contactar uma grande companhia imobiliária do seu conhecimento para investir na Sicília. II

Na última reunião dos três associados envolvidos na promoção do investimento americano num grande complexo turístico na Sicília, tinha ficado resolvido que dois ou três elementos do grupo deslocar-se-iam em breve àquela ilha italiana com o objectivo de apreciarem in loco as diversas características de uma grande propriedade rural, de que Marcelo lhes tinha falado, e que 53


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sabia pelo pai que os donos estavam na disposição de vender. Os terrenos da propriedade estendiam-se até à praia e a distância do novo aeroporto de Palermo não era excessiva para turistas que no futuro viessem a instalar-se aí, depois de urbanizada. Antecipadamente tinham que telefonar de Boston para o Presidente da Câmara de Palermo a marcar a hora e o dia em que ele poderia recebê-los para poderem obter elementos oficiais que necessitavam introduzir no dossier de apresentação para o investidor, tais como garantias de fornecimento de água, de electricidade e toda a legislação concernente à implantação de um empreendimento turístico de grande envergadura cujo terreno era um dos maiores existentes na ilha, pois rondava os mil e quinhentos acres. – Fica desde já combinada a nossa viagem para o mês de Julho. Os tribunais estão fechados e eu tenho tempo livre, sem prejuízo de meus clientes. – alvitrou o Mister Adams. – Depois de comunicarmos com o Presidente da Câmara fixamos o dia. –Vocês sabem – atalhou John – que eu desde que visitei a Sicília com meu pai, era eu adolescente, nunca mais voltei lá. Mas as histórias que nós temos ouvido nestes últimos trinta anos sobre os Dons e sobre os Padrinhos da Máfia Siciliana preocupa-me, a dar-se o caso do negócio que vamos apresentar a um investidor colidir com os interesses desses senhores. Não nos podemos esquecer que a Mob nunca deixou a Sicília quando se estendeu para a América. – Esse será um dos problemas que teremos que esclarecer, até porque pode acontecer, que a par da promoção e intermediação que estamos tentando fazer para terceiros, decidirmos fazer algum investimento nosso, em algo de menor dimensão. – Meu caro Mr. Adams, consideramo-lo um homem de bom senso, mas essa sua ideia de podermos vir a investir na Sicília é 54


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para mim impossível como o senhor sabe, a não ser que o senhor queira fazer algum investimento em parceria com o nosso amigo Gordon. Ainda estou pagando o empréstimo que pedi ao Banco para poder acabar de construir a minha fábrica. – A minha capacidade de investimento é reduzida além de ter que pensar que estou à beira da reforma e que os meus setenta e dois anos é uma idade provecta para tomar riscos de natureza financeira. Sabemos que o Robert Gordon tem bons conhecimentos com alguns banqueiros de Roma. Vamos esperar para ver. – Como você sabe o Turismo da Sicília carece de estruturas de toda a ordem para desenvolver a economia da ilha, sobretudo agora que tem finalmente um aeroporto. III

Algum tempo depois do senhor Giancarlo ter tido alta do hospital, Mister Adams convidou o doutor Marcelo para jantar em sua casa. O advogado vivia na cidade residencial de Newton da área metropolitana de Boston com sua esposa e uma neta que ficara órfã de pai e mãe, por morte destes num acidente de aviação.Com receio de perder-se a caminho de Newton ou dentro desta cidade o médico tomou o metro para o centro de Boston e juntou-se ao amigo no seu escritório situado nessa zona da cidade. No caminho para casa Mister Adams resolveu por delicadeza revelar-lhe que havia convidado o casal Williams. Talvez fosse uma noite apropriada para falar sobre o projectado negócio na Sicília, porque em conversas anteriores o doutor Marcelo revelara sempre o seu interesse em voltar para Itália e possivelmente envolver-se com seu pai num investimento em terrenos na Sicília. 55


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– Meu caro Mister Adams, ainda bem que me informa sobre

o aniversário de sua esposa antes de sairmos da cidade. Vai fazerme o favor de parar o carro na florista da Avenida Brookline. Permita-me que eu tenha uma gentileza com a sua esposa oferecendo-lhe um ramo de rosas que eu sei que ela adora. – Preferia que o meu amigo doutor não se incomodasse mas se faz gosto nisso vamos parar na loja de flores da minha amiga Linda que só fecha às oito da noite. Conheço esta senhora e sou seu cliente há trinta e tal anos. A primeira encomenda de flores que fiz nesta loja, já nesse tempo propriedade da dona Linda, foi para a boda do meu casamento. Eu e minha mulher somos velhos amigos da Linda. Estou certo que esta tarde ela enviou o seu transportador, lá a casa, com um ramo de rosas brancas. Ela nunca se esquece da assistência que a minha mulher lhe prestou quando regressou do hospital para convalescer em casa durante um mês, após uma grande cirurgia que sofreu para lhe ser extraído um cancro de um dos ovários. Desde sempre que temos sido vizinhos em Newton. – Caro Mister Adams, vejo que o seu carácter afável sempre optimista e bondoso lhe tem dado a felicidade de fazer muitos amigos nesta cidade de Boston. – Fico muito grato pelas suas palavras. Eu reconheço que neste mundo não se pode ser muito bom, porque há sempre gente que tende a explorar aqueles que, como eu, entendem que o mundo é feito de mais gente boa do que gente perversa. Temos que admitir que muito do que somos durante a vida faz parte da educação que nossos pais nos deram e do meio no qual passámos a nossa juventude. A Ilda, minha mulher, constantemente refere lá em casa que eu tenho um feitio muito semelhante ao do meu pai. Para reinar com ela, eu costumo responder-lhe que ela não é nada parecida com a mãe dela. A Ilda sabe que eu sempre admirei 56


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a minha sogra e sua mãe por ser dona de uma personalidade marcada pela visão bondosa dos outros. – Aquela minha observação sobre a sua pessoa tem a sua razão de ser quando percebo que o senhor está deveras empenhado no assunto da Sicília. Apesar de conhecer a vida da Itália, pouco conheci da sociedade siciliana. Porém, durante os dois anos que lá trabalhei verifiquei que a organização criminosa chamada Cosa Nostra tem grandes ligações com este país. Achei curioso que os americanos quando se zaragateiam com os italianos tratam-nos por “carcamanos” nome pejorativo que nunca tinha ouvido em Itália. Temo que a nossa maneira de estar na vida não seja compatível com o carácter dos ditos senhores, sobretudo no respeitante ao meu amigo que é uma pessoa de mais idade. Quanto ao John Williams não faço conjecturas porque, apesar de o considerar uma pessoa de bom trato, conheço-o há poucos anos. Mal tinham acabado esta conversa, chegaram a casa. Mister Adams abriu o portão automático da garagem e premiu a buzina do carro como para avisar a família que tinha chegado. Segundos após este sinal sonoro, apareceu, como era costume, a neta para abraçar e beijar seu avô a quem ela adorava. Entrados em casa, Dona Ilda, recebeu ambos com alegria e mostrou ficar sensibilizada com a lembrança do doutor Marcelo, as lindas rosas brancas que ela sempre adorara desde o tempo da sua meninice. – Hoje tive uma surpresa, o nosso Júnior vem jantar connosco. Já havia quatro meses que não aparecia cá em casa. Explicou-me que além das disciplinas que ensinava o ano passado no Liceu de Rhode Island, este ano, contrataram-no também para o cargo de director da biblioteca. Por isso teve igualmente que sacrificar o seu hobby de velejar no rio com o qual ocupava as tardes livres quando fazia bom tempo. Ele saiu por uns instantes 57


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para fazer umas compras no supermercado, porque segundo me disse nem isso consegue fazer em certos dias, chegando a ficar com o frigorífico vazio e sem comida para o jantar. – Meu caro John, isto que está ouvindo é consequência do Júnior não me ter dado ouvidos. Quando acabou o curso de direito convidei-o para trabalhar no meu escritório, mas como a maioria dos jovens, nos dias de hoje, quis fazer a sua vida fora de casa, talvez para afirmar as suas capacidades sem a ajuda paternal. – Nota que ele acabou de abrir o portal do jardim, voltem a falar de negócios. – atalhou a Dona Ilda. O Júnior, depois de beijar o pai e cumprimentar o John Williams e o doutor Marcelo, foi ao telefone para avisar a portaria do Liceu de qualquer assunto que mal se pôde ouvir por estar um pouco distante. De seguida foi sentar-se junto ao pai e ao casal convidado. – Júnior, estávamos aqui a conjecturar na hipótese de tu participares num projecto nosso se, no ano que vem, eu e teu pai conseguirmos concretizar a promoção do negócio que o Gordon está tentando realizar com uma grande companhia americana dedicada a grandes projectos turísticos na América e no Canadá. Será possível o teu Liceu dar-te uma dispensa sem vencimento, para um período de dois anos? – Amigo John, sair do tédio, que é aturar diariamente adolescentes que se mostram pouco interessados no que lhe ensinamos excita o meu interesse, só que eu agora tenho um salário duplo com a direcção da biblioteca. Da Sicília só conheço o que todos nós vimos nos filmes da Máfia, mas é muito provável que a vida da ilha não seja só de corruptos e mafiosos. – Acordámos, eu e o teu pai, em visitarmos a Sicília um dia destes. Seria útil tu poderes ir connosco. Tens algumas férias em breve? Vamos lá estar apenas uns cinco dias. 58


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– Dentro de duas semanas começam as férias de Verão. Se

puderem esperar até lá eu terei muito gosto em acompanhar-vos e assim terei ocasião de ter melhor ideia sobre o projecto que estão propondo ao investidor do senhor Gordon. Eram dez horas da noite. A esposa de John Williams fez o elogio do jantar o que deixou a Dona Ilda muito satisfeita pois esteve sempre receosa que o casal não apreciasse o prato principal feito de uma receita de cozinha cabo verdiana que a sogra anos antes lhe havia proporcionado como uma especialidade da sua terra. O casal convidado, com respeito pelos donos da casa que acharam já um pouco cansados àquela hora, manifestaram seus agradecimentos pelas atenções dispensadas e retiraram-se. – Júnior, tu vais fazer o favor de levar a casa o doutor Marcelo que mora a dez minutos daqui. Ele veio comigo e a esta hora não vai ser fácil apanhar táxi aqui na nossa rua. IV

Havia já anos que a Sicília reclamava ao governo uma política de desenvolvimento de infra-estruturas que pudessem promover a actividade turística na Sicília. A economia desta província italiana que fora sempre pobre ficara ainda mais empobrecida nos últimos dez anos com a crise da pesca e consequentemente com o encerramento das fábricas de conserva de peixe, matéria-prima abundante no passado e indispensável para um trabalho rentável da actividade fabril. O atum, uma das principais espécies do pescado que movia esta indústria, havia praticamente desaparecido das costas da ilha. Dizia-se que a poluição do mar devida ao aumento do tráfego marítimo próximo das suas costas e o ruído causado pelos motores dos navios, eram a causa deste fenómeno. 59


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As comunicações com o resto do país e na própria ilha eram ainda dos princípios do século vinte. A única infra-estrutura moderna que havia sido construída recentemente pelo Estado e que proporcionava os escassos turistas que visitavam a ilha, era o aeroporto de Palermo. Os sicilianos sentiam-se abandonados pela política de Roma, o que levava o povo a apelidar os políticos representantes daquele bocado da Itália, de palermas. Realmente como se veio a verificar mais tarde, os políticos que governaram a ilha na década de setenta não desmereceram esse título desonroso. A sua visão mesquinha com que conduziam a política da ilha tornava-os uns anões políticos aos olhos do Governo de Roma. A obesidade de ideias absurdas e populistas chegou ao ponto de um elemento do partido no Governo iniciar uma campanha com o objectivo de reclamar a independência da ilha do resto do país. O próprio representante local do Governo, depois de um passeio de quinze dias à Grã-Bretanha, exigia que os funcionários do seu gabinete o tratassem por doutor com o argumento que se tinha graduado em Londres. Nunca se soube bem em que ramo académico, mas o facto é que, em toda a ilha ele foi durante anos reconhecido como doutor, até ao dia que a Justiça o condenou ao arresto de um terço do salário para compensar minimamente os clientes lesados num seu negócio no qual muitos nacionais e alguns estrangeiros, cerca de seis mil, perderam largos milhões de liras. A escandalosa promoção deste falso doutor a deputado pela ilha escandalizou a população local e sobretudo os que haviam perdido os seus investimentos.Era a época áurea dos oportunistas cujas malfeitorias nunca levaram alguém à cadeia. Sem uma significativa ajuda do Estado, aos Sicilianos só lhe restava a esperança no investimento estrangeiro. 60


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Depois de anos de espera e a persistência de alguns deputados mais optimistas, o governo de Roma resolveu dar um empurrão ao Turismo da ilha. Havendo na zona ocidental da ilha meia dúzia de Hotéis de luxo, foi decidido pela tutela que fosse construído um casino de jogo, só que o local escolhido para esse efeito, escolha feita pelo respectivo ministro, representava um flagrante erro político porque levantou sérias suspeitas de favoritismo. Esse favor era feito a uma entidade particular, dono de um Banco com sede em Roma e cujo presidente era proprietário dos vastos terrenos onde o casino seria em princípio projectado. A contestação desta decisão governamental, por parte de empresários da parte oriental da ilha, na qual estavam a ser construídas três grandes unidades hoteleiras de grande qualidade, foi imediata. Isto fazia prever que a respectiva concessão a ser dada pelo governo iria dar muita discussão pública e alguns anos para o mesmo tomar uma decisão definitiva sobre o assunto.

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CAPÍTULO V

A VISITA DOS PROMOTORES AOS SENHORES CONTI I

Ao fim de várias e difíceis negociações com a administração da firma americana de investimentos em resorts turísticos, Robert Gordon conseguiu que dois dos seus membros executivos decidissem visitar a ilha da Sicília para avaliarem da viabilidade económica do empreendimento turístico por ele proposto. No mês anterior à data marcada para essa visita, Mister Adams e John Williams tinham voado para Roma onde conferenciaram com o Secretário do Turismo de Itália pelo qual foram recebidos com simpatia e bastante entusiasmo quanto ao projecto do investimento turístico de capital americano num grande resort na praia de Cefalù na Sicília. Na presença dos dois americanos e já no fim da entrevista, o Secretário de Estado, sabendo que os visitantes se tinham deslocado da América para examinar in loco 63


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a zona onde a firma americana poderia fazer o grande investimento proposto por Robert Gordon, fez questão de telefonar para Palermo e marcar com o governador da ilha uma entrevista com os ilustres visitantes. Era importante que os contactos destes promotores começassem pelo topo da hierarquia do poder na ilha. De Roma voaram para Palermo onde se instalaram por dois dias à espera de serem recebidos pelo governador da ilha. Aproveitando o seu conhecimento da língua italiana John Williams quis aproveitar o dia de chegada para obter impressões sobre as praias de Cefalù com turistas instalados no mesmo hotel, e visitar a cidade de Palermo em companhia de seu amigo. Toda a gente abordada sobre as condições desta zona referiam o facto de que o desenvolvimento da mesma dependia de grandes investimentos mormente estrangeiro, visto que não havia esperanças de que os investimentos nacionais que sempre tinham preferido a zona nobre do turismo, a Côte d´Azur italiana, pudessem algum dia interessar-se pelo sul do país nomeadamente pela Sicília, a qual na opinião dos seus habitantes estava votada ao isolamento e à mediocridade de sempre. No entanto a convicção geral, uma espécie de fé bairrista era de que a ilha seria no futuro uma das pérolas do turismo de Itália. Possuía um património histórico e atractivos culturais modestos, quando comparados com as mais importantes cidades de Itália, mas tinha na opinião geral a maior riqueza para o turismo moderno, que era o facto de ter o maior número de dias de sol durante o ano. As praias de areia de um branco dourado seriam no entender dos sicilianos, admiradas um dia no futuro, como mais atractivas do que as de qualquer outra parte do país. Além disso a temperatura do mar era mais amena durante o ano do que a do mar que banha a costa turística ocidental de Itália. 64


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Como o encontro com o governador estava marcado para daí a dois dias de manhã, no dia a seguir à chegada alugaram um carro com motorista e dirigiram-se para a zona de Cefalù situada a cinquenta quilómetros de Palermo. Estava-se nos anos sessenta e as condições de degradação das velhas estradas da ilha era tão chocante que fez pensar os dois promotores se alguma empresa estrangeira que quisesse investir naquela zona ficaria imediatamente desiludida ao ter que rodar nelas, a cinquenta quilómetros desde Palermo até qualquer empreendimento nos arredores daquela pequena Vila. A estrada que ligava a capital da ilha a Cefalù era estreita e em grande parte murada de um lado e do outro o que fazia arrepiar os condutores cujos carros se cruzavam em qualquer ponto do trajecto. A bela vista de um lado e do outro da estrada conseguia pela sua beleza fazer esquecer a rudeza do caminho. A virgindade dos campos prenhes de alfarrobeiras e de amendoeiras davam anualmente aos campos a beleza de um mundo idílico. Nalguns troços da estrada onde os muros que a rodeavam, haviam esboroado pela acção das chuvas de Inverno, podia-se ver uma casa aqui e acolá e as praias de areia dourada banhadas por pequenas ondas de um mar azulado. – Meu caro John, estou convencido que no caso do poder político querer fazer deste bocado de Itália um destino turístico, terão que melhorar substancialmente e em primeiro lugar estas velhas estradas que parece terem sido velhos caminhos romanos que foram asfaltados no século passado. – Bem nos dizia o nosso amigo doutor Marcelo, atalhou o advogado, quando se referia às dificuldades de acesso às pequenas vilas onde exercia a missão de ensinar os cuidados primários de saúde ao pessoal sanitário desses locais. Compreendo bem neste momento a sua frustração em gastar o seu tempo e saber 65


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por estes campos tão primitivos onde habitam pessoas que dificilmente poderiam entender os objectivos de suas palestras. Compreende-se à primeira vista que o barrocal foi completamente esquecido pelos políticos. O carro atravessou uma aldeia de pescadores e desceu à zona da praia. Ao longo de uma estrada marginal apenas asfaltada numa centena de metros, alinhava-se uma dezena de vivendas que deviam provavelmente ser casas de Verão pertencentes a famílias residentes da cidade de Cefalù. Estacionado o carro, os dois visitantes quiseram em primeiro lugar entrar num pequeno bar para tomar um café. O proprietário, com um sorriso aberto deu-lhes as boas-vindas e solicitou-lhes que se sentassem numa das duas únicas mesas do modesto estabelecimento, para lhes satisfazer o pedido. – Perdoem-me os senhores se tomar uns minutos para poder servir-lhes um cafezinho fresco. Nesta época os visitantes são tão raros que eu não me atrevo a servir café requentado. Os senhores vêm de Palermo ou de Roma ver esta linda praia? É pena que só no pico do Verão as pessoas gozem o sol radioso desta nossa praia. – Amigo Adams, não fazia uma ideia que esta zona da ilha se encontrasse num estado tão primitivo. Repara que não há qualquer anúncio à vista de um hotel. Prevejo que no Verão os banhistas vêm de Cefalù e das vilas próximas de manhã e voltam para casa na parte da tarde. Não vi, ao chegar, anúncios de restaurantes. Deduzo que toda a gente vem preparada com uma merenda para depois do banho de mar. – Não senhores. Ao fim da estrada alcatroada há uma taberna chamada “A Toca” que serve muito bem. É a própria dona da casa que, com o marido, prepara as refeições. Toda a gente gaba os petiscos do senhor Josefo. No que toca a mariscos, a 66


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“Toca” é muito gabada pelos turistas. É pena, como disse aos senhores, que depois da época do Verão isto se transforme num deserto. – O senhor é a pessoa ideal para nos dar uma informação sobre aquilo que nos trouxe até cá. Eu chamo-me Williams e este meu amigo, que não fala italiano, é advogado e seu nome é Adams. Representamos um grupo de promotores para um investimento num conjunto turístico nesta zona. Precisamos de saber se há nas redondezas uma propriedade com cerca de mil hectares que uma empresa que se dedica à indústria do turismo está interessada em comprar. O que procuramos deve ter uma frente de praia razoável. Vejo daqui um pequeno aglomerado de barracas e oficinas. A proximidade destas não é desejável para o investimento em vista. – Aqui mesmo ao lado daquelas barracas há uma quinta que julgo estar à venda pelos herdeiros do último dono. Mas não deve ter mais que uns trinta e tal hectares. A seguir a essa pequena quinta é que existe uma grande propriedade agrícola que deve ter mais de mil hectares e confina com a praia. Os senhores podem informar-se em Cefalù quem são os donos e se eles estão interessados em vender. Creio que os donos vivem em Palermo e também têm casa em Roma. São dois irmãos que parecem gémeos. Herdaram dos pais uma grande fortuna. São pessoas muito finas. Creio que pertencem à antiga nobreza italiana. – E o senhor não sabe o nome desses senhores? – Eles aqui são conhecidos como os senhores Conti. A propriedade é conhecida pelo nome de Quinta da Cuarta. Esta pequena aldeia de pescadores onde nos encontramos já fez parte dessa propriedade. Há muitos anos os antigos donos da propriedade que viviam em Roma tinham a terra ao abandono. Eram pessoas muito generosas que nunca se opuseram a que os pescadores 67


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construíssem suas barracas que mais tarde substituíram pelas casitas que os senhores vêm daqui do meu estabelecimento. – Acha que temos a possibilidade de darmos uma volta de carro na propriedade para fazermos uma ideia do terreno? – Os senhores devem primeiro falar com o feitor. Para chegarem lá devem tomar a estrada principal por onde vieram de Cefalù e quando encontrarem uma tabuleta com o nome da Quinta voltam à esquerda para um caminho de terra batida e vão em frente até chegarem a uma casa de primeiro andar e aí perguntam por ele. – Ficamos muito agradecidos pela sua informação e devo dizer-lhe que o seu café estava muito bom. Se não se importa dava-nos o seu nome para o caso de alguém do grupo cá vir para conhecer o local e querer almoçar aqui no seu bar. II

Não tendo conseguido encontrar em casa o feitor da Quinta, por este andar a vigiar os trabalhadores na apanha da azeitona, segundo lhes informou o filho, os dois amigos resolveram voltar para Cefalù. Foi com pouco entusiasmo que John Williams tirou algumas fotografias da praia e dos campos a partir do primeiro andar dos escritórios sitos no mesmo edifício ao lado da casa do feitor. Seria possível que algum técnico de urbanismo turístico que viesse da América para estudar a zona tivesse o arrojo de recomendar um local como aquele onde só se viam árvores e a casa do feitor e ao longe, coisa de um quilómetro, a praia e o mar? O caminho de volta para a cidade foi a repetição da maçada da ida até à Quinta da Cuarta, com os apertos na estrada quando o automóvel se cruzava com veículos pesados que obrigavam o motorista a parar ou quase a roçar os muros que ladeavam a maio68


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ria do trajecto. Não poupava impropérios em italiano de baixo nível, aos ouvidos dos seus passageiros, quando os apertos ameaçavam a destruição do seu ganha-pão. – Meu amigo Adams, quando os investidores do Gordon vierem visitar a propriedade que acabámos de visitar, temo muito que fiquem completamente desiludidos com a pobreza destas estradas e o panorama de um campo sem gente e sem casas. – Estou de acordo consigo, mas penso que, sabendo nós pela conversa que tivemos com o Secretário de Estado, que o Governo Central aprovou um grande projecto de rodovias para toda a ilha, assumo que a primeira via rápida a ser realizada será certamente a que vai substituir esta porque é a que dá acesso às melhores praias da Sicília. Só temo que os lobbies da Côte d’Azur italiana ganhem com algum atraso intencional dessa decisão. – Eu creio que a decisão dos investidores só pode ser positiva se a propriedade for muito barata e tendo em vista o desenvolvimento de um grande resort durante vinte anos. – Mas como é que uma propriedade como a que vimos pode ser muito barata e a Máfia siciliana não lhe joga a mão? Não lhe parece estranho? – Meu caro doutor, a Máfia seja ela qual for só faz investimentos que dêem um retorno rápido. Não é gente para investimentos a longo prazo. O investimento que podemos prever aqui levará cerca de vinte anos a dar resultados positivos. – Talvez depois de falarmos com o Governador consigamos que este nos ponha em contacto com os proprietários e no caso deles nos darem uma estimativa do preço da propriedade poderemos comunicar ao Gordon. – Só temo que tenhamos vindo à Itália antes de termos a certeza que a empresa americana virá mesmo investir na Sicília. – Quando chegarmos a Palermo esta tarde, vamos tentar 69


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marcar pelo telefone um encontro com um amigo meu que é banqueiro em Roma. Como sabe, o Banco onde ele é administrador é meu cliente em negócios que tem na América. Fizemos amizade há já uns anos. Vai com frequência a Boston onde o Banco tem uma filial. Sou eu que dou assistência jurídica aos problemas que às vezes surgem neste ramo do Banco. – Será muito útil, eu diria imprescindível, conseguirmos obter, enquanto estivermos em Palermo, cartas topográficas da região onde se localiza a propriedade e uma planta desta, para facilitar o trabalho do Gordon quando este mês ele for falar novamente com a administração da empresa com a qual ele tem tido conversações sobre o investimento na Sicília. –Você faz ideia quanto é que o Gordon vai pedir de comissão pela promoção em que nós três estamos há mais de três anos envolvidos? Nós nunca tratámos com ele sobre a maneira como vamos dividir essa comissão, se porventura vai haver alguma. – Eu creio que temos que instruir o Gordon para fornecer aos compradores só informações imprescindíveis, e quando a firma compradora decidir fazer o negócio, o assunto da comissão deve ficar em forma escrita de uma obrigação. – Doutor, tenho suspeitas de que todo o tempo e dinheiro que temos gasto com esta tentativa de negócio só possamos ter o benefício de conhecer Palermo e a Roma moderna. Continuo a questionar sobre um eventual interesse da Máfia quando algum Dom local souber que a Quinta da Cuarta vai ser comprada por americanos e por um preço que me parece muito razoável. Devo dizer-lhe que há duas espécies de máfias em qualquer país. Uma é aquela que usa armas de fogo para liquidar seus rivais nos negócios e a outra é a que usa a caneta em vez de uma arma para darem cabo da vida dos que metem o nariz nos seus negócios. Estes últimos são tão temíveis como os primeiros. 70


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III

Às quinze horas do dia seguinte os dois amigos e parceiros estavam pontualmente na antecâmara do gabinete do Governador da Sicília à qual foram dirigidos por um simpático funcionário que já os esperava no hall de entrada do palacete do governo. – O senhor governador vai recebê-los logo que termine o telefonema que recebeu há instantes do senhor Secretário de Estado. De facto, daí a momentos soou uma campainha e o funcionário entrou no gabinete do Governador. Pela porta semi-cerrada pôde ouvir-se a ordem dada ao funcionário para mandar entrar os dois visitantes. – Sejam bem vindos a esta pequena Itália. O senhor Secretário de Estado acabou de me falar há poucos minutos para saber se eu já tinha tido a reunião com os senhores. Eu informei-o de que ia recebê-los exactamente no momento em que ele telefonou. Sabem, ele ficou muito interessado nos planos da firma americana em investir na ilha. Quis saber se os senhores já tinham em vista alguma propriedade em particular. Ele gostaria de ajudar a encontrar o que precisam na zona de que lhe falaram no vosso encontro em Roma. – Senhor governador, estamos muito gratos por nos receber. O meu nome é Adams Sharf e, na nossa conversa telefónica prévia, informei V.Exa. de que sou advogado em Boston, e este meu amigo, Mister John Williams, é industrial. Encarregaram-nos - como referi também nessa conversa de encontrar na zona balnear de Cefalù uma propriedade de grande dimensão para uma nossa representada que pretende investir na Sicília, tendo em conta que os terrenos aqui podem ser de baixo custo e urbanizáveis. Já estivemos na zona e creio que 71


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aí há grandes possibilidades de realização de um vasto resort tal como a companhia nossa representada pretende. – E os senhores falaram com o proprietário para saber se ele quer vender? Sabem, os sicilianos são no geral muito conservadores e por isso muito pegados à terra. A grande maioria das propriedades grandes dessa zona estão nas mãos da mesma família há um cento de anos. Se os senhores precisarem de ajuda no caso de terem dificuldade em encontrar proprietários que queiram vender as suas terras eu posso dar uma ajuda através dos meus conhecimentos. Nessa zona há propriedades cujos donos estão afogados em hipotecas e que já devem somas consideráveis à Fazenda Pública por falta de pagamento de impostos. Alguns estão já em risco de lhes serem confiscadas as terras para saldar essas dívidas para com o Fisco. – Senhor governador, a zona que vimos é bastante atraente mas tememos que os nossos representados fiquem bastante desapontados, quando cá vierem, com a estrada que liga Palermo a Cefalù e às outras vilas mais para poente da ilha. Creio que qualquer firma americana que queira vir investir na zona de Cefalù só o irá fazer quando o vosso governo tornar a actual estrada numa via rápida que ligue o aeroporto a Cefalù porque de outro modo levarão tanto tempo a fazer esse trajecto quanto levam de Londres ou de Paris até ao aeroporto de Palermo. Quanto aos turistas americanos nem se fala, habituados que estão às suas famosas auto-estradas. – Eu esperava por essa vossa observação, mas posso garantir-lhes que no caso desse projecto ir para a frente, o Governo Central já me garantiu que, antes de os senhores abrirem o resort ao público, a actual estrada já foi rasgada em todo o seu trajecto e substituída por uma via de duas pistas em cada sentido de modo que satisfaça as exigências do tão desejado Turismo da Sicília. 72


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Isto foi-me afirmado pelo Secretário de Estado com quem os senhores falaram antes de chegar a Palermo. – Levaremos essa informação aos investidores quando regressarmos à América. Eu creio – atalhou John Williams – que após tomarem a decisão de investir na Sicília, alguns dos administradores virão visitar vossa excelência, sobretudo para se certificarem dos requisitos que irão propor ao governo, tais como a declaração de utilidade pública e incentivos no campo fiscal. Apesar do Governador ter desde logo iniciado a conversa na língua inglesa, John Williams convencido que a troca de ideias seria mais clara se falasse na língua local raramente deixou o Governador exprimir-se em inglês. Ele conhecia bem a estratégia dos seus conterrâneos em negócios com estrangeiros. Alegar dificuldades de expressão ou de compreensão quando pretendiam baralhar o adversário na recta final de algum negócio era uma táctica por si bem conhecida desde os tempos em que trabalhara em Havana com os cubanos. – O senhor governador pensa que seria boa política fazermos uma visita ao senhor Presidente da Câmara de Palermo ou talvez ao Presidente do Município de Cefalù na próxima visita? – O senhor Moretti, Presidente de Cefalù, está nesta data em Roma, mas eu encarrego-me de entregar-lhe os vossos cumprimentos e falar-lhe-ei dos vossos projectos para o seu Município. Estou certo que ele vai ficar muito feliz com a ideia de Cefalù ser o primeiro município da ilha a arrancar com o turismo internacional. Além disso, a falta de empregos naquela zona é um dos nossos quebra-cabeças, pois a emigração tem sido a única solução para os jovens que não encontram ocupação, o que tem levado à desertificação daquela parte da Sicília. – O Mister Adams sugere-me que antes de partirmos para Boston devemos adquirir os mapas feitos por levantamento aéreo 73


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da propriedade que visitámos. Será possível conseguir adquiri-las aqui em Palermo? – Infelizmente não possuímos esse tipo de arquivos. Só em Roma poderão comprá-los na Repartição de Cartografia Militar. O Governador tocou uma campainha após o que o funcionário, usualmente à secretária na antecâmara, entrou no gabinete. – Giuseppe, por favor, alcança-me na secretaria o telefone e o endereço da Cartografia Militar em Roma. Foi um prazer conhecê-los e fico na expectativa de vossas breves notícias sobre o andamento do projecto do qual me falaram. Vão desculpar-me ter que vos deixar porque tenho dentro de minutos que presidir a uma reunião do meu partido político. Nessa tarde, os dois prospectores americanos uma vez instalados no hotel, tentaram de imediato o contacto telefónico com o dono da propriedade que haviam visitado e cujo endereço e número de telefone lhes havia sido fornecido pelo secretário do governador. Para poupar tempo, os dois amigos dirigiram-se de imediato à residência dos proprietários, em seguida ao telefonema. – Senhor Conti, fomos nós que telefonámos há pouco solicitando uma entrevista convosco e com vosso irmão. O meu Nome é John Williams e o meu amigo chama-se Adams Sharf. Ele não fala italiano. É advogado em Boston. Viemos à Sicília com a missão de estudarmos na região de Cefalù a possibilidade de uma empresa americana nossa representada comprar uma propriedade com mais ou menos mil hectares na qual pretende construir um grande resort de qualidade, com hotéis, golfe, etc. – Tenho muito gosto em conhecê-los. Como eu e meu irmão estudámos em Londres durante uns anos, talvez seja mais fácil para o seu amigo acompanhar a nossa conversa, falarmos em inglês, não acha bem? 74


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– Doutor, o senhor Conti teve a gentileza de sugerir que con-

versemos em inglês porque eu comecei por dizer-lhe que tu não dominas a língua italiana. – É muito gentil da vossa parte, senhor Conti. Agradeço a atenção. – Então, permita-me perguntar-lhes a razão da vossa visita. – Há dois dias atrás visitámos a cidade de Cefalù e, como era nossa intenção, percorremos os arredores para fotografarmos a zona. Num pequeno bar junto à praia conversámos com o proprietário o qual nos informou que a única propriedade com a área que procurávamos era da família Conti. Inquirimos sobre o vosso telefone e morada e há-de perdoar-nos vir incomodá-lo. A nossa visita tem a simples finalidade de perguntar ao senhor e a seu irmão se estariam na disposição de vender a vossa propriedade para o fim que já referimos. Atrevo-me a dizer que no caso desse negócio se concretizar a vossa decisão irá ter uma enorme influência no desenvolvimento turístico de toda a Sicília, porque o que a companhia americana tem em vista realizar será um verdadeiro motor da economia da ilha. – Eu e meu irmão temos considerado vender a propriedade que se referem porque a mão-de-obra da agricultura está cada vez mais escassa. Praticamente, só a gente mais velha é que continua agarrada à terra. Os jovens ou procuraram emprego nas grandes cidades italianas ou vão para o estrangeiro onde têm parentes. Como sabem, a América tem uma colónia de gente oriunda da Sicília e por isso este é um país para onde se dirigem a maioria dos nossos emigrantes. Quanto a uma venda da Quinta da Cuarta já temos tido várias propostas de compradores italianos mas os preços que oferecem são ridículos. As pessoas que nos têm abordado com propostas de compra também não nos têm oferecido garantias de que irão utilizar a terra para projectos bem definidos. A 75


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maioria procura apenas comprar para revender com preços especulados. – Senhor Conti, nós viemos somente falar com os senhores para sabermos directamente de vós se perspectivam vender a propriedade. No caso de nos dizer, como acabou de mencionar, que gostaria de ver os futuros compradores utilizarem a vossa propriedade para fins não especulativos, eu estou na posição de vos afirmar que a empresa nossa representada quer realizar um grande resort dedicado ao Turismo. Quanto a negociar um preço, só será feito por um perito americano que virá daqui por um mês falar convosco e trará com ele declarações expressas da empresa para que pretende a propriedade, as quais serão acompanhadas com uma garantia bancária que nós iremos sugerir, para assegurar a finalidade de tal aquisição. – Agrada-me essa garantia porque de outro modo ficaríamos tristes se a transacção não viesse trazer benefícios consideráveis para a ilha e fosse apenas um negócio para obter mais-valias individuais ou empresariais. – Há um aspecto particular neste futuro negócio que nós gostaríamos de deixar claro. A empresa que representamos tem accionistas que são figuras de destaque da elite política americana, as quais nunca consentirão a entrada na empresa de gente ligada à Máfia. Antes da administração decidir investir nesta ilha tiveram que assegurar-se através de meios diplomáticos que o Governo local não era influenciável por aquela organização. – Agrada-me saber isso porque eu e o meu irmão não queremos nada com essa gente.

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CAPÍTULO VI

AS PRIMEIRAS NEGOCIAÇÕES

I

Passado pouco menos de um mês das conversações tidas entre os dois promotores e os irmãos Conti, Robert Gordon e dois administradores da empresa americana, potencial compradora da Quinta da Cuarta, voaram de S.Francisco para Palermo com o objectivo de iniciarem negociações para a eventual aquisição da mesma. Mister Gordon era um hábil negociador. Porém, ele estava habituado a fazer negócios num meio social onde tinha importantes conhecimentos com empresários e capitalistas e antigos patrões para quem trabalhara como mediador. Apesar de nunca ter dado a entender a seus actuais associados para o negócio na Sicília, ele olhara sempre o empreendimento na Sicília com pessimismo porque sentia-se desencorajado 77


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por ir tentar fazer um negócio num país onde não conhecia ninguém. Porém, na última reunião tida em Boston com seus associados, o Mister Adams revelara-lhe que tinha um bom relacionamento profissional com o banqueiro italiano de Roma a quem prestava assistência jurídica quando este se deslocava àquela cidade em negócios do Banco. Antes de partir para Itália pediu ao advogado uma carta de apresentação da sua pessoa e dos dois americanos e a menção do objectivo da sua deslocação à Sicília. Já com esta recomendação do advogado na mão, Robert Gordon solicitou, de Boston, pelo telefone, uma audiência com o banqueiro para o dia a seguir à chegada a Roma. Conhecedor da mentalidade dos banqueiros recomendou à secretária que o atendeu que não deixasse de mencionar por quem eram recomendados e a razão da sua visita e dos três americanos à Sicília. À partida para Itália sentiu que podia ter um pensamento mais positivo porque o seu instinto dizia-lhe que a amizade do advogado com o vice-presidente de um Banco importante de Itália podia vir a ser uma ajuda importante para a realização do negócio, que no caso de chegar a final feliz, seria o maior em que ele actuara nos últimos anos. O encontro dos três visitantes com o banqueiro senhor Brasi foi muito simpático e demorado, contrariamente ao que Robert Gordon pensara. Como a conversa havia chegado à hora do almoço e o interesse do senhor Brasi no negócio aumentara com a exposição pelos visitantes dos detalhes do projecto de investimento, aliás facto pouco vulgar para o primeiro encontro, o banqueiro convidou-os para almoçar no próprio Banco, na sala de refeições da administração, acto de bom-tom que caiu no agrado dos visitantes. – O senhor é muito gentil. – comentou um dos administra78


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dores americano. – Devo dizer-lhe que o almoço estava delicioso. Quando saboreamos o maravilhoso vinho que nos foi servido temos forçosamente que nos lembrar que estamos na Itália. – Faço votos para que os senhores voltem em breve já com o objectivo de começar a grande obra que se propõem realizar na nossa Sicília. Temos aqui em Roma grandes arquitectos com provas dadas em várias partes do mundo. Não se esqueçam, se precisarem de profissionais italianos, o Banco está ao vosso dispor para lhe recomendar os mais competentes. No dia seguinte ao almoço com o vice-presidente do Banco, Robert Gordon ficou encarregado de contratar por umas horas, uma equipa de levantamentos aéreos e o respectivo helicóptero para sobrevoarem a zona que interessava para o projecto do resort e conseguirem observar pessoalmente o terreno e obter as fotografias necessárias para o estudo prévio que os arquitectos da Empresa americana iriam certamente fazer, antes de uma tomada de decisão de compra da propriedade dos Conti. Estes haviam-se preparado com toda a documentação referente à propriedade, para os receber nesse dia. – Sejam bem-vindos a esta terra, a nossa Sicília. Recebemos ontem um telegrama dos vossos sócios a anunciarem a vossa vinda. Tomam um café? Os Conti viviam num palacete do século passado rodeado por um vasto jardim. O palácio ficava situado numa colina sobranceira à cidade de Palermo. Da sala onde estavam reunidos gozava-se a vista de toda a cidade e o mar que banha as costas da ilha. Os irmãos Conti eram ambos solteiros apesar de já terem ultrapassado a casa dos cinquenta. Tinham residência em Palermo e em Roma. Viviam ambos dos rendimentos do aluguer de prédios deixados pelos pais, acrescido do rendimento eventual da produ79


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ção agrícola da Quinta da Cuarta. Nas partilhas após a morte dos pais, as suas irmãs haviam preferido à Quinta da Cuarta, uma quinta mais distante de Palermo, no interior da ilha mas que tinha um rendimento consideravelmente maior apesar da sua dimensão ser idêntica à herdade dos irmãos. Os Conti podiam ser considerados pessoas ricas porém de capitais limitados. Pela parte do pai tinham linhagem de fidalgos. Herdaram uma fortuna considerável em imóveis por morte dos pais, mas algum dinheiro deixado nos bancos foi quase totalmente exaurido pelo imposto sucessório sobre aqueles bens. Eles estavam na verdade dispostos a vender a sua propriedade agrícola para poderem libertar-se de compromissos na ilha e poderem ter tempo e dinheiro para viajarem pelo mundo fora, coisa que até aí não lhes fora possível. As idas e vindas entre Roma e Palermo só lhes havia permitido férias de curta duração o que nunca lhes havia dado oportunidade para fazer uma ausência prolongada em Paris ou em Londres, cidades que os dois irmãos haviam já visitado mas sempre por curtos períodos, que nunca lhes permitiram usufruir do real valor dos eventos culturais destas cidades. Sendo solteiros e não gostando de viajar sozinhos acabavam sempre de viajar juntos, facto que não lhes permitia estar afastados do escritório em Roma ou em Palermo mais que meia dúzia de dias em cada ausência. Tudo isto pesou bastante para tomarem a decisão de vender seu património agrícola na Sicília. II

– Meus caros senhores, nós tomámos a decisão de vender a

nossa propriedade, mas como hão-de calcular, a nossa negociação tem de se basear em pareceres de avaliadores sobre o valor não 80


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só do terreno mas também das alfaias e do gado. Nós não temos condições para vender apenas o terreno. Esperamos que esta condição não seja impeditiva de fazermos negócio. – Creio que os nossos investidores não verão nisso um impedimento para o negócio. – avançou Gordon. – Gostaria de continuar a nossa conversa e se não têm compromisso, seria uma honra para nós poder tê-los como nossos convidados para almoçar num restaurante de Palermo. Diz-se na América que não se deve fazer negócios com o estômago a dar horas. – É um prazer sermos vossos companheiros no almoço mas se nos permitem, segundo a nossa tradição, somos nós, como pessoas da terra, que vos fazemos o convite. Um dos irmãos chamou o mordomo e pediu-lhe para telefonar para um dado restaurante e fazer a reserva para cinco pessoas. – O restaurante fica fora do centro urbano, é acolhedor e tem uma excelente frequência, diria mesmo que é o local mais confortável para falarmos de certos assuntos. Tem várias saletas para pequenos grupos como o nosso. Certamente vão gostar do ambiente e da descrição que esses espaços permitem quando tratamos de negócios. À saída do palacete, o mordomo que era também o chofer dos Conti convidou os visitantes dos patrões a entrar para um Bentley já antigo mas muito bem conservado, adiantando que os senhores Conti seguiriam noutro carro atrás deles. A localização do restaurante foi uma surpresa muito agradável para os três visitantes. De lá, da encosta do Monte Pelegrino, um ponto alto da periferia da cidade de Palermo, podia avistar-se todo o vale, conhecido há séculos por Concha de Ouro, onde a cidade se encaixa como um tesouro escondido, com o mar a seus pés. 81


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– Acreditem os senhores Conti que, para nós, qualquer al-

moço que nos sirvam não poderá ser melhor que esta vista maravilhosa da cidade. – Os senhores tiveram sorte com o tempo, há já semanas que não tínhamos um dia tão bonito como hoje. Naturalmente que num dia de sol parece que a cidade rejuvenesceu. Até os edifícios que datam do século XII e que não são recuperados desde a segunda grande guerra parecem ter sido restaurados. Vê-se bem daqui o edifício onde funciona o governo da ilha. É conhecido por toda a gente pelo nome de Palazzo Reale porque desde a sua fundação, no Século XI, pelos árabes, alojou sempre o poder. É uma das excepções ao argumento da falta de fundos para conservação dos edifícios históricos da cidade. Obviamente que o Poder político abre sempre excepções quando se trata de cuidar dos seus altares. Vamos então ao almoço porque já nos fazem sinal que a mesa já está pronta. A variedade do menu impressionou os visitantes o que mereceu os mais variados elogios mas a observação de um dos Conti sobre as lagostas, ao referir que eram importadas de Portugal, pescadas no Atlântico, não deu a nenhum dos comensais azo para escolherem outro prato senão lagosta na brasa regada com um delicioso vinho branco. A sobremesa, fruta variada, e o café acompanhado de um licor subtil escolhido pelos Conti seguiram-se num ritmo relaxante como a preparar os convivas para uma agradável conversa de negócios. – Começando pelo problema dos avaliadores, – avançou Gordon, – eu e estes meus dois amigos vamos contactar o banqueiro senhor Brasi quando voltarmos a Roma, pois é, certamente, a pessoa indicada para nos indicar dois desses técnicos. Possivelmente ele poderá indicar-nos os avaliadores do próprio 82


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Banco. Estamos recomendados ao senhor Brasi pelo advogado da sucursal do Banco em Boston, de quem ele é muito amigo. Quando os senhores se deslocarem a Roma poderão solicitar ao senhor Brasi que apresente os técnicos que trabalham para o Banco aos nossos avaliadores. – Lamentamos que os senhores tenham feito uma longa viagem e voltem à América sem uma ideia do valor da propriedade que a companhia, vossa representada, pretende comprar-nos, mas para ficarmos com a certeza que fizemos um negócio justo e sério devemos ter uma avaliação bilateral do valor da mesma. – Compreendemos bem a condição que nos apresenta porque ela estava também na nossa agenda. Estes senhores, que são administradores da empresa interessada no investimento fizeram a viagem de S. Francisco até Itália para uma apreciação sobre a orografia, condições balneares, adequação ou não à criação de pelo menos dois campos de golfe e outras características do terreno. A par do conhecimento do valor da vossa propriedade é imprescindível um parecer de viabilidade de construção de um grande resort turístico para o qual possa no futuro atrair-se o investimento em hotéis e outros tipos de alojamento turístico. Foi-nos prometido pelo presidente da Câmara Municipal de Cefalù que, após consulta do Ministério do Planeamento do Governo Central, enviar-nos-á o parecer dos seus técnicos. – Voltamos amanhã para Roma e lá falaremos com o senhor Brasi já podendo dar-lhe a informação da vossa disponibilidade para o negócio que nos trouxe a Itália e nos deu ocasião e o prazer de conhecê-los.

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CAPÍTULO VII

UM BANQUEIRO ARDILOSO

I

No dia seguinte ao seu regresso a Roma, Robert Gordon e os dois administradores representantes da empresa americana visitaram pela segunda vez o senhor Brasi, vice-presidente do Banco, a quem tinham sido recomendados pelo advogado Mister Adams. – Fico satisfeito por saber que os senhores Conti estão na disposição de fazer negócio com a empresa que representam. Devem no entanto ficar cientes que a burocracia neste país é o pior dos males que emperram o nosso desenvolvimento. No que se refere à Sicília, o problema é ainda pior. Devem contar pelo menos com um ano para obter um parecer do Ministério do Planeamento sobre a viabilidade do vosso projecto. Quanto à avaliação da propriedade eu próprio solicitarei aos técnicos do Banco para a realizarem como se fosse um trabalho para a instituição. 85


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– Em meu nome e de meus companheiros agradeço-lhe a

atenção que teve em receber-nos e esperamos ter notícias vossas em breve quanto à avaliação realizada por vossos técnicos. O Mister Adams é nosso associado na promoção deste investimento como é já do vosso conhecimento. No caso de haver necessidade de nos contactar agradecemos o favor de entrar em contacto com o escritório dele em Boston. De imediato ele informar-nos-á e eu entrarei em contacto convosco. Partiremos amanhã para Boston e estes senhores seguirão para S.Francisco. – Desejo-vos uma boa viagem e podem ficar certos que logo que eu obtenha o parecer de nossos técnicos, enviar-lhes-ei esse parecer sobre o valor da propriedade dos senhores Conti. Satisfeitos com a viagem à Sicília e a perspectiva de poder realizar-se o investimento no qual Robert Gordon já tinha posto todo o seu empenho e gasto bastante dinheiro seu e dos promotores seus associados, chegaram a Boston confiantes nas boas palavras do senhor Brasi. Estranhando não ter notícias do senhor Brasi, passados seis meses depois do regresso de Itália dos administradores da companhia americana e de Robert Gordon, este resolveu telefonar-lhe para Roma mas sentiu-se algo desapontado com a resposta daquele senhor. Não houvera notícias até aquela data nem do Ministério nem da Câmara Municipal de Cefalù. – O senhor Gordon deve lembrar-se do que lhe disse acerca da burocracia neste país. Ninguém quer tomar responsabilidades sobre um caso de tão grande importância para a ilha. Os pareceres passam do primeiro burocrata para o segundo e daí para o terceiro e daí por diante. Em cada secretária ficam mais de um mês, porque primeiramente têm que olhar para os projectos dos senhores do continente que lhes metem na mão uns envelopes. Não estranhem a demora. Eu vou pedir ao meu presidente, o senhor Lu86


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perti, para lembrar ao ministro que o vosso projecto tem o maior interesse para a Sicília. Em breve mandar-lhe-ei o documento de avaliação da propriedade que segundo me informaram está quase pronto. II

Roma andava na Primavera de 1971 num alvoroço político pelas desavenças dos partidos que ameaçavam fazer cair o Governo que tinha entrado em funções ainda não havia um ano. A notícia dos jornais de que a firma americana que tinha construído uma ponte sobre o rio Tibre tinha oferecido um vultuoso prémio ao director italiano das obras da ponte, por estas terem terminado seis meses antes do prazo final acordado com o governo, era um dos temas que inflamava as dissidências partidárias. Falava-se em corrupção, mas a empresa construtora argumentava que na América era tradicional oferecer-se um prémio ao director nacional de uma obra importante, quando ele, abrindo caminho sobre todas as burocracias, impedia as derrapagens nos custos e sobretudo quando as suas expeditas diligências permitiam, como fora o caso, que a obra fosse acabada seis meses antes da data prevista no contrato com o governo. O senhor Luperti, presidente do Banco a quem o senhor Brasi havia pedido uma recomendação ao Ministro das Obras Públicas para dar a sua bênção a um parecer positivo dos técnicos sobre o projecto dos americanos na Sicília, entendeu que o momento político não era o melhor para falar sobre o pretendido investimento da empresa americana da Califórnia. Passadas duas semanas, ocorreu o senhor Luperti encontrar os irmãos Conti num jantar de gala no Clube de Roma, no qual tomou a oportunidade de informá-los de que os técnicos do seu 87


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Banco já tinham terminado a avaliação da Quinta da Cuarta. – Espero que os vossos avaliadores tenham já encontrado um valor para a vossa propriedade. Como calculam, os americanos, que andam muito mais rápidos que nós nestas informações, já começam a mostrar uma certa impaciência com as demoras. É que, além das avaliações que necessitam para tomar uma decisão acerca do negócio, eles nada decidem por prudência, sem obterem os pareceres do Ministério e da Câmara Municipal de Cefalù. – Diga-nos senhor Luperti, será que podemos um dia destes encontrar-nos no vosso Banco para compararmos as duas avaliações? – Terei muito gosto em convidá-los para almoçarmos, comigo e com o senhor Brasi e compararmos os documentos sobre as duas avaliações. Quando os senhores tiverem nas vossas mãos a avaliação que mandaram fazer, agradeço que me telefonem e então combinaremos o nosso encontro. Certamente que no caso de fazerem negócio, os senhores vão necessitar de aconselhamento no investimento do capital resultante da venda, o qual ponho desde já à vossa disposição. Em meados de Junho desse ano chegaram por fim, às mãos do vice-presidente do Banco, o senhor Brasi, os pareceres do Ministério e da Câmara de Cefalù que davam luz verde ao projecto de um grande resort turístico na Quinta da Cuarta. Antes destes pareceres e das duas avaliações serem enviadas para Boston ao cuidado do advogado senhor Adams, o senhor Brasi telefonou a informar os irmãos Conti das boas notícias e desde logo o almoço dos banqueiros com os Conti ficou combinado. A sede do Banco, instalada num edifício impressionante pela sua arquitectura do século XIX proporcionava aos administradores a comodidade de possuir duas belas salas onde eram servidas as refeições confeccionadas por dois óptimos profissionais, 88


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numa cozinha moderna e totalmente equipada. Isolados da restante administração numa das salas, aos quatro convivas foi servido um almoço que todos apreciaram pelo requinte. Servido o café, os dois administradores e seus convidados passaram a uma sala anexa onde foi servido um delicioso conhaque francês. Os quatro fumaram um charuto que o presidente afirmou serem genuínos de Cuba. O requintado ambiente e o delicioso almoço deu aos irmãos Conti a percepção de um encontro com negócio à vista. – Meus caros senhores Conti, a coincidência de valores estimados pelos vossos avaliadores e pelos nossos é tão evidente que não irá deixar grandes dúvidas à empresa que pretende adquirir a Quinta da Cuarta em Cefalù. – avançou o senhor Brasi. – Os senhores Conti perdoar-me-ão o que vos vou dizer. Um dos engenheiros que trabalha para o nosso Banco, fez, a meu pedido, um estudo tipo master plan enquanto os nossos técnicos procediam à avaliação do terreno da vossa Quinta. Sabem que fiquei seduzido pela ideia do resort que lá pode ser feito? É óbvio que a sua construção vai requerer um investimento volumoso e por longo prazo. Creio que os senhores não estarão interessados numa eventual participação no capital que vai ser necessário para o empreendimento que os americanos pretendem desenvolver na vossa Quinta. – Na verdade não nos será possível participar. Mas não será possível que o vosso Banco se associe neste negócio, no caso disso ser aceite pelos americanos? – lembrou um dos irmãos. – Nós sabemos que o dinheiro não tem pátria, mas eu e meu irmão ficaríamos mais felizes se metade da sociedade que irá fazer a aquisição da Quinta da Cuarta fosse constituída por capitais nacionais em associação com o capital americano. – O senhor Conti deu-me uma ideia, porém preciso de uns 89


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dias para a estudar. Falarei com os senhores dentro de uma semana. Entretanto o senhor Brasi deve reter consigo as informações do Ministério e da Câmara e as avaliações até nós falarmos na próxima semana. III

– Alô mister Adams, fala Brasi, em Roma. Como estão, o

senhor e a sua família? – Por cá estão todos de boa saúde, obrigado pelo seu interesse. Como vão correndo as vossas diligências quanto ao negócio da Quinta em Cefalù? – Estou precisamente a telefonar-lhe para lhe fazer um pedido quanto a esse negócio. O meu amigo poderia fazer o favor de inquirir aos administradores da empresa da Califórnia se estariam interessados em ter um associado italiano que entraria com cinquenta por cento do capital na empresa que pretendem constituir para o desenvolvimento do resort em Cefalù? – Isso vai ser uma surpresa para todos. Vou entrar em contacto com o Robert Gordon e, logo que tiver uma resposta, eu telefonar-lhe-ei para lhe dar conhecimento da decisão dos homens da Califórnia. – Fico então à espera do seu telefonema, meu caro amigo. Até breve. Ao fim de duas semanas Robert Gordon telefonou ao advogado para lhe comunicar que a empresa americana só podia decidir em estudar uma eventual associação com uma entidade italiana depois de ter todas as informações necessárias sobre a sua identidade e capacidade financeira. – Alô mister Brasi, fala mister Adams. Queria comunicar-lhe que sobre aquele assunto de associação de capitais italianos 90


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à empresa americana para desenvolverem em conjunto o resort em Cefalù torna-se necessário que o meu amigo nos envie referências formais sobre a entidade que se propôs associar neste projecto. O senhor faz-me o favor de me enviar pelo correio expresso, a identificação da parte interessada, e a sua capacidade financeira para investir num projecto dessa dimensão. Os americanos temem que os capitais italianos tenham qualquer relação com pessoas ligadas à Cosa Nostra. Eles dizem conhecer os métodos pouco ortodoxos que os seus membros costumam usar em negócios deste tipo. – Meu amigo Adams, posso garantir-lhe desde já, que a entidade interessada nada tem com a organização que referiu e que a sua capacidade de investimento está ao nível da companhia da qual são intermediários neste negócio. O senhor Luperti, depois da conversa que havia tido com os proprietários da Quinta da Cuarta e de tomar conhecimento da avaliação da propriedade feita por engenheiros do seu Banco a qual assumia valores idênticos à avaliação dos engenheiros contratados pelos irmãos Conti, ficara seduzido pelo negócio e revelou ao seu amigo Brasi que a associação com os americanos era de interesse para o Banco. Pediu-lhe no entanto algum tempo para decidir qual seria a empresa pertença do próprio Banco que devia apresentar aos americanos. Pensou na Companhia de Investimentos do Mediterrâneo, independente do Banco, mas esta tinha dois sócios que não quiseram vender as respectivas participações. Entrar pessoalmente no capital inicial da firma era um risco que não queria nem podia tomar. Tinha que reflectir um pouco mais sobre a posição a tomar. O empreendimento seduzia-o. No caso de ser bem sucedido, o seu nome iria ficar no futuro ligado ao maior empreendimento turístico da Sicília. Possivelmente até os seus colaboradores erguer-lhe-iam uma estátua ainda 91


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em vida ou depois de sua morte. Era um caso para ser bem pensado de modo a correr o mínimo risco. Havia uma hipótese de participar sem qualquer risco, antes pelo contrário, teria a oportunidade de fazer o melhor negócio da sua vida. Ao ocorrer-lhe a ideia como resolver este problema, o senhor Luperti foi invadido por um forte sentimento de satisfação, ao lembrar-se que havia começado há cinquenta anos como um simples empregado de balcão no Banco de que agora era presidente e tomou uma decisão. Chamou a sua velha secretária e pediu-lhe para ligar para um dos senhores Conti. – Tente primeiro a ligação para o seu escritório de Roma e se nenhum deles estiver em Roma ligue para casa deles em Palermo. – Senhor Luperti tenho na linha dois, um dos irmãos Conti. Ele está em Roma. – Alô senhor Conti, fala o Luperti do Banco Italiano do Mediterrâneo, necessito ter uma conversa consigo e com seu irmão. Pode fazer-me o favor de falar com seu irmão e dizer-lhe que eu gostaria de falar com ambos. Se não lhe causar transtorno encontrar-nos-íamos aqui no Banco. O assunto é confidencial, sobre o negócio da vossa Quinta. Penso que não há lugar mais adequado para tratarmos de negócios confidenciais que o meu gabinete, como deve calcular. – Senhor Luperti, estamos de partida amanhã para Palermo. Se é um assunto urgente teremos que nos encontrar ainda esta tarde, porque vamos ficar na Sicília cerca de duas semanas. – Muito bem, podemos encontrar-nos aqui pelas quinze horas. Pontualmente à hora marcada os irmãos Conti avisavam da sua chegada. – Então senhor Luperti que tem o senhor de urgente para 92


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nos dizer sobre o negócio da Quinta da Quarta, são boas ou más notícias? – Os senhores é que vão dizer-me se do nosso encontro esta tarde vai sair uma boa ou uma má noticia. Tenho uma proposta a fazer-lhes. Consultei os americanos através dos nossos amigos em Boston, acerca da possibilidade deles admitirem um sócio italiano com uma posição de cinquenta por cento igual à da empresa da Califórnia. E fiquei satisfeito em saber que estão na disposição de aceitar a proposta desde que a entidade proposta ofereça garantias de idoneidade e solidez financeira. O que é que os senhores pensam se essa entidade italiana que se propõe participar na sociedade para o desenvolvimento do resort, com a posição de cinquenta por cento, o que naturalmente dará uma representação na administração, for eu próprio? – Senhor Luperti nada nos podia deixar mais felizes, por saber que um italiano com o vosso prestígio financeiro venha a ter uma mão de controlo no grande plano que gente estrangeira se propõe realizar na nossa terra. Podemos garantir-lhe que a sua decisão é uma grande surpresa para nós e vai certamente ser motivo de orgulho para todos os sicilianos. – Fico muito feliz com as vossas palavras e ainda mais com a vossa anuência à minha proposta. Eu confesso que não tenho capacidade pessoal de investimento para participar neste empreendimento que vai requerer muito dinheiro para se desenvolver nos próximos cinco anos. Vejo no entanto uma maneira de superar esta dificuldade para eu poder comprometer-me com a entrada na sociedade e no pagamento aos senhores pela venda da propriedade. Enquanto não houver vendas de parcelas a terceiros a empresa terá a facilidade de recorrer a financiamento do Banco que eu dirijo. Se os senhores estiverem de acordo, e já que o valor atribuído pelas avaliações feitas à vossa propriedade em Cefalù 93


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são semelhantes, eu faria convosco um contrato de venda da Quinta da Cuarta e sinalizo na altura com dez por cento do valor que lhe foi atribuído pelos avaliadores. Nesse contrato deverá ficar expresso que os senhores vendem-me a vossa propriedade a mim ou a quem eu indicar pelo preço que eu entender tendo esse preço como limite o dobro do montante que foi achado pelos avaliadores. Será necessário no entanto solicitar a esses técnicos para alterarem os valores da avaliação para o dobro do que inicialmente calcularam tendo como argumento que os senhores acharam que o valor por eles atribuído era demasiado baixo e que só aceitam fazer negócio se os compradores pagarem pelo menos o dobro do valor por eles atribuído inicialmente à Quinta da Cuarta. – Mas o senhor Luperti sabe certamente que o imposto que vai ser atribuído a uma venda superior ao que nós vamos receber, vai também ser praticamente aumentado. – Não se incomodem com esse facto porque o contrato que fizermos incluirá a minha obrigação de eu pagar-lhes a quantia correspondente ao aumento do imposto. O acordo foi selado com um aperto de mão e as negociações dos irmãos Conti com a empresa americana foram concluídas com êxito e muita publicidade na imprensa.

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CAPÍTULO VIII

MARCELO VOLTA A ITÁLIA

I

Terminado o seu tempo de internato hospitalar na América, Marcelo e a sua mulher decidiram voltar para Itália. Estavam ambos cansados da vida de trabalho na América. Ele tinha ficado extenuado com a intensa actividade a que os internos residentes tinham que se dedicar além do trabalho extra como arquivista do hospital, cuja remuneração lhe permitia manter com ele a família. O regime do hospital, onde trabalhou durante cinco anos preparava os jovens médicos com o ambicioso objectivo de virem a ser os melhores nos seus ramos de especialidade, quer viessem a praticar na América quer no seu país. Quando terminou esses anos de treino sentia que tinha dado o seu melhor para quando regressasse a Itália poder exercer a sua profissão com a dignidade de quem sabia tratar doentes. 95


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Tinha feito amigos, a maioria deles colegas com quem havia trabalhado no mesmo hospital. Nas conferências semanais sobre disciplinas extra-curriculares que faziam parte do programa de ensino de diversos hospitais da cidade conheceu estudantes de várias nacionalidades com alguns dos quais estabeleceu laços de amizade. Ele e sua mulher eram frequentes convivas nas festas de despedida dos residentes finalistas mais amigos que voltavam para seus países. O hospital dispensava uma sala de reuniões e providenciava o respectivo lanche, onde não faltavam os mimos para as crianças que acompanhavam seus pais. Nestes convívios cimentava-se a amizade que os unira no trabalho diário, ao longo dos anos, e as promessas de se visitarem quando um dia, numa viagem eventual ou congresso, passassem nas cidades onde cada um ia estabelecer a sua vida profissional. Gyorg Lindon e sua mulher haviam-se tornado grandes amigos do casal Manzinni. Ele estudava engenharia no M.I.T. e ela estava tirando o curso de gestora de empresas na Universidade de Boston. Ambos os casais tinham uma filha da mesma idade. Quando chegaram da Suécia, de onde eram originários, alugaram um apartamento no prédio onde os Manzinni já moravam há dois anos. O proprietário do prédio havia informado os Lindon que seus vizinhos eram todos gente de gabarito. No rés-do-chão esquerdo vivia um médico italiano com sua mulher e uma filha de quatro anos e nos restantes quatro apartamentos viviam casais estudantes, dois eram austríacos e os outros dois de origem filipina. Como era habitual na Suécia, quando alguém chega a uma pequena comunidade como é o prédio onde vai morar, os Lindon sempre que descobriam novos vizinhos, davam-se a conhecer. Foi 96


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deste modo que numa tarde de folga de Marcelo eles encontraramse com as respectivas filhas à saída do prédio e apresentaram-se. Como se dirigiam para o Fenway Park, próximo de casa, para passear as crianças, foram conversando sobre assuntos triviais enquanto as crianças brincavam uma com a outra. Numa noite de Inverno, pelas duas da madrugada o casal recorreu ao casal Manzinni porque sua filha tinha acordado com um ataque de asma e não conheciam o hospital onde se dirigir e o desejo deles era levar a miúda ao hospital onde Marcelo trabalhava. Como nessa noite o seu vizinho estava de serviço, a sua esposa atendeu-os e sem hesitar conduziu-os no seu carro ao hospital do marido.A menina foi imediatamente atendida e levada ao departamento de Raios X, com o suporte de oxigénio, visto a sua falta de ar inspirar cuidados. O diagnóstico revelou uma bronquiolite capilar provavelmente de origem alérgica. Ela sofria de asma quando o tempo piorava e nesse dia tinha recorrido a uma clínica de um médico particular na vizinhança, que lhe aplicou uma injecção de aminofilina e receitou supositórios da mesma substância, desencadeando provavelmente o quadro de bronquiolite causada por alergia àquele medicamento. Sofia, a mulher de Marcelo, tentou o resto da noite em que acompanhou o casal tranquilizar a chorosa mãe da criança, quando o pediatra de serviço ordenou o internamento da menina. Ao fim de cinco dias a filha dos Lindom teve alta do hospital. Estes ficaram eternamente gratos pela rápida intervenção e posteriores cuidados que o casal Manzinni lhes dispensou desde a primeira hora. A gratidão tornou-os profundamente amigos. O futuro iria provar quanto essa amizade viria a contribuir mais tarde para o destino do casal italiano. 97


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II

Após o seu regresso a Itália, Marcelo e sua esposa resolveram gozar com sua filha, umas boas férias na praia. Era tempo de descansar e planear a sua actividade profissional. Sabia que em Palermo teria sempre a possibilidade de ingressar como assistente no serviço de cirurgia do hospital principal da cidade mas a sua preparação na especialidade para a qual se havia dedicado com afinco, na América, tentava-o a fixar-se em Roma num grande hospital do Estado onde teria ao seu dispor serviços competentes e modernas tecnologias com as quais não podia contar na Sicília. Terminado o mês de férias concorreu ao lugar de assistente num dos hospitais universitários da Capital onde foi admitido após exames de avaliação nos quais passou com distinção. Tinham-se passado cerca de seis meses de estar a trabalhar no hospital quando o pai de Marcelo, ainda que receoso de perturbar a vida profissional do filho, abordou um velho assunto sobre o qual tinham falado antes dele ter partido para a América. – Consultei a tua mãe sobre o que devíamos decidir acerca da aquisição de um terreno junto à praia de Cefalù. Nós já vamos avançados na idade e um pouco cansados deste bulício da vida da capital. Tu tens a tua vida de médico e por isso parece-me que não deve seduzir-te continuar com os meus negócios apesar deles serem bastante rendosos. Há dias telefonou-me o teu amigo Arturo, porque soube que tu já tinhas regressado da América, lembrando-me que a ocasião era bastante boa para comprar a pequena Quinta de que já me havia falado antes de tu partires para Boston. Os donos têm vontade de vender e estão pedindo um preço muito em conta. Ele soube que uns americanos estão interessados em comprar uma grande propriedade, conhecida em Cefalù pelo nome de Quinta da Cuarta onde projectam o maior resort de Itália. O valor 98


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da propriedade que ele aconselha vai certamente subir se de facto se concretizar o projecto americano. Ele pensa que devíamos avançar antes desse projecto ser aprovado pelas autoridades. – O pai tem um bom relacionamento com alguns bancos. Já pensou na possibilidade de solicitar um financiamento a longo prazo para evitar a sua descapitalização? Nesse caso estou de acordo com a sua aquisição. Eu irei falar com o meu amigo Arturo para saber um pouco mais sobre a propriedade, logo que tenha tempo. O pai sabe que vão abrir Casinos com jogos de azar na Sicília? Os meus amigos americanos, aliás os mesmos que estão a intermediar o negócio da Quinta da Cuarta, estão interessados em concorrer à concessão. Telefonaram há dias a pedir-me para eu tentar saber qual será a data da abertura do concurso. – Podes contar por um prazo longo. É um assunto que tem gerado muita controvérsia. Segundo tenho ouvido, o Governo está muito hesitante em abrir um Casino na Sicília porque teme a infiltração da Máfia nesse negócio. Como sabes, a corrupção no país é já um autêntico desastre social neste país e na Sicília esse assunto é ainda mais sério. – Bem, eu vou comunicar aos meus amigos que por hora nada se sabe sobre a abertura de concurso e que provavelmente a decisão oficial irá demorar pelo menos um ano. Passaram-se seis meses desde que iniciara seu trabalho no hospital. Marcelo já tinha aberto seu consultório, quando uma tarde recebeu um telefonema do seu amigo Mister Adams. – Alô doutor Marcelo, fala seu amigo Adams. Como vão você e sua família passando? Recebi a sua carta, já lá vão uns meses e desde então não tivemos mais notícias de si. Hoje telefono-lhe para o informar que na semana que vem o meu filho Mário, vai estar aí em Roma para contactar com o ministro do Turismo por recomendação do meu amigo Brasi, o vice-presidente do Banco a que eu 99


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dou minha colaboração aqui em Boston... Ficar-lhe-ei muito agradecido se pudesse orientá-lo aí em Roma. – Foi um prazer ouvi-lo. O Mário que me telefone quando chegar. Terei muito gosto em ajudá-lo no que estiver ao meu alcance. Os meus cumprimentos a sua esposa... Até breve. De facto na semana seguinte o filho do Mister Adams chegou a Roma. Logo que se instalou no hotel telefonou a Marcelo. Como este estava ocupado nessa tarde no seu consultório acordaram encontrar-se no dia seguinte à tarde pelas quatro da tarde no Café Rivoli próximo do Hotel onde o Júnior se instalara. – Então meu amigo, como foi a sua viagem? Falei ontem com o seu pai e soube que estão todos bem em sua casa. Seu pai informou-me de que você vinha falar com o Ministro do Turismo para saber quais serão as condições que o Governo vai requerer à empresa que ganhar o concurso do Casino de Jogo na Sicília e para quando está prevista a abertura do concurso. – Não sei se o meu pai o informou que ele está coordenando um grupo de investidores para a capitalização de uma empresa para concorrer à concessão de licença para a exploração de um Casino na Sicília. O grupo inclui alguns italo-americanos com o John Williams e mister Gordon e alguns americanos endinheirados. Ainda que o meu pai não possa investir um capital razoável na empresa ele será o presidente por vontade de todos os futuros accionistas. O meu pai pediu-me para lhe transmitir que gostaria que a empresa americana entrasse no concurso associada com uma firma italiana. Sugeriu-me a convencê-lo a formar essa firma com seus amigos e amigos de seu pai. – Sabe meu amigo, provavelmente não vai ser possível realizar essa ideia de seu pai e eu explico-lhe porquê. Eu vou constituir uma firma com meu pai para comprarmos uma pequena quinta, em Cefalù, cerca de trinta hectares, onde pretendemos construir uma 100


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casa de praia e se o turismo for incrementado na Sicília, talvez possamos vender algumas parcelas de terreno a amigos nossos para a construção de suas casas de praia visto que alguns deles que tiveram conhecimento dos meus planos já manifestaram o seu desejo de aí construírem sua casa de praia para serem nossos vizinhos durante as férias de Verão. III

Passara-se um ano e meio desde o regresso de Marcelo e sua família a Itália. A sua vida profissional corria-lhe melhor do que ele havia pensado. Surgiam quase todos os meses convites para fazer cirurgia em algumas das melhores clínicas particulares de Roma. A sua esposa começava a preocupar-se com o ritmo do seu trabalho. O pai aconselhava-o frequentemente a ter cuidado com a saúde porque, como ele argumentava, não precisava extenuar-se para mostrar aos outros e a si próprio que era um profissional competente, quer por sua boa preparação cirúrgica num dos melhores hospitais da cidade de Boston, quer pela sua ética na maneira de tratar os doentes. – Eu sinto nas nossas conversas que tu vives debaixo de uma certa ansiedade porque queres garantir o futuro e a protecção da tua família no caso de teres um acidente grave na tua vida. Deves encarar o futuro sem essa preocupação. Lembra-te que és filho único e que eu já estou próximo da velhice. Não sou milionário mas, tu sabes, o nosso património vai chegar para garantir a minha velhice e da mãe e a tua e da tua família. – Eu sei que tenho realmente que levar uma vida mais tranquila e dar mais atenção à minha mulher e filha. Há dias que nem vejo a minha Bela e ela já se queixa que eu não a levo aqui ou ali como fazem outros pais. 101


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– Fiquei satisfeito por saber que o teu amigo Byorg não se

esqueceu do teu aniversário telefonando-te para te dar os parabéns. Ele ainda está na América ou já voltou para a Suécia? – Ele telefonou-me da Suécia. Voltou definitivamente. O pai dele ficou muito debilitado depois do infarto do miocárdio que teve no ano passado e, como não se sentia capaz de continuar a gerir as várias empresas de Turismo que possui no país e na Dinamarca, pediu ao filho para regressar e assumir a presidência do grupo das empresas. Deu-me a entender que um dia destes vem até Roma fazer-me uma visita. – O filho do teu amigo Adams já conseguiu obter alguma informação do ministério sobre a abertura de um Casino de Jogo? – Creio que ele veio a Roma com a ilusão que o Ministro de Turismo o ia receber mas já cá está há uma semana e a resposta do secretário do Ministro é que este tem uma agenda muito preenchida nas próximas duas semanas. O pai dele já telefonou duas vezes ao banqueiro, mas penso que a influência deste no Ministério tem pouco peso. Há dias apresentei-o ao nosso amigo Arturo. Creio que já cometi um erro em falar-lhe da nossa intenção de comprar uma quinta que confina com a Quinta da Quarta, isto porque ontem telefonou-me o amigo Arturo para saber se nós continuávamos interessados em ir para diante com a aquisição porque o dito filho do Mister Adams mostrou muito interesse quando o nosso amigo lhe confidenciou o preço que o proprietário está pedindo pela terra. – Podes informar o nosso amigo Arturo de que estamos interessados na aquisição. Eu já falei com o Banco e um dos administradores que eu conheço há muitos anos garantiu-me o empréstimo. Em princípio concedem-nos o empréstimo no montante total do que os proprietários estão pedindo pela terra. Teremos três anos de carência e podemos liquidar o total em parcelas anuais durante sete anos. O empréstimo será feito com a garantia hipotecária. Eu estive 102


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a fazer contas e calculo que com a venda de fracções aos amigos que têm mostrado interesse em construir uma casa de praia próximo da nossa, o pagamento ao Banco fica assegurado sem termos que investir o nosso capital. – Então será melhor avançarmos com a constituição de uma firma para fazermos o negócio. Porém, devido aos seus afazeres profissionais, Marcelo não contactou com o amigo Arturo durante duas semanas para o informar do seu interesse na compra da pequena quinta até porque pensou que seria melhor dar-lhe essa informação quando o pai já tivesse conseguido o registo da firma em nome da qual se propunham fazer a aquisição. Quando abordou o seu amigo Arturo, Marcelo teve uma desagradável surpresa. Os proprietários que eram herdeiros da pequena quinta, que não tinham conhecimento que os Manzinni, pai e filho, tinham interesse na sua propriedade, tinham sido abordados pelo americano filho do Mister Adams e haviam assinado um contrato-promessa válido por três meses, sem entrada de dinheiro. Um amigo dele, também americano, que tinha vindo de Nova York a seu pedido para ser seu sócio, assinara também o dito contrato. – Não devias ter falado ao filho do teu amigo Adams nos nossos planos. Se tu, conforme me disseste, mal o conheces, desculpa Marcelo, mas foste ingénuo. – Saiba meu pai, fui realmente descuidado, porque ajuizei mal o dito Júnior pelo facto de não ter pensado que muitas vezes os filhos não têm a mesma honradez que os pais. Como já lhe tenho referido o pai deste fulano é um homem honrado e muito estimado na comunidade italiana de Boston pela sua integridade de carácter. – Alô Marcelo, fala o Byorg Lindom, estou a telefonar-te para te prevenir que vou estar aí em Roma com o meu principal colaborador para falar contigo. Acabei o meu curso na Universidade 103


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de Ulm e estou a dar uma ajuda a meu pai na nossa Empresa. – E como vai teu pai de saúde? Ele recuperou bem do problema cardíaco? E tua mulher e filha ficaram contentes de voltar para casa? – Os teus colegas de Estocolmo dizem que ele está recuperado mas vejo que se cansa com o trabalho do dia a dia. Ele expandiu demasiado a empresa. Quando estávamos em Boston ele vendeu a companhia de navegação e sem me dizer alguma coisa dos seus planos comprou uma cadeia de agências de viagens, seis que têm sede na capital e que trabalham em Estocolmo, em Gotenburgo e Ulm e cinco com sede em Helsínquia e escritórios em pequenas cidades da Finlândia. Calcula o que eu vim encontrar quando regressei à Suécia. O meu pai no hospital e onze agências de viagens quase em autogestão. Vou gostar de ver-te e à tua mulher e filha e quero também fazer-te um convite. Os meus vão bem. Claro, radiantes de terem voltado à pátria. Até breve. Meus cumprimentos à tua família. Marcelo ficou algo intrigado com a história do convite que Byorg lhe havia referido na conversa ao telefone. Mas que diabo de convite quererá ele fazer-me? No dia seguinte foi almoçar com o pai e contou-lhe que o amigo Lindom tinha telefonado para lhe comunicar que na semana seguinte estaria em Roma e queria fazer-lhe um convite. O senhor Manzinni ficou também admirado com o dito convite e aproveitou a ocasião para recomendar prudência qualquer que fosse a ideia do amigo sueco. – Eu sei que tu o consideras um bom amigo mas lembra-te do que se passou com o tal Júnior. Se precisares de um conselho meu, sabes que o teu velho pai vive num mundo diferente do teu onde se obtém experiências da vida que o teu mundo não oferece. A propósito, aproveito a oportunidade para te dizer que en104


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contrei há dois dias o nosso amigo Arturo. Conversámos sobre a pulhice do filho do teu amigo Mister Adams que se aproveitou da tua confidência sobre a propriedade que nós queríamos comprar. Mas esse indivíduo deve ser mesmo “má rês”. Voltou a Roma, há cerca de uma semana para renovar o contrato que tinha feito com os donos da quinta, porque o prazo havia expirado. – Percebo que a sua má consciência o tenha aconselhado a não me ter telefonado. – Mas o que reforçou em mim, meu filho, a má opinião que tinha sobre esse tal Júnior foi o facto de ter vindo renovar o contrato, agora por mais dois meses, ainda sem entregar qualquer dinheiro de sinal, e conseguir dos proprietários que lhe renovassem o contrato-promessa mas agora somente em nome dele justificando que esta alteração do contrato se devia ao facto do seu associado ter desistido. Vamos ver se o dito associado não aparece um destes dias a reclamar perante os proprietários, por não ter desistido mas sim por ter sido vítima de um golpe mafioso do tal Júnior.

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CAPÍTULO IX

OS PROJECTOS DO AMIGO BYORG LINDOM

I

A vida não correra fácil a Lyndom desde que regressara à Suécia. Preocupava-o a saúde do pai que sofrera um ataque cardíaco de alguma gravidade e ao qual sobreviveu graças aos rigorosos cuidados da equipa médica que o atendeu no melhor hospital de Estocolmo. Por outro lado não perdera a ambição de terminar o curso de engenharia que frequentara em Boston quando apenas lhe faltava um ano para obter seu diploma. Cuidar das empresas do pai e frequentar a Universidade durante um ano para terminar o curso foi uma tarefa de grande desgaste físico e emocional. Não obstante a sede principal das empresas do grupo ter sido sempre na capital, Lindom tomou a decisão de centralizar o controlo do grupo em Ulm visto que a deslocação até Helsínquia onde 107


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se centrava a sede das empresas do grupo, apenas lhe tomava pouco mais de uma hora. Na Universidade desta cidade onde se matriculou para realizar o último ano do seu curso pôde assim, dando todo o seu esforço, pôr ordem na desorganização em que os negócios do pai haviam caído por doença deste e, ao mesmo tempo, estudar e conquistar a licenciatura por ele tão ambicionada. Nesse ano de luta ele sentiu-se muito motivado pelas conversas que havia mantido com Marcelo nas tardes que as duas famílias haviam passado com as crianças no Fenway Park de Boston. Marcelo contagiara-o sempre com o entusiasmo e a satisfação de ter conseguido ser médico. Indirectamente transmitia-lhe constantemente a ideia que um curso superior é sempre uma garantia no futuro mesmo no caso dos pais terem bons negócios. Marcelo fora para ele um exemplo de maturidade e realismo quando referia o que seu pai às vezes lhe falava sobre a insegurança dos negócios, sempre sujeitos às crises quer nacionais quer internacionais, apontando-lhe como exemplos as falências de boas empresas de Roma nos últimos anos. As empresas do pai de Byorg haviam contribuído imenso nos últimos dez anos para o desenvolvimento turístico das Ilha Canárias canalizando anualmente, pelas suas agências, cerca de meio milhão de turistas oriundos dos países nórdicos mormente da Suécia. Mas ao fim destes anos as empresas turísticas britânicas entraram numa concorrência de tal modo desenfreada que o grupo sueco sofreu um grave impacto pela dificuldade de contratar alojamentos para a sua enorme clientela. O percurso da Grã-Bretanha para as Ilhas Canárias era muito mais curto do que a viagem a partir da Suécia, o que tornava os voos mais baratos e, por outro lado, as companhias britânicas de aviões charter estavam já equipadas com aviões a jacto, o que encurtava bastante o tempo de voo a partir dos aeroportos ingleses. 108


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Byorg Lindom não podia desistir perante esta concorrência que os ingleses lhe haviam criado, apoderando-se da capacidade de alojamento turístico que as empresas do pai havia durante anos estimulado a desenvolver naquelas ilhas da costa de África. Verificou que só havia a solução de procurar novos mercados. Lembrava-se dos planos que os amigos americanos de Marcelo tinham em promover o negócio de um grande resort turístico na Sicília e decidiu que aquilo que o pai havia realizado nas Canárias ele poderia repetir na ilha italiana. Nas praias da Sicília haviam entretanto nascido uma dúzia de novos hotéis os quais careciam ainda de uma ocupação rentável. Byorg Lindom começaria num primeiro passo por levar as suas empresas a orientar na Suécia e na Finlândia os seus clientes para a Sicília e num segundo tempo se esta nova política fosse bem sucedida estenderia o negócio nesta ilha, comprando ou construindo, pelo menos, três hotéis com os quais poderia garantir a suas empresas o alojamento necessário para seus clientes, e ficar a salvo da investida da provável concorrência, no futuro próximo. Foram estas decisões, tomadas com a concordância de seu pai que levaram Byorg Lindom a Itália. Marcelo foi de facto surpreendido com o convite do seu amigo, quando se encontraram em Roma naquele Verão de 1965. O convite era sedutor. Ser representante em Roma do maior grupo de agências turísticas da Escandinávia, com proveitos financeiros expressos nas operações turísticas que o grupo fizesse para Itália e nas compras de hotéis neste país. Era uma proposta na qual ele antevia a possibilidade de alcançar o que ele sempre ambicionara: garantir por si próprio os meios financeiros que assegurassem o seu futuro e o de sua mulher e filha no caso da saúde o atraiçoar impedindo-o de ganhar a vida, não obstante as garantias de segurança que o pai sempre lhe assegurava. Ele tinha conhecido nos 109


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hospitais doentes que haviam tido vidas prósperas e que haviam caído na miséria por terem acreditado que os azares só aconteciam aos outros. O senhor Manzinni, um experiente homem de negócios, ouviu o filho expor-lhe a proposta que lhe havia sido feita pelo amigo sueco e ficou hesitante em opinar sobre o assunto. Era um facto que se Marcelo aceitasse a proposta de seu amigo, muito mais depressa iria desenvolver relações sociais de prestígio mas, por outro lado, interrogava-se sobre as consequências que isso teria no seu trabalho profissional, já por si absorvente de todas as horas úteis que dispunha diariamente, nos hospitais e no seu consultório. – O seu silêncio, não me dando uma opinião sobre este assunto, leva-me a crer que ficou preocupado ou que não concorda que eu aceite o convite de meu amigo Byorg. – De facto preocupo-me com a tua saúde pois já tens um trabalho excessivo e creio que não deves comprometer a tua ocupação médica. No entanto, podes eventualmente aceitar o convite. Porém, com a condição expressa de poderes desistir se verificares que a tarefa que tens que desempenhar não é compatível com a tua actividade profissional, por uma questão de falta de tempo. Fico na dúvida se essa função de ajudar o engenheiro não vai prejudicar o teu trabalho nos hospitais. Se, de facto, o engenheiro Lindom é teu amigo vai certamente compreender se tu um dia lhe disseres que não te é possível continuar a cooperar com ele. – Vou seguir o seu conselho. Agrada-me a ideia de colaborar com o Byorg, mas ele vai ter que me fornecer instruções precisas e aceitar a condição que me acaba de sugerir. Não poderá querer que eu tome só por mim decisões que envolvam grandes responsabilidades para os seus negócios. Creio que ele pretende sobretudo que eu acompanhe os processos burocráticos, os quais têm sempre 110


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neste país uma vertente política. O mesmo se passa com a tarefa de acompanhamento dos pedidos de viabilidade da Quinta da Cuarta em Cefalù que os meus amigos americanos requereram. Como sabem que eu tive um bom relacionamento com a Câmara Municipal da cidade pedem-me apenas para tentar acelerar a burocracia local e aqui na capital. II

Nos últimos meses dos anos sessenta as conversas nos cafés do centro, em Roma, eram dominadas pelas novidades da imprensa sobre os anunciados planos de grupos estrangeiros e nacionais que com seus investimentos iriam participar no desenvolvimento turístico da Sicília. Finalmente, esta ilha italiana até ali condenada ao abandono pelo poder central e com má fama devido às históricas malfeitorias da Cosa Nostra era agora frequente notícia dos meios de comunicação pelo interesse dos ditos grupos, de poderosos capitalistas, quererem investir na ilha largos milhões de dólares nomeadamente em hotéis, campos de golfe e casinos de jogo nas zonas com acesso às praias da ilha. As expectativas dos políticos da Sicília subiam mensalmente de acordo com o aumento dos pedidos de viabilidade de construção de hotéis, entrados nas Câmaras Municipais de Palermo e de Cefalù, as duas cidades cujas praias ofereciam mais condições ao turismo estrangeiro pela sua boa qualidade e pela maior proximidade do único aeroporto, porta de entrada indispensável ao turismo vindo do exterior. A agenda de investimentos do Estado em infra-estruturas da ilha transmitiu um certo optimismo aos Sicilianos quando viram ser iniciada nesse ano o primeiro troço de uma via rápida, que no médio prazo daria acesso rápido a toda a ilha. Previa-se que esta 111


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obra traria grandes vantagens, ao criar-se um acesso rápido a todo o litoral e daí ao interior. A ilha é rica em pequenas vilas e cidades nas quais persistem ruínas de grande valor histórico, que revelam a presença no passado remoto dos vários povos que habitaram este bocado da Itália, desde o tempo da colonização fenícia, helénica, romana, etc.. O primeiro grande projecto a ser aprovado foi o da Quinta da Cuarta que tomou o nome de Vila Romana financiado em partes iguais pelos americanos da Califórnia e pelo banqueiro de Roma senhor Luperti com o apoio do Banco de que este era presidente. O Mister Adams, John Williams e Robert Gordon que haviam feito a intermediação do negócio da Quinta da Cuarta em Cefalù sentiram-se motivados para continuar a promover outros negócios na Sicília. O resultado da sua intervenção, a qual lhes deu trabalho e despesas durante mais de dois anos, fora financeiramente compensador para a equipa promotora. Ao contrário do que temiam, os compradores americanos cumpriram honesta e rapidamente com o pagamento da intermediação e promoção. Marcelo não tinha experiência de negócios e por outro lado vivia absorvido pela sua actividade profissional em Roma. Mas talvez porque era um indivíduo conhecido no meio dos amigos como homem recto e organizador, desde que se soube no meio turístico da capital que representava interesses americanos e era o representante do maior grupo de agências turísticas da Escandinávia, passou a ser constantemente solicitado para conselheiro de vários empreendimentos na Sicília. Marcelo gostava imenso da sua profissão e dedicava-lhe todo o seu saber e carinho. Mas começava a sentir-se entusiasmado com o clima de euforia sobre os negócios que rapidamente se desenvolviam na ilha onde ele anos atrás trabalhara, onde deixara bons 112


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amigos que haviam subido na vida e eram agora pessoas influentes na política local. Desde que voltara da América já operara nos três anos várias pessoas de alto gabarito social o que lhe granjeara conhecimentos preciosos para se movimentar em certos meios da alta burocracia, o campo em Itália mais difícil de transpor principalmente por estrangeiros. As economias feitas pelo cirurgião Marcelo Manzinni tinham-no obrigado a fazer tantos sacrifícios que, apesar das tentações em entrar num dos muitos negócios que lhe eram propostos, ele não sentia coragem de correr riscos. Estava convencido que se consultasse seu pai acerca das suas hesitações, iria certamente ouvir o discurso de sempre: – Conserva-te concentrado na tua profissão que oferece um bom futuro a quem está bem preparado para a exercer e com ela chegarás ao topo, social e financeiramente. Porém a oferta dos dois prédios de Roma, que seu pai passara para seu nome com a intenção de que o respectivo rendimento lhe proporcionasse mais tranquilidade financeira, despertou em Marcelo, uma ideia. Um dos prédios tinha andares vagos e apenas dois inquilinos. Marcelo acordou com estes uma saída temporária para demolir o velho prédio alojando-os após a construção de um novo edifício em apartamentos idênticos. Ao fim de um ano conseguiu aprovar o projecto do novo edifico e adjudicou a construção a um engenheiro seu amigo. Seu pai que havia concordado com a ideia de seu filho não permitiu que este recorresse a um empréstimo bancário e financiou a obra com capital próprio o qual foi aceite por Marcelo na condição de devolver-lhe o empréstimo oportunamente após a venda dos restantes apartamentos. Como a localização do prédio era numa zona nobre da cidade 113


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de Roma, os apartamentos foram entregues a uma agência imobiliária e foram rapidamente vendidos. Depois de ressarcir seu pai do empréstimo que lhe havia proporcionado para a construção, Marcelo verificou com satisfação que nesse simples empreendimento tinha ganho o equivalente a dois anos de trabalho na sua profissão. Com o capital arrecadado neste negócio Marcelo sentiu pela primeira vez como era aliciante o mundo de negócios. Nicolò tinha terminado a sua especialidade na América e regressara a Itália com a intenção de se estabelecer na sua clínica em Palermo onde tinha família e alguns amigos dos tempos da Faculdade. Seu pai falecera e deixara-lhe, a ele e a sua mãe, uma pequena fortuna em propriedades agrícolas. – Meu caro Marcelo, já sei que além de estares a crescer como um bom cirurgião aqui na nossa capital, entraste com o pé direito no mundo dos negócios segundo me têm dito os nossos amigos. Quais são os teus planos futuros nesse campo? – Nas nossas conversas em Boston deves ter reparado que o meu sonho seria fazer a minha vida com a maior independência possível. Quando fizemos o nosso internato hospitalar em Roma tivemos muitas ocasiões de constatar que o campo cirúrgico nesta cidade era uma coutada só de alguns. Passados anos da nossa ausência na América, voltamos a ver o mesmo cenário. No princípio senti uma subtil resistência da parte dos barões da cirurgia. Desde que regressei de Boston tenho ouvido tantas histórias sobre a máfia que, pelas obstruções que tenho sentido no serviço do principal hospital da capital onde trabalho, chego a pensar que a “mob” não actua só no mundo de negócios. Creio que os nossos colegas mais velhos têm entre si pactos secretos para travar as aspirações dos mais novos temendo a sua concorrência. Desde que operei pessoas importantes da nossa capital, sinto que as obstruções ao meu tra114


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balho têm aumentado. Às vezes, em conversa com os enfermeiros que me assistem nos blocos operatórios, eles não me escondem que os senhores “professores” fazem em voz alta certos comentários maldosos às técnicas americanas, que eles não dominam e que, segundo os ditos enfermeiros, só demonstram a costumeira inveja dos colegas que foram preparar-se lá fora, longe dos seus propósitos egocêntricos. – Eu já calculava que isso ia acontecer e precisamente por isso decidi não fixar a minha vida na capital e optei por trabalhar em Palermo onde já me asseguraram um lugar de assistente no hospital central da cidade. – Meu caro Nicolò, sabes que eu já cheguei a pensar em constituir uma sociedade com alguns colegas e construir uma Casa de Saúde onde possamos trabalhar sem os constrangimentos que os dons da medicina colocam aos mais novos? – Isso seria uma boa ideia e desde já podes contar com este teu amigo para colaborar contigo se a puseres em prática. – Já te contei que o Byorg Lindom, que te apresentei em Boston, tornou-me o delegado do grupo de suas empresas em Itália o que me toma semanalmente algum tempo. Talvez depois de me entranhar mais nos assuntos de que ele me encarregou, o que me traz um cheque extra todos os meses, eu possa considerar a hipótese de avançar com a construção de uma clínica em Palermo. Se eu verificar que as invejas dos dons da medicina de Roma me colocam cada vez mais barreiras à minha actividade profissional podes ficar certo que avançarei com a concretização dessa ideia. Um dia contar-te-ei algumas maldades que esses Dons da medicina me têm feito desde que comecei aqui a trabalhar.

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CAPÍTULO X

OS AMERICANOS INTERESSAM-SE PELOS CASINOS DA SICÍLIA

I

O sucesso da intermediação no negócio da Quinta da Cuarta em Cefalù, deixou no grupo promotor a convicção de que a Sicília podia ser o El Dorado que não tinham tido a oportunidade de encontrar na América. Mister Adams era advogado, John Williams tornara-se industrial e Robert Gordon sempre trabalhara sob o mando de patrões no ramo imobiliário. De facto nenhum deles excepto John havia sido homem de negócios. Porém com as notícias que recebiam de Marcelo sobre a abertura em breve do concurso para a concessão do jogo em casinos, como já havia sido anunciada dois anos antes, John Williams, que fora dirigente de um Casino em Havana, sentiu-se atraído para esse empreendimento pelas boas lembranças dos anos que lá vivera, tempo de “dolce vita” em que ganhara bom dinheiro. Com esse dinheiro pudera tornar-se indus117


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trial e um homem independente e livre com a consciência tranquila por nunca ter feito mal a ninguém enquanto esteve ligado à Máfia de Nova York. Pediu por isso a um velho amigo de que fora colega no liceu e que era agora advogado em Boston para lhe enviar tudo o que houvesse sobre legislação regulamentadora do Jogo em Casinos no país. O Mister Adams encarregar-se-ia de a estudar e verificar até que ponto as leis italianas se coadunavam com os métodos americanos de promoção para o exterior dessa actividade. A amizade que ligava este advogado à família de John, desde o tempo em que o pai de seu cliente fazia parte do Corpo de Polícia, o sucesso que haviam tido juntos em negócios como o da Quinta da Cuarta, influenciaram-no sem reservas a dar-lhe toda a colaboração no projecto do casino de jogo na Sicília. Na sua opinião era indispensável que a firma que formassem na América para entrar no concurso tivesse como associada uma ou várias firmas italianas de preferência com accionistas que fossem pessoas com boas ligações políticas e sociais nessa ilha italiana. Lembrou-se que o doutor Marcelo tinha constituído, com os suecos e dois amigos italianos, uma sociedade com o objectivo de comprar hotéis para o grupo de agências de viagens do engenheiro Byorg Lindom. Dois meses antes de Mister Adams ter convidado a empresa em que Marcelo se associara com o seu amigo Lindom, esta já tinha fechado o negócio de compra de um dos poucos hotéis de Cefalù. O engenheiro Byorg, que era o accionista maioritário da empresa foi convidado a participar com a mesma num consórcio que entretanto fora constituído pelos hoteleiros da zona, no qual se integraria a sociedade americana com cinquenta por cento do capital, a empresa sueca e outras firmas hoteleiras locais com o restantes cinquenta por cento. Lindom aceitou a proposta pois pareceu-lhe que em princípio seria vantajoso associar a sua firma de hotéis na 118


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Sicília, pela atracção que um Casino poderia exercer no tráfego de turistas que as suas agências de turismo haviam fomentado para a Sicília. II

Tinham-se passado três anos desde que Nicolò havia regressado a Itália, depois de terminar o seu treino hospitalar em Boston. No ínterim Marcelo concordara que ele avançasse com a ideia de encomendar a um arquitecto de Palermo, onde Nicolò se estabelecera, um projecto para uma clínica de médio porte com capacidade para quarenta camas. Ambos cirurgiões punham muitas esperanças na realização desse projecto de uma pequena casa de saúde onde poderiam internar seus doentes e realizar as cirurgias que estes necessitassem sem terem que se submeter aos caprichos e críticas maliciosas dos que se julgavam donos da ciência cirúrgica da capital. Marcelo tinha agora a necessidade de deslocar-se quase semanalmente à Sicília para contactar com os directores dos dois hotéis de cuja firma era administrador-delegado. Previa que, se o projecto da Casa de Saúde se concretizasse teria mais tarde ou mais cedo que estabelecer a sua clínica em Palermo, onde muitos dos clínicos se queixavam da falta de cirurgiões bem habilitados. A maioria estava à beira da reforma e eram homens que não se haviam preocupado em actualizar suas técnicas. Os dois médicos revezavam-se nas constantes idas ao Ministério da Saúde em Roma com o objectivo de obter a aprovação do projecto. Cada vez que a equipa de arquitectos e engenheiros mudava no departamento de apreciações técnicas, os dois médicos ficavam 119


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indignados com o facto de não pararem os pareceres técnicos diferentes, com as mais extravagantes exigências. Ao fim de quatro anos de espera por um parecer final positivo, Marcelo, já com uma posição social firmada no meio económico empresarial, resolveu, de acordo com Nicolò, pedir um inquérito oficial ao departamento técnico do Ministro da Saúde. O último parecer dos técnicos, exigindo um refeitório em cada piso da projectada Casa de Saúde tinha indignado tanto os proponentes do projecto que o Ministro para evitar que o caso fosse levado a tribunal mandou ele próprio aprovar o projecto como originalmente havia sido apresentado e demitiu os senhores arquitectos e engenheiros, responsáveis pela nítida obstrução ao projecto que haviam desenvolvido ao longo de quatro anos. O advogado amigo de John Williams que havia elaborado o pedido de inquérito oficial, veio mais tarde a saber que este caso em que ele interviera não era único no dito departamento. Todas as absurdas dificuldades postas ao projecto dos dois médicos e a outras iniciativas semelhantes tinham, como objectivo mafioso, conseguir que os proponentes rescindissem o contrato com o arquitecto autor do projecto e o entregassem à própria equipa do Ministério da Saúde. Por se considerarem técnicos da especialidade, os custos do dito projecto eram o triplo do orçamento original do arquitecto de Palermo. Os dois médicos começaram a perceber que a Cosa Nostra não era apenas aquilo que costumavam ver em filmes quando viviam na América. Com a construção de um novo hospital em Palermo no qual Nicolò foi integrado como chefe do departamento de cirurgia esfumou-se o interesse na Casa de Saúde e Marcelo continuou a sua vida profissional em Roma. 120


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III

Marcelo vivia assoberbado com o trabalho no seu consultório e no hospital onde prestava assistência como contratado. Tinha além disso que dar toda a atenção aos seus operados nas clínicas particulares. No pouco tempo que tinha livre destas tarefas fazia o possível por acompanhar os problemas burocráticos que frequentemente surgiam, quer no processo do concurso aos casinos que lhe fora solicitado pelos seus amigos americanos, quer nos projectos de ampliação dos dois hotéis comandados pelo seu amigo sueco engenheiro Byorg Lindom. Ao fim de dois anos de especulações na imprensa italiana sobre a grande novidade que fora a decisão do governo central autorizar a abertura de Casinos de Jogo na Sicília, Marcelo teve conhecimento que o decreto regulamentar dos casinos naquela ilha estava a ser elaborado pelo director geral do ministério, um amigo de longa data de seu padrinho de casamento. Numa festa de família da iniciativa de sua mãe que quis festejar os setenta e cinco anos do senhor Manzinni, pai de Marcelo, este teve a oportunidade de abordar o assunto dos casinos com o seu padrinho. – Meu querido afilhado, tomei boa nota sobre o que me acabas de dizer sobre a pretensão dos teus amigos de Boston, mas desde já posso afirmar-te que com os políticos corruptos que temos neste país, os teus amigos não devem perder o seu tempo em concorrer ao Casino que se pretende para a Sicília. – Padrinho, as pessoas que encabeçam a iniciativa de vir a concurso para os casinos são as mesmas pessoas que promoveram o maior resort turístico da Sicília. São pessoas que podem trazer muito turismo americano para a ilha. 121


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– Eu temo que me julguem mal se tu lhes disseres a minha

opinião, isto é: não vale a pena concorrer porque, à partida, já se pode imaginar quem vão ser os vencedores do concurso. Se achas que não vais perder muito tempo com a pretensão dos teus amigos, continua nas tuas diligências sem lhes falar no que eu agora disse acerca do que suponho ir acontecer com a história dos casinos. Posso apresentar-te ao meu amigo que é director geral do Ministério que tem a tutela do jogo. – Ficar-lhe-ei muito grato. Quando poderá o padrinho apresentar-me a esse senhor seu amigo? Os americanos estão ansiosos que eu lhes dê alguma informação que valha a pena continuar a angariar accionistas para a firma que constituíram propositadamente para o concurso. – Deixa-me combinar com esse meu amigo o melhor dia para te receber e eu telefonar-te-ei de imediato. O director geral do ministério, pessoa muito amável, recebeu Marcelo dois dias depois da conversa que ele havia tido com o padrinho. Ouviu o afilhado do seu amigo com simpatia e mostrou-se interessado em saber que tipo de pessoas eram os pretendentes à concessão da licença para abrir um ou dois casinos na Sicília. – Bem senhor director geral, a pessoa que encabeça o grupo americano é um advogado, de Boston, um homem de sessenta anos de elevada reputação na cidade. Talvez o senhor conheça o vice-presidente do Banco Italiano do Mediterrâneo. Ele é muito amigo do advogado Mister Adams que é o jurista da agência do Banco em Boston e por isso encontram-se com frequência nesta cidade americana. Creio que o vice-presidente do Banco, senhor Brasi, poderá dar ao senhor director geral informações do Mister Adams. – Muito bem. Na próxima semana gostaria de voltar a falar convosco. Telefone-me na quarta-feira para acertarmos a hora. 122


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Como vê, a minha secretária está a abarrotar de papéis. Cada um deles é um problema que tenho que resolver nos próximos dias. Na semana seguinte Marcelo telefonou ao director geral que o recebeu no dia seguinte. – Eu sei pelo seu padrinho que o doutor tem uma vida muito ocupada com os seus doentes, mas achei que valia a pena esperar estes dias para poder dar-lhe algumas informações sobre os casinos que serão úteis aos seus amigos. Como sabe a lei dos Casinos recomenda que as novas construções sejam próximas do mar. Não sei explicar-lhe a razão desta exigência da lei geral do Jogo em Casinos, porque esta lei já estava em vigor quando eu entrei há vinte anos para o Ministério. – Realmente não faz muito sentido essa disposição legal, mas creio que tanto para os americanos como para os suecos seus sócios essa obrigação não terá grande importância desde que outra condições mais exigentes não causem o seu desinteresse em investir no Turismo da Sicília. Como eu referi na semana passada, a holding das empresas suecas que eu represento em Itália já adquiriu dois dos melhores hotéis da costa norte, os quais já estão a ser remodelados. Como referência posso informar o senhor Director Geral que o grupo sueco enviou no ano passado para Espanha, incluindo as Ilhas Canárias, cerca de seiscentos mil turistas. Como pretendem diversificar os destinos turísticos das suas agências, escolheram a Sicília. O jogo em casinos não é de grande interesse para os turistas suecos em geral, mas pelos espectáculos que promovem vêm contribuir para uma maior atracção turística. – A Inspecção de Jogos trouxe-me há dias uma proposta de pôr a concurso apenas um Casino a localizar na zona de Monreale, pela sua proximidade do aeroporto e porque a cidade necessita de desenvolver-se com o turismo. À roda da baía há propriedades que chegam à praia. A preferência da Inspecção sobre o exacto local 123


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onde o casino deve ser construído é uma propriedade que pertence a um banqueiro de Roma, neto do maior industrial do país. Deduziram os inspectores que elaboraram o parecer requerido pelo senhor ministro da tutela, que sendo os donos do terreno pessoas de um ramo de negócios sem qualquer afinidade com o Jogo, não entrarão certamente com alguma proposta no concurso cujo regulamento está quase terminado. Os senhores já pensaram na localização que vão propor para o casino? – Senhor Director Geral, perdoe-me a observação, mas é opinião geral na Sicília que a ilha necessita de ter dois casinos para ter um desenvolvimento turístico equilibrado ou seja um casino a nascente e outro a poente. – Francamente lhe digo que, pelo facto de nós vivermos aqui metidos nos nossos gabinetes de manhã à noite e distantes da Sicília, não conseguimos ter tempo de dar atenção à opinião pública, que eu sei tem sido expressa nestes últimos meses nos jornais nacionais e certamente na imprensa siciliana. É muito ingrato para a população verificar que a governação do país faz-se na sua maior parte com trabalho de gabinete. Julgo que é importante olhar também para os interesses hoteleiros do extremo oposto da Sicília. Amanhã vou a despacho com o senhor Ministro e levarei no dossier essa sua preocupação. Entretanto os seus amigos podem enviar-me uma exposição sobre a necessidade de haver um casino a nascente e outro a poente da ilha. É uma ideia que faz todo o sentido, o tentar-se estimular o desenvolvimento turístico das duas zonas da Sicília, que afinal estão ambas carentes de investimento nacional e estrangeiro. Com a exposição que enviarem para o ministério será útil que nos enviem juntamente uma planta demonstrativa da localização dos dois casinos sabendo desde já que o ministério já tem uma ideia assente que Monreale será indiscutivelmente a localização de um dos ca124


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sinos. Estou a assumir que o Conselho de Ministros aceitará a proposta de dois casinos se o nosso Ministro concordar em princípio com a ideia. IV

Apesar de lhe sobrar pouco tempo para pensar sobre o problema do Estado querer adjudicar uma licença para um só Casino a localizar num extremo da ilha oposto ao local que o engenheiro Lindom preferira adquirir os dois hotéis, Marcelo ficou esperançado que a sugestão dos dois casinos viesse a concretizar-se. Aguardou que saísse alguma notícia sobre o assunto e não telefonou logo para o seu amigo Mister Adams, após a sua última conversa com o Director Geral. Os americanos estavam desde o princípio interessados em concorrer à licença de um só casino. A decisão do Ministério da tutela do jogo em já ter assente que esse casino devia ser localizado em Monreale, não seria certamente do maior agrado para os americanos porque dois casinos implicavam um investimento duplo. Mas um só Casino em Monreale em nada beneficiaria a empresa sueca na qual o engenheiro Lindom tinha oferecido uma participação a Marcelo, além de o ter nomeado delegado em Itália, pois já tinha adquirido dois hotéis juntos às praias de Tindari. Não obstante a sua pouca experiência neste tipo de negócios, a sua intuição e os interesses em que ele participava tinham-no levado a convencer o Director Geral sobre a opinião do público na Sicília, expressa quase semanalmente na imprensa local, contestando a decisão do governo. Decidir adjudicar somente um casino a Monreale não seria justo porque as praias do outro extremo da ilha tinham também grande necessidade de se desenvolver aproveitando a maré do tão apregoado futuro turístico da Sicília. Para o turista italiano do sul que gostasse de jogar, Tindari 125


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estava muito mais perto do que Monreale porque somente tinha que tomar o ferry boat para atravessar, em quarenta minutos, o estreito de Messina. – Alô doutor Marcelo, fala o seu amigo Adams. Como vai o senhor e sua família? Estamos ansiosos por ter notícias suas. Como está a correr o assunto do concurso para o casino? – É um prazer ouvi-lo. Houve certamente uma transmissão de pensamento, pois estava a aguardar que fossem aqui nove horas da noite para o apanhar nas suas horas de escritório. Tenho sempre que fazer contas à diferença de horas entre Roma e Boston, para encontrá-lo ainda no seu escritório. O governo está a considerar a hipótese de adjudicar no mesmo concurso a concessão a dois casinos. Eu preciso de saber se os senhores aí estão interessados em concorrer se o decreto contemplar uma licença para dois casinos. Um será certamente em Monreale e o outro possivelmente no extremo oposto da ilha, na zona de Tindari, uma pequena cidade costeira com bonitas praias. Como sabe é precisamente nesta zona que a empresa do meu amigo sueco adquiriu dois hotéis cuja restauração está quase terminada. – Vou convocar uma reunião com alguns dos accionistas da nossa sociedade e telefonar-lhe-ei depois de ouvir a opinião deles. Até breve e cumprimentos à sua família. Dias depois, Mister Adams telefonou novamente a Marcelo para o informar que todos os maiores accionistas estavam de acordo com o concurso para dois casinos. A má experiência que o médico tinha tido com o facto de ter entregue o projecto da Casa de Saúde a um arquitecto fora do departamento oficial dos hospitais ensinou-lhe a primeira grande lição que lhe havia de ser útil na sua vida futura nos negócios de que estava encarregado. A estratégia de encomendar o projecto de localização dos dois casinos a um técnico da Direcção Geral de 126


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Urbanização, o arquitecto Lagi, foi o primeiro passo astuto e expedito para atingir, em tempo e sem futuras objecções oficiais, seus objectivos. Um dia, em conversa com o arquitecto Lagi, ao referir-lhe que um dos grupos estrangeiros interessados nos casinos era americano ele associou o interesse destes a uma pretensão de um americano, que apresentara há dois anos um projecto de urbanização numa propriedade adjacente à Quinta da Cuarta, sobre o qual o Director Geral era intransigente em conceder aprovação devido ao excesso de ocupação do solo. – Conheço esse indivíduo vagamente, mas nem ele nem esse projecto tem qualquer relação com a iniciativa de concorrer à adjudicação dos casinos. Marcelo ficou surpreendido com a referência negativa ao projecto apresentado pelo filho do seu amigo Mister Adams. O dito júnior havia deixado de o contactar depois da patifaria que havia feito, contratando nas costas de Marcelo e de seu amigo Arturo, com os donos, a compra da pequena propriedade que ele soubera pelo médico, que este e o pai estavam interessados em adquirir, facto do qual os proprietários, pessoas honestas, ainda não tinham tido conhecimento. Curioso com as dificuldades do senhor Júnior resolveu telefonar ao seu amigo Arturo. – Meu caro doutor Marcelo, o tal Júnior está entalado com a Direcção Geral. O fulano já renovou pela terceira vez o contrato com os proprietários mas desta vez eles exigiram um sinal de pagamento de vinte por cento do valor expresso no contrato e este tem um prazo que expira no mês que vem. Como sabe, eu sou amigo há muitos anos dos donos da quinta em que o doutor estava interessado. Segundo eles me disseram não vão dar ao tal Júnior a oportunidade de lhe renovar outra vez o contrato. Agora ou fazem 127


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a escritura notarial e ele paga a totalidade ou perde o valor do sinal. O indivíduo pareceu-me estar um tanto desesperado com a situação porque as pessoas que o capitalizaram para fazer o negócio já investiram não só o dinheiro do sinal como já gastaram o dobro disso em projectos e despesas de escritório, automóvel e a manutenção em Roma desse ex-professor de liceu travestido de homem de negócios. Desculpe dizer-lhe mas a deslealdade que esse tal Júnior já teve consigo anteriormente foi um verdadeiro acto mafioso, agravado pelo facto de ser filho de um amigo seu a quem o senhor venera pela sua firme honestidade.

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CAPÍTULO XI

O CASO TORRE ALPINA

I

Aos dias de semana, depois do almoço, antes de ir trabalhar para o seu consultório, Marcelo passava pelo Café Rivoli para tomar o habitual capuccino e reunir-se com o pequeno grupo de colegas e advogados de quem era amigo do tempo da faculdade. Era uma hora de descontracção e de conversas divertidas onde abundavam as críticas ao regime político do país. Futebol era o único assunto que tinham acordado não discutir. Isto porque, meses antes, dois dos companheiros da tertúlia se haviam envolvido numa discussão acalorada a propósito de uma falha de arbitragem de que resultou a perda do jogo do clube de um deles. No calor da discussão um dos camaradas que era advogado sentiu-se ofendido com uma referência despropositada à sua classe, pelo interlocutor, colega de Marcelo, ao comparar a classe 129


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dos advogados à dos árbitros que eram acusados de corruptos. Não tendo o médico pedido as devidas desculpas, a discussão tornou-se uma briga que só não chegou a vias de facto pela intervenção dos restantes amigos. Daí em diante ambos cortaram relações e deixaram de frequentar o Rivoli. Em consequência desta desavença entre amigos, ficou assente que não haveria mais conversas durante a tertúlia sobre futebol. Nos muitos assuntos que vinham à conversa na tertúlia, era frequente falar-se também de um novo empreendimento que era anunciado para a Sicília, depois do grande resort da Quinta da Cuarta ir já em grande desenvolvimento. Esse novo empreendimento era publicitado com o nome de Torre Alpina, em anúncios em todos os jornais italianos. Com grandes parangonas excitavam a curiosidade do público italiano. Nas conversas dos cafés de Roma este empreendimento na Sicília fazia grande parte das conversas do dia. A Torre Alpina oferecia dez por cento ao ano ao capital investido na compra de uma ou mais semanas de férias num apartamento de um dos edifícios que construíra à beira-mar, quando o comprador não ocupasse o apartamento no qual havia investido. A Torre Alpina era uma verdadeira novidade no turismo de Itália. Para uns, o negócio tinha sido produto da criatividade italiana, mas os mais viajados eram peremptórios em afirmar que o tipo de negócio já se implantara no Brasil anos atrás conhecido como timeshare. A origem do negócio era um facto sem importância para os compradores pois o que os seduzia era o rendimento oferecido ao seu capital, equivalente ao dobro do que os bancos ofereciam nos depósitos a prazo. Os mais esclarecidos em matérias financeiras interrogavam-se sobre a passividade dos bancos perante este negócio porque, bem vistas as coisas, a actividade da sociedade gestora da Torre Alpina tinha todas as características de uma actividade parabancária, sem as garantias a que os bancos es130


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tavam legalmente obrigados. A confiança depositada pelos compradores no empreendimento era muito baseada no facto da administração, presidida inicialmente por um desconhecido chamado Sílvio, ter passado a ser presidida por um almirante, pessoa muito prestigiada nos meios navais do país. Depressa o negócio estendeu-se por toda a Itália e aos cofres da companhia chegavam semanalmente milhões de liras. O título de compra feito numa simples folha de vinte e cinco linhas levantava dúvidas, em algumas pessoas, sobre o seu valor legal, mas os dez por cento anuais de juros, comparado com os reduzidos juros oferecidos pelos bancos, era uma tentação que se sobrepunha a qualquer dúvida. A companhia nascida numa modesta cave, passado um ano após o arranque publicitário, passou a estar instalada num luxuoso edifício numa das principais avenidas de Roma. II

Uma firma accionista do consórcio que se constituíra para concorrer à concessão dos Casinos da Sicília, era uma sociedade formada por três alemães e um italiano, comerciante judeu de Roma. Os alemães tinham constituído a firma como sucursal italiana de uma empresa metalúrgica que possuíam na Alemanha. O seu objectivo era investir no turismo da Sicília, segundo o acordo assinado entre o governo alemão e o governo italiano pelo qual os alemães se obrigavam a um dado investimento turístico em Itália, como compensação de facilidades concedidas à aviação civil alemã para treino de seus pilotos militares, porque depois da II Grande Guerra os aliados condicionaram o treino militar em solo alemão. As firmas alemãs privadas que colaborassem com o governo do seu país no programa de investimento em Itália tinham um pe131


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ríodo de dois anos para demonstrar que haviam concretizado o seu investimento, obtendo com isso uma compensação na redução de vinte por cento nos impostos sobre o lucro obtido nos negócios da casa mãe que fossem realizados na Alemanha. Dois anos antes de os alemães tornarem a sua firma accionista do consórcio formado para o concurso aos casinos da Sicília, orientados pelo sócio italiano e por um advogado, que por coincidência fazia parte da tertúlia do Café Rivoli frequentada por Marcelo, acordaram em aproveitar a ocasião de investir num grande terreno na Sicília que lhe daria a oportunidade de satisfazer a condição posta pelo governo alemão, a baixa de impostos da firma na Alemanha e simultaneamente a de fazerem um bom negócio desenvolvendo um resort turístico. O advogado entrou em contacto com uma imobiliária de Roma, cujo dono ele conhecia desde os tempos da Faculdade, quando o homem era empregado de uma tabacaria, e deu-lhe o encargo de procurar na Sicília um terreno com umas centenas de hectares. Passados cerca de dois meses o senhor Silvio, dono da imobiliária, telefonou ao advogado para lhe comunicar que já tinha localizado uma propriedade cujo terreno chegava até ao mar, o qual, na sua opinião, deveria agradar aos alemães para o fim que eles pretendiam. Segundo o dono da imobiliária era necessário que os clientes do doutor não demorassem em contactar com os seus clientes porque, segundo o proprietário, havia outro pretendente comprador. Dava um máximo de duas semanas de prazo para assinarem o contrato na assinatura, do qual queria receber dez por cento do valor que pedia pela venda, como sinal e princípio de pagamento. Dois dos sócios alemães apressaram-se a voar para Itália para ver a propriedade e se a mesma lhes agradasse, com a procuração 132


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dos restantes, assinaria o contrato e pagaria a quantia do sinal. Ocorreu porém que, chegados à Sicília, depois de visitarem a propriedade que lhes agradou, souberam que o proprietário, sem avisar o senhor Silvio, tinha-se deslocado a Milão, por causa de um filho que se encontrava internado em consequência de um acidente de carro. Os alemães ficaram preocupados com o imprevisto porque mostraram interesse em falar com a pessoa com quem iam fechar um negócio que envolvia um investimento considerável. Porém, os seus afazeres na Alemanha não lhes permitia esperar pelo regresso do vendedor que não tinha data definida para poder voltar a Roma. Como o advogado tinha que resolver um assunto urgente no dia seguinte em Londres, os alemães, habituados à boa ética nos negócios no seu país, decidiram delegar no senhor Silvio o encargo de fechar o negócio conferindo-lhe poderes para o contrato por meio de uma procuração e entregando-lhe o cheque referente ao sinal e princípio de pagamento. Após o seu regresso de Londres, o advogado dos alemães tentou encontrar-se com o senhor Silvio para recolher o recibo de pagamento da quantia entregue como sinal e a cópia do contrato assinado pelo proprietário. Durante várias semanas tentou contactar o senhor Sílvio pelo telefone, mas a resposta que obtinha da secretária do dito senhor era invariavelmente a mesma: “o senhor Sílvio encontrava-se em negócios no estrangeiro”. Os alemães telefonavam da Alemanha semanalmente para o advogado o qual sempre lhes respondia com grande embaraço que, apesar de todos os seus esforços em falar com o dono da imobiliária, não tinha ainda conseguido contactar com ele. Temendo perder a regalia da redução de impostos da firma na Alemanha por não conseguirem prova do investimento em Itá133


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lia, os alemães voltaram a Roma e como faltava apenas um mês para caducar aquela regalia dada pelo governo resolveram encarregar o seu sócio italiano para comprar um lote de terreno para a construção de um hotel cuja construção representaria um investimento satisfatório para o cumprimento dos mínimos obrigatórios assumidos com o governo alemão. O terreno comprado para o futuro hotel era muito próximo dos hotéis que o engenheiro Lindom tinha adquirido para a sua empresa. Solicitados a fazer parte do consórcio formado pelas empresas hoteleiras da zona, com a firma que haviam aberto para construir o hotel naquela zona da Sicília, no sentido de aumentar a pressão sobre o Governo Central para autorizar a construção de um Casino como apoio a seus investimentos hoteleiros, os alemães aceitaram o convite tendo em vista também a vantagem de estar associados no consórcio em que participava o grupo de agências de viagens do empresário sueco. Ao associar-se tinham, por este facto, quase uma garantia de ocupação do seu futuro hotel. Haviam-se passado quatro anos desde que começara a ser noticiada a concessão de licença para a abertura de casinos de jogo na Sicília. A impaciência dos americanos e dos seus associados italianos crescia mês a mês. Por outro lado a sociedade de Lindom em Itália não estava a obter bons resultados na ocupação dos hotéis porque a companhia de aviões charter de que era sócio não tinha capacidade para satisfazer o enorme contingente de turistas que uma intensa publicidade na Escandinávia havia cativado para a ilha italiana. A companhia aérea, sob pressão dos seus maiores accionistas, quase todos hoteleiros, viu-se obrigada a aumentar a sua frota substituindo a maioria dos aviões a hélice por aviões a jacto e com maior capacidade. O negócio dos novos aviões implicava um fi134


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nanciamento bancário arriscado pelo enorme volume do investimento.Não obstante os accionistas serem unânimes quanto à necessidade de renovar a frota aérea temeram, porém, envolver-se num empréstimo de tão elevado montante e resolveram desistir do negócio. Perante esta decisão dos seus associados, o engenheiro Lindom, que detinha um terço do capital social da companhia aérea, avançou com a colaboração do Banco Comercial de Estocolmo, dando como caução a holding das suas inúmeras agências de viagens. Ele precisava desesperadamente de ter capacidade de transporte dos seus clientes para os diversos países onde havia feito investimentos em hotéis, nas Canárias, nas Baleares e agora na Sicília, todas zonas distantes da Escandinávia, ponto de partida da sua clientela. Convidada para participar neste consórcio, a Torre Alpina alegou falta de capital para comprometer-se no projecto. Apesar do secretismo que no início envolveu, em Roma, a capacidade financeira da Torre Alpina e do seu negócio de venda de apartamentos e de semanas de ocupação em regime pseudo-hoteleiro num edifício de apartamentos recém-construído, depressa se tornou público que mensalmente entrava dinheiro aos sacos nos cofres da respectiva sociedade. Chegou a correr em Roma o boato que o senhor Sílvio, promotor da Torre Alpina, era um membro ou um testa de ferro da Cosa Nostra, mas em breve veio a ser conhecida do público a origem do fabuloso negócio deste homem, que poucos anos antes era um simples empregado de uma tabacaria da cidade. O advogado dos alemães, a pedido destes, decidiu levar o senhor Silvio a tribunal com o fim de recuperar o dinheiro que havia dois anos lhe tinha sido confiado para pagar o sinal do contrato de compra e venda da propriedade que eles tinham planeado adquirir 135


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dentro do acordo que a sua firma na Alemanha havia feito com o respectivo Governo. O senhor Silvio tinha-se tornado uma pessoa pública e muito falada como o maior accionista da Torre Alpina. A grande publicidade desta empresa ao mostrar nos seus anúncios a respectiva localização revelou ao advogado dos alemães que a empresa do senhor Silvio estava a desenvolver-se exactamente no terreno da propriedade, para a compra da qual lhe tinha sido entregue pelos alemães o cheque para liquidação do sinal do contrato de compra. O homem afinal tinha actuado de má fé. Chamado para testemunhar no caso em questão, o antigo proprietário foi peremptório em afirmar que o único contrato que tinha assinado era um documento onde ele constava como vendedor e o senhor Silvio como comprador e deste tinha recebido um cheque com a quantia acordada. Não se lembrava porém se o cheque que recebera era dele ou de outra entidade. Como a Torre Alpina, já passados três anos sobre este golpe, já tinha quase finalizado o segundo edifício de nove pisos, ambos situados à beira-mar, o advogado avisou os alemães vítimas da fraude que um processo judicial contra o senhor Silvo iria demorar anos e o seu desfecho não podia ser previsto. O senhor Silvio tinha entretanto vendido a uma firma estrangeira a parte não litoral da propriedade, reservando para a Torre Alpina a faixa confinante com o mar onde cresciam os edifícios dos quais ele vendera já bastantes apartamentos e continuava a vender semanas de férias. Só passados meia dúzia de anos é que se veio a revelar a razão da Torre Alpina ter enveredado pelo negócio do que veio a ser conhecido como timeshare. Quando chegou a hora da Torre Alpina ter que fazer as escrituras dos apartamentos prometidos e os vender, a rogo dos compradores, revelou-se por fim aquilo que já era esperado desde 136


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origem pela Torre Alpina, dificuldades que o senhor Sílvio provavelmente pensou que seriam superadas ao fazer-se substituir na presidência da Empresa por um almirante reformado com prestígio nos meios políticos de Roma. As promessas de venda dos apartamentos não podiam ser cumpridas porque os dois primeiros prédios tinham sido edificados em terrenos que eram propriedade do Estado, segundo a lei que definia o Domínio Público Marítimo, lei que nenhum almirante podia contornar. Conhecedor deste facto desde o início, o expediente do senhor Sílvio para a Torre Alpina fazer dinheiro foi jogar mão do esquema brasileiro e vender semanas de férias nesses dois prédios. Quanto aos apartamentos vendidos nos prédios em que simultaneamente vendera semanas de férias teve sorte com os compradores por estes terem concordado em trocar o seu prometido apartamento por um idêntico, mas situado em prédios fora do terreno do Estado. A crise social e financeira do país que se seguiu poucos anos após o início aventureiro da Torre Alpina, da qual se aproveitaram os ressentimentos e invejas de inesperadas figuras detentoras de novos poderes do Estado, levaram justa ou injustamente a uma trágica insolvência que, ainda hoje passados umas dezenas de anos, ainda está por resolver.

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CAPÍTULO XII

CASINOS:UM CONCURSO PARA FICAR NA HISTÓRIA DO TURISMO DA SICÍLIA

I

Finalmente, depois de anos de expectativas entediantes e consideráveis despesas por parte das empresas concorrentes à concessão de licença para abertura de casinos de jogo na Sicília, foi anunciada no Diário Oficial a decisão governamental de abertura de dois casinos, um na zona de Monreale e outro no extremo oposto da ilha, na zona de Tindari. A proposta que Marcelo havia sugerido ao Director Geral tinha tido sucesso. Os americanos continuavam a pensar que explorar dois casinos numa ilha que era ainda mal conhecida mundialmente como destino turístico de qualidade, tinha bastantes riscos considerando que a legislação do país não era adequada para desenvolver uma exploração ágil dirigida a turistas estrangeiros que demandassem a Sicília sobretudo com o propósito de desafiarem a sorte em jogos 139


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de risco nos quais os apostadores americanos chegam a apostar numa noite pequenas fortunas. O sistema tradicional de captação de turistas jogadores, praticado nos casinos da Europa, não prometia grande sucesso na exploração das diversas modalidades de jogos que um casino normalmente comporta. Não obstante, havia alguns indícios que o Governo Central preparava legislação para tornar mais flexível o acesso dos grandes jogadores americanos. Numa reunião realizada em Roma dos maiores accionistas do consórcio que incluía a firma americana e as italianas com hotéis na ilha e que substituíra o esquema inicial constituído pela empresa do engenheiro Lindom, na qual este preponderava como accionista devido ao facto da mesma já possuir dois hotéis, foi acordado que o consórcio de Tindari propusesse ao grupo de Monreale, antes da abertura das propostas, negociar a exploração do casino a localizar em Monreale, no caso do consórcio de Tindari ganhar o concurso. O receio de um fracasso na exploração no caso da legislação não vir num futuro próximo a facilitar uma exploração do jogo de tipo americano aconselhava esta estratégia de cautela. O advogado dos alemães foi indigitado da tarefa de apresentar esta proposta através da firma que encabeçava o grupo concorrente. Alguns dias depois da reunião o advogado pediu uma audiência com o presidente do conselho de administração da dita empresa. Esperava-o uma dupla surpresa no encontro com o referido senhor. Surpreendeu-o, logo de entrada, o facto do presidente da empresa ser um general aposentado mas que fora recentemente uma figura política de alta influência no regime político vigente no país. Durante a conversação sobre a proposta de dividirem entre os dois grupos oponentes no caso do consórcio de Tindarí ganhar 140


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o concurso, o advogado teria a segunda surpresa da tarde quando ao longo da reunião verificou que a empresa a que este general presidia era a proprietária da parte não litoral do extenso terreno negociado pelo senhor Sílvio cuja totalidade era suposta ter sido negociada por aquele senhor para o grupo alemão três anos atrás. Durante a hora que tiveram de conversa ficou assente entre o general e o advogado, num acordo de cavalheiros, que o grupo de empresas por ele encabeçado aceitaria a proposta na condição, porém, do casino da sua zona ficar localizado em terreno da empresa por ele presidida. O arquitecto que já fora antecipadamente contratado para elaborar o plano de localização dos casinos, cuja aprovação dependia do departamento por ele chefiado, não viu qualquer impedimento legal nas localizações propostas e em poucos dias o gabinete particular a que dava apoio logístico entregou ao advogado o referido plano, o qual, juntamente com a restante documentação, seria alguns dias depois entregue no Ministério em carta fechada como proposta para o tão esperado concurso. II

Quando as cartas dos concorrentes à concessão de licença para o jogo em casinos na Sicília foram abertas e lidas as propostas das compensações oferecidas ao Estado, ouviu-se um longo sussurro da multidão que enchia a grande sala posta à disposição do público, pelo Ministério. Os membros presentes de cada uma das partes concorrentes teciam os mais variados comentários às propostas das compensações oferecidas ao Estado pela licença da concessão pelo grupo opositor. Mas o que surpreendeu o grupo interessado no casino da zona de Monreale foi o facto do seu adversário, o grupo da zona de Tin141


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dari apresentar na respectiva proposta a localização de um casino em terrenos da sucursal da empresa estrangeira que tinham sido por aquela adquiridos à Torre Alpina. Quando já havia discussão acalorada entre os membros do grupo e alusões à falta de pudor dos membros do grupo oponente, o general que presidia à firma que encabeçava as empresas da zona de Monreale mandou-os calar e fazendo jeito de retirar-se, todos os seus associados saíram com ele da sala. Certamente que iria mais tarde nesse próprio dia explicar aos seus associados porque lhes ocultara a proposta que lhe havia feito o advogado da parte contrária. O general fora sempre um homem autoritário e entediava-se facilmente com discussões inúteis como seria o caso, se ele antes de serem abertas as propostas tivesse revelado a sua estratégia. Cada um dos concorrentes esteve sempre interessado em explorar um só casino. Ora se a proposta do grupo oponente ganhasse a concessão, o grupo de Monreale ganharia um casino que haviam sempre pretendido. A apreciação dos membros do conselho da inspecção de jogos sobre as duas propostas apresentadas privilegiou por unanimidade e deu ganho à proposta do grupo de Tindari. Tinham-se passado dois meses sobre a abertura das propostas e os dois grupos temiam que o concurso fosse anulado por nenhuma das propostas ter agradado ao governo. Ambos os grupos tinham já gasto muito tempo e dinheiro e adiado outros projectos e uma anulação do concurso tornava-se num verdadeiro prejuízo para ambos os grupos. Porém uma surpreendente decisão governamental iria escandalosamente ser apresentada. Ao fim dos dois meses de espera por uma decisão, os representantes dos dois grupos foram convocados pelo Ministro da tutela para saber se o grupo que ganhasse a concessão concordaria em explorar três casinos. 142


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Marcelo que era o elemento de contacto com os americanos solicitou ao advogado do grupo que pedisse ao Ministro dois dias para poder responder à proposta porque tinham associados estrangeiros que tinha que consultar. A resposta dos americanos reunidos de urgência em Boston foi negativa para a exploração de três casinos, os quais afirmaram desde logo que a exploração de três unidades estaria em princípio condenada a falir ao fim de poucos anos. Uma semana depois desta resposta negativa dos americanos, com a qual o grupo de Tindari concordou por unanimidade de seus associados, ter sido transmitida ao Ministro pelo advogado do grupo, o Diário Oficial publicava um decreto com cinco linhas, assinado por membros do Governo e homologado pelo Presidente da República com o seguinte teor: na reunião do Conselho de Ministros do dia dez de Abril de 1972 foi deliberado que a concessão de licença para a exploração do jogo em casinos na Sicília será atribuída ao grupo de empresas que concordarem em construir três Casinos naquele território italiano. Nunca se vira tanta falta de pudor da parte de um governo nos últimos vinte anos, segundo os comentários de alguns jornais da Capital. Depois de abertas as propostas dos dois concorrentes o governo sair-se com um ardil jurídico para favorecer um banqueiro, um almirante e um general, fora uma manobra que só se podia esperar como um habilidoso golpe idêntico aos da Cosa Nostra. No dia seguinte à publicação deste decreto a imprensa anunciava que a concessão da licença para abrir três casinos tinha sido concedida ao grupo de empresas encabeçada pela firma que tinha como presidente da administração o senhor General com que o advogado do grupo de Tindari havia fechado um acordo de cavalheiros. Esta manobra ardilosa do Governo veio a ser explicada por 143


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um alto funcionário do Ministério ao doutor Marcelo quando este operou de urgência e acompanhou durante duas semanas numa clínica particular um filho do dito funcionário, o qual sofrera um grave acidente de automóvel. A administração da sociedade que adquirira a Quinta da Cuarta tinha ao tempo do concurso como presidente um ex-Secretário de Estado das Comunicações a quem o banqueiro senhor Luperti havia convidado para o substituir no cargo de presidente por razões de saúde. O calendário de desenvolvimento do grande resort turístico da Quinta da Cuarta tinha sofrido um atraso considerável porque os americanos associados do banqueiro haviam entrado em grave conflito com o senhor Luperti ao descobrirem o negócio que este banqueiro havia feito com os antigos proprietários pelo qual o banqueiro havia ficado com cinquenta por cento da sociedade sem que tivesse investido uma lira. Tal conflito teve como desfecho a decisão dos americanos de saírem da sociedade com o reembolso do seu capital investido e uma vultuosa indemnização com a qual foi evitada uma acção judicial, a qual seria uma grave machadada no prestígio do banqueiro e do próprio Banco. Desde o negócio realizado com os irmãos Conti haviam-se passado cerca de quatro anos. Durante este tempo o resort teve um desenvolvimento apreciável. Nos relatórios anuais do Banco podia constatar-se que tanto os americanos como o banqueiro italiano gozaram vultuosos empréstimos do Banco, pelas mãos do seu presidente. A razão de pretender um casino na Quinta da Cuarta, era na opinião da respectiva administração, um incentivo imprescindível para recuperar do atraso do respectivo resort, causado pelo dissídio e saída dos americanos da sociedade. A decisão absurda e “habilidosa” do governo autorizar a abertura de três casinos, num território tão pequeno e com uma po144


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pulação local tão reduzida, quando inicialmente só estava previsto uma dessas unidades, deu que falar durante meses em todos os meios sociais. Um almirante, um general e um ex-secretário de Estado tinham, num almoço, dado o mágico golpe no concurso. Justificava-se plenamente, ainda que não houvesse rumores que pessoas tão destacadas na sociedade pertencesse à Cosa Nostra, pela vox populi, não foram poupados ao julgamento de que haviam agido como se fossem parentes da mesma. Porém a previsão dos americanos dar-lhes-ia razão quando passados cinco anos a sociedade ganhadora constituída para integrar as diversas entidades de altos comandos sociais abriu falência. O homem que ao fim e ao cabo foi o causador da falência por ter querido chamar a si o fatal terceiro casino sofreu um rude golpe moral quando a imprensa publicou a notícia que um seu parente fora acusado e julgado por ter praticado um desfalque de milhões de liras num dos casinos em que o pai o colocara como director. III

Dias depois deste triste processo político ter ocorrido, Marcelo recebeu um telefonema da Sicília do seu colega Nicolò que estabelecera sua clínica em Palermo. – Meu caro Marcelo, depois de regressar de Roma a semana passada, calculas quem me apareceu no hospital com um condiloma para eu operar? Surpresa para ti certamente. Nem mais nem menos que o teu “amigo” Júnior. Lamentou-se muito de não ter ainda conseguido a aprovação pela Direcção Geral. Já tinha renovado o contrato com um reforço do primeiro pagamento. Sentia-se desesperado porque envolvera capitais de um familiar e de alguns amigos deste e já estava sem dinheiro para persistir no alcance da aprovação. Os associados que o haviam capitalizado negavam145


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se a empatar mais dinheiro e começavam a tomá-lo como um irresponsável. O pai sentia-se envergonhado com o estrondoso falhanço do Júnior por tê-lo indicado para representante do grupo em Roma. Depois desta lamentação toda pediu-me para o ajudar a reatar as relações contigo. – Meu caro Nicolò, sabes que eu não sou rancoroso mas a patifaria que ele me fez aconselha-me a não ter mais qualquer conversa com ele porque o que ele pretende, fica certo do que te digo, é a minha ajuda para conseguir salvar a pele. Ele não tem um pingo de vergonha na cara e julga que eu vou cair segunda vez no conto do vigário porque sabe que eu tenho uma grande estima pelo pai. – Então vou transmitir-lhe que tu não estás interessado em falar com ele e ponto final. Um dia destes vou a Roma e desde já ficas convidado para almoçar comigo e um pequeno grupo de colegas que trabalham comigo no hospital aqui em Palermo. Passados três dias, estava Marcelo a sair do hospital, uma das recepcionistas chamou-o para lhe dizer que tinha um amigo esperando por ele na sala de visitas. Marcelo estranhou o facto mas dirigiu-se para o dito amigo que não quis deixar o nome às recepcionistas. O dito amigo era, para espanto de Marcelo, o descarado Júnior. Vendo o médico aproximar-se levantou-se e saudou-o de modo expansivo como se nada se tivesse passado. – O meu pai manda-te um abraço e disse-me que gostaria muito de te ver quando fores a Boston. Gostava de falar contigo porque tenho uma boa proposta para te fazer. Soube por meu pai da trapaça dos casinos. Os amigos do meu pai tiveram dificuldade em acreditar que o governo deste país fosse batoteiro antes mesmo de abrir o jogo. Mas o que te quero propor é que façamos uma sociedade para comprar a propriedade que tu tinhas interesse em adquirir. Ele falou146


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me que tu estavas interessado em mandar construir lá uma casa de férias, e por isso resolvi vir falar contigo porque, com uma sociedade que desenvolva lá um resort, tu podes ficar com uma casa sem gastar uma lira. – Lamento mas não posso aceitar o teu convite porque já tenho a meu cargo a delegação do maior grupo escandinavo de agências de Turismo e o tempo não me chega para mais sociedades. – Mas eu estou decidido a ficar com uma pequena parte da sociedade, talvez uns quinze por cento e tu ficas inteiramente no comando do negócio. Marcelo, já afectado por um sentimento de desprezo pelo seu interlocutor, era além disso conhecedor da impossibilidade de aprovação do projecto que o Júnior havia encomendado. O seu contacto semanal com o arquitecto da Direcção Geral a cujo gabinete particular havia encomendado o plano de localização dos casinos, permitiu-lhe acompanhar os apuros em que se encontrava o falso amigo e tirar daí as devidas ilações para negar-lhe a participação na sociedade que lhe era proposta. Pela segunda vez, Júnior estava na contingência de fazer perder aos seus associados todo o dinheiro investido durante os anos de espera por uma decisão positiva sobre o seu projecto. A validade do contrato que assinara novamente com os proprietários da pequena quinta, então com um reforço substancial do primeiro pagamento, expirava daí a um mês. Júnior entrava em desespero sem saber a quem mais recorrer para pedir uma recomendação que lhe facilitasse um parecer positivo do seu projecto. Num almoço de família, Marcelo referiu casualmente que o Júnior o tinha procurado à saída do hospital para lhe propor juntarem-se numa sociedade com o fim de comprarem a pequena quinta que havia quase três anos ele e o pai tinham em mente adquirir. 147


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O pai, em tom indignado, interrompeu o jovem e só teve uma curta frase: – Com gente mafiosa não queremos nada! Passaram-se dois dias e para surpresa de Marcelo, quando ia sair do hospital, esperava-o à porta novamente, o indesejável filho do Mister Adams. – Então doutor, avançamos ou não com a minha proposta de sociedade? – Parece-me que fui claro quando falámos no outro dia. Não há hipótese nenhuma de eu entrar nessa pretensa sociedade. De repente e já algo acalorado, Marcelo quase sem reflectir disparou uma arriscada proposta: – Eu ou fico totalmente com a propriedade ou não temos mais conversa sobre o assunto. – Marcelo, eu posso aceitar essa proposta, mas há que pagar aos meus associados as despesas que eu neste três últimos anos fiz aqui em Roma com o projecto, escritório, empregada, etc., que é uma quantia considerável. Eu amanhã posso trazer os números exactos destas despesas. A despedida pareceu mais cordial que dois dias antes e ao Júnior brilhavam-lhe os olhos de contentamento por ver uma possibilidade de sair da embrulhada em que metera o pai e seus amigos. Eram mais de duzentos mil dólares que ele faria perder a todos os associados se o negócio falhasse. A proposta de Marcelo era quase miraculosa. Passadas duas semanas, durante as quais diariamente o Júnior telefonava com grande ansiedade a Marcelo, este, com a ajuda de Lindom que se havia deslocado a Roma para negociar seus hotéis, conseguiu a garantia de um empréstimo hipotecário no Banco em que movimentava as receitas dos hotéis. O engenheiro comunicou-lhe nessa altura que tinha que vender os hotéis para evitar a fa148


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lência da sua grande empresa, o que veio a acontecer um ano mais tarde, devido à precipitada aquisição por sua empresa de um excessivo investimento na companhia aérea que adquirira os aviões a jacto. Os membros do consórcio que se tinha formado para o concurso dos casinos mostraram desejo de sair dessa sociedade que fora frustrada pela sabotagem da elite romana em conluio com o Governo e Marcelo adquiriu todas as posições accionistas do dito consórcio. Sem falar nada deste negócio a seu pai, Marcelo comprou ao dito Júnior o contrato-promessa e as despesas documentadas que este havia feito nos três anos de espera e, poucos dias depois, fez num notário da cidade a escritura de compra da pequena herdade com a hipoteca simultânea da mesma. Com a agilidade que os negócios em que entrara com o seu amigo Lindom lhe havia proporcionado, entregou um novo projecto de urbanização da propriedade a um arquitecto recém-formado que precisava de trabalho e, no fim do mesmo ano da compra, obteve a necessária licença camarária para negociar alguns terrenos. Marcelo tinha deixado amigos na Sicília quando lá trabalhou como assistente do Secretário de Estado de Saúde e um dos bons amigos era ainda presidente da Câmara Municipal de Palermo. De visita à ilha para rever a propriedade que tinha adquirido foi visitá-lo e agradecer-lhe a atenção que ele havia tido em mandar estudar e aprovar o projecto sem demoras burocráticas. Após uns minutos de conversa, quando Marcelo estava de saída, o Presidente pediu-lhe para esperar um minuto porque queria mostrar-lhe algo. Era uma carta assinada pelo engenheiro autor do master plan da Quinta da Cuarta recomendando à Câmara Municipal que nenhum projecto devia ser aprovado na pequena herdade adquirida pela sociedade, antigo consórcio cujas posições de capi149


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tal haviam sido adquiridas por Marcelo, porque no entender do prepotente engenheiro essa pequena herdade devia ser convertida em zona verde para protecção do resort que estava a ser desenvolvido na famosa Quinta da Cuarta. O presidente da Câmara e Marcelo deram uma grande gargalhada quando este acabou de ler a carta e despediram-se calorosamente. Na mente dos dois, possivelmente, ocorreu o mesmo pensamento. O famoso banqueiro que era agora o dono total com o seu Banco da Quinta da Cuarta e que tentara comprar a pequena herdade por um preço dez vezes menos do que Marcelo pagara, não tendo conseguido convencer os proprietários, queria agora que a Câmara Municipal declarasse a pequena herdade como zona verde para mais tarde, quando lhe aprouvesse, comprá-la para alargar os seus domínios. Marcelo não parou um dia enquanto não viu a primeira equipa contratada a começar a trabalhar no desbravamento do solo e quando tudo estava pronto para arrancar com as infra-estruturas convidou os pais, mulher e filha para um almoço em Palermo para comemorar o que era um segredo do qual só a esposa tinha conhecimento. Após o almoço, tomaram um táxi para a pequena herdade e aí, não esperando por perguntas do pai, apresentou-lhe orgulhosamente o objecto do seu triunfo. A resposta do pai não se fez esperar: – Fico muito contente que o destino tenha feito justiça e castigado o infiel que tu julgaste amigo. Devo dizer-te que a minha ideia ao conversarmos a primeira vez neste assunto, era adquirir esta pequena herdade para ti. Eu já estou a envelhecer e tu tens pela frente uma vida inteira. Se Deus quiser terás saúde para levar para a frente com a tua energia o plano que traçares construindo um grande futuro para ti e para a tua família. 150


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CAPÍTULO XIII

QUARENTA ANOS DEPOIS

I

Apesar da Itália ter tido nos últimos tempos uma permanente instabilidade governamental, a Sicília teve um desenvolvimento notável no campo turístico. De nascente a poente, as praias da ilha viram crescer um urbanismo nunca sonhado antes. Dezenas de hotéis foram construídos na perspectiva de bons negócios com o crescente número de turistas vindos do continente italiano e do estrangeiro. As vias rápidas avançavam ano após ano, permitindo um acesso fácil às vilas e cidades do sul da ilha. Todo o litoral siciliano pôde assim tornar-se conhecido pelos visitantes desejosos de conhecer a parte meridional da ilha e do seu património cultural. Um número considerável de hotéis eram integrados nos di151


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versos resorts turísticos nascidos após um apreciável desenvolvimento do grande resort da Quinta da Cuarta. A economia da ilha tendeu a depender da monocultura explosiva do turismo. A partir dos anos noventa, a concorrência que é sempre desejável em todos os ramos de negócio começou a dar os primeiros sinais indesejáveis do que é excessivo. O equilíbrio económico das unidades de alojamento na esmagadora maioria baseadas no turismo de sol e praia que até aí era razoável, não obstante o carácter sazonal desta actividade, entrou gradualmente em instabilidade. Para além da feroz concorrência que se estabeleceu na hotelaria legal e do alojamento não legalizado, a partir dos anos noventa, a subida do custo de vida nos países europeus e a insensata subida dos impostos sobre o imobiliário e sobre as empresas em todo o país e, mais recentemente, os constantes aumentos dos combustíveis completaram o actual quadro negro da indústria do turismo balnear da qual a economia da Sicília se tornara fortemente dependente. A Sicília não escapara ao boom da construção que ocorreu em todo o litoral do sul da Europa. Os grandes ganhadores do crescimento urbano desenfreado na ilha foram os que sempre dominaram “habilidosamente” o poder local e tiveram a facilidade de acesso aos Bancos de Roma com os quais os Dons faziam grandes transacções financeiras de negócios “obscuros” cujos réditos alimentavam a corrupção a todos os níveis da política As pequenas empresas locais, que sempre lutaram contra as burocracias da indolência do poder local e a legislação confusa devido às constantes mudanças realizadas por cada novo governo central, juntamente com os enormes atrasos nos licenciamentos de obras, sobreviviam graças às relações familiares dos empreiteiros menores com os que podiam facilitar os processos de licen152


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ciamento. Contavam para isto também as amizades do tempo de escola e algumas vezes o parentesco político com os senhores do poder regulador da zona onde se aventuravam a tomar alguma empreitada que não afectavam os interesses dos Dons. O tempo do progresso a que o povo chamaria “tempo das vacas gordas” foi aos poucos transformando-se em “tempo de desespero”. As agências grossistas de viagem estrangeiras, a maioria delas quase insolvente, só têm conseguido sobreviver oferecendo preços de ocupação muito aquém do que era normal anos atrás o que, consequentemente, dá à hotelaria apenas a possibilidade de cobrir as despesas. A ambição governamental de fazer da Sicília uma estância de turismo de qualidade, depressa se perdeu. O turismo de massas, fenómeno da vida actual, na sua maioria constituído em todo o mundo por pessoas de baixos rendimentos, é um factor que por si fomenta a utilização de alojamentos de preço módico o que logicamente exige unidades hoteleiras de pouca qualidade com serviços modestos. É um fenómeno imparável, fruto do progresso da democracia económica. Se por um lado dá uma nova dinâmica ao turismo mundial acarreta por outro a desvalorização ambiental em todas as suas vertentes, nas zonas onde se instala, e o desgaste progressivo da reputação de qualquer zona que com sacrifício ganhara a fama de lugar tranquilo e de repouso. O turismo de massas, que fez a euforia do pequeno comércio e restaurantes, faz em tempos de crise o desespero dos que julgaram eterno o tempo das vacas gordas. A Sicília, que de “couto” da Cosa Nostra se tornara numa estância balnear de italianos endinheirados aos quais se seguiram turistas estrangeiros de posses, assim como não escapou ao boom 153


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do turismo de massas vê-se agora a braços com as consequências da crise mundial que vem crescendo desde os anos noventa. Os grandes empreendimentos como os resorts da Torre Alpina e da Quinta da Cuarta e outros ainda esbracejam no mar revolto da crise, graças a habilidosos negócios de engenharia financeira a que o Poder instalado fecha os olhos, aproveitando a barafunda política que domina o país. Para evitar o naufrágio desastroso destes dois importantes resorts que, segundo o ditado italiano «quem mal começa, mal acaba», a Quinta da Cuarta está desde 1996 entregue aos gregos com contrapartidas valoradas em muitos milhões de liras, acordadas com o governo central e local, as quais parecem ter ficado esquecidas no papel. Os gregos alegam ter já entregue muitos milhões ao Município para a autarquia realizar por seu turno as ditas compensações mas «vox populi» ninguém acredita, perante o facto de nada ter sido realizado até à data, desde aquele ano. A Torre Alpina passou para as mãos de um grande empresário italiano que aceitou o desafio de salvar a empresa da falência sob a condição de usufruir do prazo de cinquenta anos para a tornar solvente. O encerramento da empresa causaria o prejuízo total dos que investiram cegamente as suas poupanças, na mira de juros chorudos.

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ÍNDICE

PREFÁCIO - 5 Capítulo I

A IDA PARA PALERMO - 9 Capítulo II

MARCELO NA AMÉRICA - 25 Capítulo III

OS NOVOS CONHECIMENTOS DE MARCELO - 41 Capítulo IV

A PROMOÇÃO DE UM INVESTIMENTO AMERICANO NA SICÍLIA - 51 Capítulo V

A VISITA DOS PROMOTORES AOS SENHORES CONTI - 63 Capítulo VI

AS PRIMEIRAS NEGOCIAÇÕES - 77 Capítulo VII

UM BANQUEIRO ARDILOSO - 85 Capítulo VIII

MARCELO VOLTA A ITÁLIA - 95 Capítulo IX

OS PROJECTOS DO AMIGO BYORG LINDOM - 107 Capítulo X

OS AMERICANOS INTERESSAM-SE PELOS CASINOS DA SICÍLIA- 117 Capítulo XI

O CASO TORRE ALPINA - 129 Capítulo XII

CASINOS:UM CONCURSO PARA FICAR NA HISTÓRIA DO TURISMO DA SICÍLIA - 139 Capítulo XIII

QUARENTA ANOS DEPOIS - 151

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