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“Desde aquele tempo eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho.” (Guimarães Rosa)
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A grande viagem é voltar. É ir. Seguir. Prosseguir. Dar a volta. Regressar. Retornar. Confrontar a infância com tudo aquilo que a gente é. Ou foi. Ou deixou de ser. E verificar o que a vida fez com a gente. A inocência permaneceu? A possibilidade de comunhão emocional não foi destruída? Acho fundamental não trair a meninice e fazer permanecer essas situações que as fotos mostram. A menininha abraçada com o irmão. E a menininha, quase perdida, no meio de tanta gente. Gente que nos humanizou através do poderoso exercício do amor -- essa milagrosa troca de influências. Tudo muito parecido com aquela idéia marxista de que não existimos desligados dos outros. Ou como formulou, sintéticamente, Otto Lara Rezende: não sou o que sou, sou o que somos. É claro que podemos nos transformar de muitas maneiras. Mudamos por força da ameaça. Ou da pancada. Ou por causa de aprovação. De prêmios. Mas a única mudança que vale a pena é aquela que se faz através do amor. Pode parecer banal e simplista, mas só o amor constrói.* E a prova mais cabal disso somos nós que vivemos, desde cedo, envolvimentos enriquecedores, comunhões transformadoras e prazeres amorosos sempre inocentes. E foi junto dessas criaturas amadas -- que sempre tiveram forte potencial criativo -- que nós fomos recebendo nosso legado. Marcas de um lampião que vai permanecer sempre aceso. Iluminando nossos medos. Nossas coragens tão transitórias e transitivas. Nossos rituais de companheirice. Nossas celebrações do corpo. E, por fim, nossos maravilhamentos diante de um punhado de terra com sementes. Ou debaixo de um céu estrangeiro. Ou abaixo da luz que as estrelas cotidianas propagam. *não gosto da frase, banalizada e desgastada. Mas não consegui criar
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Lembras-te, minha irmã, da velha casa do Bicudo, escondida dentro de um parque, aí em Campos do Jordão? Lembras-te deste portão que abria para esse mundo maravilhoso, sempre disponível para nós? Lembras-te da flor nativa nascendo sempre do alumbramento da palavra? Lembras-te da tia Concha declamando Bilac: Nunca morrer num dia assim, de um sol assim...e eu vendo-te e vendo a palpitar em ti,a delícia da vida! a delícia da vida! Ou Castro Alves: Andrada, arranca este pendão dos ares! Colombo, fecha a porta dos teus mares! Lembras-te, minha irmã, dos filmes do Carlitos que assistíamos com papai e mamãe? E da Gelsomina e do Zampano, vivendo alegrias e tristezas fundas naquele filme de circo ambulante? Lembras-te das noites mágicas, de domingo, no Molinaro, quando só nós--eu, você, eduardinho, mamãe e papai-usufruíamos de nós mesmos e dos nossos vínculos sagrados? Lembras-te daqueles finais de semana na casa da Isalina e do José? E dos sorvetes que esperávamos, todas as tardes, quando aquela perua surgia nas areias da praia, em Solemar? Lembras-te daquela casa de praia onde todos cabiam e tudo tinha cabimento? E da casa da Rebouças onde morava tanta gente querida e onde o pão quentinho, da Regência, misturado à manteiga salgada Aviação, transmitia a sensação exata dos entardeceres perfeitos? E da Fazenda da vó Sinhana, em Xavantes, sem luz, sem banheiro dentro de casa, sem chuveiro com água quente? E ainda assim, não era lá que a gente vivia iluminações? Aprendizados do diferente? Convivências amorosas? É minha irmã, a vida é isso que fica dentro da gente, movendo buscas, bússolas, encontros, despedidas. E a saudade não passa disso: sal da idade. Ou portenhamente: soledade.
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E será que adianta espiar, através do tempo, aquilo que ainda continua lá, não intato, mas preservado? Ou restaurado por essas revisitações? Ou transformado por esses contatos vivos? Ou mudado por esses contágios? Claro que é preciso ser uma guardião da lembrança para resgatar as múltiplas casas da infância. Para presentificar as pessoas amadas que ainda convivem conosco-embora em dimensões diferenciadas. Para restabelecer os nexos invisíveis com sabores específicos, com cenários singelos, com cheiros inesquecíveis. E a vida inteira é pouco pra isso. Aliás, parte de mimjjá está perdida e meio morta. Parte de mim já está viajada e talvez ancorada naqueles mares do Pessoa (quanto de teu sal são lágrimas de Portugal) Mas existem partes em mim renascidas. E são elas que não me permitem esquecer as bençãos e os privilégios. Os laços tênues que prendem invisivelmente uma coisa à outra. Os prazeres cotidianos de pequenos momentos encantatórios. E não esquecem também os duros trabalhos episódicos e as alegrias do perdurável. São esses pedaços de mim que não apenas adivinham, supõem. Inventam e criam. Os bezerros de ouro e os bezerros de barro. Tudo em cima dos bezerros bezerros. Mas sempre abaixo dos currais da infância.