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X. Sr. e Sra. Camille Flammarion
from Loie Fuller
X
Sr. e Sra. Camille Flammarion
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Temos na América uma grande atriz chamada Modjeska 53 . É uma das mulheres mais interessantes que conheço. Ela é polonesa, exilada de seu país e casada com o conde de Bozenta 54 . Apesar de pertencer à aristocracia, ela está imbuída de ideais libertários que são geralmente atribuídos aos niilistas. E é por essa razão que as suas propriedades e as do seu marido foram confiscadas, e ambos forçados ao exílio. Isso deve ter ocorrido por volta de 1880, se não antes. Eles então foram para a América, estabeleceram-se aí, e a condessa decidiu lançar-se na carreira teatral. Para a sua e a surpresa de todos, viu-se que ela tinha o “fogo sagrado”. Tornou-se uma grande atriz. Nos Estados Unidos, nós a amamos como se ela fosse do nosso próprio país.
53 Helena Modjeska (1840-1909), nascida Jadwiga Helena Benda. Celebrada como a maior atriz do teatro polonês de seu tempo, ela se casou com Karol Bozenta Chlapowski em 1868 e estabeleceu-se com ele em 1876 nos Estados Unidos – ela obteve a cidadania norte-americana sete anos depois. Seu nome artístico inicial, “Modrzejewska”, foi encurtado em 1877 pelo ator John Edward McCullough (1832-1885). Renomada atriz de tragédia, ela foi especialmente ovacionada nas peças de William Shakespeare, nas quais ela representou nada menos que quatorze papéis. 54 Karol Bozenta Chlapowski (1840-1914). Intelectual oposto ao tzar, editor do jornal liberal e nacionalista Kraj.
Logo após a minha estreia no Folies-Bergère, uma senhora pediu
para me ver. Era a condessa Wolska 55 , também polonesa e grande amiga
de Modjeska. Ela vivia no exílio com seu pai 56 , que se atreveu a escrever
um livro libertário intitulado O Judeu Polonês 57 .
Foi graças à condessa Wolska que travei conhecimento com o sr. e a
sra. Flammarion. Jamais esquecerei a impressão que tive ao ver pela pri
meira vez Camille Flammarion 58 , quando a condessa me levou à casa dele,
na rua Cassini. Ele vestia um casaco de flanela branca orlado com uma
fita vermelha. Ele tinha uma verdadeira floresta de cabelos, que formava
como que um gorro na cabeça – era tão impressionante que não pude re
primir uma exclamação. A sra. Flammarion 59 me disse que ela precisava
cortar com frequência as mechas, pois o cabelo do marido crescia com
tanto vigor, que isso chegava a importuná-lo. Ela me mostrou em seguida uma almofada sobre o sofá:
- É onde coloco o cabelo após cortar – disse.
Para se ter uma ideia do penteado de Camille Flammarion, é preciso
apenas multiplicar por doze os cabelos de Paderewski 60 .
55 Anna Wolska (18..-?). 56 Kalikst Wolski (1816-1885), escritor polonês. Após o fracasso da insurreição em novembro de 1830, ele exilou-se na França, onde participou da revolução de 1848, e depois mudou-se, em 1852, para os Estados Unidos, para escapar das represálias do governo de Napoleão III (1808-1873). 57 É mais provável que se trate de A Rússia judia, publicado em Paris em 1887. 58 Camille Flammarion (1842-1925). Astrônomo, escritor, cronista e vulgarizador científico francês. Ele fundou o Observatório de Juvisy (1883) e a Sociedade Astronômica da
França (1887). 59 Sylvie Flammarion (1836-1919), nascida Petiaux. Ativa colaboradora de seu marido (eles se casaram em 1874) e pacifista militante, ela fundou em 1899 a associação “Paz e
Desarmamento pelas mulheres”. 60 Ignacy Jan Paderewski (1860-1941). Pianista, compositor, político e diplomata polonês. Um artigo de Harry F. Mawson publicado no The Harper’s Weekly de dezembro de 1891 (traduzido do inglês), citado pelos “Annales Paderewski” (n. 21, 1998), fornece uma visão geral da sua imagem física: “Sr. Paderewski é de altura mediana, esguio, mas muito musculoso. Seu rosto é muito expressivo, coroado com uma massa de cabelos ligeiramente ruivos, que lhe caem em cachos. Essa particularidade lhe valeu, na Inglaterra, o apelido de ‘Leão loiro’.”
Ilustração do espetáculo A Tragédia de Salomé publicada no jornal parisiense Comœdia do dia 10 de novembro de 1907.
Em uma das minhas apresentações de Salomé 61 no teatro Athénée,
o sr. e a sra. Flammarion foram ao meu camarim depois do espetáculo, ao mesmo tempo que Alexandre Dumas Filho. Como havia muitas outras pessoas, não me dei conta de imediato que os dois homens não se conheciam. Finalmente percebi e perguntei, surpresa: - É possível que os dois dos personagens mais célebres de Paris não se conheçam? - Não é tão extraordinário assim – disse Dumas. – Veja você, Flammarion vive no espaço e eu sou apenas um habitante da terra. - É, mas uma pequena estrela vinda do Oeste nos reuniu – disse Flammarion. Dumas começou a rir e disse:
61 A Tragédia de Salomé, pantomima lírica em dois atos, quatro cenas e um prólogo. Texto de Armand Silvestre (1837-1901) e Charles Henry Meltzer (1839-1936), música de Gabriel Pierné (1863-1937). Representada pela primeira vez em Paris no teatro Athénée em 4 de março de 1895.
- É a pura verdade. Entrei na conversa e declarei que a pequena nebulosa norte-americana estava muito orgulhosa de ter a honra e o prazer de servir como um elo entre duas estrelas brilhantes da França. Poucas pessoas sabem que Flammarion não se contenta em ser um eminente astrônomo. Ele conta com descobertas do mais alto interesse, e a maioria delas não tem relação com a astronomia. Uma delas interessa-me particularmente. Ele quis descobrir se a cor exerce alguma influência sobre os organismos – e dá para imaginar como tais estudos podem me fascinar, já que sou uma fanática da cor. Ele começou seus estudos observando as plantas. Pegou meia-dúzia de gerânios, todos do mesmo tamanho, e colocou cada um numa pequena estufa com vidros de cores diferentes. Uma das estufas tinha vidros brancos e um último gerânio foi plantado ao ar livre. O resultado, como pude constatar in loco, foi surpreendente. Uma das plantas, bem frágil, crescera inteiramente para cima; uma outra permaneceu pequenina mas robusta; uma outra não tinha folhas; a quarta tinha um pequeno tronco, com folhas e sem ramos. Cada planta era diferente, de acordo com a cor que a havia protegido, e até mesmo a que brotara sob o vidro branco não era normal. Nenhuma delas era verde, o que comprova que não só a cor, mas o próprio vidro exerce um efeito sobre as plantas. A única planta bonita foi a que havia crescido ao ar livre: essa era normal. Flammarion continuou com as experiências, só que agora com o corpo humano. Ele colocou vidraças de cores diferentes nas janelas do seu observatório. Qualquer pessoa que se interessasse o suficiente por essas experiências, e que não temesse o tédio de ficar sentado à luz de uma determinada cor por uma ou duas horas, podia sentir as influências variadas dessas colorações sobre o organismo. Desse modo se pôde constatar, por exemplo, que o amarelo provoca irritação e o roxo, sono. Perguntei ao sr. Flammarion se ele achava que as cores que nos cercam exercem um efeito sobre o nosso caráter, e ele respondeu: - Não resta dúvida de que cada um de nós gosta mais de uma cor do que de outra. Tanto é que todo mundo vai dizer: “Eu gosto desta cor mas não
gosto daquela”. E não dizemos também que esta ou aquela cor “cai bem”, ou
não, em determinada pessoa? Isso parece comprovar que a cor deve exercer
uma certa influência moral ou física, ou, talvez, as duas ao mesmo tempo.
Só depois de entrar na intimidade de Flammarion é que podemos
entender o grande pensador que ele é.
Em todo seu trabalho ele é auxiliado por sua esposa. Ela também é
uma grande pensadora e uma mulher de notável atividade. Ela é uma das fun
dadoras da Liga para o Desarmamento, e também está envolvida em outras obras, o que não a impede de ser uma mulher simples e excelente anfitriã.
Acho que seria interessante dizer aqui algumas palavras sobre a
“casa de campo” dos Flammarion. Eles vivem em um castelo em Juvisy, no mesmo lugar em que Luís XIII 62 concebeu o projeto inicial de cons
truir uma residência real. A terraplenagem estava concluída e o parque
desenhado quando ocorreu um ligeiro desmoronamento do solo. Luís XIII renunciou ao projeto e decidiu-se por Versalhes. Daquele dia até hoje não
houve mais desmoronamento, e o sublime local de Juvisy merece uma vi
sita de todos aqueles que amam a natureza. O panorama que descobrimos
lá é um dos mais bonitos da França.
O castelo, anterior aos projetos de Luís XIII, ainda existe, e foi aí
que Napoleão 63 se deteve algum tempo quando estava a caminho de Fon
tainebleau. Ele chegou a realizar um conselho à sombra de uma árvore centenária, que domina, com seu tamanho soberbo, a colina que se ergue em frente ao castelo. Sob a árvore estão a mesa e o banco de pedras que haviam sido instalados para que o Imperador pudesse reunir-se com seus fiéis companheiros e, ao mesmo tempo, estar livre do olhar indiscreto dos curiosos. Atrás do castelo há a famosa alameda, a grande alameda solitária, completamente recoberta pelos ramos de duas fileiras de árvores. Diz a lenda que Napoleão passara ali horas agradáveis em boa companhia. Um dia o castelo se tornou propriedade de um astrônomo amador. Ele construiu um observatório e, ao morrer, legou essa sublime propriedade a um homem que ele nunca vira: este homem era Camille Flammarion.
62 Luís XIII (1601-1643). Rei da França (1610-1643). 63 Napoleão I (Napoleão Bonaparte) (1769-1821). Primeiro cônsul vitalício (1802-1804) e depois Imperador dos Franceses (1804-1815).
Lembro-me de uma exposição em que Camille Flammarion me acompanhou. Quis homenageá-lo colocando o meu mais belo vestido, e comprei um traje para a ocasião que, achava eu, parecia ser muito bonito. Para combinar com o vestido, escolhi um chapéu do qual pendiam longas fitas atrás. Já o sr. Flammarion vestiu um casaco de veludo marrom e chapéu de feltro. Todos ali o conheciam. Sussurraram que Loïe Fuller o acompanhava, e logo tivemos, ao nosso redor, mais pessoas do que havia diante de qualquer uma das obras expostas. Imaginei que devíamos parecer muito elegantes; no entanto vim a saber mais tarde que o motivo, além de o de sermos conhecidos, era que não havia mulher ali com um visual mais esquisito do que o meu, e que o traje vestido pelo sr. Flammarion também não era dos mais convencionais. Nosso sucesso foi tamanho que um admirador chegou a cortar a fita do meu chapéu, provavelmente para guardá-la como uma lembrança de um espetáculo que ele julgava memorável... Em outra ocasião, dei um espetáculo não menos memorável, só que para um número mais restrito de pessoas. Uma noite cheguei em casa às oito e encontrei-a cheia de gente. Eu havia esquecido que daria um jantar para cerca de quarenta convidados. Como naquele dia não tinha um minuto livre, o chef garantiu, naquela mesma manhã, que ele próprio se ocuparia de alugar mesas e cadeiras, e que se encarregaria do jantar sem que eu tivesse de me preocupar com isso. As cadeiras, mesas e pratos chegaram. Ele não calculara o preço para o aluguel, e pensava que eu estaria lá para receber os artigos e pagar a conta. Eles esperaram até às sete horas por mim, e, vendo que eu não chegava, o chef então decidiu pagar no meu lugar. Pediram trezentos francos. O preço pareceu-lhe exorbitante, e ele não se atreveu a pagar a conta sem o meu consentimento. Mas ele estava tão assustado ao ver que o jantar não ocorreria por falta de cadeiras, que acabou decidindo pagar o valor. No entanto, ele percebeu que não tinha dinheiro suficiente, e os homens da agência de locação foram embora com os móveis.
O chef ficou desesperado. Já não sabia mais o que fazer quando,
súbito, ocorreu-lhe uma ideia. Ele foi contar as suas dificuldades para a
vizinhança, que se apressou a emprestar cadeiras, mesas, pratos e copos,
de todos os tipos e estilos. Cheguei ao mesmo tempo que os primeiros convidados e no momento em que os vizinhos levavam as mesas, cadeiras
etc. Todo mundo começou a ajudar a pôr a mesa, e acho que nunca assisti
a uma ceia mais animada.
Algumas mesas eram altas, outras baixas; as cadeiras levavam ao
ápice a discordância; e havia uma carência terrível de facas e taças. Ain
da assim, o chef fez maravilhas para esquecermos que o banquete estava
longe do ideal. O mais engraçado é que naquela mesma noite eu tinha
encontrado alguns amigos e por um triz quase não compareço ao meu
próprio jantar.
Por sinal, o jantar, que contou com a presença de Rodin e de Frits
Thaulow 64 , foi dado em homenagem ao sr. e à sra. Camille Flammarion.
64 Frits Thaulow (1847-1906). Pintor e gravador norueguês, ele foi uma figura notória do meio artístico parisiense. Jacques-Émile Blanche (1861-1942) mostra-o em seu ofício em uma pintura a óleo intitulada Le peintre Thaulow et ses enfants (1895), também chamada de La famille Thaulow (conservada no museu de Orsay em Paris).