A Alteração do Clima Mestre Rabiscador
M
anel era um menino que vivia com o seu
avô, numa casa junto ao mar. O avô era pescador e saía na sua pequena embarcação, sempre que não havia tempestade. Manel frequentava a escola da aldeia, mas era um rapaz um pouco especial. Tinha muita dificuldade em se concentrar nas coisas que a professora dizia, pois vivia sempre num mundo 1
imaginário. Praticamente não falava. Também não tinha amigos. Tinha tentado explicar aos outros miúdos as histórias dos seus amigos invisíveis, mas não tinha conseguido despertar qualquer atenção. Passava então os recreios da escola completamente só e sujeito às graças dos outros meninos e meninas. A professora tinha notado que Manel era um menino especial, com algumas particularidades e tinha chamado o seu avô para terem uma conversa e estudar a melhor maneira de apoiar a criança. O avô nunca respondeu a esses apelos. Certa vez, na sequência de comentários malévolos dos companheiros de escola, o Manel perguntou ao avô onde estavam o seu pai e a sua mãe, dos quais apenas se lembrava como se fosse um sonho. Como de costume, o avô não ouviu nem respondeu à pergunta do menino. Isso era habitual, escondido atrás da nuvem de fumo do cachimbo e olhando a televisão constantemente ligada, o avô mostrava-se surdo e mudo às perguntas do Manel. Dessa vez a criança repetiu a pergunta e o avô respondeu num sussurro: "Foram para a montanha, foram para a montanha".
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O avô andava cada vez mais rabugento, devido à avançada idade, claro, mas também devido ao facto de cada vez haver menos peixes no mar e, em consequência, da pesca ser cada vez mais pobre. Uma tarde, depois da escola e quando o avô estava ainda na pesca, o Manel foi olhar para o mar, como tantas vezes fazia.
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a praia, o Manel viu aproximar-se uma
menina que ele nunca tinha visto por ali, e que não andava na escola da aldeia. Trazia um vestido às bolinhas vermelhas, bonito mas bastante amarrotado e um velho cão de peluche ao qual se abraçava. 4
A menina chegou perto do Manel e disse: "-Olá, eu sou a Elsa, e este é o Tufo, o meu peluche. Como te chamas?" Manel esperou um pouco, estava envergonhado, tinha dificuldade em comunicar, principalmente com uma menina. Disse: "Eu sei, tu falas com o cão". Elsa riu-se a gargalhadas: "Tu não sabes nada!" Os olhos da menina entristeceram-se quando ela disse: "Cheguei ontem com o meu Papá e a minha Mamã. Vivíamos na montanha mas ardeu tudo, foi horrível, a nossa casa também ardeu e o Tufo ainda cheira a fumo, cheira!" Colocou o cão junto do nariz do menino que constatou o odor a fumo e cinzas. O Manel reparou igualmente como a menina cheirava bem, uma fragrância que ele nunca tinha sentido. Porém, a mente de Manel agitou-se. Ela tinha dito que a montanha tinha ardido, mas era para a montanha que os seus pais tinham ido, de acordo com aquilo que o avô lhe dissera.
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A menina continuou a deixar no ar uma terrível queixa: "Ardeu tudo, foi um horror, as árvores estão a desaparecer!" Manel estava com pena da menina, queria que ela deixasse para trás essa tristeza. Deu-lhe a mão. Nesse momento viu que o avô chegava do mar no seu barquito. Pela cara carrancuda do avô percebeu que a pesca tinha sido escassa.
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fetivamente a pescaria não era mais do que
meia dúzia de peixes de pequeno tamanho. Porém 6
o Manel e a Elsa ficaram estupefactos quando repararam que o barco trazia igualmente um pinguim. Enquanto empurrava o barco para a areia, o avô disse com a habitual voz rouca e rabugenta que tinha encontrado o pinguim à deriva, em cima de um pequeno bloco de gelo que em seguida se liquefez. Manel tentou apresentar-lhe a pequena Elsa, mas o avô nem sequer olhou, dizendo: "Depressa, saiam daqui, vem aí uma enorme tempestade." O pinguim saltou para fora do barco, não parecia triste nem assustado e deu uma asa ao Manel e outra à Elsa. Mas, num instante, tudo se complicou: o vento começou a soprar forte, o mar agitou-se, a chuva começou a cair em bátegas. O avô tinha corrido a refugiar-se em casa, praguejando por uma rajada de vento ter levado o seu cachimbo pelo ar. As duas crianças correram a abrigar-se numa cabana onde o avô guardava os apetrechos de pesca. Aí ficaram os três, abraçados com medo dos elementos da natureza que se enfurecia cada vez mais. O pinguim cheirava a peixe fresco, tinha 7
penas fofas, macias. Os três sentiam-se bem, assim abraçados, partilhando o calor. Mas algo terrível aconteceu, o que vinha aí não era uma simples tempestade mas um terrível tsunami. Uma enorme vaga começou a desenhar-se no horizonte, avançou para costa como um exército de gigantes, destruiu a frágil cabana e levou o trio mar adentro como se fossem surfistas. Esse terrível tsumani ficou mundialmente conhecido pelo TSU23D. Teve lugar num dia 23 de Dezembro. Depois de uma viagem alucinante que não sabem quanto tempo durou, as duas crianças e o pinguim aterraram num rochedo no meio do oceano. A tempestade tinha-se entretanto acalmado.
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O pinguim disse: "isto é o fim! Já viram? Eu estava tranquilamente com a minha família, o gelo começou a derreter, andei à deriva e agora aqui estou, longe da minha terra!" Elsa acrescentou: "Mas comigo ainda foi pior: o, fogo destruiu tudo o que a minha família tinha. E agora toda a montanha é um deserto, uma desolação." Manel não disse nada, achou graça à cara que o pinguim fazia quando falava com o seu bico de pássaro. Vencendo a timidez, o Manel fez uma festa à menina. Admirou-se da sua própria temeridade. Não disse nada, tinha muita dificuldade em se expressar pelas palavras, mas pensou que depois deste tsunami o barco do avô e a casa onde viviam, a escola e a própria aldeia estariam destruídos. Que tristeza! Elsa perguntou ao pinguim: "mas o que é que se passa com o gelo do polo norte, lá onde tu vives?" O pinguim irritou-se e respondeu nervosamente com uma voz estridente: "Os humanos são todos uns ignorantes, nós, os pinguins, vivemos na Antártida, não vivemos no polo Norte! O que que 9
vocês, os humanos, necessitam para aprender isto? Uma campanha de comunicação?" Depois explicou o problema, o gelo estava a derreter rapidamente, cada vez tinham menos espaço para viver e criar os filhotes. A temperatura da água tinha subido, o que afastava muitos dos peixes saborosos com que se alimentavam. Agora tinham de se contentar com outros, mais pequenos, de se sabor esquisito e com mais espinhas. Tudo isto porque a temperatura do planeta Terra estava a aumentar. Percebendo que o pinguim era culto, bem informado e conhecedor de muitas coisas, a Elsa perguntou-lhe porquê tudo isto estava a acontecer, pois lembrava-se de como tinha sido bom viver na montanha, com os prados, as vacas, a floresta, os ribeiros. Mas isso era dantes, agora era tudo cinzas. O pinguim respondeu encolhendo os ombros, dizendo, "quem manda nisto tudo é a multinacional que se chama" Always Legal". O dono é aquele tipo que aparece muito na televisão, o Major do Clima".
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esta vez foi a Elsa quem se exaltou e disse
que lhe parecia muito mal estarem a destruir o planeta e ninguém fazer nada. Ela já sabia que alguns adultos eram completamente irresponsáveis e não mediam os riscos daquilo que faziam. "Devíamos ir falar com esse major do Clima e dizer-lhe que são uma cambada de loucos, que estão a destruir o futuro das crianças". "E dos animais", completou o pinguim. 11
Manel estava contente com os seus novos amigos, gostava de os ouvir e sabia que o escutariam quando a ele lhe apetecesse dizer alguma coisa. Porém, como habitualmente, não lhe saía o que tinha na alma. Estava apreensivo pelo facto de estarem abandonados num rochedo no meio do mar. "Abandonados " não é a palavra certa, pensou, ninguém está abandonado quando está com os seus amigos. Havia algo que o preocupava e ocupava agora os seus pensamentos. Recordava-se de o avô lhe ter respondido que os seus pais tinham ido para a montanha, sem lhe ter explicado nada mais. Agora sabia que a montanha tinha ardido e que a família da Elsa ficara sem nada e que tivera mesmo que fugir. Que estaria a acontecer? Seria mesmo verdade que o responsável de todos os incêndios, o tal Major do Clima, fosse igualmente o responsável dos tsunamis e do desaparecimento dos peixes? Quis partilhar todas estas interrogações com os seus amigos, mas como de costume, as palavras ficaram entaladas na garganta e não foi capaz de falar. Foi o pinguim que falou: "Vamos sair daqui, vamos ver o que faz esse tal major do Clima!" 12
"Como assim?" perguntou a Elsa. "Estamos rodeados de água por todos os lados, e ao que eu sei os pinguins não voam!". Mas nas histórias, há pinguins que voam, e aquele era um dos que sabia voar.
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s meninos montaram a cavalo no pinguim,
este tomou balanço e elevou-se no ar com elegância. Fez o sinal do infinito, um grande oito no céu, e bateu asas rumo ao continente.
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Passado algumas horas de viagem tranquila, vislumbraram a as falésias da costa. O pinguim disse então que se dirigiam diretamente à Cidade Negra, onde era a sede da "Always Legal", a empresa do Major do Clima. A torre onde a empresa funcionava estava bem protegida, com um exército de seguranças a controlar todas as entradas. Contudo, ninguém reparou no pinguim voador que poisou no terraço do último andar do prédio, exatamente aquele, onde, habitualmente se reunia o conselho de administração uma vez por semana. E aquele dia era dia de reunião do conselho de administração. O trio espreitou pela janela e logo percebeu que estava a ocorrer uma reunião importante, mesmo decisiva para o futuro da empresa. Conseguiram entrar pela janela e esconderam-se debaixo da mesa da sala de reuniões a ouvir o que era dito. O Major do Clima estava de pé, diante de um écran onde se projetavam fotografias e vídeos e explicava aos outros a situação. "É um power-point", explicou o pinguim aos seus amigos O Major disse:
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"Vou começar por enumerar os dossiers em que atingimos os objetivos e relativamente aos quais estou contente com os resultados obtidos. Foi perfeito o que fizemos nos automóveis, os aparelhos que fingem que reduzem os gases mas que que não reduzem coisa nenhuma. Enganámos bem as autoridades. Bem só aquelas que não colaboram connosco." Ouviram-se algumas gargalhadas na sala Uma voz disse: "Senhor Major, por favor não se esqueça que os custos a corromper toda essa gente têm aumentado muito, não sei onde isto irá parar…". O Major fez um gesto com a mão para mandar calar e disse: "Eu sei, eu sei, mas há uma lei da economia que diz que as luvas para a corrupção aumentam mais rapidamente que o volume das vendas dos negócios corruptos."
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Major continuou, explicando que no que
respeitava aos incêndios tudo estava bem. As florestas que tinham ardido excediam todas as expectativas. Manifestou igualmente agrado pelos tsunamis que se tinham feito sentir na véspera, em várias partes de mundo. "Bravo!" Disse. 16
Também deu boa nota ao desaparecimento do gelo nos polos Norte e Sul." Concluiu, dizendo que tinham conseguido ludibriar todos os regulamentos que os políticos tinham aprovado, que a quantidade de gases continuava a aumentar, que fingiam que tomavam medidas mas que era só fachada, a temperatura do planeta continuava a subir, com todas as consequências que isso engendrava. "Então está tudo bem, podemos abrir já o champanhe?" perguntou uma loura, alta e muito sexy que era a responsável do departamento de comunicação". "Nada disso!" Gritou o Major do Clima. "O que está a falhar rotundamente é o nosso projeto da montanha das frustrações, seus cretinos! Necessitamos de mais frustrados!". Manel estava cheio de medo e agarrava-se à Elsa enquanto se interrogava sobre o que queria dizer "necessitamos de mais frustrados". O pinguim acenava que sim com a cabeça, fazendo um bico meio cínico, como que a mostrar que já conhecia a história toda, que não havia nenhuma novidade, ensaiando um trejeito de escárnio. 17
O Major do Clima continuou a falar mal do projeto da montanha, gesticulando enraivecido. Que estava tudo mal, estavam atrasados, tinham sido enganados, que assim não poderia ser…. Manel sentia raiva por saber que afinal tudo o que de mal se passava com o planeta Terra era fruto de um plano malévolo. Havia mais uma outra fonte para a sua preocupação naquele momento. O pinguim tinha um cheiro tão forte que os participantes na reunião estavam incomodados. Um já tinha aberto a janela, outros abanavam um papel diante do respetivo nariz, outros ainda olhavam desconfiados para os demais participantes. Enquanto o pinguim continuava a ouvir a preleção com um ar sarcástico no bico, Manel e Elsa entreolharam-se com ar amedrontado por perceberem que poderiam ser descobertos graças ao cheiro fatal do seu amigo antártico.
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Depois o Major do Clima concluiu. "Não suporto mais as vossas imbecilidades, como não suporto este cheiro a peixe. Acabou a discussão. Amanhã, na cimeira do clima eu vou mostrar como se fazem as coisas". O pinguim disse baixinho " É verdade, a cimeira do clima, aquela grande reunião mundial que tem lugar amanhã". Nesse momento os seguranças começaram a procurar de onde vinha o cheiro a peixe. Quando foram descobertos o pinguim empurrou com as asas o Manel e a Elsa. Os três conseguiram fugir 19
pela janela e o pássaro levantou voo com os miúdos em cima. O pinguim pousou na fábrica de gelo da cidade, ficou muito contente por se encontrar num elemento natural que conhecia e que lhe era agradável: o gelo. Começou a dançar como se estivesse a fazer patinagem, enquanto a Elsa mostrou ao Manel alguns documentos, dizendo: "Vê o que eu consegui surripiar de cima da mesa sem ninguém dar por isso!" O Manel viu uma imagem que mostrava a entrada para uma enorme montanha. O desenho tinha o título " A montanha das frustrações". Chamaram o pinguim para ver se ele tinha alguma pista sobre o que seria aquilo, mas ele continuou dançando alegremente em cima do gelo. Depois lá veio ofegante e alegre. Quando viu a imagem disse que sabia onde ficava aquela montanha. "Então foi aqui que o Major do Clima construiu a sua montanha das frustrações!" O folheto explicava o projeto e apelava a candidatos. “Ponha as suas frustrações a render! “ A ideia era bem pensada. Todos os que tivessem um elevado nível de frustração eram clientes 20
potenciais. Esta nova tecnologia retirava as frustrações aos aderentes, e utilizava-as como fonte de energia. Este novo produto era mais eficaz do que as energias fósseis, mais limpo do que a energia nuclear. Qualquer pessoa, independentemente do sexo, idade, estado de saúde, origem social ou nível académico podia ser candidato. Depois de uma breve discussão, o nosso trio chegou a uma conclusão: tinham de se candidatar. Essa era forma de entrarem na montanha das frustrações e de assim constatarem o que lá se passava. Assim foi.
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montanha era um vulcão que estava inativo
há vários séculos. Lá dentro a Always Legal tinha construído uma verdadeira cidade e no meio dela a enorme fábrica que utilizava as frustrações dos humanos para produzir um inovador combustível ao qual o Major do Clima tinha chamado frustróleo. A eficiência energética deste novo combustível era incrível! O Pinguim percebeu o alcance do plano da Always Legal: Fazer cidades no interior da terra sem se preocupar com a destruição de toda a superfície e utilizar o frustóleo como fonte de energia para essa nova civilização. Os humanos que ficassem de fora acabariam por morrer devido à má nutrição ou às doenças. Nas novas cidades no interior da terra uma casta de senhores viveria à custa das frustrações dos outros. Uma mãe consegue reconhecer o seu filho entre mil, mesmo que só o tenha visto quando o pariu. A mãe de Manel viu um menino, acompanhado de uma menina e de um pinguim a deambular no interior da montanha e foi logo chamar o seu marido, dizendo que tinha a certeza de ter visto o 22
filho de ambos. Quando foram ter com o menino e o abraçaram, Manel também teve a certeza que aqueles eram os seus pais. Embora os pais de Manel não explicassem bem a situação, o pinguim entendeu que eles nunca mais poderiam sair da fábrica, já que nunca conseguiriam fornecer a quantidade de frustrações que constava no contrato que inadvertidamente tinham assinado. Assim acontecia a muitos trabalhadores. O pinguim lembrou-se que, no dia seguinte, era a véspera de Natal e o Major organizava a Conferência do Clima, o grande acontecimento anual que tratava desse tema. O acontecimento seria transmitido para todas as televisões do Mundo. Seriam dados presentes de Natal a todas as crianças do mundo através da internet e o Major do Clima comunicaria a sua mensagem de Natal que era esperada com ansiedade por todos os políticos do mundo. O pinguim urdiu um plano para salvar o planeta. Teria de agir só, como um lobo solitário. "O planeta ou a morte" era agora a sua divisa.
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irigiu-se ao bar mais famoso da Montanha
das frustrações, onde se reuniam, até altas horas da noite as personalidades mais relevantes da montanha, políticos, jornalistas, artistas. Os porteiros deixaram-no entrar sem problema, embora ao mesmo tempo se registasse uma fila de gente a tentar furar, sem sucesso. Os donos do Bar apreciavam a presença de clientes excêntricos.
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Mal entrou no elegante recinto o pinguim viu ao fundo, numa mesa VIP, alguns colaboradores do major, em amena e divertida discussão. No centro do grupo estava a loura, a Diretora do de Comunicação da "Always Legal." O pinguim acercou-se do grupo e com grande à vontade começou a participar na conversa, mostrando que dominava o tema das alterações climáticas. Pagou a rodada seguinte a todo o grupo enquanto, forçando um pouco a passagem, conseguiu ficar ao lado da loura, bem chegado a ela. De vez em quando sussurrava-lhe versos de um poema de amor português que conhecia. Quando a noite ia longa e todos estavam já cansados, a Loura perguntou-lhe: "Queres ir tomar um copo a minha casa? Gostava de ouvir mais vezes o poema". Saíram os dois juntos. Já na rua a Loura disse-lhe que o dia seguinte seria complicado, pois tinha que assessorar Major do Clima na sua mensagem de Natal. Fora ela que lhe fizera o discurso e a apresentação Power point que seriam vistos no mundo inteiro. Entraram no apartamento da Loura. Da ampla varanda via-se para fora da Montanha e a cozinha estava recheada 25
de iguarias para a ceia do dia seguinte. No computador estava o discurso do Major do Clima. A Loura foi verificar que tudo estava bem, enquanto dizia com a voz mais sensual de todas as louras "…espera um minuto, já me ocupo de ti, enquanto tu te ocupas de mim, dizendo o poema ao meu ouvido". Foi uma noite sensual, carnal, erótica como a Loura nunca tinha vivido. Recordar-se-ia dela durante o resto da sua vida, não só pelo erotismo da noite, mas também pelos acontecimentos do dia seguinte. No dia seguinte, apesar do cansaço e com maquilhagem redobrada, lá estava a Loura ao lado do major do Clima quando ele se preparava para dizer a sua mensagem, já depois de ter sido difundido para todo o mundo um espetáculo com os maiores artistas a nível mundial e de se ter procedido à distribuição de prendas a todas as crianças, mesmo às que viviam nas regiões mais recônditas. Tudo organizado e pago pela Always Legal.
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ogo que o Major do clima começou a falar,
todos repararam que algo não estava bem. Na televisão começaram a passar, não as imagens que a Loura tinha escolhido para propagandear a Always Legal, mas um filme denunciando todas as aldrabices feitas e provando documentalmente como quase todos os políticos tinhas sido corrompidos. Ali estava, com provas e fotografias, a lista de todos os corruptos. É verdade, o pinguim tinha aproveitado o sono da Loura, fatigada após as 27
entregas amorosas, para substituir o filme por informação confidencial, classificada, que tinha obtido na Pinguinleaks. Mais ainda, tinha feito de modo que, uma vez começada a emissão, a mesma não pudesse ser interrompida até ao seu final. Muitos Chefes de Estado reagiram imediatamente ao verem as provas que passavam simultaneamente nas televisões de todo o mundo. Exigiam medidas drásticas: Fechar a Montanha das frustrações e prisão imediata do Major do Clima. Ao ver-se denunciado, o Major do Clima saiu de cena sorrateiramente, evaporando-se. Entrou na sala onde se guardavam todas as vestimentas para as emissões de televisão, escolheu a roupa do Pai Natal, pôs um saco com presentes às costas e saiu. Viu então que os trabalhadores se tinham revoltado e destruíam toda a maquinaria destinada a produzir o frustómetro. Rosnou de raiva e escapuliu-se entre a multidão. Teve sorte, pois foi a última pessoa a sair da montanha, mesmo antes dos soldados das Nações Unidas fecharem o perímetro para prender todos os dirigentes da Always Legal.
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Uns momentos antes tinha saído o pinguim, acompanhado pelos dois miúdos e pelos pais do Manel. Logo que a confusão começou, os pais do Manel perceberam que era uma oportunidade única para fugirem. Fora da montanha o caos era enorme. Os trabalhadores que fugiam, a população chegava com sede de vingança, os soldados das Nações Unidas que montavam o cerco. Quando desciam pela encosta da montanha a passo apressado o Manel viu que vinha em sentido contrário o seu Avô, acompanhado dos pais de Elsa. "Que fazem aqui?", perguntou a miúda. Ninguém respondeu mas todos perceberam que eles também vinham inscrever-se como trabalhadores da fábrica das frustrações. Quando chegaram ficaram surpreendidos com o sucedido. Todos se abraçaram, enquanto corriam algumas lágrimas de emoção.
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pinguim começou a bater palmas com as
asas. Não gostava de lágrimas, nem que fossem de alegria. Disse para todo o grupo: "Hoje é Noite de Natal e nós somos uma família. Sei de um apartamento aqui perto que tem uma 30
linda vista e uma cozinha recheada. Convido-vos a todos para passarmos lá a consoada! Vamos!" E aí estavam todos reconfortando-se com as iguarias que a Loura tinha guardado para se deleitar na noite de Natal. O Manel e a Elsa estavam de mão dada. A menina falava e o Manel ouvia, como fez praticamente durante todo este conto. Estavam todos satisfeitos. De repente ouviram um estrondo: O Pai Natal tinha aterrado na varanda e entrou para o salão onde estavam todos reunidos. Disse: "Tenho um presente para todos vós!" Era o Major do Clima. Tirou um spray do saco das prendas e ia pulverizar todo o grupo. Disse: "Vão levar com fustróleo altamente concentrado em cima, é explosivo, PUM!" Antes que o major do Clima pudesse descarregar o spray, o Manel levantou-se, dirigiu-se a ele com uma voz potente para um menino da sua idade, dizendo, palavra por palavra, a carta do Indío Seattle ao Presidente Norte americano em 1855: "Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho 31
da água. Como pode então comprá-los? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo." O Major do Clima foi recuando, ferido de morte pelas palavras mágicas do índio. Caiu da varanda sob o olhar estupefacto de todos. Lá em baixo, o seu sangue misturava-se com as roupas vermelhas do Pai Natal. "Bom Natal a todos", disse o pinguim.
FIM Bruxelas, Dezembro 2017 32