As folhas caem só porque chegou a hora
Morrer é apenas não ser visto, morrer é a curva da estrada Fernando Pessoa
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. Esperanรงa era uma mulher que tinha jรก vivido, mas tinha ainda muitas coisas para viver e uma lista de "things to do " repleta. Vivia o presente, como deve de ser, sempre muito ocupada e com falta de tempo. Era alegre e brincalhona. Todas as tardes, quando chegava a casa, jogava com Marc, um menino que morava na sua rua. Contava-lhe histรณrias da Terra do Nunca, de super-herรณis e de animais estranhos.
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Foi precisamente Marc que, um dia de Outono, lhe veio dizer que se encontrava no café em frente uma senhora Rosa que estava à espera de Esperança. Esperança estranhou pois não conhecia a senhora de lado nenhum, nem esperava qualquer visita. Como era curiosa e valente não teve qualquer problema em vestir um casaco, atravessar a rua e encontrar-se com a senhora Rosa no café da Rua. Foi fácil reconhecê-la, estava vestida de côr-de-rosa, mas mais que isso a pele também era rosa.
A Senhora Rosa era simpática e risonha, mas a conversa surpreendeu. A senhora Rosa anunciou que Esperança tinha sido sorteada no sorteio que regularmente a Senhora Rosa organizava. O seu tempo estava portanto à beira de terminar. Em breve Esperança deveria deixar o Bairro e dar entrada na casa Branca. Ante a surpresa de Esperança, a Senhora Rosa só disse que era sempre a mesma coisa. Afinal, ela só anunciara aquilo que todos humanos têm como mais certo. Por ventura a única certeza da vida. Então, porquê tanta surpresa cada vez que ela anunciava tal coisa? Esperança disse que estava muito confusa, pediu uns dias mais para processar essa novidade. Quando saíu do café, Marc, o garoto, estava à sua espera para saber o que queria a senhora Rosa. "Disse-me que eu não posso ficar mais tempo aqui no Bairro, tenho de ir para outro sítio". Marc ficou triste, perguntou se ela o viria ver, mas não obteve resposta. Quando chegou a sua casa, Esperança sentiu que a sua cabeça era um turbilhão de pensamentos. 3
Apareciam "flash backs" com as suas memórias desde menina. Lembrou-se então que tinha uma caixa onde guardava algumas recordações. Procurou-a e abriu-a.
Tinha várias fotografias de sapos com quem tinha saído e que beijara na esperança vã de se transformarem em príncipes. Sorriu com nostalgia quando se lembrou desse seu objetivo de vida durante a adolescência: ser uma princesa. Depois encontrou um postal com a letra do seu pai. Era uma fotografia de um deserto. Por cima, o pai tinha escrito: " Para a minha princesa, no dia dos seus vinte anos, com a certeza de que encontrará aquilo que procura".
Entre velhas fotografias, descobriu a imagem dum cavalo alado que levantava voo. Não se recordava de onde teria vindo aquela imagem. 4
Quando a tomou na mão verificou que o cavalo alado se tornava real. Por magia, ela percebeu que deveria seguir o cavalo, possante, febril, forte. Assim fez. No breve tempo de um bater de asas de borboleta viveu experiências extraordinárias, coisas que ela não sabia existirem.
A vida continuou do mesmo modo, excitante e aventureira, nos dias que se seguiram. Viajaram na direção do Sol, passando por cima do ponto mais ocidental. O calor era tanto que as asas do cavalo começaram a derreter. Mas regressaram por entre asteroides, acompanhando Nertha, e o fim tudo acabou bem.
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Afeiçoou-se de tal modo ao cavalo alado que já não podia passar sem ele. Recitavam poesia um para o outro e tiravam selfies disparatados.
Deve dizer-se que, por momentos o cavalo alado se transformava em humano.
Lembrou-se então que se aproximava a data do próximo encontro com a Senhora Rosa. Muito provavelmente iriam discutir a questão do tempo que restava a Esperança.
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Sentiu uma angústia quando pensou no que aconteceria ao cavalo alado, já que ele não conseguiria viver sem ela. Sozinho não saberia subsistir e dificilmente encontraria alguém para o cuidar. Quando passeava com Marc, o rapaz, disse-lhe:" já viste todas as coisas estranhas que estão acontecer por causa do meteorito?"
Esperança não sabia do que é que Marc estava a falar. Na realidade desde a conversa com a Senhora Rosa e o seu encontro com o cavalo alado que não tinha prestado atenção às notícias. Ao ver a capa de um jornal, percebeu que há mais de uma semana tinha caído um meteorito, não longe do bairro onde ela vivia. Desde esse momento tinham-se passado alguns factos estranhos, inexplicáveis pela física, tal como ela é concebida pelos mestres.
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Marc referiu que, em muitas casas a água não saída das torneiras para baixo, mas em direções imprevisíveis, tanto podia sair na horizontal, tanto em oblíquo, tanto para cima. Muitos relógios começaram a andar para trás e isto verificou-se tanto nos relógios mecânicos como nos digitais. Muitos homens e mulheres verificaram que as unhas, a barba, no caso os homens, claro, e o cabelo, cresciam mais num só dia do que anteriormente cresciam num mês. O cabelo e a barba, no caso dos homens, tornavam-se coloridos de cores berrantes. E muitos ouros fenómenos estranhos, uns citados no jornal, outros descritos por Marc. Por exemplo a sua Professora começara a falar uma língua irreconhecível, não era capaz de falar mais nada a não ser essa língua, que posteriormente se veio a saber ser Yiddish. Esperança conferiu os factos e as datas e verificou que o meteorito tinha caído exatamente no dia da sua conversa com a senhora Rosa. Estava então tudo explicado: o sorteio tinha sido mais uma consequência do meteorito que tinha instalado o caos e a desordem nos fenómenos físicos. Explicaria isso à senhora Rosa. Deste modo Esperança poderia viver uma eternidade com o seu cavalo alado. Beijou Marc, os dois cantaram uma canção de piratas e dirigiu-se a casa onde o cavalo alado a esperava, fogoso. No dia seguinte encontrou-se com a Senhora Rosa no café de sempre. Feliz e cheia de ilusão explicou-lhe a cena do meteorito. É claro que se tratara dum erro, disse. Mas a Senhora Rosa foi inflexível. "Pode ser que tenha sido um erro, já aconteceu no passado", mas agora não há nada a fazer, tens de vir comigo". Desesperada, Esperança entendeu que o tempo tinha terminado. Explicou então à senhora Rosa a situação em que ficaria o cavalo alado. "Nesse caso o melhor é que eu o leve também", aventou a senhora Rosa. 8
Esperança não queria sequer pensar nessa possibilidade. Acompanhada pela da Senhora Rosa, dirigiu-se então à Casa Branca, aquela que ninguém sabe como é. Fernando Pessoa disse "Morrer é apenas não ser visto, morrer é a curva da estrada".
Olhou para o Bairro uma última vez e viu que Marc e o cavalo alado brincavam alegremente na rua. Reparou nos olhos ternos do animal que agora se chamava Futuro.
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Fim A histĂłria coletiva O Blog A mĂşsica
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