História de uma canção

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História de uma canção (Um conto baseado em factos mais ou menos reais)

Mestre Rabiscador 2017 1


1.O ano de 1968 O ano de 1968 foi especial para o Pedro. Até essa altura ele tinha sido um rapaz perfeitamente normal, bem comportado, regular nos estudos, tímido nas suas relações com os adultos e muito reservado quando encontrava raparigas. Fazia um esforço para agradar aos pais que o educavam de acordo com os princípios morais que guiavam a classe média portuguesa: O respeito pelos mais velhos, a boa aparência, o trabalho, a honestidade. Os seus pais amiúde comentavam que se ele queria ser alguém na vida tinha de estudar muito, para depois encontrar um bom emprego. Diziam-lhe que não tinham nenhuma herança para lhe deixar quando morressem e que não tinham meios para sustentar um preguiçoso. Pedro adorava música. Passava muito tempo no seu quarto a ouvir os programas da rádio. Gravava as músicas num pequeno gravador de bobines e depois ouvia-as tempo sem fim. Era um rapaz como outros, filho único, da classe média e com os problemas universais da adolescência. Tudo se passava normalmente até ao dia em que conseguiu juntar dinheiro para comprar uma guitarra elétrica.

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2. A guitarra Foi numa loja de instrumentos musicais que, nessa época, existia na Rua de São José. No primeiro andar do prédio dessa loja começou a ter lições de guitarra, dadas por um indivíduo de cabelo pelos ombros. Tudo isto às escondidas do seu pai. Aliás, a própria mãe o aconselhou a não contar ao pai a compra da guitarra, nem sequer que tinha lições. Tudo, dizia ela, para não apoquentar o progenitor. A guitarra elétrica raramente vinha a casa, deixava-a quase sempre no local onde tinha lições, embora com mágoa por se separar dela. Quando a trazia para casa era só para a acariciar com os dedos pois não se permitia de tocá-la para não despertar a curiosidade dos vizinhos, nem a ira do pai. Em casa só dedilhava uma velha guitarra clássica que os pais lhe tinham oferecido há alguns anos. A música, a guitarra, os grupos rock, os jornais estrangeiros especializados em música, como o "New Musical Express" ou o "Melodie Maker", que conseguia encontrar em algumas livrarias da cidade, tornaram-se pouco a pouco o seu principal interesse. Era um "connaisseur".

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3.O grupo musical Era como tal reconhecido pelos seus companheiros. Gozava duma reputação de perito musical por parte de todos os colegas, embora o seu temperamento reservado e inseguro não lhe permitir inserir-se em nenhum dos bandos da sua escola. Verificou rapidamente que tinha facilidade para aprender os acordes mais comuns. Um dia o seu professor de guitarra disse-lhe que um conjunto musical formado por rapazes da sua idade procurava um guitarrista. O professor facilitou o contacto e logo no sábado seguinte o Pedro ensaiava numa garagem duma casa num bairro residencial da cidade. O grupo tinha poucos meses e denominava-se "Jota-Éme", uma referência aos fundadores, o João e o Miguel. A vivenda onde ensaiavam era a morada do João e da sua família. Pedro verificou que os donos da casa eram diferentes dos seus pais. Era um casal moderno, que aparecia às vezes durante os ensaios encorajando os rapazes e conversando sobre música pop, assunto que Pedro julgava ser propriedade exclusiva dos jovens de cabelo comprido. Após a realização de três ensaios, João disse que já tinham convites para tocar em festas de jovens. Falta referir uma informação importante mas previsível. Toda essa paixão pela guitarra e pelo seu novo grupo fez com que Pedro se desinteressasse das aulas. Nunca mais abriu um livro de estudo e frequentemente faltava às aulas.

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4. Despertar duma vocação O grupo começou então a sua carreia tocando aos fins de semanas em festas nos ginásios das escolas e em associações recreativas. O repertório era constituído por canções estrangeiras todas em inglês, com uma exceção que adiante relataremos. Nenhuma canção em português constava no reportório. Era normal num país em que o êxito do ano se chamava "Ó tempo volta para trás". A juventude queria que o tempo andasse para a frente e que depressa acompanhasse o que se passava em Paris ou em Londres. O público não era exigente quanto à qualidade, mas queria os últimos êxitos internacionais, o que exigia muita flexibilidade musical e uma constante adaptação. Na realidade, a qualidade das músicas do grupo era básica, mas com uns truques do vocalista, o João, que passava horas imitando a maneira de se mover do Mike Jagger, e alguns acordes de principiante, conseguiam fazer um espetáculo estimulante. O alinhamento tinha de ser cuidado, começando com canções para aquecer o ambiente e convidar os espectadores para a dança, depois uns ritmos frenéticos e finalmente uns slows para dar oportunidade aos casais recém-formados de dançarem agarrados, sentindo o cheiro e adivinhando as formas do parceiro. Por exemplo, num dos espetáculos foi este o alinhamento: Light my Fire Lady Madonna Born to be wild

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Ruby Tuesday Oh Carol Penny Lane Michelle Hey Jude Todas músicas que eram sucessos internacionais do momento. Apesar de serem concertos ligeiros e divertidos, havia momentos de grande intensidade. Por exemplo, no concerto seguinte à morte de Ottis Reading, o público pediu uma canção deste grande músico. Os "Jote-Éme" improvisaram o tema "Sitting on the Dock of the Bay" com o vocalista mexendo-se em movimentos sensuais, lembrando danças tribais. Como ele não sabia toda a letra, inventava palavras com sonoridade da língua inglesa. Foi um momento mágico, único.

5."Le plus dificile" Pedro não cantava, pois tinha uma voz um pouco esganiçada, embora acertasse no tom, o que por vezes não acontecia com o habitual vocalista. Contudo, um dia, um colega que tinha ido a Paris onde a família estava emigrada emprestoulhe um disco de um tal Jacques Ductron, totalmente desconhecido em Portugal. Nesse disco Pedro descobriu uma canção chamada "Le plus difficile". Durante um dos ensaios tocou-a 6


para os seus amigos e cantou com a sua voz esganiçada. Os outros membros do grupo acharam muita graça. No espetáculo seguinte houve um momento em que o grupo já estava curto de canções e perdido com o alinhamento, não sabendo o que cantar. Então o vocalista anunciou que Pedro iria cantar uma canção em francês. Foi um êxito, levando a audiência, principalmente o género feminino a uma alegria histérica. Pedro passou a cantá-la em todos os espetáculos seguintes.

6. A descoberta do Amor Já se sabe que, em geral, as garotas têm atração sexual pelo vocalista da banda, principalmente se ele é bonito, tem aspeto de rebelde e aparência de "enfant méchant". Assim, durante e depois dos concertos, as fans dos "Jota-Éme" procuravam falar com o João, o vocalista, e faziam-lhe olhinhos prometedores. É verdade que, nalguns grupos, o baterista também tem preferência de algumas fans, mas não era o caso dos "Jota –Éme". O baterista era mesmo muito feio. Apesar disso, e fruto do êxito da canção "Le plus difficille", Pedro começou a constatar que algumas moças o esperavam no fim do espetáculo e o ajudavam a arrumar os instrumentos.

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Uma deles, morena, de olhos negros e pele de cetim seria o seu primeiro amor. Chamava-se Amália. Após umas primeiras conversas, Pedro começou a ir esperá-la cada dia à porta do Liceu e faziam passeios sinuosos pela cidade até ele a depositar em casa. Tinham um café favorito onde ficavam horas a fio e passaram a descobrir os recantos de vários jardins da cidade. Falavam de música, diziam mal do país em que viviam, comentavam as notícias como a morte dos Kennedy e a guerra do Vietnam, e iniciavam-se nos rituais da descoberta do amor. Uma tarde em que os pais de Amália não estavam em casa ela convidou-o para entrar e fizeram amor pela primeira vez. Não tiveram todo o tempo que Pedro requeria para conhecer aquele corpo jovem, pois nesse sábado a banda dava um concerto ao fim da tarde. Mesmo assim, Pedro não duvidou mais que Amália seria o amor da sua vida. Durante o concerto que se seguiu, Pedro tocou maravilhosamente e fez solos de guitarra que espantaram os companheiros da banda e deixaram o público boquiaberto.

7.John Lennon Pedro tinha assim encontrado vários antídotos para a crise de adolescência que pouco a pouco o abandonava: A música pop, o amor de Amália, a descoberta dos prazeres carnais. A reputação que gozava na sua escola, tudo isso o levava a enfrentar sem complexos os mais

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velhos, os que tinham mais dinheiro, os que eram mais belos, os mais destros no bilhar ou os que possuíam motos ruidosas. Pouco frequentava a escola, e em casa evitava falar com o pai. Um dia o professor de Inglês chamou-lhe a atenção por ele não melhorar os seus conhecimentos mas, em vez disso, perder tempo a sonhar com coisas irrelevantes. Pedro respondeu-lhe com uma citação de John Lennon que tinha lido na véspera: "Time you enjoy wasting, is not wasted". Deve dizer-se que John Lennon era o seu herói, a sua referência, o seu modelo de músico e de pessoa. Mas um dia aconteceu uma catástrofe.

8.A catástrofe No final de um concerto, ainda se ouviam os ecos dos últimos aplausos, uma figura irrompe de dentro do público gritando "Ah meu malandro!". Pedro mal teve tempo de reconhecer o seu pai. De seguida já este lhe enfiava uma saraivada de bofetadas na cara e na cabeça: "Preguiçoso, mentiroso, vadio, vagabundo, mandrião, calão, mal-agradecido…" "Tantos sacrifícios que eu e a tua mãe fazemos por ti…" 9


E continuava: "…cabeludo, pirata, bandido, velhaco, sem-vergonha…, O pai tinha sido convocado pelo Reitor da escola que lhe tinha dado a notícia: Pedro chumbava o ano prematuramente, por faltas. Somente o professor de inglês não o tinha reprovado. O Reitor admirou-se do Pai do Pedro não saber que ele tocava numa banda, de um modo quase profissional. Mandou chamar um aluno e obrigou-o a revelar, ali mesmo, onde teria lugar o concerto seguinte. Foi deste modo que o pai do Pedro resolveu que deveria apanhá-lo em flagrante para lhe dar uma lição.

9. O negro futuro No dia seguinte o pai do Pedro fez vários telefonemas. Depois saiu de casa. Muitas emoções atravessavam o espírito do Pedro, fechado no quarto nessa manhã de sábado. A vergonha que tinha passado na véspera amargava, pois lembrava-se de ter visto alguns elementos do público a sorrir, divertidos com a cena do seu pai a empurrá-lo para fora da sala, enquanto lhe dava palmadas na cabeça. A ansiedade tomava conta da sua mente, por não se ter despedido de Amália e agora não ousar sair do quarto para se encontrar com ela. Pensava no castigo que o pai lhe reservava. Esperava um pouco de apoio e cumplicidade da sua mãe, mas durante a noite, quando ela entrara no seu quarto para lhe deixar um copo de leite, só lhe tinha dito " ai rapaz, naquilo em que tu te metes…" e olhara-o com olhos impotentes.

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O pai regressou à hora do almoço. Chamou-o para a sala onde a mãe também se sentou, mas à distância e em silêncio. O pai falou: "Está resolvido. Na segunda-feira vou levar-te a Viseu e começas a trabalhar numa fábrica de sapatos." Depois de uma fase de estupefação, Pedro percebeu os contornos da terrível punição. Ficaria alojado na casa dum tio, irmão do seu pai, que residia numa aldeia perto de Viseu, uma cidade longe da capital, situada nas montanhas de Portugal. Teria de apanhar cada dia um autocarro às 6h30 da manhã. Após uma viagem de cerca de uma hora, começaria a trabalhar numa fábrica de sapatos. Almoçaria na cantina da fábrica com os outros operários. Regressaria a casa cada dia por volta das 19h 30. 10. A triste despedida No dia seguinte, a mãe deixou-o sair de casa para se encontrar com Amália num jardim da cidade. Aí, por detrás de uma estátua de Vénus nua, ambos choraram durante muito tempo, enquanto davam as mãos torcidas e contorcidas. Os beijos eram salgados e abençoavam a promessa de amor eterno. Amália já tinha contado aos pais o sucedido e tinha um plano para ir a Viseu visitá-lo, já dentro de quinze dias. Quinze dias! Uma eternidade para Pedro! Assim se separaram nessa tarde soalheira de domingo, sob o olhar compreensivo de Vénus. Esse domingo fez com que Pedro tomasse conhecimento com da outra face do amor. Ao regressar a casa e pela primeira vez na sua vida, apeteceu-lhe trautear um triste fado, o "fado da sina", género musical que ele despreciava completamente. Ao mesmo tempo a perspetiva de um reencontro com Amália, mesmo que fosse só daí a quinze dias dava-lhe a força necessária para esta travessia do deserto.

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11.A viagem Nessa noite a mãe verificou se ele tinha tudo o que necessitava no saco de viagem e deu-lhe seiscentos escudos para alguma necessidade. Às escondidas do pai, claro. Passou-lhe a mão pelo cabelo dizendo: "Vê se ganhas juízo, Pedro". No dia seguinte acordou com o pai dando pancadas na porta e gritando: "Despacha-te, o carro está pronto". E logo partiram, os três, sob o olhar curioso dos vizinhos. Pedro verificou que se trataria duma viagem silenciosa. Tanto melhor. Porém notou que em vez de se dirigirem para Norte, para as montanhas onde se situava a fábrica de sapatos, rumavam ao Sul através de uma moderna ponte, inaugurada há pouco tempo. Ao constatar a sua perplexidade, a mãe virou a cabeça para trás dizendo que afinal não iria trabalhar na fábrica de sapatos, mas num hotel do seu padrinho, no Algarve. Pedro lembrou-se do padrinho que já não via há muito tempo. Era um empresário que se tinha metido em variadíssimos negócios, com altos e baixos, mas sempre disfrutando de um excelente nível de vida. O facto dele ter saído de casa, abandonando a mulher e os filhos para ir viver com uma mulher muito mais jovem, tinha sido fonte de muitas conversas entre o seu pai e a sua mãe. Pedro lembrou-se que ele agora geria um hotel no Algarve. O pai disse com uma voz que denotava ao mesmo tempo queixa e raiva:" A tua mãe acha que tu és muito fraquinho para ires fazer sapatos. Mas não penses que te safas, vais limpar pratos. Já falei com o teu padrinho para ele não ser meigo contigo."

12. Um lugar agradável Ao fim de cerca de cinco horas de viagem, chegaram a um local agradável, numa falésia sobre o mar. A terra era vermelha, as paredes eram brancas e cercadas de enormes buganvílias. Era o hotel. 12


O pai saiu do carro, meio torcido e com dificuldade para se endireitar após a longa viagem e logo apareceu o padrinho dizendo "Vocês nunca mais chegavam, eu faço esta viagem em três horas, é só acelerar! Vá, vamos almoçar". Os quatro almoçaram no restaurante do hotel. A conversa versou sobre recordações da família. Cada vez que o pai queria abordar o assunto do "filho desmiolado", o padrinho cortava a conversa dizendo para ele não se preocupar pois dar-lhe-ia "o devido e justo corretivo". Depois dirigiram-se a um anexo onde estavam pequenos quartos com duas ou três camas onde alguns trabalhadores do hotel dormiam, aqueles que não tinham casa na região. Pedro sentiu um grande mal-estar ao ver a pequena habitação, praticamente sem mobiliário. Lembrou-se da sua rádio, do seu gravador. E da sua guitarra. Percebeu que, de momento ficaria sozinho num quarto e que depois logo se via. Essa informação diminuiu ligeiramente o seu nível de desconforto. Depois os pais partiram de regresso a casa, não sem antes o pai ter pedido para ver a cozinha, onde Pedro iria trabalhar. Puro sadismo, pensou. Quando acabaram de acenar para dizer adeus ao carro que partia, o padrinho pôs-lhe a mão no ombro e perguntou: "Então a tua mãe disse-me que tocas guitarra elétrica, é verdade? "

13. Os Alfarrobas Nessa noite, depois do jantar, Pedro entendeu a ideia do seu padrinho e rejubilou. Havia um grupo musical que animava as soirées do hotel. Necessitavam de um guitarrista e Pedro faria, já nessa noite, um pequeno ensaio. Nada de descascar batatas ou limpar pratos cheios de gordura. Pedro tocaria com o conjunto "Os Alfarrobas" entre as dez horas da noite e a uma da manhã. Percebeu que o resto do dia seria para dormir, ir à praia ou fazer o que lhe apetecesse. 13


"Vais ver, disse-lhe o padrinho, não vais ter tempo para te aborrecer, com tantas inglesas e francesas que andam por aí". Como conhecia os acordes principais, Pedro começou logo a tocar com "Os Alfarrobas" que eram uns rapazes simpáticos e sem preocupações. Claro que o reportório era diferente do que Pedro tocava com os "Jota Éme". Por exemplo, numa das primeiras atuações, os "Alfarrobas" cantaram as seguintes canções, perfeitamente adaptadas à audiência do hotel: Dellilah, Congratulations, La moto, Strangers in the night, La Tramontana, Azzurro, e Cheira bem, cheira a Lisboa. Logo na terceira noite, Pedro começou a tocar aquela canção em francês que fazia êxito nas festas animadas pelos "Jota Éme". Sucede que, também nas noites do hotel começou a ser uma canção emblemática. O padrinho pediu-lhe expressamente para ele cantar "Le plus difficille", sempre que o público tal solicitasse. 14. O feitiço Os dias de Pedro passaram assim a ser agradáveis, tocando guitarra à noite, que era o que ele mais gostava. Passava as manhãs a dormir e a tarde praia, ora a mergulhar nas ondas, ora a aquecer-se na areia dourada, ora a conversar com amigos. Era perfeitamente verdade o que o padrinho que tinha explicado. Muitas turistas, principalmente francesas, de idades variadas, queriam conversar com ele. Sobre música, pelo menos era o que elas diziam. Mas a cabeça de Pedro estava com o corpo, o cheiro, a voz, os olhos de Amália. Estava enfeitiçado. Por isso, quando ele falou com ela ao telefone e lhe contou a nova situação, que não estava a lavar pratos e que, afinal, tinha uma vida agradável, Pedro transbordou de ilusão. Mais ainda porque o padrinho tinha dito que, caso a alguém o viesse visitar, poderia ficar no quarto com ele, sem problema. A sua alegria era enorme, quando explicou tudo a Amália e combinaram que ela viria ter com ele já na próxima semana, para passar três ou quatro dias.

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15. O comboio No dia em que Amália chegava no comboio do fim da tarde, Pedro tinha tudo planeado. Nessa noite não tocaria com os "Alfarrobas", seria a sua folga. Limparia o seu quarto, iria esperá-la à estação com um belo ramo de flores que já tinha pedido ao jardineiro do hotel, regressariam de táxi que ele já tinha reservado, jantariam numa pizaria perto do hotel, pois queria evitar os comentários dos colegas. Finalmente dormiriam e fariam amor no seu pequeno quarto. E aí estava ele, com o ramo de flores na mão, quando o comboio parou pesadamente na estação, espalhando ruído e fumo. Pedro queria abraçar Amália mal ela descesse da carruagem. Saíram primeiro uns militares fardados que vinham passar uns dias a casa antes de irem combater para África. Depois saiu um grupo de jovens com grandes mochilas, que visivelmente iriam acampar na região. Depois saiu um casal de idade, que teria ido tratar de papelada a alguma terra mais próxima. Pedro quase desesperava quando viu que alguém saía da última carruagem. 16. O regresso Mas era mais um soldado que se tinha deixado de dormir e saia agora apressado, meio atarantado, sob o riso dos outros que o esperavam. E o comboio partiu sem que mais ninguém descesse. Pedro correu à estação onde sabia que existia uma cabine telefónica. Marcou o número da casa de Amália. Atendeu uma voz feminina. 15


Era a mãe da rapariga que disse: " A Amália não quer que tu telefones mais. Ela não te quer ver. Tem outro namorado." Pedro ficou largos instantes ouvindo a tonalidade do telefone que a mãe de Amália tinha desligado, a centenas de quilómetros de distância. As lágrimas caíam-lhe pela cara. Dirigiu-se ao bar da estação e pediu uma cerveja antes de iniciar a caminhada para o hotel, sem fazer sinal ao homem do táxi que o esperava em frente à estação. A caminhada durava quase duas horas, e duas vezes Pedro parou em esplanadas à beira da estrada e pediu cerveja. As lágrimas continuavam a cair. Quando chegou perto do hotel deixou-se ficar num banco de jardim a ouvir os grilos e a sentir a humidade da relva. Já era muito tarde quando atravessou a porta de entrada. O padrinho estava no hall do hotel, conversando com umas pessoas e, ao vê-lo assim desconsolado, percebeu que algo se tinha passado. Pôs-lhe a mão no ombro, levou-o até ao bar e disse ao Barman para lhe servir um whisky. "Agora não posso, mas depois falamos com calma, rapaz", afirmou. E Pedro sentou-se ao balcão engolindo o whisky. 17. O estranho turista Reparou que estava um tipo a seu lado, todo vestido de branco, um típico turista inglês com a pele avermelhada pelo Sol algarvio e que já devia ter bebido bastante pois ia falando sozinho. Pedro também sentia a cabeça à roda. Sem sequer se apresentar previamente, o homem de branco disse ao Pedro: "I don't understand what's wrong with pop music. People like a good melody, they don't care about the words, nor the message, nor fucking politics…" Pedro estava completamente tonto com o álcool que tinha já bebido. Olhou para o seu vizinho, cujo rosto lhe pareceu familiar. Já tinha visto aquela cara em qualquer lado. Respondeu-lhe, arranhando o inglês: "olhe, meu amigo, eu sou músico, sei do que falo. A música só interessa se tiver uma mensagem, se exprimir sentimentos e emoções. Veja os grupos modernos, a maior parte é uma porcaria. Mesmo os Beatles, se não fosse o grande John Lennon seriam um grupo banal a fazer músicas para jovens imbecis abanarem o corpo!" O inglês disse já enervado e num tom pouco adequado a um hotel de classe: "Mensagem? Então só é o rock and roll que tem mensagem? Com o John aos gritos esganiçados enquanto coça a barriga, é isso? Como as porcarias que faz o Bob Dylan? Não brinques comigo! Olha, qualquer dia ainda dão um prémio Nobel ao Dylan. E já agora, a Rainha faz-me Sir!"

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18.O improviso Pedro ia retorquir ao sarcasmo básico do inglês, quando reconheceu o seu interlocutor: Era o Paul Mccartney, agora já não tinha dúvidas! Ao ouvir tom da discussão o Barman tinha-se aproximado, manifestamente para apaziguar a conversa. Disse: "Mister Paul, Pedro is our best musician, he was not playing today because he was waiting for his girlfriend. The others dont' play very well, as you saw". Era efetivamente Paul Mccartney que estava em face do Pedro. Quantas emoções tinha ele tido nesse dia! Mas agora, quando ouviu a palavra "girlfriend", só queria preparar o discurso de reconciliação com a Amália e dizer-lhe que não podia viver sem ela. Paul tirou-o desse torpor dizendo: " Ah és um músico com mensagem! Muito bem quero ouvir essa mensagem …" e sentou-se ao piano, na zona onde a banda normalmente tocava. Pedro percebeu que tinha de tocar algo, já que os poucos clientes do bar faziam roda em torno da zona reservada à orquestra. Pegou na guitarra e começou a tocar e a cantar a única canção que sabia cantar,"J'aime les filles", acompanhado pelo piano do Paul Mccartney. Paul estava agora divertido e continuou a cantar e a tocar piano, acompanhado pelos acordes da guitarra do Pedro, cantando canções dos Beatles ou improvisando melodias novas. E assim passaram uma noite divertida. O padrinho tinha mandado servir a toda a gente que estava no bar umas asas de frango e umas batatas fritas. Já bem tarde apareceu uma jovem bela e magra, com sotaque americano que se dirigiu ao Paul dizendo olhando para as asas de frango: "Que porcaria é esta, não devias comer animais e muito menos frango. Tinha prometido que te tornavas vegetariano!". 17


Paul respondeu: "It's only the wings, no problem". Yes, we must go, but before I want to give a gift to Pedro".

19. Penina E escreveu numa folha de papel umas palavras para a melodia que tinha acabado de inventar ao piano. Chamava-se "Penina", o nome do hotel onde estavam. E todos foram dormir, com o padrinho sorrindo e colocando o braço à volta do ombro do Pedro, dizendo "Não sabias que o Paul Mccartney estava aqui na região? É a segunda vez que vem ao hotel tomar um copo. Tiveste uma noite inesquecível. Sobre as tuas tristezas passageiras não te preocupes, é como na canção que tu cantas em francês. E trauteou: "Le plus difficile Ce n'est pas de me laisser tomber Le plus difficile C'est de pouvoir me rattraper…" Depois o padrinho ainda lhe disse: "Oh Pedro se fizéssemos um disco dos Alfarrobas com essa música que o Paul te deu ganharíamos umas massas. Já pensaste nisso? Pedro regressou ao quarto e reparou que tinha chegado uma carta, que alguém tinha deixado em cima da sua cama. Era a letra de sua mãe. Ela dizia que o pai considerava que o castigo já era suficiente e que Pedro podia já regressar a casa. Bastaria telefonar ao pai, pedir desculpa e prometer que nunca mais tocava guitarra. No dia seguinte Pedro gravou numa cassete a melodia que Paul tinha cantado na noite anterior. Juntou o papel com a letra da canção e mandou por correio para o seu amigo João do "Jota Éme", contando-lhe toda a história. Terminava dizendo que mal chegasse a Lisboa tinham de gravar esta e outras canções que ele entretanto tinha escrito. 18


Também escreveu à mãe dizendo que não se importava de suportar mais castigo e que portanto ficaria no Hotel Penina até ao fim do Verão. Em Setembro, quando ainda estava a tocar no hotel, chegaram as notícias de que um grupo de Lisboa tinha gravado uma canção com letra e música de Paul Mccartney que era um sucesso em toda a Europa. Quando regressou a casa dos pais soube que Amália tinha namorado uns tempos com outro rapaz. Veio a saber depois que se tratava do baterista do "Jota Éme", aquele tipo que todas as raparigas consideravam terrivelmente feio. Namoricos de Verão, coisas sem importância. Depois, foi falar com o seu pai e prometeu que nunca mais tocaria guitarra. Cumpriu.

FIM

As verdades da história Em 1968 Paul MacCartney estava de férias no Algarve, em casa de amigos, quando, numa noite, passou pelo hotel Penina para trocar libras por escudos. Depois duns copos no bar, cantou umas canções ao piano com os músicos residentes. No final, improvisou uma canção, a que deu o nome de "Penina" e ofereceu-a aos músicos que o acompanharam.

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Após umas batalhas jurídicas sobre os direitos de autor, o grupo (JotaHerre) acabou por gravar a canção. Ela foi posteriormente cantada ao vivo em Junho de 1969, num conhecido programa da televisão portuguesa (Zip-Zip). No Algarve, Paul estava acompanhado por Linda Eastman, que viria a ser sua mulher. Linda era americana e faleceu prematuramente, em 1998. Foi uma excelente fotógrafa, sendo célebres as suas fotografias de alguns músicos de rock da altura, por exemplo de Bob Dylan, Janis Joplin, Eric Clapton e Frank Zappa. Era vegetariana, foi defensora dos direitos dos animais e fundou com Paul e outros músicos o grupo "Wings". O período entre 1968 e 1970 marcou o afastamento progressivo entre os quatro Beatles, devido ao desejo de cada um deles desenvolver projetos pessoais e a diferenças de conceitos musicais entre Paul e John. Durante esse tempo, Paul manifestou amargura e mesmo rancor relativamente à situação. Quanto ao Pedro, ele pediu para nada ser revelado sobre a sua verdadeira identidade. Mais ainda, pediu expressamente para não ser tornado público no Twitter se ele é um personagem real ou simplesmente virtual.

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