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Silêncio.
Oxana ainda estava descobrindo o que era o silêncio. Barulhos, Oxana odiava barulhos. Gostava do silêncio principalmente porque conseguia ouvir sons que no costumeiro caos não conseguiria. Apesar de ainda não saber muito bem de onde vinha aquela novidade, gostava, pois era simples e, apesar de repetitivo, não a incomodava.
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- Maldito pรกssaro - disse o pai.
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“Pássaro”. Então era assim que o barulho era chamado. Jamais esqueceria dele. Um dia gostaria de ser simples e livre como o pássaro que tanto a encantava. Do seu canto, pôde ver quando seu pai, ao proferir aquelas palavras com tanta raiva, arremessou algo em direção ao pássaro e ele voou, deixando Oxana apenas com a certeza que ali começaria mais um dia cheio de palavras que ela não compreendia direito, mas já sabia que as deixavam bastante assustada.
Sentiu o cheiro e sabia que sua mãe estava por perto. O aroma era inconfundível e sempre estivera presente na sua casa. Queria perguntar por que o pai vivia nervoso, queria perguntar por que ela estava com o rosto diferente e cheio de marcas, queria perguntar sobre o pássaro e quando as duas poderiam sair para ouvi-lo cantar. Mas as palavras não saiam e, como se cumprisse um ritual, a mãe apenas entregou a sua mamadeira. Sabia que existiam dois tipos de mamadeiras na sua casa: a dela, que era simples, sem cores; e a das pessoas grandes, que era colorida, maior, com desenhos e letras. Ao mesmo tempo em que tinha curiosidade e achava a deles bem mais bonita que a sua, tinha medo. Sempre que as pessoas grandes bebiam,
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Sempre que as pessoas grandes bebiam, ficavam agressivas e começava a gritaria, quase sempre acompanhada de objetos sendo quebrados. Uma vez ficou com tanto medo que começou a chorar e chorava cada vez mais alto. Até que o pai apareceu e começou a bater nela. A dor que sentiu foi tão forte que Oxana simplesmente desmaiou e não conseguia lembrar de mais nada. Depois disso, aprendeu que não deveria chorar e, sim, controlar o seu medo. Foi assim que aprendeu a olhar o mundo pela janela, principalmente os cachorros no quintal. Apesar de não serem livres como os pássaros, eles eram unidos, um sempre cuidava do outro. E isso era tudo que Oxana queria: alguém que cuidasse dela.
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Naquela noite, Oxana já estava adormecida quando gritos a despertaram. Identificou a voz da mãe e logo depois a do pai. Sim, ela já estava acostumada com as gritarias, mas aquela parecia diferente. Mesmo aflita, tomou coragem e caminhou até a porta para observar o que estava acontecendo. Viu então a mãe caída no chão coberto de mamadeiras de gente grande. Mesmo sem entender muito bem tudo aquilo, Oxana notou no rosto da mãe o mesmo que notou no seu próprio rosto no dia em que apanhou do pai. Quis correr em direção a ela e dizer que já tinha passado por aquilo, que logo a mãe dormiria e tudo iria passar, mas o pai começou a gritar novamente e, com medo, Oxana voltou para o quarto. Tentou, então, olhar pela janela para ver os cães, porém estava escuro demais e restou a Oxana tentar dormir em meio ao caos que se formara em sua casa.
O pássaro anunciava o começo de mais um dia. Oxana passou horas e mais horas ouvindo aquele canto e torcendo para que o pai não o espantasse novamente. Mas dessa vez o pássaro foi embora por livre e espontânea vontade. A mãe ainda não tinha aparecido para cumprir o ritual de todas as manhãs e, após lembrar da cena da noite passada, Oxana ficou preocupada. Caminhou até a porta do quarto e viu que a mãe não estava mais lá. Também não havia sinal do pai e, por um momento, ocorreu a Oxana que ela finalmente poderia sair para brincar com os cães e com os pássaros. Desistiu da ideia assim que começou a ouvir vozes desconhecidas e voltou correndo para o seu canto. Em seguida, dois estranhos entraram em seu quarto e começam a fitá-la com um misto de preocupação e pena.
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- É bem mais grave do que eu imaginava. - Ainda bem que a encontramos a tempo
Oxana queria compreender o que aqueles dois homens diziam, mas nĂŁo conseguia. Eram altos demais, falavam rĂĄpido demais e estavam prĂłximos demais. Foi entĂŁo que lembrou de um gesto que os cĂŁes sempre faziam quando alguĂŠm se aproximada deles e achou que talvez aqueles homens a pudessem entender. Com os joelhos e mĂŁos apoiados no chĂŁo, olhou para eles e tentou imitar o barulho que ouviu tantas vezes: - AU! AU! AU!
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A princĂpio, Oxana pensou que sua tentativa tinha sido em vĂŁo, jĂĄ que os homens, alĂŠm de nĂŁo a entenderem, mostravam aflição no olhar. Mas Oxana nĂŁo desistiria e continuou a emitir o som dos cĂŁes. AtĂŠ que um dos homens desviou o olhar para a janela e Oxana pode ver que sua expressĂŁo mudara completamente. O que antes era um olhar aflito virou um olhar de compreensĂŁo. Ele se aproximou dela e passou a mĂŁo em sua cabeça. Oxana lembrou que esse era o gesto que sua mĂŁe sempre fazia quando queria acalmar os cĂŁes. Imediatamente entĂŁo parou de latir e deitou aos pĂŠs do homem. Ele a pegou no colo e ainda passando a mĂŁo em sua cabeça disse: “Vamos, Oxana. NĂłs vamos te tirar daquiâ€?.
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☁ Ao saírem, passaram pelos cães, que estranhamente estavam calmos e não latiam. Ouviu o homem que a carregava dizer “Não se preocupe. Eles também ficarão bem”.
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Quando acordou, Oxana estava cercada de pessoas estranhas que a fitavam com curiosidade. Queria perguntar quando voltaria pra casa, quando veria sua mãe. Apesar de estar assustada, pôde perceber que o lugar era bem diferente da sua casa e que pela primeira vez estava cercada de gente que era tão pequena quanto ela e que também precisava se curvar para olhar aquelas pessoas tão grandes.
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- Deixem a pequena Xuxana descansar, ela precisa. - Quando ela vai poder brincar com a gente? - Logo, logo. Agora voltem para o pรกtio.
Todos correram para fora e então Oxana notou que estava em um quarto, cheio de camas, de janelas e com paredes coloridas. Logo voltou a sua atenção para o cachorrinho que havia em uma das camas, mas que não se mexia. Confusa, Oxana correu de encontro a ele, porém ele continuava sem se mexer. Desesperada, começou a latir para ver conseguia arrancar alguma reação dele. - Este é o Pingo. Ele não é igual aos seus cachorros, Xuxana. Ele é especial e nós cuidamos dele do mesmo jeito que iremos cuidar de você.
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Oxana entendeu, então, que Pingo tinha a mesma dificuldade que ela: não conseguia se comunicar com gente grande. Após dar um longo abraço nele, foi conduzida para fora do quarto e passou a fazer o que se tornaria uma rotina dali em diante.
Os dias de Oxana agora em nada lembravam os dias que tanto passara quieta em seu canto vendo o mundo pela janela. Ela estava experimentando de fato o mundo, estava vivendo. O começo não foi fácil. Estranhou, e muito, quando, por exemplo, descobriu que ali não existiam mamadeiras e a ensinaram que deveria usar algo chamado copo. Era o que todos usavam, e Oxana queria fazer parte daquele lugar que ainda não conhecia muito bem, mas que pelo jeito seria sua casa durante algum tempo. Então, começou a usar o copo e todos ficaram satisfeitos.
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Agora, os dias de Oxana eram assim: agitados e sempre com algum aprendizado, alguma novidade. Todas as manhãs, ela recebia a visita do que eles chamavam de doutor. Tinha também a professora, que ensinava não só a ela, mas também aos outros pequenos. Gostava muito dessa parte do dia pois estava aprendendo a se comunicar com a gente grande. Quando conseguiu falar a sua primeira palavra, todos explodiram de alegria e ela também sentiu pela primeira vez uma grande felicidade.
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No dia seguinte, o cachorrinho esperava Oxana no mesmo lugar. Mas assim que se aproximou dele, uma gente grande apareceu. Silvia era chamada pelos outros pequenos de “guardiã”, estava sempre sorrindo e apesar de poder ser notada em todos os lugares da casa, dificilmente atrapalhava as atividades, só interferindo quando alguma confusão acontecia.
- Olá, Xuxana. Quem é esse? - perguntou passando a mão na cabeça do cachorrinho Oxana ainda estava descobrindo palavras e precisou se esforçar para lembrar de tudo que a professora ensinava pelas manhãs. Então respondeu: - Amigo. Oxana sabia que esse era o jeito como chamavam quem estava sempre ao seu lado e fazia você se sentir bem e ficou feliz quando finalmente se deu conta que tinha o seu primeiro amigo. Silvia apenas sorriu e ficou ali com Amigo e Oxana até a hora de todos voltarem para casa.
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Com o passar dos dias, todos já pareciam conhecer Amigo. O doutor sempre perguntava por ele e a professora até ensinou algumas novas palavras que Amigo poderia entender. Só tinha um problema: Silvia e os demais insistiam para que ela também conversasse com os outros pequenos. Oxana realmente não entendia por que precisava fazer aquilo, mas precisava se esforçar, caso contrário, eles não a deixariam mais ver Amigo. Só de pensar nessa possibilidade, sentiu um grande desespero e vontade de chorar. Então, revezava o tempo no pátio entre Amigo e os outros pequenos. Agora, até deixava alguns chegarem perto dele e se sentia orgulhosa em ter sido a primeira a dar atenção para um cachorrinho enquanto todos estavam ocupados demais brincando entre si.
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Reconhecendo o esforço de Oxana, todos da casa concordaram em adotar Amigo. Assim, ele não passaria mais os dias na rua e correndo perigo. E teria um lar e seria tratado com todo carinho, aquele mesmo que prometeram a Oxana assim que ela chegou ao lugar.
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E assim o tempo passou. Oxana cresceu, os pequenos também. Ainda não eram gente grande, mas caminhavam para isso. Alguns foram embora e Oxana precisou aprender com o sentimento de perda pela segunda vez. Já havia sentido isso quando foi abandonada por sua mãe e, apesar de agora esta lembrança ser bem vaga na memória de Oxana, ela ainda se lembrava dela todos os dias. Porém, sabia que ali estava melhor e que finalmente tinha encontrado pessoas que se importavam com ela. Aprendeu que algumas coisas simplesmente não tinham explicação e que a única coisa que podia fazer era torcer para que as pessoas encontrassem sua paz e ficassem bem. Amigo ainda estava com ela, mas não era o único. Oxana agora tinha o total de oito cachorros que fez questão de tirar das ruas e proteger.
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Ă€s vezes passava mais tempo com eles do que com pessoas, mas isso realmente nĂŁo a incomodava. Sabia que ali ela estava segura. Sabia que ali ela estava em paz.
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35 Filha de pais alcoólatras, Oxana, nascida em 1983, passou grande parte da sua infância, dos 3 até os 8 anos, vivendo em um canil no quintal da casa da família em Novaya Blagoveschenka , da Ucrânia. Sem atenção e acolhimento dos pais, a menina encontrou abrigo entre os cães e se refugiou num barracão habitado por eles nos fundos da casa. Isso fez com que a menina aprendesse seus comportamentos.
Desde 2010, Oxana reside em um lar para deficientes mentais, onde ela ajuda a cuidar das vacas na fazenda da clínica. Ela afirma que é mais feliz quando está entre os cães.
HISTÓRIA REAL
O vínculo com a matilha de cães era tão forte que as autoridades que vieram para salvá-la foram expulsas na primeira tentativa pelos cães. Suas ações eram iguais aos sons de seus cuidadores. Ela rosnou, latiu, andou por todos os lados como um cão selvagem, cheirou a comida antes de comer, e foi encontrado nela sentidos extremamente aguçados de audição, olfato e visão. Ela só sabia dizer “sim” e “não” quando ela foi resgatada. Quando foi descoberta, Oxana achou difícil de adquirir habilidades sociais e emocionais humanas . Ela tinha sido privada de estimulação intelectual e social, e seu único apoio emocional veio dos cães que ela vivia. Quando foi encontrada em 1991, mal conseguia falar.
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Hianna Alves era só mais uma menina loira e linda que gostava de ler os quadrinhos da Turma da Mônica e os livros de Agatha Christie. Só que, além disso gostava de muito mais coisas e prestava atenção no mundo e no que havia nele. Formada em jornalismo pelo UniCeub, em Brasília, em 2008, Hianna descobriu com o tempo que além das historinhas da Mônica e da Agatha ela também gostava de Machado de Assis, Nick Hornby e Luís Fernando Veríssimo. E foi também o tempo que fez com que ela percebesse era fácil (e divertido) para ela escrever sobre música e sobre outras coisas. Como os contos presentes nesses livros. Comanda o Hiannafork desde 2013 e cuida da comunicação do Instituto Sam Jovana desde a sua fundação.
AUTORA
Thiago Dantas
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Sam Jovana nasceu em setembro de 1991 e desde menina já dava sinais de que seria grande. Gostava de desenhar, ler jornais, apreciar as mineiridades da vida e também de discutir política com seu avô.
Curiosa, apta por novidades e atenta ao mundo que a rodeia, Sam Jovana ainda ama desenhar, ler jornais, apreciar as mineiridades do caminho e também tornar melhor a vida das pessoas através de suas criações. E esses livros ilustrados por ela são um pedaço desse desejo. Thiago Dantas
LUSTRAÇÕES E DESIGN
Já adulta, passou em Cinema de Animação e Artes Digitais e também na Universidade Federal de Minas Gerais, mas acabou cursando mesmo Design na Escola de Design da UEMG. E na faculdade aprimorou os talentos que já tinha: ilustradora de mão cheia, Sam se envolveu em projetos e trabalhos que acreditava e construiu uma carreira (embora curta) bastante interessante. Passando pelos centros de Design e da Imagem da Escola de Design da Universidade de Minas Gerais e por algumas agências de publicidade e comunicação, a mocinha que se tornou, de fato, grandiosa.
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Título 5inco Data de publicação 25 de Novembro de 2013 Textos Hianna Alves hianna Texto Biografias Thiago Dantas dantast Ilustração & Diagramação Sam Jovana sammn Edição/Revisão Romulo Tesch Santanna remuly Cotejamento Maura Corrêa causaturpis Encadernação Meu Libretto meulibretto Orientador Flávio Nascimento flavito
Agradecimentos: Delci de Moura Carlos de Oliveira Cássio de Castro Guilherme Legnani Filipe da Matta Diego Tudesco Leonora Laporte Hugo Avelar Ana Lúcia Vega Cínthia Moraes Dayana Teixeira Murilo Coimbra Pedro Melo Camila Suzuki Danielle Moura Carla Hartman Eduardo Furbino Camila Pelinsari Leonardo Lopes
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