Revista O Mensageiro de Santo Antônio Julho/Agosto de 2013

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DA UTI PARA O MUNDO A história do paciente permanente de UTI que transformou O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO sua série de animação em 3D em realidadeJulho/Agosto d e 2 0 1 3

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Sumário

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ESPECIAL

Vocação para superar limites

THEOBLOG

Uma Igreja comprometida com o Evangelho de Cristo

32 OS DOIS LIVROS DE DEUS

Cientificismo o empobrecimento do conceito de ser humano

4 EDITORIAL

34 ENTENDENDO

Superando limites

A BÍBLIA

Profeta e profetisas na Bíblia

5 BUSCANDO

VERDADEIRAMENTE A DEUS

Como se faz um monge? (parte 14)

8 SANTO ANTÔNIO HOJE

42 MARIOLOGIA

Cronologia mariana

44 COM A PALAVRA PE. ZEZINHO

Convertidos por um tempo

O sinal de Deus

46 CERTAS PALAVRAS

14 CATEQUESE

Viver é amar

LITÚRGICA

Amor – critério para a celebração litúrgica

47 FOGÃO DE SANTO

20 A IGREJA NA HISTÓRIA

Ciência e fé – o caso Galileu

24 EVANGELHOS

48 PÁGINA INFANTIL 50 ESPAÇO

REPORTAGEM

Da UTI para o mundo

EQUIPE DE DIVULGAÇÃO

DIRETOR RESPONSÁVEL

DESENVOLVEDORA WEB

DIRETOR E REDATOR

ASSISTENTES DE ARTE

Frei Alessandro R. da Silva Frei Allan Henrique B. da Silva Frei André Beghini Vilela Frei Josimar Barros

COLABORADORES

IMPRESSÃO – Gráfica Oceano TIRAGEM – 23 mil exemplares ISSN 2178-3721

Frei Geraldo Monteiro Publicação periódica da Associação Antoniana dos Frades Menores Conventuais. Rua América do Sul, 235 CEP 09270-410 Santo André, SP. CNPJ 53.722.229/0001-04. Ligada à Província Padovana Frati Minori Conventuali e Messaggero di S. Antônio Basílica del Santo 35123 Padova - Itália. Reservam-se todos os direitos de reprodução. Com aprovação dos superiores. Registrada no Primeiro Registro Civil de Pessoas Jurídicas de Santo André, SP. Microfilme sob nº 69174 aos três de novembro de mil novecentos e oitenta e oito.

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DO LEITOR

DOMINICAIS COMENTADOS

E X P E D I E N T E

ANTÔNIO

Frei Wilmar Villalba Ortiz VICE-DIRETOR

Frei Everson Garcia GERENTE COMERCIAL

José Roberto de Queiroz REVISÃO

Alessandra Biral REPÓRTERES

Bernardete Melo Fábio Galhardi Leiriane T. Corrêa PROJETO GRÁFICO

Ricardo Cruz

Fábia Limeira

Letícia Somensari Mariane Segantim

Pe. Antônio José de Almeida Dom Bernardo Bonowitz Daniel Marques Frei Danilo Salezze Fernando Altemeyer Júnior Frei Jacir de Freitas Faria Pe. José Alem José Tarcísio de Castro Monique Pereira Dom Rafael Maria F. da Silva Pe. Valeriano dos Santos Costa Pe. Zezinho

Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores, não expressando necessariamente a opinião da revista.

Revista

O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO ANO 56 – JULHO/AGOSTO DE 2013 – Nº 566 Telefones: (11) 4472-5843 / 4475-1003

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A todos os leitores, uma excelente leitura! Frei Wilmar Villalba Ortiz

(parte 14)

Conheça a história de Paulo e da série animada que está para se tornar realidade, depois de uma campanha veiculada pela internet (idealizada por amigos e médicos) obter os recursos necessários para que esse homem que ousou superar seus limites desse asas a sua imaginação. Nesta mesma edição, há outra história de superação de limites, em que crianças, adolescentes e jovens com deficiências físicas e mentais participam de aulas de caratê, que lhes proporcionam realizar movimentos até então considerados impossíveis de serem feitos por causa das limitações de suas condições. Uma vez mais, o não conformar-se com determinada situação possibilita que se conceba uma nova realidade: a de que, sim, sempre se pode ir além. Conheça a história de Rosana Yuasa Evangelista e de seu marido, Fabiano Evangelista, da cidade de Santo André (SP). Eles também ousaram sonhar e fazer de uma utopia uma realidade, mostrando que pessoas com deficiência também podem aprender e praticar artes marciais como meio de socialização e de superação de limites. Confira neste Especial o fascinante relato dessa iniciativa bem original.

Deus dá o crescimento

D

esde cedo, o ser humano, em sua constante e interminável busca pelo real sentido da existência, constata que, de sua composição corpo e mente, é o corpo que lhe impõe mais limites. Não pode voar nem correr atingindo velocidades espetaculares. É extremamente frágil desde o nascimento. Fome, fadiga e morte são exemplos que demonstram tal situação. De alguma forma, todos lidamos com esses fatores. Damos sentido a isso por meio de diversas manifestações: arte, música, religião, ciência, esporte. Mas, e quando deparamos com circunstâncias em que, aparentemente, os limites parecem ser tão intransponíveis que passam a impressão de inviabilizar qualquer tentativa de conviver com eles? Uma vez mais, somos surpreendidos pela incrível capacidade humana de superação. Paulo Henrique Machado, paciente permanente da UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo desde um ano e três meses de idade, mostra que as limitações físicas não são empecilhos para alçar voos bem altos e expressar toda a latência de vida interior. Grande apreciador da sétima arte, idealizou uma série animada em que relata sua experiência e a de seus amigos de UTI em aventuras repletas de sensibilidade e alegria, em uma verdadeira ode à existência.

monge?

SUPERANDO LIMITES

um

Frei Wilmar Villalba Ortiz Diretor

Como se faz

Arquivo MSA

EDITORIAL


BUSCANDO VERDADEIRAMENTE A DEUS

N

Flickr

o último ato da grande tragédia Rei Lear, do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), um dos personagens principais afirma: “Maturidade é tudo”. Tudo o que importa é que a planta, o animal e especialmente o ser humano cheguem à plenitude planejada por Deus; alcancem a beleza, a madurez, a bondade e a sabedoria que Deus implantou neles ao criá-los e que tem nutrido e cultivado durante toda a vida das criaturas. A boa semente é a palavra de Deus; a terra boa somos nós. Desde os primórdios, o monacato beneditino tem sido associado com a agricultura. Com a igreja, o refeitório, a sala de capítulo, o scriptorium, há um

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BUSCANDO VERDADEIRAMENTE A DEUS quinto lugar de instrução no mosteiro: os campos. Os campos são uma parábola tremendamente expressiva do que é a vida monástica: ser plantado, crescer, amadurecer e ser colhido. O monge que trabalha nos campos (e mesmo aquele que não trabalha, mas que por eles passeiam em seu tempo livre) vê a própria vida revelada e espelhada naquilo que se passa com a lavoura. Ele sente um parentesco instintivo com o que está acontecendo “lá fora”, porque reconhece que o mesmo processo está acontecendo “aqui dentro”, isto é, em seu coração e em sua mente, e também em seu corpo. Até agora, nas reflexões desta seção, temos olhado para o tempo da plantação, da emergência do broto da terra e do aparecimento daquele tom peculiar de verde, no caule ou na folha, que pertence especialmente à primavera: verde-primavera. Durante todo esse tempo (talvez você se surpreenda em saber), nós estivemos falando de inícios. Lembro-me de que, no final de meus anos de formação monástica, meu mestre de juniores escreveu uma avaliação antes de me recomendar para os votos solenes. Para compô-la, ele

entrevistou todos os sessenta monges professos solenes da comunidade e resumiu suas intuições e opiniões. Uma tarde, lemos o relatório juntos. A última frase era: “Concluindo, há esperança de que, em quinze ou vinte anos, Bernardo se torne um bom monge”. Eu fiquei furioso. “Quinze ou vinte anos!”, disse eu, todo engasgado. “Passei os últimos cinco anos dando cada centímetro do meu ser ao projeto monástico e tudo o que eles têm a dizer é que em quinze ou vinte anos eu posso vir a ser um bom monge!” “Bernardo”, disse-me o mestre de juniores, “eles são mais sábios do que você e têm muito mais experiência. Eles sabem que ninguém pode se tornar um bom monge em cinco anos. Ele pode ser promissor, sim, mas tem um montão de coisas que têm que acontecer, no decorrer de muitos anos, antes que possa se tornar um monge de verdade – bom, ruim ou indiferente. Na verdade, eles estavam tentando elogiá-lo”. Preciso confessar que, na ocasião, não me senti muito elogiado. Senti-me não muito valorizado. Trinta anos mais tarde, consegui ver que eles estavam certos.

O que me ajudou muito a chegar a essa conclusão foi a nossa soja (nossa principal lavoura, com trigo, como tantos outros lavradores do Sul do Brasil). Nunca me esquecerei do meu primeiro outono aqui no Paraná, em 1997. Em janeiro e fevereiro (antes do outono), eu olhei com alegria e admiração para os acres de plantas verdes vibrantes. “Certamente, elas estão prontas para serem colhidas” (vocês precisam ter em mente que eu nasci e fui criado em Nova York). Em fevereiro, o verde começou a mudar em dourado, o mais perto que vi, aqui no Brasil, à troca de folhas no Hemisfério Norte, em outubro. Eu precisava admitir que a transformação era gloriosa. O verde tinha sido a mais plena vitalidade, mas o dourado era pura magnificência. “Certamente, agora é o tempo para a colheita”. Mas ninguém se mexeu para colher coisa alguma. Comecei a ficar preocupado quando o glorioso dourado pouco a pouco esmaeceu até um marrom, depois a um marrom mais seco e, finalmente, um marrom extremamente seco. As plantas haviam se tornado completamente dissecadas. Até onde

Campo de soja, Flickr

Os campos são uma parábola tremendamente expressiva do que é a vida monástica: ser plantado, crescer, amadurecer e ser colhido. O monge que trabalha nos campos (e mesmo aquele que não trabalha, mas que por eles passeiam em seu tempo livre) vê a própria vida revelada e espelhada naquilo que se passa com a lavoura. Ele sente um parentesco instintivo com o que está acontecendo “lá fora”, porque reconhece que o mesmo processo está acontecendo “aqui dentro”, isto é, em seu coração e em sua mente, e também em seu corpo

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morena e formosa’. Sou formosa porque sofrimento. Certa manhã, eu li em um sou morena. Sou formosa porque permiti poema do poeta tcheco Rainer Maria Rique Cristo me tingisse e me colorasse com lke (1875-1926) uma comparação entre toda a força de sua divindade”. os cortesãos elegantes dos séculos XVII É basicamente isso o que fazemos e XVIII e nós: no decorrer dos longos anos intermediários da Eles [os cortesãos] Não sei se São Bernardo vida monástica. Buscaquerem florescer mos viver na presença E florescer é ser belo. (1090-1153) conhecia a de Deus e permanecer Mas nós queremos soja pessoalmente, mas nela. No início, precisáamadurecer, tem um pequeno texto vamos ficar conscientes E para isto nos abrisobre o crescimento de que realmente havia mos à escuridão e ao espiritual que me faz uma presença de Deus trabalho. pensar que talvez ele no mundo – que Ele está eternamente preEscuridão e traa conhecesse. “No sente em todas as coisas balho são inseparácomeço, a vida espiritual (São Bento [480-547] veis do longo período é doce, mas superficial; chama isso de “Primeiro intermediário, “seco depois, ela fica seca mas Grau da Humildade”). mas nutritivo”. Ambos extremamente nutritiva e, Tínhamos, então, de são necessários para finalmente, ela se torna “praticar” essa presena passagem do verde ça, refrescando nossa para o dourado e para simples e deliciosa” memória muitas vezes o marrom. Como Mesdurante um dia, para tre Eckhart (Eckhart não nos esquecermos de que vivemos na de Hochheim, 1260-1328) certa vez presença de Deus e para não recairmos no escreveu: “Quando um homem raspa esquecimento. Mas chega um momento a ferrugem de um vaso, o vaso não quando essa presença se torna estável sente dor. Mas, quando Deus raspa a em nossas vidas, tornou-se “a” presença ferrugem de nós, nós sentimos, porque estável em nossas vidas, e vemos então o instrumento está trabalhando sobre do que a vida se trata e dali em diante carne viva”. Escuridão e trabalho são perseveramos nessa presença. Os carmomentos intensos de crescimento melitas, que consideram o profeta Elias quando o calor e a luz de Cristo pecomo seu verdadeiro fundador, gostam netram mais insistentemente o nosso de citar suas palavras como um resumo ser. Para a maioria de nós, eles são a da busca espiritual: “Tão certo quanto o exceção, não a regra. O longo moviSenhor vive e em cuja presença estou de mento da germinação à colheita é no pé” (Vulgata). Todos os padres da Igreja geral silencioso. Mas, como quer que apontam a relação entre “estar em pé” ele seja, nós “permanecemos na luz”, e “estabilidade”. “Estar na presença do como o diz o apóstolo João (±10-103). Senhor” não significa se expor a ela vinte Porque sabemos que maturidade é tudo. minutos por dia, nos dias que você se lembra. É estar perpetuamente em Sua Dom Bernardo presença, “vulnerável” a ela, como um Bonowitz, OCSO de nossos jovens monges sacerdotes gosAbade do Mosteiro ta de dizer em suas homilias dominicais. Nossa Senhora do Inevitavelmente, há momentos quando Novo Mundo, Campo do Tenente (PR) a fidelidade a essa presença implica

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Arquivo pessoal

eu podia entender, era tudo morte e perda. Então, algumas semanas mais tarde, alguns dos monges e nossos funcionários saíram com o maquinário e começaram a colher. “Colher o quê?”, eu me perguntei. “Colher a soja, finalmente pronta para ser colhida”. A soja foi um livro de sabedoria. Não sei se São Bernardo (1090-1153) conhecia a soja pessoalmente, mas tem um pequeno texto sobre o crescimento espiritual que me faz pensar que talvez ele a conhecesse. “No começo, a vida espiritual é doce, mas superficial; depois, ela fica seca mas extremamente nutritiva e, finalmente, ela se torna simples e deliciosa”. Tendo cometido tantos erros em minha vida, eu aceitaria ser corrigido aqui também, mas me parece que a parte mais longa do processo, a parte maior, é o meio, quando as coisas são “secas mas nutritivas”. “Seca” não significa necessariamente sofrida, mas simplesmente um processo lento, regular e sem muita empolgação, que muda nossas folhas de verdes para douradas e então para marrons. Em seu comentário ao Cântico dos Cânticos, refletindo sobre o versículo “Nigra sum sed formosa” [“Sou morena mas sou formosa”], Orígenes (185-253), o pai da mística cristã, explica que a pele escura da noiva, a alma intimamente unida ao Senhor, é o resultado dos longos anos de exposição aos raios do Cristo, seu Sol. Ele ensina que é precisamente esse tipo de exposição que constitui o dinamismo central na vida espiritual: viver aquecido, bronzeado e queimado pelo calor e pelo brilho de Jesus Cristo. E ele insiste: “Certifique-se de estar e de continuar diretamente debaixo dos raios do sol. Se se puser de ângulo, você não absorverá a plena força dos raios de Cristo; Ele não será capaz de aquecê-lo e de formar em você sua perfeita semelhança. Fique diretamente debaixo do sol e não se mexa. Quanto mais escura você ficar, mais configurada a Cristo se tornará. O versículo”, prossegue Orígenes, “deveria dizer: ‘Sou


SANTO ANTÔNIO HOJE

O sinal de Deus “Não podemos, de jeito nenhum, deixar de lado outro episódio extraordinário acontecido ao nosso Santo Antônio. Aquele déspota arrogante e pérfido, o cruel tirano Ezzelino de Romano, no início de sua tirania, tinha feito uma carnificina de homens em Verona. Pai intrépido, logo que veio ao conhecimento do acontecido, frei Antônio arriscou sua vida indo pessoalmente até ele, que residia naquela cidade” (Benignità, cap. XI)

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ssa é uma passagem entre as primeiras e mais autorizadas biografias de Santo Antônio de Pádua e Lisboa (1191-1231), a Benignità, escrita na última década do mesmo século em que ele viveu e morreu. O sombrio personagem de que se fala é Ezzelino de Romano (1194-1259), contemporâneo de Antônio, mas de outra classe: orgulhoso senhor de guerra, empreendedor sem tamanho de si mesmo que, no jogo vertiginoso e O OMME N E NS SAAGGE EI IRROO DDEE SSAANNTTOO AANN TT ÔÔ N I O

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sangrento das lutas entre guelfos (partidários do papa) e guibelinos (partidários do imperador), estava construindo um senhorio pessoal, defendido pelo imperador Frederico II (1194-1250), de quem era representante no norte da Itália. Homem de armas e político frio e impiedoso, Ezzelino (excomungado pelo papa Inocêncio IV, 1195-1254) é um dos poderosos que oprimiam os pobres que Santo Antônio encontrava todos os dias pelas estradas de sua missão. Por aqui e por ali, as biografias do santo (que o apresentam sempre atento e cheio de compaixão pelos sofrimentos das indefesas populações vênetas daqueles anos) concordam em lamentar as condições desumanas em que viviam as vítimas daquele tirano que mandava e desmandava em todo o território paduano, veronês e outros. Para conquistar uma pequena cidade ou um castelo do lado de seu partido (pouco importa se é só por exibir poder ou predomínio, ou que sirva para apossar-se de pontos estratégicos), Ezzelino não pensava se tinha de derramar sangue.

Frei Antônio estava terminando (ou já havia terminado, não o sabemos com exatidão) a pregação da grande Quaresma de Pádua em 1231, aquela em que, por graça de Deus, conseguiu renovados propósitos de bem de todas as categorias de pessoas: Clero, cidadãos e até ladrões perigosos, dando um novo ar espiritual e cívico a uma cidade atormentada. Uma colheita de resultados que teve um preço muito alto: o corpo do frade estava extenuado pelos esforços, acompanhado por antigos e novos achaques; a essas alturas, restava-lhe pouco tempo de vida. Naquele início de verão, frei Antônio estava por demais cansado e necessitado de repouso. Por isso, o conde Tiso de Camposampiero, seu amigo e discípulo, convidou-o a ir a seu castelo nos verdes campos, não muito longe da cidade. O frade aceitou o convite, na esperança, talvez, de que novas forças físicas o sustassem. Antes de partir, ele atendeu ao pedido de tantos que lhe pediam que amansasse Ezzelino ou pelo menos livrasse de suas mãos um grupo de prisioneiros, sem dúvi-


Santo Antônio encontra Ezzelino de Romano, Giorgio Trevisan

to. Embora tenha permanecido como sempre foi (morreu como havia vivido: mau), teve a ocasião de confessar como a recordação de frei Antônio o fez desistir de excessos piores. O emprego das últimas energias físicas de Santo Antônio, mesmo não impedindo totalmente novas violências, dá razão ao fato que, quando vai ao encontro de outro homem, um homem de mãos vazias e em nome de Deus olha-o nos olhos e mostra-lhe, com humilde paixão, a injusta dor que está causando, uma brecha inesperada sempre se abre! Os tiranos, tanto hoje quanto ontem, incutem temor e medo, mas Santo Antônio aprendeu a não ter

medo nem do próprio medo, porque o que o inspira e sustenta é um amor desinteressado pelos oprimidos. Assim nos doa um ensinamento que é precioso até hoje: uma consciência limpa pode permanecer firme, sem medo, diante de qualquer poder injusto e ter a força, não violenta, de deixar o sinal de Deus! Arquivo Il Messaggero

da, condenados à morte. Frei Antônio não tinha nenhum interesse próprio para defender, nem favores a pedir ou fazer trocas, nem precisava agradar a ninguém. Em seu íntimo, sentiu o dever de anunciar o Evangelho da paz também às pessoas más, exatamente como seu pai Francisco (1182-1226)que, poucos anos atrás, havia ido ao encontro, pacificamente, do feroz lobo de Gúbio. Nós gostaríamos, já o dizia o grande escritor Manzoni, que o justo que proclama a verdade fosse vitorioso no encontro com o maldoso homem de guerra, para satisfação da justiça e dos espíritos bons. Mas nem sempre é assim. Frei Antônio não foi terno em seu encontro com o tirano: “Ó inimigo de Deus, tirano cruel, semelhante a cão raivoso, até quando continuarás a derramar sangue inocente de cristãos? Eis que a sentença de Deus, terrível e duríssima, pende sobre tua cabeça!” Segundo a biografia, Ezzelino ficou muito impressionado diante do san-

Frei Danilo Salezze, OFMConv Ex-diretor da revista Messaggero di Sant’Antonio (Itália)

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THEOBLOG

Uma Igreja comprometida com o

O

Evangelho

s cristãos estão cada vez mais comprometidos com uma Igreja pobre e livre. Querem construir e viver a radicalidade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo em diálogo com o mundo, com as pessoas e inseridos na transformação da sociedade. Desejam propor e experimentar uma Igreja engajada na libertação e que diga palavras grávidas de liberdade e amor. Propor e atuar como uma Igreja inserida no mundo (pro vita mundi) a serviço da humanidade (considerada como sua grande família) faz de nossa ação cristã um serviço direto ecoando a mensagem de Jesus no serviço direto e profético aos pobres, assumindo as dores e as angústias, as alegrias e as esperanças de cada ser humano como as próprias experiências de fé de cada fiel. Assim um cristão vive reverberando no próprio coração o que toca e mexe com o coração de cada ser humano. Não há nada de verdadeiramente humano que não ecoe e aqueça o coração de um discípulo de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Esta foi a bela constatação da Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual, promulgada em 7 de dezembro de 1965 pelo Paulo VI (1897-1978), unido aos padres conciliares no Vaticano II (1962-1965). Uma Igreja sensível aos novos problemas do mundo, e suas mutações, buscará com todos os seres humanos (de todas as confissões e culturas, pensamentos e ideologias) as soluções que correspondam às aspirações mais O OMME N E NS SAAGGE EI IRROO DDEE SSAANNTTOO AANN TT ÔÔ N I O

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de

Cristo


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Flickr

profundas, nesta sede de infinito que está em cada coração na sua busca por felicidade para que a Igreja, sem fronteiras, seja fiel ao Espírito de Deus. Cada ação eclesial está sempre voltada para produzir, gestar e organizar ações que humanizem o humano e plenifiquem a vida social. Fiéis cristãos devem, portanto, respeitar o homem e a mulher concretos, pois, silhuetas de Deus, particularmente respeitando a consciência e liberdade de cada pessoa e de cada cultura. Cada pessoa possui uma vocação de liberdade inscrita por Deus em seu coração. A Igreja precisa decifrar esse mistério pessoal em cada ser e orquestrar e unir as vocações na sinfonia da humanidade. Ser cristão é assumir-se como pessoa alegre, que dialoga com todos os humanos, incluindo agnósticos e ateus, pois estes participam, mesmo sem saber, do mistério de Jesus Cristo e pela inteligência e pela verdade podem chegar a Deus. Comunidades e grupos evangelizadores vão sempre valorizar a comunidade humana e o cultivo da pessoa e de sua dignidade intrínseca, participando da responsabilidade e dos benefícios sociais e políticos, agindo como cidadãos convictos e honestos participantes da vida pública de seu país. O único lugar interditado a um cristão é aquele que nega a dignidade da pessoa humana, que nega a Deus e que impede a cada pessoa pensar com a própria cabeça e defender seus valores e seus sonhos. Cristão não pode ser corrupto nem corruptor. Desonestidade e cristianismo não se coadunam jamais. Cristãos participam da atividade e do progresso humanos, em vista da realização do desígnio de Deus sobre o mundo, e estão sempre empenhados na promoção humana e na construção e na transformação do mundo, agindo em sintonia e em tensão criativa com as forças políticas e sociais de seu povo e de sua nação. A Igreja não quer ser um gueto, nem um poder acima do povo. Quer viver mergulhada na vida comum de seu povo, propondo sua mensagem evangélica com serenidade e vigor. Os cristãos são pessoas que assumem uma nova concepção antropológica de cada


THEOBLOG ser humano, rejeitando sempre a escravidão, o utilitarismo e os reducionismos do Estado opressor, afirmando o caráter divino da pessoa, do matrimônio e da sexualidade como dons da personalidade e do amor. Inspirados na comunidade conjugal de vida e de amor, os cristãos assumem a sexualidade como revelação do amor de Deus. A família é sempre uma imagem e um exemplo da Igreja doméstica. É um sacramento. Uma Igreja aberta ao pluralismo cultural do mundo moderno participa de pesquisas científicas e artísticas colaborando com o mosaico cultural e a reflexão das questões-chave sobre vida, morte e sofrimento. Uma Igreja empenhada seriamente no processo do desenvolvimento econômico equitativo de todos os povos respeita e valoriza cada trabalhador e trabalhadora, reconhecendo no trabalho um valor inestimável para sustentar e fazer valer a dignidade e a identidade de cada ser humano. A economia deve ser pautada pela ética, não pelo lucro nem pela supremacia da mercadoria sobre o ser humano. Uma Igreja empenhada na promoção humana e na construção do mundo, com o qual cresce em sintonia e em tensão criativa, promovendo a paz e atuando em instituições de caridade e movimentos sociais e libertários. A Igreja é um ator político e quer sê-lo, sem vincular-se a partidos ou grupos ideológicos sectários, mas valorizando a sociedade civil e a honesta comunidade política. A política é a melhor forma de amar e a Igreja crê nisso, apesar de tantos contraexemplos que todos conhecemos. As pessoas que assumem uma concepção antropológica e integradora do cristianismo apoiarão as lutas das classes populares e o processo de sua emancipação e de sua conscientização sem preconceitos nem falácias. Com ação e empenho pessoal. Com mangas arregaçadas. Uma Igreja aberta ao pluralismo cultural do mundo moderno faz-se crítica do capital e da exploração do mercado totalitário valorizando o trabalho, preconizando a reforma de empresas, pregando o direito de todos à propriedade, defendendo a reforma agrária e ficando ao lado dos empobrecidos como advogada dos pobres, que são seu tesouro mais precioso. Uma Igreja que prega a participação de todos na vida pública em regime pluralista, a partir dos pobres e caminhando com eles, em uma vida frugal e franciscana, O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO

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faz-se sinal do caráter transcendente do humano. Atua no mundo, ainda que seus valores sejam os de Deus e da eternidade. Estamos no tempo vivendo na eternidade. Afinal, como diz o apóstolo João: “Deus ama tanto o mundo que envia Seu Filho para salvar o mundo” (cf. Jo 3,16). Essa Igreja defende o direito internacional contrário ao conflito armado entre as nações e quer ser profetisa de paz e justiça social. Vive sua dimensão ecumênica de forma convicta na cooperação internacional entre as igrejas-irmãs e aos crentes em outros credos por meio do diálogo inter-religioso. Também encontra a força dessa tarefa enraizada na verdade e na paz ofertadas pelo Divino Espírito Santo de Deus. Tudo é graça divina, muito mais que trabalho humano. É Deus quem nos une e nos fortalece. Basta de “cristãos moles”, como nos dizia Santo Antônio de Pádua (1195-1231), no “Sermão do 7o Domingo depois de Pentecostes”. Precisamos de homens virtuosos, apóstolos a quem o Senhor confie a Sua Igreja. FLORES BROTAM NA IGREJA FIEL AO CRISTO Campanhas da Fraternidade, desde 1964, como sinal de compromisso e de conversão de todos os brasileiros. Os temas polêmicos e atuais são sinais claros da mensagem da libertação. Questionam e exigem mudanças pessoais e estruturais. Os Planos de Pastoral de Conjunto (PPC), gestados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) logo no pós-concílio e que ensinaram padres e bispos a trabalhar em comunhão e de forma planejada e orgânica. O método “ver, julgar e agir”, recebido da ação católica belga e difundido no Brasil pela Juventude Operária Católica (JOC) e pela Juventude Universitária Católica (JUC), fundamentalmente. Precioso estilo de ação e meditação do Evangelho na vida de cada dia. Colegialidade e participação ativa de todos nas comunidades, sem chefes nem autoritarismo. Uma Igreja sinodal e plenamente ministerial.

As diversas pastorais, em particular as de fronteira ou que atingem as periferias geográficas e humanas (presos, camponeses, indígenas, dependentes químicos etc.). São verdadeira dádiva do Espírito Santo. Laicato adulto e competente em seus serviços profissionais e familiares. As mais de cinquenta mil Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), espalhadas pelo Brasil como verdadeiras raízes subterrâneas sustentando toda a árvore eclesial. Missionários religiosos, sacerdotais e leigos que se espalharam pelo Brasil inteiro e alguns até pelo mundo. De um país que só recebia, passamos a ser um país que envia seus filhos em missão universal, como sinal da vitalidade de nossa Igreja. Bispos pastores e amigos dos pobres e da liberdade, como: Aloisio Lorscheider (1924-2007), Antonio Batista Fragoso (1920-2006), Enrique Angel Angelelli (1923-1976), Helder Pessoa Camara (1909-1999), Ivo Lorscheiter (1927-2007), Luciano Mendes de Almeida (1930-2006) e Oscar Romero (1917-1980), entre tantos profetas e santos de nossas igrejas particulares. Patriarcas ainda vivos e defensores dos direitos humanos: Angélico Sândalo Bernardino (1933-), Celso de Queiroz (1933-), Erwin Kräutler (1939-), José Maria Pires (1919-), Paulo Evaristo Arns (1921-), Pedro Casaldáliga (1928-) e Tomás Balduíno (1922-). Padres e diáconos permanentes, que se tornaram amigos do povo com cheiro de periferia, mostrando em sua prática ministerial o rosto de Cristo Ressuscitado. Mártires de nossas Igrejas: Dorothy Stang (1931-2005), Josimo Moraes Tavares (1953-1986) e Santo Dias (1942-1979), entre centenas de testemunhas assassinadas pela Igreja e pelo Cristo. Liturgias vivas e contemplativas. As corajosas e imprescindíveis Comissões de Justiça e Paz (CJP).


O Projeto Igrejas-Irmãs. O Ecumenismo e as Comissões de Diálogo Inter-Religioso, na ação de grandes atores como o padre Elias Wolff, o reverendo Jaime Wright (1927-1999) e o padre José Bizon, entre tantos pastores e pastoras que amam o ecumenismo e vivem por ele. As religiosas engajadas e inseridas nos meios populares. A presença ativa e alegre do povo negro em nossas comunidades. A leitura bíblica e a lectio divina, como escolas de escuta e contemplação da Palavra de Deus.

Poderíamos ainda elencar uma lista imensa de ações e grupos pastorais para exemplificar como vai se fazendo essa Igreja inserida no mundo e vivendo o Evangelho de Cristo. DESAFIOS PARA VIVER O EVANGELHO HOJE NAS CIDADES É preciso assumir alguns desafios na inserção pastoral para que brotem muitos frutos promissores, entre os quais podem ser: Trabalhar para que nossa Igreja seja uma comunidade aberta e fraterna, em comunhão afetiva e efetiva na fé pascal, assumindo uma palavra pública e comunicativa na pregação e vivência do Evangelho de Jesus Cristo.

Intelectuais e professores universitários comprometidos com as causas sociais.

Estimular e cultivar o protagonismo de um laicato consciente e adulto, nas grandes causas de negação da dignidade humana, sem infantilismos nem clericalismos.

A ação litúrgica participativa e a mística contemplativa dos mosteiros e grupos pentecostais. Verdadeiro Pentecostes no mundo.

Assumir a evangelização personalizada de cada habitante das cidades a partir de uma rede de missionários e de serviços no mundo.

Fernando Altemeyer Junior

Arquivo pessoal

Centro Santo Dias de Direitos Humanos e tantos centros de ação popular em nosso país.

Visitar os pobres, os doentes, os excluídos, os marginalizados, os perseguidos, os sem-teto, os dependentes químicos, os jovens solitários e depressivos, os idosos para ouvi-los, para celebrar com eles e elas, aprendendo e ensinando, comungando na luta, ao celebrar e rezar com cada uma dessas pessoas, amando-as como ao próprio Cristo Jesus. Cada um desses desafios exigirá novos ministros e nova ação transformadora. Será preciso sair de capelas, de sacristias e de muros para andar, visitar, mover-se. Será preciso usar os meios de comunicação e as redes sociais. Será preciso beber e viver da Palavra de Deus. Será preciso conversar pessoalmente com Jesus Cristo a cada manhã e celebrar a Eucaristia para abastecer nossos motores. Será preciso sair na inércia e do comodismo, que se tornam sinônimos de mediocridade, para enfrentar a tarefa missionária com ardor e audácia.

Departamento de Ciências da Religião, PUC-SP fajr@pucsp.br

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Flickr

C AT E Q U E S E L I T Ú R G I C A

AMOR

CRITÉRIO PARA A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA

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as catequeses anteriores, vimos como a beleza e a ordem são critérios básicos pelas quais a liturgia realiza a obra da salvação. Nesta catequese, falaremos de um critério básico, na verdade, o critério central que não permite que a beleza vire esteticismo, nem a ordem se torne cerimonialismo. Esteticismo é a concepção da beleza pela beleza sem se importar com seu fim, que é ser sinal de salvação. O mesmo se pode dizer do cerimonialismo, ou seja, do rito pelo rito, como se fosse um valor absoluto. Nessa linha, formam-se os cerimoniários intransigentes, que se valem do certo e do errado para condenar e não para salvar. Vamos então falar do amor como critério fundamental da liturgia. O amor a que nos referimos não é o amor comum; essa palavra desgastada que justifica tudo, até mesmo

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assassinatos. É notório que existem pessoas que dizem que mataram por amor. Então não é desse amor que a liturgia se vale, mas daquele amor que o Novo Testamento chama de “ágape”, ou mais de acordo com a língua grega, de agápe. Este termo foi usado no Novo Testamento não por acaso, pois há na língua grega outra palavra muito conhecida para falar do amor humano como ímpeto e pulsão que levam ao encontro do encontro, mas nem sempre para fazer o bem. Então agora estamos falando de “eros”, amor endeusado, mas profundamente humano e com frequente possibilidade de degringolar em abuso e exploração. Em meu livro O amor de Deus: teologia da redenção (Palavra & Prece Editora, 2012), tento mostrar que ágape consiste na autodoação incondicional, cuja fonte só


ao Filho. Se há um poder de cura na sentem motivadas a participar da liturgia liturgia, ele está na capacidade de o ser da Igreja. Sem responder a essa questão, humano que se sente amado reconstruir não podemos ter segurança de copiarmos sua vida como nova criatura. Essa criatura outros grupos que fazem da liturgia uma é fruto do amor que brota do Coração de espécie de show atrativo ou de momento Jesus, o Amado de Deus Pai, que se fez pontual de curas, quando sabemos que servo desprezado para que nós pudéssea cura como dom está em toda liturgia mos nos sentir amados como o Filho de bem celebrada. O amor de Deus é o motivo Deus. Por isso, a liturgia é cristocêntrica, central pelo qual há dois mil anos pesou seja, centrada em Jesus Cristo, para soas são capazes de arriscar a vida para que nós, ligados a Ele como um galho participar da Eucaristia dominical. Basta no tronco, possamos uma pequena certeza receber a mesma seiva dele agindo em nós e Sem o amor de Deus reiutilizada pelos padres mudando nosso ser a da Igreja antiga como partir da intimidade nando no coração dos metáfora do Espírito legítima que o amor ministros e de toda a asSanto. Então os sacracria para expandir-se, sembleia litúrgica, a ação mentos nos unem a para que a participaritual torna-se ritualismo Jesus como um galho ção na liturgia seja um ou pode decair na banase une ao tronco para dado garantido pela lidade. Só o amor de Deus sobreviver; assim tamexperiência do fiel, bém funciona nossa sonão uma imposição ou pode coordenar e ordenar brevivência espiritual. exigência de fora. nossas ações, sobretudo Precisamos de mais Com o terceiro aquelas exercidas no status um encontro para aprotema abordado na cado sagrado. A sacramenfundar o significado tequese litúrgica, eu talidade da liturgia exige do amor de Deus na desejo provocar todos que palavra, ação, gesto, liturgia como critério os leitores a fazerem fundamental. No enuma autocrítica de vestimenta litúrgica e tanto, podemos consua vida litúrgica. É espaço sagrado sejam incluir que, sem o amor preciso colocar o amor terlocutores de Deus, que de Deus reinando no de Deus, derramado é amor (cf. 1Jo 4,8) coração dos ministros em efusão em cada e de toda a assembleia liturgia, como o crilitúrgica, a ação ritual torna-se ritualismo tério fundamental de nossa participação ou pode decair na banalidade. Só o amor litúrgica. Que cada pessoa possa fazer um de Deus pode coordenar e ordenar nossas questionamento sobre sua motivação de ações, sobretudo aquelas exercidas no participar da liturgia. Que os ministros status do sagrado. A sacramentalidade da também se perguntem se é pelo amor de liturgia exige que palavra, ação, gesto, Deus que fazem sua ação ministerial ou vestimenta litúrgica e espaço sagrado por algum tipo de amor humano. É certo sejam interlocutores de Deus, que é amor que só o amor divino pode sustentar não (cf. 1Jo 4,8). Então é preciso que cada só a liturgia da Igreja, mas também nossa sinal sacramental da liturgia funcione participação ativa e frutuosa. No próximo como sinal de comunicação de Deus com encontro, ainda continuaremos com esse Seu povo e com cada fiel, dizendo: “Eu tema, para que possamos clarear melhor o amo tanto quanto amo o Filho amado”. esse critério que, a meu ver, é o fundaSem essa comunicação, a liturgia perde mento e a confluência de todos os outros. significado, tornando-se ação comum ou mera obrigação para com um Deus que é, Pe. Valeriano antes de tudo, amor. O amor não subjuga dos Santos Costa mas atrai e encanta. Doutor em Liturgia pelo Pontifício Penso que esse terceiro critério é de Ateneo Santo Anselmo, Roma. Professor adjunto na Faculdade de fundamental importância para nos perTeologia da PUC-SP guntarmos por que tantas pessoas não se

Arquivo pessoal

pode estar na natureza divina. A natureza humana tende ao amor, mas, por causa do pecado, tende também ao egoísmo. Por isso, para nós, o amor é domado por interesses e dificilmente chegamos à oblação total alcançada pelos mártires e pelos místicos nos momentos mais profundos de sua existência. Ágape não suporta ser domado por interesses pessoais, pois vê somente o outro como motivação e foco de atenção. É dessa forma que o Pai ama o Filho eternamente e d’Ele recebe a resposta eterna de amor de quem se reconhece amado e, por isso, devota ao Pai um eterno amor filial. Paulo (5-67) chama às vezes o Filho de, simplesmente, o Amado (cf. Ef 1,6). Para esclarecer o mistério da Santíssima Trindade como o Mistério do Amor, cabe-nos compreender o papel do Espírito Santo, tido por Santo Agostinho (354-430) como o próprio Amor que reina entre o Pai e o Filho eternamente. Nessa “dança” eterna do amor divino, a liturgia encaixa-se como o momento histórico de nossa salvação; momento em que nos é permitido entrar no movimento do amor de Deus e sentir em nosso ser o que Ele produz para a salvação da criatura humana. De modo concreto, a liturgia da Igreja chama esse sentimento de afeto filial, como podemos constatar em inúmeras orações do Missal Romano (orações que vieram da tradição antiga da Igreja e foram recuperadas pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II [1962-1965]). O afeto filial é o afeto que Jesus tem como resposta ao amor eterno do Pai. É esse afeto que a liturgia pede que Deus Pai conceda a todos os seres humanos, o que corresponde ao mesmo sentimento de Jesus, do qual Paulo fala na Carta aos Filipenses, quando quer mostrar que o Cristo se desprendeu de todos os privilégios da natureza divina para nos mostrar quanto um Deus humanizado ama os seres humanos e o cosmo que veio para salvar. Paulo começa o texto dizendo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo” (Fl 2,5). O sentimento de Cristo, portanto, é o afeto filial que Deus deseja para todos nós. Então a beleza e a ordem que devem reinar na liturgia são caminhos para que cada participante da celebração sinta o mesmo amor que Deus Pai dá eternamente

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Paulo Henrique Machado, fotomontagem MSA

R E P O R TA G E M

DA UTI PARA O MUNDO

As aventuras de Léca e seus amigos, série animada idealizada por Paulo Henrique Machado, paciente e residente na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo, torna-se realidade O OMME N E NS SAAGGE EI IRROO DDEE SSAANNTTOO AANN TT ÔÔ N I O

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APRENDIZ SEM LIMITES

O entusiasmo e o fascínio pelo cinema fizeram de Paulo um aprendiz sem limites. “Não tenho medo de tecnologia nem de aprender. Em 1992, ganhei meu primeiro

Paulo Henrique Machado, Flickr

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lema: “Força, perseverança e coragem” sempre inspirou Paulo Henrique Machado, de 45 anos, a sonhar e a realizar seus objetivos. Em menos de um mês, ele conseguiu, por meio do crowdfunding (ações pela internet de financiamento coletivo a pequenos projetos) os 120 mil reais necessários para a produção do episódio piloto de As aventuras de Léca e seus amigos (animação em 3D). Apaixonado pela sétima arte, ele criou e dirigiu o projeto autobiográfico que descreve e homenageia sete crianças dentro de uma UTI. Quando tinha um ano e três meses, Paulo sofreu paralisia infantil. Desde então, vive ligado a um respirador artificial, na UTI do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Sempre determinado, superou todas as adversidades. No próprio instituto, aprendeu a ler e a escrever, concluindo o Ensino Médio. Autodidata, há 21 anos, estuda informática e tudo o que se refere a softwares, especializando-se na área de audiovisual (plataformas 2D e 3D). Como designer, desenvolveu campanhas e websites para empresas e profissionais liberais na área da saúde. Com o objetivo de produzir curtas-metragens e sua série animada, especializou-se no programa 3D Autodesk Maya, e na concepção de roteiros pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). “A cada dia que passa, eu tenho novos desafios. O físico pode ter limitação, mas a mente não para de trabalhar, criar, desenvolver. O cinema é minha grande paixão e quero fazer parte dele”, afirmou Paulo. Após receber a notícia que o financiamento coletivo não apenas atingiu o valor mínimo dos custos da produção, como ultrapassou a meta, ele completou: “Estou uma alegria só. Agradeço a todos os que colaboraram de alguma forma para que meu projeto se tornasse viável. Tenho no cinema um grande companheiro; através dele, conheci até outras galáxias”, comemorou.

computador e tive de aprender a mexer sorealmente são, sem qualquer contorno de zinho. Para isso, fazia vários testes e, como culpa, caridade, ou ‘vitimização’”, alegou. resultado, eu o danificava. O Hospital das “Já temos doze episódios roteirizados, o Clínicas sempre me apoiou, cedendo seus storyboard do episódio piloto, o animatic técnicos. Eles arrumavam os computadores da vinheta de abertura, além das artes e eu os danificava, conceituais dos permas aprendia. Hoje sonagens e cenários tenho dois computaprincipais. Graças “Comece fazendo dores, que eu mesmo aos apoiadores, cono que é necessário, os montei. Também seguimos verba para conserto PCs de coproduzir a animação depois o que é possível, legas”, revelou. Ele em 3D desse piloto. e de repente você estará pretende fazer novos Com este material fazendo o impossível.” cursos para adquirir em mão, podemos novas técnicas, além começar a veicular (São Francisco de Assis de realizar um de esta ideia, procurar [1182-1226]) seus sonhos, que é canais e veículos de cursar faculdade de comunicação disposcinema. “Eu concluí o ensino médio e tos a realizar parcerias”, complementou. prestei as provas do Enem”, disse. O episódio piloto retrata a ida de Léco (Paulo) ao parque de diversões, onde, O PROJETO sem nenhum brinquedo adaptado a sua condição especial, aproveita sua jornaA série animada As aventuras de Léca da trocando seus cupons por chocolate e seus amigos mostra a infância de sete quente. Porém a atendente lhe dá o copo crianças com necessidades especiais, cheio, mas não aceita seus cupons. Léco pacientes do Hospital das Clínicas. “O vai retornando à fila e faz questão de programa quer transmitir uma mensagem entregar os cupons, para conseguir mais de inclusão e valorização das diferenças, chocolates! Essa e muitas outras histórias da forma o mais natural e genuína possíreais, como a ida ao circo, ao zoológico, a vel, isto é, por meio do tato, do diálogo visita de um famoso piloto de Fórmula 1 e, principalmente, expondo e encarando ao hospital, a aquisição de uma tartaruga as dificuldades existentes como elas de estimação, entre outras, farão parte da O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO Julho/Agosto d e 2 0 1 3

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R E P O R TA G E M primeira temporada da série, mostrando a riqueza de cada momento vivenciado por eles, verdadeiras aventuras. A verba será destinada à equipe e à estrutura que vão auxiliar Paulo em todo processo de produção em 3D, além da realização de uma dublagem de qualidade, da pós-produção do filme e de toda logística para que o produto final esteja em mão (autoração e gravação de DVD, capa, envios, entre outros componentes).

Eliana Zagui

As aventuras de Léca e seus amigos é uma homenagem às sete crianças que, assim como o cineasta, nunca conseguiram alta hospitalar, por conta das sequelas da paralisia infantil. Delas, a única sobrevivente é a protagonista do filme, Eliana Zagui, outras pessoas, por meio de palestras que de 39 anos, conhecida carinhosamente por fomos convidados a ministrar, por exemLéca. Tetraplégica, ela está internada na plo, na Semana de Inclusão, realizada pelo UTI há 37 anos, ao lado de Paulo. Senac, e na Feira Hospitalar da Sociedade Léca é escritora e artista plástica (pinta Brasileira de Humanização de Terapia Inquadros e escreve com a boca). Respirando tensiva (Sobrat)”, lembrou Paulo. com a ajuda de equipamentos, com o oriPara nossa reportagem, ele revelou que fício aberto no pescoço nunca prepara o matee a cânula da traqueosrial para proferir suas tomia, formou-se no palestras; as palavras “A grandeza ensino médio, aprensaem do improviso do do homem consiste deu inglês e também sentimento e do moitaliano, fez curso mento. “O que fazemos na sua decisão de ser de história da arte e é mostrar às pessoas as mais forte que a tornou-se pintora. Em possibilidades de lutar, condição humana.” 2012, lançou o livro mesmo que sozinhas. A Pulmão de aço: uma palavra desistir não faz (Albert Camus [1913-1960], vida no maior hospital parte do nosso viver; escritor e filósofo francês) do Brasil, em que narra já a dificuldade sim, e sua trajetória de vida. ela é bem-vinda, pois Segundo ela, após a publicação da significa desafios que temos de superar. obra, muitas pessoas acordaram para a Nunca podemos desistir de nossos ideais. vida. “Eu não tinha noção do efeito que Temos de lutar para alcançar os objetivos. o livro causaria. Recebi e ouvi muitos deEste é o nosso lema diário”, comentou. poimentos de situações simples e de até de tentativas de suicídio. A partir destes LIÇÃO DE VIDA relatos, vai nascer meu segundo livro, que será uma releitura sobre o que ele mudou Paulo e Eliana são os pacientes mais na vida das pessoas”, destacou. antigos do maior complexo hospitalar da América Latina. Ambos estão hospitalizaFORÇA DE VONTADE dos há quatro décadas, representando as últimas vítimas do surto de paralisia infan“Às vezes temos tristezas, afinal tetil no Brasil, no início da década de 1970. mos sentimentos, mas jamais desistimos. Nasceram antes da criação do personagem Somos conscientes de quanto ajudamos Zé Gotinha e da vacinação em massa que O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO

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Arquivo pessoal

SONHO + DETERMINAÇÃO = REALIZAÇÃO

erradicou a poliomielite do território brasileiro, em 1989. Também presenciaram o surgimento das primeiras unidades de terapia intensiva (UTI) para pacientes graves que, assim como eles, não podiam voltar para casa. Ambos passaram a infância, a adolescência e a vida adulta nos leitos, fazendo dos quartos de UTI seus lares. Cresceram brincando em meio aos aparelhos médicos e respirando com ajuda de pulmão artificial. Ao longo dos anos de internação, o cinema foi a companhia predileta de Paulo. Agora, depois de estudar muito, decidiu prestar uma homenagem ao companheiro que o levou para todos os lugares do mundo, por meio de seu projeto em 3D. ÉRAMOS SETE

Ele tinha um ano e três meses quando foi internado; ela, quase dois anos. Ambos foram encaminhados para o Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas, em um prédio que só cuidava de crianças infectadas pela poliomielite. Alguns pacientes tiveram alta, outros não sobreviveram. Pouco a pouco, mais pacientes foram chegando. Mesmo com o atendimento a outras enfermidades, uma ala especial do “prédio da pólio” foi reservada para as sete crianças com poliomielite que, ainda, não tinham liberação médica para voltar a suas residências. No mesmo período, a especialidade médica chamada “intensivista” já havia nascido e


MUNDO DE POSSIBILIDADES

SOBRE A EQUIPE

Paulo Henrique Machado é idealizador, produtor de curtas-metragens e criador da série animada em 3D As aventuras de Léca e seus amigos. Bruno Saggese é cartunista e animador. Concebeu e dirigiu as animações Mano

invisível e Os Três Porquinhos (finalista do Prix Jeunesse IberoAmericano 2011). Atualmente, está produzindo Romilda, seu terceiro curta. Como cartunista, expôs em Salões de Humor no Irã, na Ucrânia e no Salão Internacional de Humor de Piracicaba. Foi colaborador na revista MAD e em livros didáticos relacionados à sociologia. Durante três anos, ministrou oficinas de história em quadrinhos e animação na Fundação Casa. Coproduziu os roteiros e os storyboards de As aventuras de Léca e seus amigos. Sônia Avallone é jornalista e professora no curso superior do Senac, em que leciona disciplinas relacionadas a redação e roteiro. Fundadora da Galática Comunicação e Marketing, atua na produção executiva e na viabilização de projetos sociais voltados à arte e à cultura. Como professora de roteiro, conheceu Paulo e, a partir desse diálogo, teve início a materialização do projeto.

Bernardete Melo Repórter

Paulo Henrique Machado, Joel Silva (Folhapress)

Sempre atentos, Eliana e Paulo descobriram um mundo repleto de possibilidades, mesmo que dentro de um quarto na UTI. Paulo recorda-se que assistiu pela televisão, em branco e preto, à chegada do homem à Lua e, ‘aos risos’, que o walkman lhe possibilitou ouvir as próprias músicas sem precisar “incomodar” mais ninguém. O computador e a internet permitiram-lhes que fizessem cursos on-line. Eliana, com a boca, aprendeu a pintar lindos quadros. Já Paulo descobriu tudo sobre programas de edição e design, os primeiros passos para os trabalhos que desenvolve nos dias atuais. Os avanços médicos e a tecnologia voltada para a comunicação também foram melhorando a vida deles. Os respiradores

mais leves permitiam deslocamento para outras áreas do hospital e até externas. “Graças a um respirador novo, consegui, pela primeira vez, dormir fora do HC. Também fui à formatura de uma grande amiga, que se graduou em psicologia. Acompanhar a colação de grau, ver aquela festa e ainda dormir em outro ambiente foi simplesmente demais”, contou Eliana. Já Paulo teve a possibilidade de conferir de perto a “tela grande”, em uma sessão de cinema em um shopping de São Paulo. Com alegria, ele disse que já recebeu muitas visitas ilustres, entre as quais a de Carlos Saldanha, codiretor de A era do gelo. “Eu disse a ele que ainda iria fazer meu próprio filme em 3D, com bonecos de massinha, todos deficientes físicos. Hoje, essa é uma realidade que conquistei e que, em breve estreará”, finalizou.

Arquivo pessoal

aquele grupo de pacientes mirins passou a receber cuidados permanentes de diversas especialidades médicas em um só local. O tempo foi passando e, a cada ano, uma das camas ficava vazia. “No início, éramos sete. Agora restamos apenas eu e a Eliana. O que mais sinto saudade é das festas juninas. Naquela época, todos nós vestíamos roupas caipiras, as meninas tinham os cabelos trançados, e todos dávamos risadas com as bandeirolas e as cantigas típicas que montavam para gente.”

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A IGREJA NA HISTÓRIA

Ciência e fé

O CASO GALILEU

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á três pontos muito importantes para compreendermos os acontecimentos que se desenvolveram na história da Igreja nos anos 1600. O primeiro deles foi tratado em artigo anterior, quando discutimos acerca do tema: “Igreja, política e sociedade: a mentalidade e a posição da Igreja no absolutismo monárquico”. Outro ponto será tratado no próximo mês (as ideias filosóficas e as artes no Barroco). Agora consideraremos a origem de um preconceito que infelizmente persiste até nossos dias, a ideia de que a Igreja (e, portanto, a fé) é inimiga da ciência. Quando, na verdade, a ciência evoluiu em grande parte por esforço da Igreja e de homens de fé; essa ruptura só se deu posteriormente, com os iluministas no século XVIII e, em grande parte também, por culpa de homens da Igreja que, movidos por outros interesses que não a verdade, perseguiram cientistas e pensadores e proibiram a divulgação de ideias, por exemplo, no caso Galileu Galilei (1564-1642). Mas por que estes três itens (política e sociedade, ciência e fé, e filosofia e arte) são importantes para entendermos bem a caminhada da Igreja naquela época? Porque constituem o cenário, o O OMME N E NS SAAGGE EI IRROO DDEE SSAANNTTOO AANN TT ÔÔ N I O

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Galileu demonstrando as novas teorias astronômicas na Universidade de Pádua, Felix Parra


contexto cultural e mental de uma época; enfim, são como que as lentes pelas quais os homens daquela época viam e interpretavam os acontecimentos, bem diferentes das nossas. Daí a necessidade de percebê-las. Olhando para a história, fica evidente que a ciência passou, e sempre passa, por desenvolvimentos, evoluções, rupturas, mudanças de paradigmas (modelos). Se, por determinado tempo, era humanística (estudos clássicos de filosofia, retórica, literatura), depois de Isaac Newton (1642-1727), Galileu Galilei e Nicolau Copérnico (1473-1543), a ciência tornou-se física e matemática. Atualmente, falar em ciências é o mesmo que falar no paradigma das ciências biológicas; estas são as “donas da verdade” do momento, para as quais vão grandes somas de investimento. É interessante pensar na questão dos investimentos em ciência, porque expressam que concepção de ciência está em voga. Pense-se, pois, que, no tempo de Galileu, o salário de um professor de matemática era a metade do que ganhava um professor de filosofia; a seguir, entenderemos o porquê. No século XVII, viveram homens que desenvolveram uma nova forma de abordar a realidade e a natureza, mudando os rumos da ciência de tal modo

que essa mudança ficou conhecida como Revolução Científica (séculos XVI ao XVIII). Mas, ao contrário do que muitos pensam, cientistas como Copérnico, Galileu, Johannes Kepler (1571-1630),1 Newton e vários outros eram movidos à ciência pela fé. Eles se insurgiam contra um método e, de certa forma, contra a classe dos professores das universidades que defendiam tal método (afinal, essa posição social lhes dava prestígio e pão), e não contra a fé. Desde o Renascimento (séculos XIV a meados do século XVI), passou-se a valorizar o mundo como criação e o homem como criatura especial nesse mundo. Posteriormente, o mundo sensível passou a ser observado de outro ângulo, analisado, decomposto, mensurado e não simplesmente deduzido ou pressuposto. Estamos em uma disputa, no fundo, entre filósofos e cientistas, entre métodos diferentes pelos quais se busca o conhecimento da realidade. Segundo Guido Zagheni, especialista em Igreja Moderna e Contemporânea, “até o século XVI, o saber era geralmente transmitido através de um texto universitário. O texto era acompanhado de um ‘comentário’ do mestre (...). Ninguém duvidava daquilo que era dito”.2 Para ensinar nas universidades, os mestres pautavam-se em três princípios: ratio, experientia, auctoritas. A ratio (razão) era uma espécie de dedução lógica, isto é, chegava-se a uma conclusão a partir de premissas estabelecidas. A experientia era o ponto principal; significava a tradição, um conhecimento já dado ao longo do tempo, no qual se baseavam os pensadores para defender suas ideias; sobre a tradição havia consenso unânime. Por fim, a auctoritas (autoridade) era a dos homens e/ou obras que desfrutavam o prestígio da verdade, por exemplo, a “Física” de Aristóteles.3 Até mesmo as realidades

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A IGREJA NA HISTÓRIA científicas eram consideradas dentro desse esquema medieval. Não foi fácil afastar-se dele, porque era o habitat do saber. Um exemplo: se Aristóteles (384-322) tivesse dito que o Sol girava em torno da Terra, então isso era verdade incontestável, pelo simples fato de que ele era uma autoridade da tradição e, portanto, o que dizia era sempre verdade. Pode parecer engraçado, mas era bem assim em ciência. Quando havia alguma dúvida sobre algo, não se faziam observações ou experiências que comprovassem uma hipótese, mas se verificava o que as autoridades da tradição haviam afirmado sobre aquele fenômeno. Nem mesmo Copérnico libertou-se totalmente desse esquema, ao descobrir (por dedução) que era a Terra que girava ao redor do Sol, e não o contrário, e ele o fez dentro do método de ciência medieval, apesar de ter-se valido de observações. Em seu tempo, Galileu deu um pontapé imenso para abertura para a nova metodologia científica, mas “em muitos aspectos, Galileu continuaria a ser um homem medieval. Sua crença no pensamento desse período, na autoridade da Igreja, e mesmo nos contos de fadas literários, jamais foram abalados por sua crescente sofisticação científica (...). Em sua mente, o medieval e o moderno coexistiam”, afirmou um cientista biógrafo de Galileu.4 Para se ter uma ideia, Galileu calculou onde ficava e qual a forma do Inferno de Dante (uma ficção literária), considerado uma auctorictas medieval incontestável. Aproveitando-se das descobertas de Galileu, Newton (considerado o pai, entre tantos, da ciência moderna) foi além. Mas só para constar, e isso não é pouca coisa, o grande e maior pontapé de Galileu foi o uso da matemática, a linguagem precisa da matemática para expressar os fenômenos naturais. Ele dizia que o livro da natureza estava escrito [por Deus] na linguagem matemática. Isso lhe permitiu que inventasse instrumentos para melhorar nossa observação do Universo. Mas, em sua época, a matemática não tinha muita importância. Na Universidade, era um mero apêndice da astronomia. Mas como era este novo método científico? Jostein Gaarder, escritor norueguês, esclarece muito bem em que consiste este novo, esta mudança: “Tratava-se sobretudo de investigar a natureza por meio dos O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO

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próprios sentidos. (...) O princípio vigente drenagem de terrenos, entre outros. Assim, agora era o de que a investigação da natufoi ganhando cada vez mais a simpatia reza devia se construir fundamentalmente de nobres e de homens abertos às ciênna observação, na experiência e nos expericias. Galileu conseguia unir perspicácia, mentos. Chamamos este método de método inteligência, habilidade técnica e certo empírico. (...) [E isso] significava pura e traquejo político. Anos depois, foi nomeado simplesmente que nosso conhecimento professor de matemática na Universidade das coisas tem sua origem em nossas próde Pádua, um grande centro de referência prias experiências, e na época, onde ininão em pergaminhos ciou um diálogo com Como conclusão do desenroempoeirados ou em Kepler, desenvolvendo lar dramático do processo de quimeras”.5 Em outras o telescópio e as obserGalileu, só podemos dizer o palavras, o experimenvações dos astros. Com que já dissemos sobre as reto vinha primeiro, a esse instrumento, foi lações da Igreja com o Estado teoria depois. Aí repossível observar meabsolutista. Toda vez que se sidia toda a diferença lhor o Universo; desidentifica com uma cultura, entre o método das cobriu manchas no Sol, universidades e o mécrateras e montanhas com uma concepção filosótodo da nova ciência na Lua, quatro luas fica ou com determinado que se desenvolveu de Júpiter, o estranho “método”, a Igreja passa por no seio de associações formato de Saturno e apuros, pois a realidade é tão chamadas academias. percebeu que as mesfluida e os tempos passam mas leis vigentes na rapidamente, de modo que GALILEU E SEU Terra também regiam logo uma ou outra concepção PROCESSO o espaço celeste, o fica defasada. Só a Palavra que não era crível até de Deus não passa; por isso, Galileu Galilei nasentão. apegar-se a determinada ceu em Pisa (Itália), Em 1610, Galiestrutura temporal e ainda em 15 de fevereiro leu escreveu o célequerer justificá-la com as de 1564 e viveu por bre trabalho Sidereus longos 77 anos. Três Nuncius (Mensageiro Escrituras pode fazer que se anos antes de morrer Estrelado), em que cometam erros bárbaros e ficou completamente fez uma afirmação vergonhosos cego. Na juventude, “escandalosa” para a queria apenas desfruépoca: “As leis terrestar a vida e ter o dinheiro necessário para tres aplicam-se aos céus”, o que começou isso, vivendo à sombra de suas invenções. a lhe causar problemas com clérigos que Sua paixão era a matemática de Euclides lecionavam astronomia, mormente os jee a física, que conheceu por meio dos suítas. Muitos se voltaram contra ele, “os conceitos de Arquimedes. Seu pai era aristotélicos, os jesuítas, as autoridades músico e desejava que o filho se formasse papais, seus inimigos, seus credores. (...) em medicina, mas Galileu estava muito Galileu atraía para si mesmo mais inimialém de seus professores, pelos quais não gos desnecessários”.6 Sua personalidade escondia seu desdém. Sem vocação para forte, sua mania de polemizar e o fato de a medicina, deixou Pisa sem o diploma e considerar-se muito mais inteligente e foi viver com a família em Florença. Em sábio que todos os outros lhe trouxeram 1589, tornou-se professor de matemática problemas, mas sua visão de ciência e seu na Universidade de Pisa, mas sofreu o método atraiu o apoio de muitas pessoas. desprezo da comunidade dos mestres que Em 1611, ele foi convidado a comparecer desprezava desde quanto fora aluno. à Corte Papal para demonstrar suas descoRevelando-se um verdadeiro gênio, sua bertas. O grande problema foi-lhe causado fama espalhou-se e seus inventos também, pelos inimigos aristotélicos (que nutriam entre os quais o termômetro e o compasuma ponta de inveja pelo sucesso de suas so geométrico e militar, que calculava a obras), os quais envolveram uma questão trajetória das balas de canhão, bombas de teológica no meio das discussões, afirmando


Galileu Galilei mostrando seu telescópio a Leonardo Donato, Henry Julien Detouche

dizer o que já dissemos sobre as relações da Igreja com o Estado absolutista. Toda vez que se identifica com uma cultura, com uma concepção filosófica ou com determinado “método”, a Igreja passa por apuros, pois a realidade é tão fluida e os tempos passam rapidamente, de modo que logo uma ou outra concepção fica defasada. Só a Palavra de Deus não passa; por isso, apegar-se a determinada estrutura temporal e ainda querer justificá-la com as Escrituras pode fazer que se cometam erros bárbaros e vergonhosos. É lógico que tudo precisa passar por um crivo, mas as formas históricas e culturais não garantem por si mesmas a fidelidade da Igreja ao Evangelho, como se pensou muitas vezes. Teria sido tão mais fácil e inteligente se o amor pela verdade se sobrepusesse aos orgulhos feridos. Fica para nossa reflexão o que afirmou Galileu em uma de suas defesas, ao expor a mais profunda relação entre a Bíblia e a ciência, pensamento assumido pelo João Paulo II (1920-2005) para falar deste tema: “Eu acredito que a autoridade das Sagradas Letras tivesse tido em mira apenas persuadir os homens daqueles artigos e proposições, que, sendo necessários para a salvação deles e superando todo discurso humano, não podiam tornar-se críveis nem por outra ciência nem por outro meio, senão pela boca do Espírito Santo. Mas, que aquele

mesmo Deus que nos dotou de sentidos, de discurso e de intelecto, tenha querido, preterindo o uso destes, nos dar por outro meio as informações que podemos conseguir por aqueles, não penso que seja necessário crê-lo; sobretudo naquelas ciências das quais uma parte tão pequena e em conclusões tão dispersas se lê na Escritura. Do contrário, os escritores sagrados não teriam escrito tão pouco em comparação com as infinitas conclusões profundíssimas e admiráveis contidas na ciência da astronomia”7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cf. artigo sobre Johannes Kepler na seção “Ciência e Fé”, do Mensageiro de Santo Antônio (junho de 2013). 2 ZAGHENI, Guido. Idade moderna: curso de história da Igreja. São Paulo: Paulus, 1999. p. 209. v. 3. 3 Idem, ibidem, p. 210. 4 STRATHERN, Paul. Galileu e o sistema solar em 90 minutos. São Paulo: Jorge Zahar, 1999. 5 GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 211. 6 STRATHERN, Paul, op. cit, p. 70. 7 GALILEI, Galileu. Ciência e fé. São Paulo: Unesp, 2009. 1

José Tarcísio de Castro

Arquivo pessoal

ser o sistema heliocêntrico copernicano defendido por Galileu uma heresia por contrastar com a cosmovisão expressa na Bíblia, tratando-se, portanto, de uma heresia. Então, ele passou a ter problemas com a Inquisição. Uma homilia foi feita para satirizá-lo: “Homens de Galileu (parodiando o Evangelho que dizia: homens da Galileia), por que estais aí a olhar para os céus?” A repercussão foi tanta que, em 1616, Galileu foi proibido de defender o sistema copernicano; porém, em 1623, após a eleição do amigo Maffeo Barberini para papa Urbano VIII (1568-1644), recebeu a permissão de escrever sobre as duas cosmologias rivais. No entanto, ignorando a indicação da Igreja para que não mais apresentasse a teoria copernicana como se fosse uma teoria verdadeira, publicou em 1632 o Diálogo dos grandes sistemas. Por causa de sua desobediência, em 1633, foi declarado suspeito de heresia. Em uma célebre situação, ele negou suas descobertas, murmurando ao final: Eppur si muove! (“Mas que a Terra se move, se move!”). Nesse mesmo ano, recebeu a pena de prisão perpétua domiciliar, vivendo ao redor de Florença pelo resto da vida. Seu último tratado, sobre matemática foi publicado na Holanda (fora dos limites da Inquisição), em 1638, quatro anos antes de sua morte. Como conclusão do desenrolar dramático do processo de Galileu, só podemos

Bacharel em Teologia Pastoral

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Evangelhs DominicaiS C O M E N T A D O S

Ele enviou-os dois a dois, James Tissot

7 DE JULHO

14o DOMINGO DO TEMPO COMUM Lc 10,1-9 A vossa paz repousará sobre ele

A

missão parte de Israel e vai até o fim do espaço; a missão parte de Jesus e vai até o fim dos tempos. Só depois é que virá o Senhor: “Mas primeiro é preciso que o Evangelho seja anunciado a todos os povos” (Mc 13,10). A finalidade da missão não é vencer o mal (v. 17ss.), mas, sobretudo, que o nome dos discípulos, no nome de Jesus, seja escrito nos céus (v. 20), isto é, no próprio Deus. Jesus veio para nos dar a alegria de entrar na Sua comunhão de Filho com o Pai (v. 21s.). O discurso missionário em Lucas tem uma abertura: “A messe é grande” (v. 2), isto é, toda a humanidade; quem conhece o coração do Pai não pode não ir aos irmãos e às irmãs. Tem ainda uma imagem inicial, que dá “cor” à missão: “Cordeiros no meio dos lobos” (v. 3), sob a bandeira do pastor que se fez cordeiro sacrificado. Vêm, na sequência, quatro proibições que descrevem a missão na condição da pobreza (v. 4); as precisões a respeito do anúncio do Reino: “Dizei”, “ficai”, “comei”, “cuidai”, “dizei” (vv. 5-9). Este anúncio, necessário e urgente, acontece em meio à contradição e à rejeição (vv. 10-15). O conjunto conclui-se deixando claro que a missão dos discípulos é a mesma de Jesus, que foi enviado pelo Pai (v. 16). A humanidade é roça madura para acolher a salvação. Onde há rejeição, há um “ai de vós” parecido com o de Lucas 6,24-26 (no contexto das bem-aventuranças). Não é uma ameaça, mas uma forma extrema de anúncio. O anunciador diz literalmente: “Ai de vós”; na verdade, diz: “Ai de mim por vós!”; denunciando o mal, sofre com quem o rejeita, e, O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO

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assim, faz a oferta suprema da salvação, que é feita a todos (também aos que a rejeitam) sem condições. Foi o que fez o Senhor na cruz, rejeitado por todos! A perdição de quem rejeita cai sobre quem é rejeitado. É o drama do amor não amado. Quem ama e não é amado não deixa de se oferecer. Este é o próprio horizonte da salvação, que não é negada a ninguém, mas dada a todos, sem exceção. Vê-se, aqui, a seriedade do dom e a gratuidade do amor de Deus, que se perde por todos os que se perdem! É o “terceiro grau de amor” dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola (cf. Exercícios, n. 167). É o desejo de escolher a pobreza, a loucura da cruz, para se assemelhar ao Senhor amado. Este assemelhar-se ao Senhor já é missão. É a lâmpada acesa que ilumina (cf. Lc 8,16; 11,33). É aquele estar-com-Ele (cf. Mc 3,14; 8,2) que transparece diante dos irmãos e das irmãs. É aquele estar unidos à Sua cruz que salva o mundo (cf. 2Cor 4,7-12; 6,10; Cl 1,24). Toda vez que avaliamos a missão, devemos levar em conta essas palavras de Jesus. E só pode fazer esta avaliação, este discernimento, quem deseja tornar-se semelhante a Ele na pobreza (cf. 2Cor 8,9) e no esvaziamento (cf. Fl 2,5-11). Na volta da missão (cf. Lc 10,17-20), Jesus revela Seu sentido último. Só conhecemos com toda a clareza o caminho


14 DE JULHO

15o DOMINGO DO TEMPO COMUM Lc 10,25-37 E quem é o meu próximo?

N

o fim da missão dos discípulos, tem-se a revelação da relação Pai-Filho aberta aos discípulos (cf. Lc 10,21-24). Ao amor do Pai que desce à terra no

O bom samaritano, James Tissot

quando chegamos ao seu fim! Se a “cor” da partida era a rejeição, a cor da volta é a alegria. Se “a messe é grande” (v. 2), agora, nas coxilhas cobertas de grão, “tudo canta e grita de alegria” (Sl 65[64],14). A alegria dos discípulos contagia Jesus (vv. 17-20), pois o Seu conhecimento de Filho foi revelado aos pequenos (v. 21ss.). Esta alegria, aliás, transforma-se em bem-aventurança para os discípulos, pois os seus olhos veem aquilo que os seus ouvidos ouvem: a realização de toda promessa e profecia (vv. 23ss.). Fala-se três vezes de alegria, e por três motivos: Primeiro: os discípulos se alegram pela vitória contra Satanás que se realiza hoje, agora, na sua missão. A história presente é desdemonizada. A luta final entre Miguel e o Dragão (cf. Ap 12,7-12; Dn 12,1-3) acontece agora na obra de Jesus, que os discípulos levam adiante no Seu nome e sob o Seu olhar! Segundo: Jesus especifica que a missão não é só vitória contra Satanás, mas também retorno à condição “originária” do paraíso, em que o ser humano retoma o seu papel de senhor-cuidador da criação. A narração do paraíso, mais do que descrição de um mundo passado sem males (Deus viu que era bom – cf. Gn 1), é sonho do mundo futuro que Deus quer nos dar (novos céus e nova terra – cf. Ap 21,1). Nenhum mal, nenhum veneno, nem mesmo a morte, é capaz de danificá-lo e envenenar sua vida (v. 19; cf. Sb 1,14; 2,14). Terceiro: a missão não é só vitória sobre o mal e retorno ao paraíso; a missão é, sobretudo, “inscrição” do nosso nome (das nossas pessoas e das nossas vidas) no livro da vida, em que se registra a história do povo de Deus (v. 20; cf. Ex 32,32ss.; Sl 69[68],29; Is 4,3; Fl 4,3; Hb 12,23; Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12; 21,27). É a lista daqueles e daquelas que fazem parte da família! Os nomes daqueles e daquelas que foram enviados no Seu nome e cumpriram a Sua missão são, a pleno título, inscritos no céu, quer dizer, em Deus, como Jesus, o primeiro enviado. Na verdade, participam daquela relação inefável (que as palavras não conseguem dizer) entre o Pai e o Filho, pois são tornados filhos do Pai no Filho eterno que, agora, caminha entre Seus irmãos e Suas irmãs pelas searas do mundo. Não somos mais nem “estrangeiros nem hóspedes”, mas “concidadãos dos santos e familiares de Deus”, para sermos Templo santo do Senhor, “para vir a ser morada de Deus por meio do Espírito” (Ef 2,19.22). Não só somos chamados, mas somos, de fato, filhos e filhas de Deus (cf. 1Jo 3,1). O “alegrai-vos” de Jesus aos discípulos lembra o “alegra-te” do anjo a Maria (cf. Lc 1,28). Ela se alegra porque concebeu o Filho do Altíssimo (cf. Lc 1,47); eles entraram com Jesus no seio do Pai e podem dizer, n’Ele e com Ele, Abbá, quer dizer, “Pai”! Finalmente, aparece clara a finalidade última da missão: tornar-nos perfeitamente semelhantes ao Filho! O verdadeiro beneficiário da missão é o missionário, que se torna plenamente filho/filha.

O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO Julho/Agosto d e 2 0 1 3

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