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VENENO À MESA A HISTÓRIA DE UMA CIDADE SOB O DOMÍNIO DO MEDO
O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO
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SUMÁRIO
18 REPORTAGEM
Veneno à mesa Uma cidade 32 sob domínio OS DOISo LIVROS DE DEUS Cientificismo dos agrotóxicos o empobrecimento do e do medo conceito de ser humano
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EDITORIAL
Uma cidade sob o domínio do medo
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BUSCANDO VERDADEIRAMENTE A DEUS
ENTENDENDO A BÍBLIA
Vocação profética – Abraão, Sara, Moisés, Samuel, Elias e Eliseu
Olhando em uma nova direção
34 A redescoberta JMJ RIO 2013
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SANTO ANTÔNIO HOJE
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CATEQUESE LITÚRGICA
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Uma casa sobre a árvore
Amor – Critério fundante da liturgia A IGREJA NA HISTÓRIA
Período Barroco – Conflitos, arte e filosofia EVANGELHOS DOMINICAIS COMENTADOS
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COM A PALAVRA PE. ZEZINHO
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OS DOIS LIVROS DE DEUS
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MOMENTO LITÚRGICO
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CERTAS PALAVRAS
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ESPAÇO DO LEITOR
do essencial
A graça que ninguém entende
O Estatuto do Nascituro – Aborto, ciência e religião
Ser padre e ser consagrado na Igreja pós-conciliar
A força revolucionária do amor
12 Cheiro de THEOBLOG
ovelhas
EDITORIAL
UMA CIDADE SOB O DOMÍNIO DO MEDO entrarmos em contato com frei Gilvander, soubemos que a situação na localidade é muito mais grave do que o imaginado. Além da questão do uso excessivo de agrotóxicos, a cidade é marcada pelo medo. Quase ninguém toca no assunto. As pouquíssimas vozes que ousam levantar a questão são ameaçadas. Em 2004, três fiscais do Ministério do Trabalho e o motorista foram assassinados quando verificavam a situação dos trabalhadores expostos aos agrotóxicos. Até hoje, segundo o Ministério Público, os mandantes continuam impunes. Ninguém questiona o porquê de a cidade deter um dos mais elevados índices de câncer entre a população mundial. A construção de um hospital de referência na localidade tornou-se folclore, diante do estado de quase abandono do único hospital municipal existente. Nossa repórter Silvia Valim, enviada especial a Unaí, ao levantar informações e buscar entrevistas, foi ameaçada de morte. O resultado desse minucioso trabalho está na seção “Reportagem”. Com o título “Veneno à mesa”, o texto mostra o uso indiscriminado dos agrotóxicos, bem como suas consequências para a saúde dos trabalhadores rurais (evidenciado no elevadíssimo índice de câncer entre a população) e, principalmente, no medo instaurado na cidade, marcada pela chacina dos funcionários do Ministério do Trabalho e pelas constantes ameaças às vozes que ousam denunciar a situação, em especial frei Gilvander. Confiram nesta edição essa história marcada por veneno, mortes, ameaças e muito, muito medo.
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A todos os leitores, uma excelente leitura!
Frei Wilmar Villalba Ortiz
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ecentemente, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou dados que apontam uma melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) no Brasil nas últimas duas décadas. Tais informações envolvem aspectos de saúde, educação e renda. De um indicador de “muito baixo” em 1991, chegou-se a “alto” em 2010. Este é um sinal de que a desigualdade social vem diminuindo por meio de uma maior distribuição de renda em um país tradicionalmente concentrador de suas riquezas em mãos de poucos. No entanto, há muito ainda para se avançar, principalmente nas regiões mais afastadas dos grandes centros. Um dos indicadores desse desenvolvimento diz respeito à saúde. Vida longeva e saudável contribui para a elevação do índice. Nesse aspecto, o Brasil apresentou um forte desenvolvimento, classificado como “muito alto”. Por isso, chamou a atenção de nossa equipe a denúncia feita por frei Gilvander Moreira, um frade carmelita, sobre a alta incidência de câncer na cidade de Unaí, em Minas Gerais, considerada uma das mais elevadas taxas do mundo. Segundo investigações de uma comissão da Câmara dos Deputados, os altos índices devem-se ao intensivo uso de agrotóxicos nas lavouras de feijão na região e à precariedade na qual estão submetidos os trabalhadores dessas lavouras, que trabalham basicamente sem nenhuma proteção contra os pesticidas. Após a revelação do uso intensivo de agrotóxicos, esse mesmo frade produziu um vídeo denunciando a contaminação do feijão, em que mostra o produto totalmente inapropriado após cozido sendo usado nas escolas do município. Processado pela empresa produtora do feijão, ele chegou a ser preso por ordem da Justiça local por negar-se a retirar o vídeo de uma rede de compartilhamento. Ao
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BUSCANDO VERDADEIRAMENTE A DEUS
Olhando em uma nova direção Como se faz um monge (parte 15)
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a semana seguinte à minha profissão solene, um ancião da comunidade pediu-me que eu fosse seu confessor. Começou assim uma maravilhosa amizade de visitas semanais à enfermaria para falar com ele, durante mais de dez anos (até eu me mudar dos Estados Unidos para o Brasil. Nossas reuniões eram sempre “confissão e mais alguma coisa”); às vezes, ele me mostrava fotos de seus antepassados escoceses e irlandeses (lembro-me de uma foto de seu pai com um uniforme de trabalho da ferrovia canadense); às vezes, recontava momentos aventureiros de seu passado; às vezes, aparecia com um pequeno estoque de doces (todos os monges gostam de doce); às vezes, ele perguntava minha opinião sobre algum ponto de teologia.
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De todas as centenas de conversas que tivemos, eu me recordo de quando ele me perguntou se meu pensamento mais frequente era o desejo do céu. Eu corei, ao menos interiormente, porque acreditava que, como monge, o céu era o lugar para onde meus pensamentos deveriam acorrer com mais frequência. Embora constrangido, respondi sinceramente, acrescentando que gostaria que fosse assim, mas que esse não era o caso. Ele deu risada e disse que, quando tinha minha idade, esse não era seu caso. “Mas, então, como foi que aconteceu”, perguntei-lhe. “Houve algum momento em particular, identificável, ou simplesmente foi algo gradual do qual você se deu conta após ter acontecido?” “De fato”, ele disse, “houve um momento em particular. Um dia, eu estava rezando, ou lendo, ou
só pensando (não me lembro ao certo) e, de repente, senti uma mão em meu pescoço e alguém o torcendo. De repente, eu estava olhando em outra direção. Até então, sempre olhara para este mundo. Mesmo quando olhava para o futuro, era uma questão de algum desejo para algo deste mundo ou algum medo sobre algo que poderia acontecer neste mundo. Mas, desde aquela experiência, meu olhar está no futuro. Posso ver o céu a distância e eu o quero. Não é que me esforce em pensar sobre o céu. É só que eu estou sempre o desejando”. “Quantos anos você tinha, padre, quando isto aconteceu?” “Uns sessenta”. Eu arquivei aquela conversa em minha memória e acho que ela nunca me deixou. Nós nunca esquecemos algumas conversas. Nesse caso, não quero apenas
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dizer que sempre conseguia me lembrar, que sempre a podia evocar na tela da memória quando quisesse. Quero dizer algo mais do que isso. De alguma forma, aquela conversa sempre permaneceu viva em mim, a possibilidade de que padre George apresentou de verdadeiramente ter o coração fixo em Deus e na vida eterna. Duas palavras, sobretudo, têm ecoado em mim no decorrer dos anos: “céu” e “sessenta”. Uma coisa que me deu esperança era que padre George e eu éramos “farinha do mesmo saco”. Ele não era o monge santo clássico, e eu não era o monge
santo clássico. Ele tinha algo de ranheta e eu tinha o restante. Ele era muito sensível, e eu era muito sensível. Então, para mim, pareceu como o desejo do céu, este “buscar as coisas do alto”, o “desejo de se dissolver e de estar com Cristo”, a “habitação interior no céu” (Conversatio nostra in coelis est) – todas essas citações do grande São Paulo (5-67) poderiam porventura ser o destino, a “porção”, não apenas do monge extraordinário, mas de todo monge. Poderia representar um passo natural na evolução orgânica do monge. A única maneira O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO Setembro d e 2 0 1 3
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de descobrir seria se esforçando por sobreviver até a idade de “uns sessenta”. Isto eu consegui fazer. Ao escrever este artigo, estou prestes a completar 64 anos. Há tremendos benefícios: eu consigo pegar o bondinho do Pão de Açúcar pela metade do preço; consigo meu assento nas viagens de avião antes dos passageiros que têm vastas quantias de milhas. As pessoas começam a se levantar para ceder seus lugares para mim no transporte público. Porém, mais do que tudo isto, o melhor de tudo isto, é que alguém (Alguém) torceu meu pescoço também, talvez não tão completamente como no caso de padre George, talvez não em um momento tão claramente definido. Mesmo assim, estou olhando em outra direção. Meu antigo parceiro de conversas da enfermaria (há muito tempo partido para a casa que tão ardentemente desejava durante seus últimos trinta anos de vida) deve estar intercedendo por mim. Talvez vocês estejam se perguntando como é ter um pescoço permanentemente torcido? Pode parecer doloroso para alguém que não tenha passado pela experiência, mas na verdade, é um alívio. Em primeiro lugar (embora não seja o mais importante), os sonhos irrealistas de realização cessam. Você simples e pacificamente sabe que não produzirá nada surpreendentemente glorioso. O trabalho decente e honesto que você tem feito até agora (o que você tem feito e se acostumado em fazer) vai continuar fazendo. Você não tem de se preocupar em dar à luz um Guerra e Paz, de Tolstoi (1828-1910), ou uma Nona Sinfonia (1770-1827), de Beethoven, ou uma Pietà, de Michelangelo (1475-1564). Se essa criança não nasceu até os seus sessenta, então não é você quem a dará à luz. O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO
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À medida que as ilusões derretem, as maravilhas genuínas aparecem. Outras pessoas, sem mudar nada, assumem uma nova dignidade e uma nova beleza a nossos olhos O mesmo é verdade no nível moral. Se tem tido de lutar contra a impaciência ou a melancolia ou consumismo até agora e não teve sucesso em transcendê-los, você pode ter certeza: eles serão companheiros de viagem até o fim. Autoconhecimento
e oração vão diminuí-los aos poucos, aplainarão gradativamente seus contornos e o farão mais cuidadoso em não ferir os sentimentos dos outros com suas fragilidades pessoais. Mesmo assim, suas fraquezas vieram para ficar, pelo mesmo espaço de tempo que você veio para ficar. Isso ocorre também no nível espiritual. Mais ou menos por volta dos sessenta, o monge (e muitos outros, com certeza) terá a experiência de estar no fim da jornada de sua vida, de ver sua vida toda como um todo já completo, como terminado, como passado. Nessa experiência, não haverá nada para almejar, em termos humanos; tudo será visto como “já acontecido”. Isto possibilita uma avaliação pacífica, objetiva de todo o espectro da vida de alguém. Pacífica, objetiva e humilhante, pois o monge vê quão verdadeiramente imperfeita e pobre sua fidelidade tem sido, quão inferior daquilo ao qual Cristo o tem chamado, quão menos correspondente à graça do que ele havia imaginado por muitos anos. Padre António Vieira (1608-1697), grande pregador jesuíta, com frequência dizia que uma das tarefas mais importantes da vida era “morrer antes de morrer”. Talvez ele dissesse isso em termos de liberdade de apego. Eu suspeito, porém, que ele dissesse isso em termos de um juízo final antecipado. É estranhamente maravilhoso olhar para a própria pobreza fundamental no olho, sem vacilar, e aceitá-la, por ser a verdade. “De Deus não se zomba”, disse São Paulo, em sua Carta aos Gálatas (cf. Gl 6,7b). É uma grande bênção não precisar zombar mais de si. Eu sei a meu respeito tudo aquilo que Deus sabe. Não temos segredos um do outro. À medida que as ilusões derretem, as maravilhas genuínas aparecem. Outras pessoas,
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celebrada em poesia. E existe algo infinitamente comovente acerca das suas virtudes, sua determinação em amar, que tem sobrevivido a toda tentação e mesmo a toda queda. E o céu? O céu, obviamente, é Deus. Os místicos e os teólogos sabem disto. Quando se tem sessenta e a idade de Deus é a eternidade mais sessenta (a soma de sua idade e da d’Ele), Deus finalmente sai do meio da floresta. Ele sai de Seu esconderijo nas árvores, ergue Sua adorável cabeça das águas e chacoalha as gotas-d’água. Ele se deixa ser sentido à noite entre as paredes de meu quarto e trai Sua presença no canto selvagem de um pato voando.
No original do Cântico dos Cânticos (cf. Ct 4,9a), o Esposo diz: “Tu feriste meu coração, minha irmã, meu amor”. Nesse novo “Cântico da Terceira Idade”, cantamos a Deus: “Torceste meu pescoço, meu Pai, meu Deus, meu Senhor, meu Amor”. Agora que Te vejo, eu desejo estar onde Tu estás. Não é difícil ter seu desejo fixo no céu, uma vez que Deus o fez vislumbrá-Lo. Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
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sem mudar nada, assumem uma nova dignidade e uma nova beleza a nossos olhos, uma vez torcido o pescoço (nova para nós, porque elas sempre tiveram essa dignidade e essa beleza aos olhos de Deus). Ultimamente, tenho me pegado olhando para meus contemporâneos (monges, monjas e vários outros) e me maravilhando por sua amabilidade e sua bondade. Seu cabelo grisalho, branco, ou mesmo a falta dele (e todo o restante da lista), poderia ser a base de um novo Cântico dos Cânticos. Certamente eles não podem ser descritos como “correndo como gazelas”, mas há uma beleza aí, física e interior, que merece ser
Abade do Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo, Campo do Tenente (PR)
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“Estava se aproximando o tempo da colheita. O fiel prudente servo do Senhor, vendo que o povo tinha de se dedicar ao necessário trabalho da colheita, pensou que deveria parar com a pregação. Despediu as multidões e procurou uma localidade tranquila, indo ao lugar chamado Camposampiero e desejando passar ali uma serena solidão... Decidiu fazer para si uma cela em cima de uma frondosa e alta nogueira porque aquele lugar lhe oferecia uma solidão jamais pensada e uma tranquilidade favorável à contemplação” (Assidua n. 15)
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uem, desde criança, não desejou construir para si mesmo uma casinha alternativa aonde pudesse levar amigos e sonhos e onde pudesse viver em um mundo fantástico? Quem nunca imaginou erigir uma fortaleza de faroeste, um iglu de esquimó
ou uma cabana de índios peles-vermelhas simplesmente estendendo alguns ramos de árvore no mato ou taquaras cruzadas na horta de casa? Aqueles lugares pequeninos e estreitos tornavam-se espaços especiais onde a fantasia podia “criar”, longe dos adultos “autossuficientes”, por demais presos em coisas “sérias”. Talvez seja por isso também que Santo Antônio de Pádua e Lisboa (1191-1231) nos é simpático. Esgotado por fadigas e mal-estares e, mais ainda, por ser “corpulento” (como o descrevem seus biógrafos), encontrava forças para subir
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coisas da terra e as do céu. Os santos sabem fazer também de seus corpos sinal e ponte de comunhão e oração. A própria cruz de Jesus foi interpretada como árvore que salva e reenvia à outra árvore, a do Éden, de cujos frutos se fez tão mau uso. Ao ficar na forquilha dos ramos, frei Antônio respirou o próprio viver unicamente por Cristo, com o qual já se sentia identificado. Não é por acaso que, nesse mesmo período, o Menino Jesus apareceu ao nosso santo (ao qual se sentia ligado por um especial amor, comparável ao de São Francisco quando, alguns anos antes, celebrara o Natal de Greccio, na Itália, e, agora, comparável também ao mesmo santo que, anos antes, recebera as chagas no Monte Alverne). Duas eminências diferentes, uma única inexprimível tensão de resposta total ao amor de Deus. Imagino as pessoas assentadas debaixo da árvore para ver e ouvir o santo frade, seus olhos obrigados a olharem para cima, enquanto toda a figura dele não era senão uma tela transparente diante de “Um mais alto e maior”. Imagino Santo Antônio sobre a nogueira atuando como mediador do céu. Penso que hoje também temos necessidade de anunciadores da Palavra de Deus um pouco mais acima da altura da mediocridade dominante. Anunciadores que brilhem por simplicidade e fé, sinceridade e firmeza, sem se exaltar por si mesmos. Irmãos que saibam indicar o céu sem perder um centímetro que seja da terra de seus irmãos e irmãs. Penso que precisamos de alguém que ainda suba em uma árvore e desperte nossa curiosidade naquela excêntrica posição capaz, porém, de apontar um caminho. Frei Danilo Salezze, OFMConv Ex-diretor da revista Messaggero di Sant’Antonio (Itália)
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Santo Antônio pregando da nogueira, Pietro Annigoni
regulares e, por dez anos (repletos de fadiga e evangelização), pelos caminhos da Europa. Rever para dar novamente o precioso dom recebido, para encontrar as palavras do hino de louvor a Deus pelos últimos preciosos instantes, como lhe havia ensinado o Poverello de Assis. O próprio Cristo quis consigo apóstolos apaixonados, mas que mantivessem firmes as conexões com o próprio coração e com as fontes genuínas do próprio desejo. Mas por que Santo Antônio quis uma árvore como convento? Pelo calor do junho europeu? Para ter um púlpito seguro diante do povo devoto que queria cortar-lhe o hábito para ter uma relíquia? Gosto de pensar, seguindo seus biógrafos, que frei Antônio queria permanecer entre os ramos de uma nogueira para sentir-se, como nunca antes, instrumento de encontro entre as
Arquivo Il Messaggero
muitas vezes, no mesmo dia, nos galhos de uma frondosa árvore escolhida como lugar de oração e meditação. Como companheiros, estavam dois confrades, que partilhavam com ele aquele lugar na árvore, formando um singular convento “suspenso”, talvez dentro dos limites de uma originalidade aceitável. O trio pertencia à jovem e dinâmica família de São Francisco de Assis (1182-1226), capaz, tanto ontem quanto hoje, dessas e de outras criatividades. Como franciscana também era a alternância entre tempos de ministério atuante (pouco antes, frei Antônio havia terminado uma pregação de Quaresma e tinha viajado a Verona, próximo a Ezzelino de Romano [1194-1259], o que o provou duramente) e os necessários momentos de parada restauradora do espírito e do corpo. Frei Antônio não quis morrer sem dedicar a si mesmo um período de descanso; ou seja, talvez, percebendo chegar o final da vida, tenha sentido a necessidade de rever todos aqueles seus 36 anos vividos na família, entre os cônegos
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Dom Helder Camara, memorialheldercamara.blogspot.com.br
THEOBLOG
Cheiro de
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ovelhas
ecentemente, o papa Francisco (1936-) surpreendeu-nos com esta pregação: “O sacerdote, que sai pouco de si mesmo, que unge pouco – não digo ‘nada’, porque, graças a Deus, o povo nos rouba a unção –, perde o melhor do nosso povo, aquilo que é capaz de ativar a parte mais profunda do seu coração presbiteral. Quem não sai de si mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um gestor. A diferença é bem conhecida de todos: o O OMME N E NS SAAGGE EI IRROO DDEE SSAANNTTOO AANN TT ÔÔ N I O
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L’Osservatore Romano
intermediário e o gestor ‘já receberam a sua recompensa’. É que, não colocando em jogo a pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres tristes, e transformados em uma espécie de colecionadores de antiguidades ou então de novidades, em vez de serem pastores com o ‘cheiro das ovelhas’ – isto vo-lo peço: sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’, que se sinta este –, serem pastores no meio do seu rebanho e pescadores de homens. É verdade que a chamada crise de identidade sacerdotal nos ameaça a todos e vem juntar-se a uma crise de civilização; mas, se soubermos quebrar a sua onda, poderemos fazer-nos ao largo no nome do Senhor e lançar as redes. É um bem que a própria realidade nos faça ir para onde, aquilo que somos por graça, apareça claramente como pura graça, ou seja, para este mar que é o mundo atual onde vale só a unção – não a função – e se revelam fecundas unicamente as redes lançadas no nome d’Aquele em quem pusemos a nossa confiança: Jesus”.1 Em poucas linhas, o pontífice traçou o perfil do sacerdote do século XXI. Poderíamos mesmo dizer que esboçou uma bonita silhueta do cristão que precisamos ser e testemunhar. Começou fazendo a metáfora bela e antiga com o óleo santo. Sabemos que cristão é um adjetivo surgido do vocabulário grego (Christós), que significa: ‘ungido com óleo’. Ou seja, todos os que pertencem a Cristo são tal qual um óleo perfumado de Cristo. E o papa Francisco disse que esta unção não é nossa propriedade, mas um santo bálsamo que deve ser espalhado no corpo da Igreja para que viva bem sua missão. Se não o fizermos por vocação, o próprio povo nos arranca o óleo por “roubo”. Essa dádiva ofertada pelos sacerdotes ao povo é fecunda e promissora. Ativa o que há de melhor no padre e no povo. Cria um laço profundo entre os batizados e penetra no íntimo da vida espiritual de cada ministro da Igreja. Um padre ungido conhece os fiéis por nome e história de vida. E os ouve e consola nas dores. E é pelo povo consolado quando ele se sente frágil e enfermo. Depois, o pontífice segue falando que um padre deve ser mediador, não funcionário
O papa Francisco continua desenhando um traço lindo de padre em que o egoísmo e vida sacerdotal não se coadunam e em que a alegria se torna a marca registrada do padre católico. A felicidade volta a ser o oitavo sacramento. A bem-aventurança de Jesus faz-se chave da vida presbiteral: a alegria naquilo que se é e em tudo que celebra e vive com as pessoas ou gestor. Padres empresários, funcionários e profissionais do sagrado deturpam o que há de fundamental na missão presbiteral: ser animador e cuidador do povo que lhe foi confiado para celebrar a palavra e a Eucaristia na vida das pessoas. Este talvez seja o maior desvio da conduta sacerdotal que permite pecados maiores: pensar-se e agir como um funcionário, não um pastor. Estudiosos importantes fizeram importantes recomendações para evitar tal equívoco. Lembro-me de três deles: Santo Antônio de Pádua e Lisboa (1191-1231), Santo Inácio de Loyola (1491-1556) e o padre alemão Eugen Drewermann (1940-). O papa Francisco vai mais longe que os sacerdotes citados, pois diz que, se os padres não colocarem “em jogo a pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração”. Colocar a pele, a carne, a vida e o coração em tudo o que faz e não fazer simplesmente em um ativismo feroz e sem sentido conduz à inercia e, sobretudo, ao vazio de profecia. É não fazer a casa paroquial tornar-se um esconderijo impenetrável. O papa Francisco continua desenhando um traço lindo de padre em que o egoísmo e vida sacerdotal não se coadunam e em que a alegria se torna a marca registrada do padre católico. A felicidade volta a ser
o oitavo sacramento. A bem-aventurança de Jesus faz-se chave da vida presbiteral: a alegria naquilo que se é e em tudo que celebra e vive com as pessoas. Não pode haver um padre triste nem um triste padre. Isto seria uma contradição com a própria decisão original. Ser para os outros e irmão dos outros. E padres tristes, melancólicos, ou depressivos são “transformados em uma espécie de colecionadores de antiguidades ou então de novidades”. Os colecionadores de antiguidades refugiam-se em uma igreja-museu e vivem de ritos e encontros tautológicos e repetitivos. Falam de tradição, mas são prisioneiros de palavras, rubricas e vestimentas fora de época. Mostram por fora as sombras que trazem dentro do peito. São sombras obscurecidas da alegria da missa de ordenação. Parecem robotizados e chatos. Reclamam de tudo, criticam tudo, azedam tudo, inclusive a si mesmos. Muitos terminam com graves úlceras, gastrites e melancolia regada a álcool e hobbies infantis. Outros querem tanto o novo e estar na moda que transmutam sua identidade em ouro falso e de tolo. São modernos e “descolados”, mas superficiais e panfletários. Alguns muitos de direita e outros tantos de esquerda. A ideologia é só mais uma grife. Vivem de roupas, construções e reconstruções, filigranas, perfumes, carros O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO Setembro d e 2 0 1 3
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THEOBLOG e assistindo a vídeos ou viciados na Internet, em que têm milhares de amigos no Facebook, mas nenhum amigo de fato entre os colegas sacerdotes. O contágio de sua tristeza os faz enfermos e carentes. Gritam por Deus do fundo da alma, mas nem eles mesmos escutam a Palavra que pode salvá-los e que está ao alcance de suas mãos. A boca fala do que o coração não mais vive. Buscam a felicidade com ansiedade e muitas vezes tornam-se depressivos e solitários. O testemunho pascal não “se efetivará sem que combatamos a amargura e o desalento em nós mesmos”.2 Diante deste quadro, o papa Francisco propõe um caminho árduo, evangélico e realizável, plantado na comunhão com amigos de verdade. Ele chama aos sacerdotes a “serem pastores com o ‘cheiro das ovelhas’: isto vo-lo peço: sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’, que se sinta este, serem pastores no meio do seu rebanho e pescadores de homens”. O que é um pastor com cheiro de ovelhas? É alguém com inspiração e o fogo de Deus dentro do coração. Alguém que sabe, crê, vive e proclama que o Ressuscitado está entre nós e dentro de cada um de nós. É alguém como o padre Cícero Romão Batista (1844-1934), sacerdote risonho, simpático, amável, dotado de uma simplicidade encantadora, amigo meigo e dócil, conhecendo a todos pelo nome. É alguém que trata cada paroquiano ou leigo como se fosse o próprio Cristo
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e que, ao encontrar um pobre, pergunta É alguém que vive movido à Eucaqual é o nome dele, como está sua vida, ristia. Ela é o centro de sua vida e o onde mora e se já tomou um café hoje. momento alto de seu dia a dia. Cada Se este disser que ainda não comeu nada missa é, para um padre pastor, a primeira nesse dia, este padre de todas, é também a com cheiro de ovelhas última de sua vida e a O que é um pasirá com ele até a padaria única que ele celebra. O tor com cheiro de mais próxima e tomará aroma eucarístico é tão alegremente um café suave, tão complexo e ovelhas? É alguém com ele, fazendo o ágatão belo que já entramos com inspiração e o pe da Igreja. E, ao final na eternidade dentro fogo de Deus dentro desse encontro fraterno, do tempo. São Bento de dá-lhe uma bênção, um Núrsia (480-547) sempre do coração. Alguém abraço e o endereço da recomendava aos monque sabe, crê, vive comunidade paroquial ges que levassem outros e proclama que o para continuar o diálocom eles. Que cada mongo. Ou seja, ele precisa ge fosse companheiro no Ressuscitado está perder tempo com os caminho que conduz a entre nós e dentro mais pobres e fazer deles Deus. Ninguém pode ir de cada um de nós sua agenda principal. para Ele sozinho. É alguém que prepara Enfim, o papa Fransuas homilias com alegria e serenidade, cisco pede que os sacerdotes mergulhem procurando fazer para si mesmo a Lectio no “mar que é o mundo atual onde vale Divina. O primeiro terreno onde a Palavra só a unção, não a função” e que andem que é Jesus deve ser plantada é o coração do em direção das periferias humanas e próprio sacerdote que faz a pregação. Assim urbanas. Esse é o antídoto eficaz contra o sacerdote torna-se ponto de atração para o o ensimesmar-se patológico do poder mistério de Cristo e a missão. Esse cheiro das e da função. O padre é um servidor da ovelhas e do pastor se mescla no aroma suahumanidade, não alguém colocado em ve de esperança cristã. O padre sabe que não um cume acima dos demais. A melhor pode privar ninguém da esmola da Palavra. forma de exercer autoridade é aplicar-se em fazer dela um serviço, recusando os abusos do poder e de tantos “micropoderes ou microprincipados”. O único poder que pode exercer é contra os lobos que
Puga (1931-), cardeal dom Paulo Evaristo Arns (1921-), padre Sidinei Lang (1950-) e dom Waldyr Calheiros Novaes (1923-). Homens de Deus inseridos nos pobres; homens pobres, sinais de Deus. Foram do centro para a margem e insistiram na dimensão humana do Evangelho. Ser padre assim é um sacramento do Reino de Deus: pastor com cheiro de ovelhas do único pastor. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará” (Sl 22[23],2). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Santa Missa Crismal. Homilia do Santo Padre Francisco. Basílica Vaticana, Quinta-feira Santa, 28 de março de 2013. 2 GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço: itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984. 1
Fernando Altemeyer Junior
Arquivo pessoal
(1170-1221), padre Gabriel Galache, dom Helder Pessoa Camara (1909-1999), padre José Comblin (1923-2011), dom José Lamartine Soares (1927-1985), dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006) e dom Manuel Larraín (1900-1966). Entre dos sacerdotes vivos e profetas, estão: dom Edson Tasquetto Damian (1948-), frei Gustavo Gutierrez (1928-), dom José Maria Pires (1919-), padre chileno Mariano
Departamento de Ciências da Religião, PUC-SP fajr@pucsp.br
dioceseofvenice.org
tiram a vida e a esperança das ovelhas. O poder de um zelador dos outros, das criaturas de Deus e da natureza. Um padre ungido é alguém que conhece o valor da liberdade e a exigência da santidade. E por eles é capaz de amar a igreja em uma simbiose de vida coerente e simples, sem nenhuma ostentação. Casa simples, vida frugal e mística profunda. Sabedor de que “a cruz não é um fim em si. Ela surge e indica o caminho do alto”, como dizia Santa Edith Stein (1891-1942). Muitos podem crer que tal personagem não existe e seria impossível encontrá-lo, mas conhecemos a muitos que sabem “em quem pusemos a nossa confiança: Jesus!” Indico algumas biografias de sacerdotes com cheiro de ovelhas e amigos de Jesus, para que tenhamos forte inspiração para cultivar estas virtudes reais e humanas. São eles: padre jesuíta Anthony de Mello (1931-1987), Santo Antônio de Pádua e Lisboa, dom Antônio Fragoso (1920-2006), frei Bartolomeu de las Casas (1474-1566), São Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), São Domingos de Gusmão
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C AT E Q U E S E L I T Ú R G I C A
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a catequese anterior, abordamos o amor como critério para o qual convergem todos os outros critérios que constroem uma autêntica celebração litúrgica. Sabemos, até por jargão, que o amor é tudo e que sem ele nada possui sentido. No entanto, nesta catequese, gostaria de salientar a natureza do amor que dá sentido a tudo, fazendo que a celebração se torne um ato autêntico de louvor a Deus e santificação da pessoa que se coloca em oração. Aqui, refiro-me ao amor divino, em sentido estrito, e não ao amor humano em seu sentido amplo e tão abrangente que pode significar tudo e, ao mesmo tempo, nada. O amor de Deus, no Novo Testamento, é chamado de ágape, o qual se tornou uma terminologia importante para se O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO
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definir a essência de Deus e a índole divina da nossa relação com o próximo: “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 1,4-8). O Evangelista João (?-103) e o Apóstolo Paulo (5-67) são os artífices da elaboração teológica cujo amor é fundamento e sustentáculo. Só assim é possível entender a Deus, a Igreja e cada discípulo de Cristo e membro da comunidade que constrói a comunhão no amor. Aí está um argumento sólido para entendermos a liturgia como ação trinitária (princípio primeiro da liturgia). Ela se realiza como convocação do Pai, pelo Filho no Espírito Santo. É o movimento descendente que toca o coração humano, levando-o a responder ao amor recebido; resposta dada pelo louvor dirigido Pai, pelo Filho
no Espírito Santo. Portanto, somente quando somos tocados pelo amor divino é que temos condições de dar a resposta; ela mesma não é mais um gesto motivado por um tipo de amor humano, mas pelo próprio amor de Deus Pai, que, por meio de Cristo no Espírito Santo, faz brotar em nossos corações o que Missal Romano chama de “amor filial”, que tem como base o “espírito filial”, expressão que aparece na oração rezada logo após o hino do Glória, na Vigília Pascal. Esta oração pede que o Pai desperte na Igreja o “espírito filial”, para que o ser humano possa servi-Lo com todo o coração. Somente quando nos sentimos filhos amados de Deus Pai (espírito filial), como Jesus é amado eternamente, podemos servir a Deus com todo o coração e com alegria pascal.
(Jo 1,36b)
“Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1,36b). Em seguida, incentivou os discípulos a seguirem Jesus e, a partir daquela hora, João ficou em segundo plano. Gosto de pensar que o segundo plano é o plano em que devem ficar todos os ministros litúrgicos em relação a Cristo. Se não for assim, o amor de Deus não se torna uma experiência ministerial para ajudar toda a assembleia a realizar seu encontro com Deus. Devemos também considerar que tudo o que acontece na liturgia é fruto do amor de Deus em derramamento pentecostal. Por isso, a liturgia pereniza o Pentecostes ao longo da história. Após a unção do Espírito Santo, quando a esplanada do Templo presenciou, nas palavras dos Apóstolos, a alegria de anunciar todo o mistério de Cristo de forma su-
cinta e fácil de entender, ali começou um processo que a liturgia repassa de geração em geração. É o processo da celebração. Por isso, nenhum ministro deve chamar a atenção sobre si mesmo, colocando dessa forma bloqueios à experiência de Deus ocorrida em Pentecostes com muita intensidade e perenizada pelos Sacramentos. Essa experiência não pode terminar enquanto não soarem as trombetas declarando o fim dos tempos. Santo Agostinho de Hipona (354-430) defende a concretude do amor divino contra uma mentalidade de que o amor de Deus é abstrato e, por isso, não tem ser. Na verdade, tentamos chamar tanto a atenção sobre nós mesmos, porque não fazemos a experiência do amor de Deus como dom, algo que se pede e se recebe na intimidade. Estamos sempre buscando esse amor na realidade horizontal da experiência humana, ou seja, no outro que a gente enxerga com os olhos naturais. Diz o salmo que não devemos confiar em nossas forças como o cavaleiro que confia no cavalo ou o guerreiro em suas armas (cf. Sl 20[19],7). Nossa força vem de Deus, porque Ele é amor. Então, quando acreditamos no amor divino, a liturgia e a vida fluem como um rio que ninguém consegue represar. São os represamentos afetivos que nos fazem buscar idolatrias e até usar a liturgia como forma de nos engrandecermos. Uma boa preparação para a liturgia exige que nos entreguemos totalmente a Deus, para que a liturgia seja a expressão de nosso acolhimento para com Aquele que possui amor em abundância e no-lo oferece de forma gratuita e generosa. Na próxima catequese, encerraremos o tema do amor de Deus; a seguir, vamos mostrar que, quando chegamos ao nível desse amor, a liturgia apresenta características de envolvimento com Mistério de forma tão intensa, que atingimos o princípio do êxtase. Pe. Valeriano dos Santos Costa Doutor em Liturgia pelo Pontifício Ateneo Santo Anselmo, Roma. Professor adjunto na Faculdade de Teologia da PUC-SP
Arquivo pessoal
“Eis o Cordeiro de Deus”
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Então a natureza do amor de Deus é totalmente oblativa, ou seja, é voltada cem por cento para fora, tendo como foco o outro. Já a natureza do amor humano é voltada para o ego de cada pessoa, em uma atitude de defesa e autoproteção. Essa direção afetiva constrói o regime do egoísmo. Por isso, é natural a competição como instinto humano. Aliás, foi este o pecado de Adão: querer competir com Deus, o que acabou criando a rejeição ao amor divino e a destruição da amizade que reinava entre o homem e Deus. Mas nunca destruiu a amizade de Deus para conosco, já que Ele fez um plano de salvação que culminou em Jesus Cristo, cujo intento é refazer a relação divino-humana que o pecado estraçalhou. Paulo entende que o pecado destruiu a amizade entre o homem e Deus porque um estado de injustiça reinou onde só havia acolhimento mútuo. Como o ser humano não podia remediar esse erro, Deus mandou Seu Filho na carne para nos justificar e reintroduzir na amizade divina de forma totalmente gratuita e não pelo mérito da Lei e suas obras. Então é natural que o amor de Deus como dom recebido no Batismo e renovado pentecostalmente em cada liturgia seja o eixo e o critério fundante da celebração. Como foi mencionado na catequese anterior, a beleza e a ordem sem amor tornam-se esteticismo e cerimonialismo, por uma causa muito simples: Deus é colocado de lado e a pessoa do ministro passa a ser o centro, como que a chamar mais atenção do que o próprio Cristo. Muitas vezes, fazemos isso de forma inconsciente, mas o efeito é muito visível. Nesse contexto, diz-se que tudo é para a glória de Deus, mas qualquer análise mais consistente detectaria um ego querendo despontar usando o contexto religioso. Por isso, uma regra muito importante para o ministro litúrgico é o segundo princípio da liturgia: o cristocentrismo litúrgico. Cristo precisa ser o centro absoluto de toda a liturgia, do início ao fim da celebração. Vale aqui a famosa postura de João Batista (2 a.C.-27 d.C.) que, quando apontou o Cristo aos discípulos, O enalteceu dizendo:
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VENENO À MESA Uma cidade sob o domínio dos agrotóxicos e do medo
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Fotomontagem MSA
a infância, a experiência escolar de plantar um grãozinho de feijão no algodão umedecido é tarefa quase obrigatória. É nesse momento que as aulas de ciências tornam-se o local da descoberta dos poderes da natureza e do cuidado necessário para que o alimento que vai à mesa da maioria dos brasileiros diariamente possa se desenvolver. Plantar, regar,
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esperar a germinação e cuidar são atos que fazem parte do aprendizado da responsabilidade cívica e social. No entanto, no município de Unaí, localizado no Estado de Minas Gerais, aquilo que deveria ser apenas uma experiência científica do Ensino Fundamental torna-se para muitos sua rotina diária. A cidade, localizada no noroeste mineiro, possui o maior Produto Interno Bruto (PIB) agrícola do Estado
Atendimento precário no pronto-socorro do Hospital Municipal Dr. Joaquim Brochado
possui um estabelecimento de saúde especializado? Eis outro índice no qual Unaí é destaque: apresenta a maior incidência de casos de câncer no mundo. São mais de mil vítimas por ano da doença que mais mata no planeta. O município não possui nenhum médico oncologista, nem clínica especializada no tratamento do câncer. São doze horas de viagem até a cidade mais próxima com atendimento adequado a pacientes com neoplasma. Toda segunda-feira, um ônibus lotado sai
Unaí
MINAS GERAIS
Belo Horizonte
São Paulo
Vitória
Rio de Janeiro
Arte MSA
e o sexto maior do País. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município é o líder mineiro na produção de grãos. São mais de setecentas mil toneladas de grãos produzidas por ano em uma área de 175,3 mil hectares. Entre os principais produtos, estão a soja, o milho, o café e o feijão, envolvendo quase quatro mil propriedades. Se Unaí, por um lado, possui tanta facilidade para servir o feijão à mesa, por outro, apresenta muita dificuldade em disponibilizar vagas hospitalares para a população. Afinal, o município não se destaca apenas pelos altos números da produção de grãos.
Silvia Valim
Na tentativa de sanar o problema, pequenos cofres foram distribuídos pelos estabelecimentos comerciais da cidade. A iniciativa da própria população visa arrecadar fundos para a construção de um hospital. O projeto arquitetônico prevê uma estrutura gigantesca que vai custar 20 milhões de reais, sem contar os equipamentos, para uma cidade com menos de oitenta mil habitantes. Sejamos justos: toda cidade precisa de um hospital. E Unaí já possui o Hospital Municipal Dr. Joaquim Brochado. A foto mostra a infraestrutura – ou a falta dela – do pronto-socorro: os banheiros não possuem higienização adequada e há uma grande desorganização da administração no atendimento aos pacientes, que conta com apenas uma funcionária. O hospital, de média complexidade, recebe na emergência 250 pessoas/ dia, realiza mais de 120 cirurgias/mês e ainda é tido como referência por dez municípios vizinhos. Mas o novo hospital, que está previsto para ser entregue em 2016 e até agora não saiu do papel, é específico. Sua especialidade é o tratamento de umas das mais terríveis doenças enfrentadas pela humanidade sem muito sucesso de cura ainda nos dias de hoje: o câncer. Mas qual seria o motivo dessa iniciativa, já que nenhuma cidade no Brasil com menos de cem mil habitantes
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ONDE ESTÁ A RAIZ DO PROBLEMA? Corajosamente, um frade carmelita afrontou autoridades políticas e econômicas O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO
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Já é quase uma epidemia de câncer na região de Unaí. Na região noroeste de Minas Gerais, milhares de pessoas desenvolveram câncer. O relatório do deputado Padre João (PT), da Comissão do Agrotóxico do Congresso Nacional, aponta indícios alarmantes. O feijão envenenado foi enviado a várias escolas municipais de Arinos. Não foi apenas para a escola em que entrevistei a diretora Edivânia. Há muitas pesquisas científicas que atestam que agrotóxico está causando câncer (frei Gilvander)
Frei Gilvander, arquivo pessoal
em direção a Barretos, em São Paulo, só retornando na sexta-feira. Quem lançou a proposta do novo hospital foi a Associação do Noroeste Mineiro de Estudos e Combate ao Câncer (ANMEC). Instituição que, de fato, nunca realizou nenhuma pesquisa. “Estamos esperando começar o hospital para fazer algum estudo”, justificou Silvone Francisca de Oliveira, diretora-administrativa da ANMEC. Outros grupos da cidade vão até Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Goiânia (GO) e Ribeirão Preto (SP), em busca de atendimento. Mas todos os trechos são cansativos e caros aos pacientes, o que já justifica a criação de um hospital. “A gente trabalha aqui em cima de doações. Nosso intuito é que o hospital seja filantrópico. A gente quer construir a parte de prevenção e fazer funcionar”. Silvone não revela exatamente o quanto já foi arrecadado, mas garante que é o suficiente para iniciar o projeto. “Temos uma quantia bem pequena. Mas, depois que começarmos, eu tenho certeza de que vai embora. As cooperativas disseram: ‘Assim que vocês começarem nós vamos ajudar’”, fazendo referência ao andamento da construção. O sonho de um hospital especializado em Unaí veio do fundador da ANMEC, Miguel Ferreira Rodrigues, que faleceu em 2008, vítima de um câncer que atingiu a próstata, a bexiga e o pulmão. Hoje a instituição presta assistência a cinquenta vítimas da neoplasia. Há sete anos, eram quinze. A prefeitura é citada como parceira no projeto, mas, ao ser questionada sobre qual será exatamente seu papel, a ANMEC não soube responder. Em busca da arquiteta Denise Gatto, que projetou o Hospital do Câncer de Unaí de forma voluntária, descobrimos que o terreno para a construção do hospital foi doado pela prefeitura. O próprio secretário de obras afirma que a administração municipal vai apenas “preparar o terreno” para a construção, prevista para iniciar em julho de 2013, o que ainda não foi cumprido. Apesar da alta incidência de câncer em Unaí, poucos se arriscam a declarar as possíveis, e talvez bem conhecidas, razões para a doença.
para denunciar publicamente o que lhe foi apresentado. Divulgou, sem medo, na rede de compartilhamento de vídeos mais acessada do mundo, uma denúncia que está causando, no mínimo, reflexão entre médicos e pesquisadores. No Youtube, frei Gilvander Luís Moreira entrevista uma moradora de Arinos, cidade vizinha a Unaí, que alega que o feijão servido na merenda escolar da cidade está envenenado. O produtor do alimento (Feijões Unaí) entrou na Justiça pedindo a retirada do vídeo da internet, alegando difamação da marca. A solicitação foi aceita pelo juiz, que determinou a remoção da filmagem.
A relação da alta incidência de casos de câncer ao uso de agrotóxicos surgiu de um estudo realizado pela Subcomissão Especial sobre Uso de Agrotóxicos e suas Consequências à Saúde, criada pela Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados, em 2011. A comissão, composta por seis deputados federais e seis suplentes, concluiu, em relatório, que o uso intenso de agrotóxicos “em patamares bem acima das médias nacional e mundial, sugere uma relação estreita entre essa moléstia e a presença de agrotóxico”. O relatório vai além, ressaltando a necessidade extrema da construção de um hospital do câncer por causa do elevado número de doentes. “Já estão ocorrendo cerca de 1.260 casos/ ano/100.000 pessoas. A média mundial não ultrapassa 400 casos/ano/100.000 pessoas”. A tese de doutorado em Psicologia Social, elaborada pela doutora Magali Costa Guimarães, pela Universidade de Brasília (UnB), reforça a notícia divulgada por frei Gilvander. Intitulado “Só se eu arranjasse uma coluna de ferro pra aguentar mais”, o trabalho contou com uma pesquisa de campo aprofundada, na qual foi possível presenciar os trabalhadores realizando a colheita de feijão. Ali, constatou-se, várias vezes, “o odor do defensivo agrícola trazido pelo vento”. Fato que, com outros elementos, é responsável por queixas como dores de cabeça, fraqueza, irritação dos olhos, nariz e garganta. A dissertação apresenta ainda estudos que comprovam a relação do agrotóxico como responsável por “doenças respiratórias, no sistema reprodutivo – infertilidade, abortos, entre outras – e diferentes formas de manifestação de câncer”. No grupo observado, a maioria não usa luvas, nem botinas, nem óculos, nem qualquer tipo de proteção contra a poeira, os ramos e o próprio agrotóxico. Mas a denúncia de desrespeito aos trabalhadores rurais e de mão de obra escrava em Unaí não é apresentada somente no referido trabalho. TRABALHO DEGRADANTE O “rio da escuridão” (tradução em português para o termo Tupi ‘Unaí’) parece uma ironia premeditada. Além do mistério sobre a raiz do câncer que acomete a população, a cidade possui outro caso sem solução. Em 2004, três fiscais do Ministério do Trabalho e o motorista que os conduzia
foram assassinados na rodovia que corta o município mineiro. Os servidores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Belo Horizonte acompanhavam Nelson José da Silva, fiscal que investigava acusações de mão de obra escrava nas fazendas de Antério Mânica, ex-prefeito de Unaí. As denúncias eram de trabalho sem registro em carteira, ausência de segurança e higiene, alimentação precária e salários bem inferiores à média nacional. Nelson batia de frente com o interesse dos latifundiários. Mas, na hora da execução, os funcionários do MTE de Belo Horizonte, convocados dias antes para confirmar denúncias de irregularidades na região, tornaram-se vítimas. Em janeiro de 2014, o crime conhecido como “Chacina de Unaí” vai completar dez anos sem julgamento. Um ano antes de morrer, o fiscal Nelson dava indícios de que algo não ia bem. “Meu cunhado, uma vez em que fiz uns elogios a ele sobre o trabalho de investigação que ele tava realizando, me falou: ‘Não fica muito nas minhas costas, não, porque a corda tá no meu pescoço. Tão de olho’. Ele já sabia. Ele dava a entender que eram os Mânica. Ele
foi ameaçado dentro da fazenda daquele um e continuou mesmo assim”, declarou Giane da Silva, cunhada de Nelson. A TV Record teve acesso aos depoimentos dos dois pistoleiros acusados de matar os funcionários do MTE. Um deles, Erinaldo Silva, revelou que a abordagem foi feita como se fosse um assalto, mas depois explicou: “Não foi um assalto. Foi só pra distrair”. O Ministério Público Federal apontou nove envolvidos na chacina. Os mandantes seriam Norberto e Antério Mânica, irmãos conhecidos como “os reis do feijão” acusados de quádruplo homicídio qualificado por motivo torpe mediante emboscada. A pena prevista pelo assassinato de cada vítima é de doze a trinta anos. O empresário Hugo Alves Pimenta, preso na operação “Baião de Dois” (nome dado por caracterizar feijão e arroz, mercadorias-alvo das investigações), que desmantelou um esquema de sonegação fiscal de mais de 55 milhões de reais em Unaí, é outro acusado da chacina. O julgamento deveria ocorrer no início de 2013, em Belo Horizonte, mas a juíza responsável transferiu o processo para Unaí, considerando-se incompetente para julgar o caso. Um dos
acusados já cumpriu pena, outro teve a pena prescrita e o último morreu. Até hoje o processo permanece sem julgamento, e somente os pistoleiros e seu motorista estão presos. Para as famílias, o caso está mais que comprovado. “Eles tratam empregado como se fosse lixo. Até empregada doméstica é escrava. Ganham pouco, não podem tomar água, não podem nem pegar fruta que cai no chão. Se vissem, os patrões batiam. Muita gente já trabalhou pro Antério. Mas não é qualquer um que relata. Ainda mais depois do que aconteceu”, desabafa a cunhada do fiscal do Trabalho morto no massacre. Passados quase dez anos, Antério Mânica, sem condenação, não precisaria ter mais um incômodo com acusações. Mas a denúncia de frei Gilvander na internet sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos em Unaí inevitavelmente recai sobre o latifundiário. O testemunho apresentado sobre o feijão envenenado acusa indiretamente o ex-prefeito da cidade. O ex-político é proprietário de uma das maiores lavouras de feijão da região. No total, são quase cinco mil hectares que produzem mais de duzentas mil sacas de sessenta quilos de feijão por safra. É justamente
José Cruz, Agencia Brasil
O Ministério Público Federal apontou nove envolvidos na chacina. Os mandantes seriam Norberto e Antério Mânica, irmãos conhecidos como “os reis do feijão” acusados de quádruplo homicídio qualificado por motivo torpe mediante emboscada
José Cruz, Agencia Brasil.ebc.com.br
Antério Mânica
Fazenda Bocaina, onde três fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados em 28 de janeiro de 2004 O M E NN SSAAGGEEIIRROO DDEE SSAANNT TOO AANNT TÔ ÔN NI OI O Setembro ddee 22001133 Setembro
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R E P O R TA G E M Antério Mânica o proprietário da plantação que produz o feijão denunciado no vídeo. O produtor entrou na Justiça pedindo a retirada do vídeo da internet, alegando difamação da marca. A solicitação foi concedida pela Comarca de Unaí com prazo de remoção do vídeo em até cinco dias, sob pena de multa e prisão em flagrante de frei Gilvander, assim como dos representantes legais do Google no País. “O processo que me envolve no Juizado Especial Cível em Unaí já está com três volumes. Está nas mãos de um novo juiz, que parece ser sensato. O Youtube retirou o vídeo do ar. Espero, em breve, poder despachar com o juiz ao lado de um dos meus sete advogados que gratuitamente estão me defendendo. E vamos lutar para conquistar na Justiça o direito de eu recolocar o vídeo no ar, pois estou sendo punido injustamente”, reiterou o militante de Direitos Humanos, fazendo menção clara do desejo de incluir novamente o vídeo na internet. Frei Gilvander justifica sua atitude com fatos: “Já é quase uma epidemia de câncer na região de Unaí. Na região noroeste de Minas Gerais, milhares de pessoas desenvolveram câncer. O relatório do deputado Padre João (PT), da Comissão do Agrotóxico do Congresso Nacional, aponta indícios alarmantes. O feijão envenenado foi enviado a várias escolas municipais de Arinos. Não foi apenas para a escola em que entrevistei a diretora Edivânia. Há muitas pesquisas científicas que atestam que agrotóxico está causando câncer. E temos o direito de livre expressão e de informar a sociedade sobre o que acontece. Por isso, a legitimidade do conteúdo do vídeo que publiquei no Youtube, mas que foi retirado do ar por imposição de um juiz atrelado ao agronegócio. É difícil encontrar uma família que não tenha algum parente que está com câncer ou que morreu em decorrência da doença. Em uma cidade com oitenta mil habitantes, vão criar um hospital de câncer. Onde já se viu isso? É muito grave e estamos preocupados”. O frade foi ameaçado várias vezes por conta de seu posicionamento, recebendo recados de terceiros em seu celular, por meio de chamadas oriundas de telefone público. “Ouvi, por exemplo: ‘Já mataram os fiscais. O MENSAGEIRO DE SANTO ANTÔNIO
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Cuidado. Pare de mexer com isso’. Mas jamais me intimidarão. Diante de injustiças, jamais nos calaremos! O povo tem o direito de se alimentar de alimentos saudáveis”, reiterou. Procurado para falar sobre o processo da “Chacina de Unaí” e também sobre o possível uso excessivo de agrotóxicos em sua propriedade, Antério Mânica não respondeu ao Mensageiro. Antes ainda das 8 horas da
manhã, pelo sistema de interfone do prédio confortável em que vive com a família, a esposa disse que o marido já havia saído, mas que retornaria no horário do almoço. No escritório, a filha garantiu uma entrevista por telefone, mas Mânica recusou as ligações. Mais tarde, ao meio-dia, o ex-prefeito atendeu ao celular quando ligamos de um número local. Disse que estava na fazenda, alegou que o sinal era ruim e a ligação foi desconectada. Em menos de dez minutos, foi visto saindo pela garagem do prédio, localizado no centro de Unaí, onde reside em uma cobertura. SOB O DOMÍNIO DO MEDO Na cidade, ninguém sabe os porquês, ninguém sequer arrisca um “talvez”. Nem sobre o número alarmante de casos de câncer ou as audiências que discutem o uso de agrotóxicos, muito menos sobre as
denúncias de trabalho degradante nas terras da região. Os que falam alegam desconhecer qualquer acusação. “Não sei de ninguém que reclamou de trabalhar pra ele (Antério Mânica). Paga certinho. Paga bem. É bom patrão”, revela um pedreiro trabalhando sob o sol quente de Unaí. Em um restaurante, o deboche surgiu quando questionamos a procedência do feijão que serviam e se não temiam os efeitos do mesmo. “Por quê? Tá com medo de comer? Se tivesse alguma coisa, eu também tava com câncer, porque como feijão todo dia! O câncer tá em tudo quanto é lugar! Isso é normal hoje em dia”, respondeu, irritado, o gerente. Em sua denúncia, frei Gilvander vai além e garante que não só o feijão, mas também a terra, o ar e as águas estão contaminados. Uma afirmação feita com base na situação geográfica da cidade: Unaí é cercada por chapadas agrícolas. Para defender a plantação e permanecer com a alta produtividade reconhecida nacionalmente, os agricultores distribuem os agrotóxicos por via aérea. O que não atinge a lavoura permanece na terra ou desce para o Rio Unaí. “Quando vou a Brasília de carro, eu preciso fechar os vidros do veículo por conta dos aviões que jorram agrotóxico do céu. O cheiro é insuportável”, disse Helba Silva, moradora de Unaí. Ao buscarmos mais dados sobre o uso de agrotóxicos na região, descobrimos que o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) não possui nenhuma metodologia para analisar, fiscalizar e/ou controlar o uso de agrotóxicos. “A gente faz a fiscalização dos produtos. Como estão sendo armazenados, se estão dentro da validade, se o produto é recomendado para a cultura”, afirmou Welington Ferreira, fiscal agropecuário. O funcionário admite que a tarefa de controlar o uso dos defensores agrícolas é do IMA, mas reafirma que o Instituto não tem como realizar esse trabalho por falta de tecnologia. Questionado sobre o uso excessivo de agrotóxicos em Unaí, o técnico responde: “Para falar isso, eu tinha de ter dados concretos. [...] E tem outra coisa. Tem muita gente que compra direto da indústria, via cooperativa. Para falar se tá usando demais, não tem
como”. É justamente sobre essa falta de fiscalização que a Subcomissão sobre o Uso de Agrotóxicos e suas Consequências à Saúde da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados de Minas Gerais reclama. O órgão constatou que não há segurança no controle da comercialização dos agrotóxicos. As informações do receituário agroeconômico, como previsto em lei, simplesmente não chegam até os órgãos do governo. Com isso, nem os Estados, nem a União possuem dados concretos sobre o mercado dos agrotóxicos no Brasil, o que resultou em um Projeto de Lei, de autoria do deputado mineiro Padre João (citado anteriormente), que quer criar um monitoramento permanente sobre as condições dos agrotóxicos do País. O projeto já foi apresentado e continua em tramitação. Na Secretaria Municipal da Saúde de Unaí, no Hospital Municipal e mesmo na prefeitura, ninguém passa qualquer informação sobre o uso de agrotóxicos, sobre casos de câncer na região ou sobre a situação da merenda escolar, que prevê que 30% dos produtos adquiridos sejam fornecidos pela agricultura familiar, conforme previsto em lei. Ninguém apresenta dado algum. Nem mesmo as instituições que não são ligadas diretamente ao município. Existe um pacto tácito de silêncio entre os moradores da cidade, talvez por medo, talvez pela impunidade ou ainda, quem sabe, por ameaças ou subornos.
Paulo Melo, morador local, desmistifica a causa de tanta omissão. A população não fala, não se manifesta, não tem coragem de assinar nada. “São três tipos de medo: de perseguição, de corte de subsídios e de morte. Aqui o negócio é meio complicado pra você conseguir informação. Você tem de ir pescando. Quase todos estão presos na mão do prefeito por causa do subsídio. E, se alguém falar qualquer coisa em desacordo com a prefeitura, eles cortam o subsídio. As associações precisam e, por isso, se calam. Eles dependem do sistema”. Melo, que banca a impressão de uma folha mensal escrita por ele, assim como frei Gilvander, já foi ameaçado várias vezes. “A pior ameaça foi uma carta que, para mim, saiu do gabinete do Antério. Inclusive tinha as mesmas palavras usadas na ameaça ao Nelson (fiscal
do trabalho assassinado na chacina de Unaí)”, garante o colunista, que ainda ressalta que a cidade é cercada pela rede de proteção do sionismo, fazendo referência ao grande número de lojas maçônicas da cidade e tentando justificar a contenção de informações nitidamente percebida durante a reportagem. “Nós somos reféns desse povo. Eles mesmos não comem isso aí. Plantam separado ou compram de fora”, disse Giane. Até o fechamento desta edição, a população seguia sem nenhuma resposta sobre o início das obras do Hospital do Câncer do Noroeste Mineiro. Ao lado da Defensoria Pública de Minas Gerais e o Ministério Público, com o Comitê Mineiro contra os Agrotóxicos, frei Gilvander, mesmo sob ameaça, continua pensando em ações judiciais que visem coibir o uso indiscriminado de agrotóxico na região. “Seguimos lutando em defesa da vida, da dignidade humana e de toda a biodiversidade”. A repórter Silvia Valim também foi ameaçada antes de deixar Unaí. A caminho do hotel em que ficou hospedada, no centro da cidade, ouviu o seguinte comentário na rua, em frente a uma lanchonete, seguido da simulação de um disparo de revólver: “jornalista que não tem medo de falar demais leva tiro e depois não sabe o porquê. Eu fecharia a boca”.
Arquivo pessoal
Silvia Valim
iStockPhoto, Fotomontagem MSA
Repórter
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A IGREJA NA HISTÓRIA
Última ação da Guerra dos Trinta Anos, na Ponte Carlos, em Praga, Petri Krohn
Período Barroco Conflitos, arte e filosofia
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Setembro Setembro de de 2013 2013
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ueremos avançar ainda um pouco mais em nossa compreensão do mundo e da mentalidade da Igreja do século XVII. Século decisivo para a História Ocidental, quando as principais e decisivas mudanças geraram de fato o mundo moderno. Século importante também para a Igreja, que conheceu treze papas, de Clemente VIII (1536-1605), sob o qual foi morto o teólogo Giordano Bruno (1548-1600), a Clemente XI (1549-1721), que enfrentou difíceis questões de sucessão política e condenou as ideias jansenistas do teólogo francês Pasquier Quesnel (1634-1719), sobre as quais também falaremos em outra oportunidade. CONFLITOS POLÍTICO-MILITARES Aos conflitos do século XVII, pertencem a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a Guerra Civil Inglesa (1642-1651), que limitou os poderes absolutos do rei inglês e transformou o Parlamento em governante de fato e não mero órgão temporário e consultivo, e a Revolução Gloriosa (1688-1689), que baniu terminantemente o absolutismo e a possibilidade de um rei católico subir novamente ao trono inglês. Tais acontecimentos político-militares são ainda resquícios da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica (a partir de 1517), não um passo adiante para a superação do Absolutismo, como foi a Revolução Francesa (1789-1799). A Guerra dos Trinta Anos teve início nos territórios alemães, mas se espalhou por boa parte da Europa, envolvendo inclusive a França do mais absoluto dos absolutistas, Luís XIV, o Rei Sol. Logicamente também outros assuntos intervieram nesse conflito: rivalidades comerciais, territoriais e de sucessão, ainda
que a religião fosse o mote principal. O Tratado de Paz de Augsburgo, assinado em 1555, propunha que cada príncipe adotasse sua religião para seu território, mas o crescimento dos calvinistas e o refortalecimento do catolicismo por influência dos jesuítas, além de novas ambições, desejos expansionistas do já “manco e curvado” Sacro Império Germânico e a disputa pelo trono da Boêmia, de maioria protestante, causaram o início da guerra. De um lado, a União Evangélica e, de outro, a Liga Católica sempre se superavam em intolerâncias e violências. O fim da devastadora série de conflitos, com graves prejuízos para a Europa, principalmente para os territórios alemães, ocorreu quando se assinou o Tratado de Paz de Vestfália, em 1648, um tanto a contragosto do papa Inocêncio X (1574-1655). No ano seguinte, com a decapitação do rei inglês Carlos I (1600-1649), católico, também teve fim a Guerra Civil Inglesa, que instaurou uma monarquia parlamentar (logo após um curto período sem monarca), em que o Parlamento governava e o rei apenas “reinava”. Depois de Carlos II (1630-1685), assumiu a monarquia Jaime II (1633-1701), também católico, visto com muita desconfiança por puritanos e por anglicanos. Além do fato de assumir uma política de tolerância religiosa, favorecendo o catolicismo, ele fez várias intervenções para diminuir o poder do Parlamento e retomar o poder absoluto. O estopim deflagrador da deposição do monarca foi sua preferência pelo filho católico como seu sucessor, em detrimento da outra filha, Maria II (1662-1694), casada com Guilherme de Orange (1650-1702), ambos protestantes. O Parlamento quis colocar Maria e seu esposo no trono, o que só conseguiu em 1689, depois de um ano e de algumas batalhas, impedindo definitivamente O M E NN SSAAGGEEIIRROO DDEE SSAANNT TOO AANNT TÔ ÔN NI OI O Setembro ddee 22001133 Setembro
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