ME PROVOQUE (Stall Me) Sarah Malta
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Não há nada no mundo que eu deteste mais do que ônibus. Odeio o cheiro de combustível queimado, odeio suas paradas bruscas, odeio a movimentação infernal e incessante, odeio a proximidade imposta a todos os pobres passageiros com pessoas que nem sequer conhecem. Odeio quando começa a chover e eu preciso aguentar respingos no meu cabelo já cheio de frizz. Odeio quando o motorista ainda insiste em parar em cada ponto e adicionar mais gás carbônico ao oxigênio debilitado da condução, embora o ônibus já esteja transportando 327 pessoas. Odeio quando é sexta-feira e um grupo de adolescentes arruaceiros escutam funk carioca nos últimos volumes de suas inúteis caixinhas de som de R$ 60 reais. Odeio, por Deus, como eu odeio quando sou obrigada a sentir todos os cheiros de desodorantes vencidos de todo tipo de trabalhador são-paulino existente. Mas, sem dúvida, o que eu mais odeio em ônibus é não ter como deixar de usá-lo. Não tenho carteira de motorista; para dizer a verdade, nem tenho a mínima ideia de como dirigir um carro. (Onde devo pisar para acelerar? Esquerda ou direita? E para frear? Santo Deus, para que serve uma embreagem? Quando devo mudar de marcha? Sério. Fico nervosa só de pensar.) E, sendo eu uma simples estudante de Relações Internacionais na Universidade de São Francisco, que mora com os pais e trabalha em uma pizzaria, você já deve saber que eu não tenho grana para comprar um carro. Mesmo que soubesse dirigi-lo. De modo que o ônibus se tornou minha única opção — isto é, se eu quiser estudar e ser alguma coisa na vida. Hoje era só mais um dia, e aqui estava eu. Em pé na parada de ônibus em frente ao shopping, onde eu havia passado depois da aula para comprar alguns livros, alguns CD’s e um novo fone de ouvido. Ontem foi meu dia de pagamento, e eu consegui pagar a fatura vencida do cartão de crédito para poder usá-lo hoje. Portanto, olha, dava até pra dizer não era um dia tão ruim assim. Isto é, se você tirar toda a parte da aula de Sistema Monetário e Financeiro Internacional, a parte de acordar cedo, e a parte de andar de ônibus. Melhor: vamos classificar como ―não tão ruim assim‖ só o tempo que passei na Fnac. Então quando o ônibus ―Bragança Paulista – Vargem‖ passou, eu quase caí para trás quando vi que ele estava praticamente vazio — o que, na língua de um cidadão Paulista de classe média, quer dizer que havia dois ou três assentos vagos. Meu Deus!, pensei, tentando manter-me de pé e consciente. Só pode ser um milagre! Será que algo de terrível vai acontecer com este ônibus e isso seria um sinal para eu não entre? Será que se eu aproveitar essa oportunidade, o ônibus será assaltado/capotado/explodido de alguma forma? Ingryd idiota. É claro que eu pulei para dentro do ônibus o quanto antes. Fiz questão de pagar o cobrador o mais rápido possível e me direcionei como um furacão para o assento vazio, no meio da condução, ao lado de um garoto fofo com cara de índio. Não sei dizer exatamente por que fiz aquilo. É como se alguma parte do meu cérebro soubesse que, se eu não ocupasse um dos assentos naquele exato momento, alguém acabaria pulando na minha frente e sentando-se primeiro. Mesmo que eu fosse a única pegando o ônibus. Finalmente instalada na confortável poltrona — saboreie a ironia —, respirei fundo e deixei que o cheiro gostoso de dísel queimado — agora se lambuze com ela — adentrasse minhas narinas, antes de pegar o celular na mochila para que pudesse escutar alguma música. Acabei optando pelo primeiro álbum de minha banda preferida, a Panic! At The Disco. Que é uma das melhores bandas que esse mundo já teve a honra de receber, se você quer compartilhar da minha opinião. Ainda que seja mais fácil você decorar a letra da maior parte das músicas em mandarim do que se lembrar do nome completo de outras. (Quer dizer: There's a Good Reason These Tables Are Numbered, Honey, You Just Haven't Thought of It Yet. 1 Sério.) De qualquer maneira, isso não é um fato que me chateie em relação à banda. As músicas são animadas e enevoadas, ótimas para se escutar em um ônibus, onde eu, milagrosamente, não estava viajando em pé. Isso parecia bom. Agora, eu só precisava fechar os olhos por alguns minutos, esperar a reprodução mp3 do celular atingir a faixa 10, e descer do ônibus, sem dor nas pernas dessa vez. Olha. Isso não estava tão ruim assim. Não, até, é claro, alguém arrancar um dos meus fones de ouvido no meio da faixa cinco. Virei-me para matar.
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Faixa 12 do CD “A Fever You Can’t Sweet Out” da banda de rock alternativo norte americana Panic! At The Disco. Na tradução: “Existe uma boa razão para essas mesas estarem numeradas, querido, você apenas ainda não pensou sobre isso”. (N.A.)
— Oh meu Deus, Ingryd! Ingryd Prado! — oi? Como é? O garoto com cara de índio que eu ia matar me conhecia? — Cara, é você mesma! Quanto tempo, hein? Devo ter olhado para ele com a maior cara de ―de onde diabos você surgiu?‖, por que ele sorriu e perguntou: — Não lembra de mim? Franzi o cenho, olhando para o moleque índio que ainda me encarava, sorrindo. Ainda sentia vontade de matá-lo, e fiz questão de deixar isso bem explícito em minha expressão. Também na minha educação. De modo que respondi, apenas: — Não. E recoloquei meu fone bem lentamente, subtendendo: e não puxe esse fio de novo, seu grande filho de uma vaca gorda. O rapaz sorriu de novo, mas acho que captou a mensagem subtendida, pois não retirou meus fones. Bom para ele. Com os fones, Brendon Urie gritando em meus ouvidos, Ryan, Jon e Spencer tocaram sua música a todo vapor. O que não pôde impedir que eu escutasse a voz do rapaz ao meu lado: — Fiz a quinta série com você. Pedro Lucas. Não lembra mesmo, nem um pouquinho? Suspirei. Meu querido, eu passei inacabáveis quatorze anos dentro de uma sala de aula, incluindo a préescola, o ensino fundamental e o ensino médio. Estudei aproximadamente com 450 pessoas durante a vida. Como diabos você quer que eu me lembre de um guri esquisito que por algum motivo estudou comigo oito anos atrás?! Quis gritar tudo isso para o Pedro Lucas, ao meu lado, que ainda sorria. Mas pensei que seria muita grosseria de minha parte. — Não lembro mesmo — disse, apertando os lábios e voltando o olhar para o nada. Honestamente, meu dia podia até estar bom, mas não estava tão maravilhoso para que eu pudesse reestabelecer o contato de uma das piores épocas da minha vida. Meus onze anos, quero dizer. Quando você descobre a puberdade, cansa de assistir As Meninas Superpoderosas e pergunta a Deus todo santo dia o porquê de seus peitos não crescerem. Quando você faz quinze, desiste de perguntar e volta a assistir As Meninas Superpoderosas. Mas essa já é outra fase. — Puxa, me sinto mal — Pedro continuou falando, como se não sacasse todas as minhas tentativas de ―não socializar‖. Controlei-me o máximo que pude para não suspirar e passar uma mão pelo rosto, chateada. — Eu tinha uma queda enorme por você. Então eu suspirei e passei uma mão pelo rosto, chateada. — Sabe, Pedro, não me leve a mal — eu retirei meus fones. Sério. Retirei meus fones. E acredite em mim: quando eu retiro meus fones, é por que você me irritou. Irritou de verdade. — Mas se você realmente não quer se sentir mal em relação ao meu total desconhecimento sobre você, desculpe, você deveria ter dito que tinha uma queda enorme por mim quando de fato tinha uma queda enorme por mim. — Não disse a ele que essas ocasiões eram raríssimas. — Aí, eu posso garantir, me lembraria de você com certeza. Pedro riu da minha cara. Já estava quase vomitando nele. — Bem, você não iria gostar de mim de qualquer jeito — disse ele, dando ombros, fazendo com que roçassem nos meus. — Eu era muito fofinho, se é que você me entende. Mas, sabe, a gente pode recuperar o tempo perdido agora que sou alto e atlético. Quer sair um dia desses? Eu mereço. Agora entendo o porquê de o ônibus estar vazio. É isso aí. Deus quis me mandar um aviso de que eu encontraria o Pedro Lucas aqui e teria de aturar sua presença entediante, e eu, louca por comodidade como sou, não entendi os sinais claros de que algo estava errado naquela situação inteira. Não. Eu tive de ignorar tudo, por mais evidente que estivesse. Saquei, Deus. Entendi. Da próxima vez eu espero o ônibus vir lotado para ter certeza de que nada de ruim vai acontecer. (Ou não.) De qualquer maneira, encarei o Pedro Lucas ao meu lado como se ele houvesse acabado de me dizer que havia contraído AIDS. Ele dava um meio sorriso completamente convencido, e seus olhos muito pretos me encaravam como se estivessem implorando por um sim. Uau, parabéns, rapaz, você tem um belo olhar de flerte. Que pena ter de desapontá-los. ―Não vai dar, querido. Passei na USF e pretendo dedicar os próximos quatro anos inteiramente ao estudo, portanto, namorar realmente não é uma boa ideia. Não tenho tempo para isso, me desculpe‖. Isso é o que eu diria, caso fosse fofa.
— Humm... não, valeu — como não sou, fui breve e curta. Voltei para a Panic! At The Disco e virei o rosto como se Pedro Lucas não estivesse ali. Eu sei que as regras de socialização deveriam sugerir que eu aceitasse tomar pelo menos um chopp com ele. Ou, se ele não bebesse, um café. Ou, na pior das hipóteses, um pastel de queijo com caldo de cana. Mas acontece que eu realmente não estava a fim, pelos motivos que listei acima, mas não contei ao Pedro. Estou estudando muito, sério, tanto na faculdade quanto em casa. Durmo aproximadamente seis horas por dia. Vou para a faculdade de manhã, volto para casa (hoje é uma exceção). Estudo (e, no máximo, checo meu Facebook). Tomo um banho e vou trabalhar. Não tenho tempo nem para fazer amigos. Não tenho tempo nem para ler (o que pode te deixar intrigado do porquê de ainda continuar comprando livros, mas eu os lerei todos, acredite). Um namorado seria completamente inviável. Não importa o quanto minha bisavó adore jogar na minha cara que, na minha idade, já havia parido quatro crianças. Os tempos são outros, bisa. Lide com isso. Sua jovenzinha decidiu se guardar para os ingleses, quando ela finalmente conseguir a transferência de seu curso de Relações Internacionais para Londres. — Por favor, Ingryd, cadê a consideração? Acabei de me declarar completamente para você e não tenho direito nem a um encontro? — a voz dele atravessava o instrumental dos meninos da P!ATC, o que me deixou bastante irritada. Gostaria realmente de encerrar aquela conversa, não importa se eu precisasse ser uma filha da mãe mal educada. Mais uma razão para ele não querer sair comigo. Por isso, fui fofa mais uma vez e fingi não ouvi-lo. — Eu sei que você está me escutando. E, sério mesmo, acho que você deveria dar uma chance para o Pedro aqui — meu Deus, que esperto, ele fala de si mesmo na terceira pessoa. — Quer que eu faça uma lista de motivos pelos quais você tem que sair comigo? — Nos nossos três minutos de conversa eu já posso citar uma lista de motivos pelos quais eu não tenho que sair com você — encarei-o. Nossos ombros ainda roçavam um no outro pelo movimento do ônibus, mas eu honestamente poderia dispensar essa proximidade. Pedro não era muito forte ou espaçoso para que a poltrona ficasse tão pequena para nós. Quer dizer, era, mas... Eu poderia dispensar, o.k.? Contato físico em casos como esse não é nada legal. — Sabia que você estava me escutando — ele sorriu para mim, mesmo que eu estivesse enforcando-o com o olhar. Seus globos pretos brilhavam para mim também. Mas isso só me enfurecia mais. — Vamos lá, eu sou legal. Sou engraçado. Sou sociável e carinhoso. Tenho um emprego decente. Não uso drogas, nem fumo, raramente bebo, não tenho ficha criminal... Respirei fundo. — Você não tem um carro — disse eu, calando a boca do Pedro Lucas e virando-me para frente de uma vez. Finalmente! Mas, ele não parou de falar, como você e eu pensamos. Seu silêncio só durou cinco segundos. — Você tem razão — ele insistiu. — Mas sei fazer ligação direta. Posso roubar qualquer carro para você. Eu não ri. Juro. Não ri por fora. Mas por dentro eu estava rindo. Estava rolando de rir. — Muito lisonjeiro. Mas eu prefiro ficar quieta e escutar minha música até o trabalho, e sei que você vai me deixar em paz, por que você é um cara super ―legal‖ — disse eu, relembrando-me de sua lista idiota. Minha mãe vivia dizendo que a melhor maneira de espantar um homem é sendo simpática com ele. Por isso não comecei a gritar, xingá-lo e etc. Acredite em mim, era exatamente o que eu queria fazer. Embora eu ainda estivesse rindo por dentro por causa da piada da ligação direta. — É aí que você se engana. Posso ser legal, mas esqueci de mencionar que sou insistente e que isso pode ser totalmente desagradável. E eu sei que estou fazendo a coisa certa por que não são muitas garotas por aí que usam o vocábulo ―lisonjeiro‖ em uma conversa de ônibus — ele sorria enquanto falava, bem-humorado. Respirei fundo e levantei meu celular, aumentando o volume. Meus fones novos não eram muito potentes, mas ele não precisava saber disso. — Você ainda está me escutando, Ingryd. Não é nada demais, poxa, só estou te pedindo um encontro! Não vai te matar! Uma saída. Um cinema. Um jantar. Um chopp. Um pastel com caldo de cana? — eu continuava ignorando-o. Nem sequer olhei para seu rosto. Tentei me perder na música, balançando a cabeça discretamente. — Não finja que não está me escutando. Sei que está. E está me ignorando por que sabe que não vai resistir e vai acabar saindo comigo. Vamos, acaba logo com isso. Você só precisa dizer sim. — Ele não parava de insistir. Eu, por minha vez, era tão cínica que já estava até cantarolando a letra da música. — Vamos continuar a lista, então, né? Lá vai, então: eu sou bonito. Por dentro e por fora. Cheguei a mencionar que sou bem dotado? — Eu não o olhava, mas realmente desejei não ter escutado aquilo. Fingi não ter ouvido nada. Outra vez. — Ingryd. Vamos lá. Eu sei que você me ouve. Qual é. — Ele estalou os dedos na frente dos meus olhos. Respirei fundo, ignorando-o totalmente. — Tá, vou recitar um poema para você: rosas são vermelhas, violetas são azuis. Meu nome é Pedro, por favor me dê atenção.
Ai, meu Deus. Tudo bem. Não me julgue por isso, mas dessa vez eu não me aguentei. Deixei uma risadinha escapar. Sério, de onde havia surgido aquele garoto? Quanta insistência! Honestamente, eu não podia estar sendo mais desagradável, grossa e filha da mãe, mas ele continuava batendo na tecla. Caramba. Eu não me lembrava do Pedro Lucas quando tinha onze anos, e estava começando a suspeitar que meu cérebro o bloqueara da minha memória. Como acontece com aquelas pessoas que têm experiências muito traumáticas e acabam esquecendo-se de tudo para se absterem do sofrimento, involuntariamente. Não conseguia entender o porquê de ele querer tanto sair comigo. Seria eu um fetiche antigo? Quem sabe eu possa ter provocado sua primeira ereção, sei lá. Não estou dizendo isso como se eu fosse uma modelo, por que não, eu não sou. Não sou ―gostosa‖. Sou, na verdade, medianamente bonita, acho. Sabe? Olhos castanhos, cabelos ondulados, um e setenta de altura. Aos onze anos, eu era a mesma coisa que sou hoje, só que bem mais magra, bem mais baixa e com bem mais espinhas (e com bem menos seios). O que me confunde ainda mais. Estava quase chegando à conclusão de que o Pedro Lucas era, na verdade, algum tipo de louco. — Uma risada! Finalmente alguma coisa! Como você não riu da piada da ligação direta e está rindo do poema? — Pedro continuou a encher o meu saco. Suspirei, decidida a acabar com aquilo. Retirei os fones. Cara, ele merecia ser metralhado por me fazer retirar meus fones duas vezes em menos de meia hora. — Escuta, vou ser bem direta — disse eu, virando-me totalmente para ele e encarando-o duramente. — Eu não estou a fim de sair com você. Foi mal. É isso. Não vou sair contigo. Não importa o quanto você seja insistente e chato e me liste as suas qualidades. Simplesmente não quero sair com você e não vou fazer nada que eu não queira. Encarei o Pedro Lucas ao meu lado esperando que seu rosto se contraísse pela minha grosseria. Normalmente não sou tão desagradável com as pessoas, eu juro, não pense que eu sou uma senhora virgem de cara fechada que anda xingando o mundo inteiro por aí. Não é assim que as coisas funcionam. Quer dizer, o Pedro Lucas parecia mesmo uma pessoa legal, e minha intenção ali não era magoá-lo. Garanto. Digamos que eu aprendi da pior maneira que é melhor se manter longe de caras engraçadinhos. Melhor prevenir do que remediar, é o que dizem. Entretanto, ao contrário do que eu pensei, o Pedro Lucas não ficou com raiva de mim. Ele não contraiu o rosto, não me xingou, nem sequer revirou os olhos. Também não me encarou com aquela expressão de desprezo e jogou as mãos para cima, como se dissesse: ―Uau! Tudo bem, senhorita souboa-demais-para-você‖. Não. Em seus olhos muito pretos perdidos em sua pele morena de índio, eu não vi nenhum vestígio de um sentimento ruim. Em seu rosto, nada mais tinha do que humor. Na boa. Humor. O Pedro Lucas riu. — Tudo bem, então — disse ele, dando de ombros. Por algum motivo, sua frase soara exatamente o oposto na minha cabeça. — Você pode não querer sair comigo, mas eu tenho toda a liberdade para te convencer do contrário. Meu Deus do Céu. Ele não vai desistir. Em resposta ao seu argumento ridículo, minha boca quase disse um ―tente‖. Mas pensei que eu deixasse que essa frase saísse, o Pedro pudesse interpretar como um flerte. Eu sabia muito bem que aquela seria a hora inapropriada para paquerar. Sobretudo quando eu não queria paquerar, por que não queria sair com ele, e por que não queria namorar. E, não, também não queria nada de amizade colorida ou relacionamento aberto, como você pode sugerir apenas para ter o que se entreter. Não é assim que a banda toca para a Ingryd. Por isso, fiz a melhor coisa que poderia ter feito: bufei e virei o rosto, incomodada com sua presença. — Onde você desce? Suspirei. Não, ele não vai me deixar em paz. Não, eu não vou conseguir escutar esse CD hoje. — Na Praça Central — mas por algum motivo eu disse a ele para onde estava indo. Sabe, como se ele houvesse ganhado a briga argumentativa por insistência. Por que se eu dissesse ―não te interessa‖, ele diria ―se não me interessasse eu não perguntaria‖, então eu diria ―vai se danar‖, e ele diria algo como ―só se for com você‖ etc., e eu não estava a fim. — Tenho que trabalhar — disse antes que ele perguntasse, por que, sabe, se ele perguntasse o que eu iria fazer na Praça, e eu dissesse ―não te interessa‖, ele ia dizer ―se não me interessasse eu não perguntaria‖, etc. É um ciclo sem fim. Mas meu tom de voz estava obscuro e tedioso de qualquer maneira.
— Puxa, não sabia que existiam demônios na Praça. Você tem matado todos? Dean e Sam têm te ajudado? Então eu me lembrei do Pedro Lucas. Digamos apenas que eu passei a adolescência inteira obcecada pela série Supernatural. Minha irmã, Fernanda, tinha quinze anos quando começou a assistir e eu assistia com ela. Era a única coisa que fazíamos juntas na época. Eu costumava dizer que Jared Paladecki casaria comigo. Então, enquanto todas as meninas da minha sala caíam de amores pelo Zac Efron ou pelos carinhas mexicanos da banda Rebelde, eu estava maluca de paixão por anjos e demônios, por Sam e Dean (como a família Winchester podia gerar genes tão bons?), e por tudo o que envolvia o que era sobrenatural. Um garoto sentava-se a minha frente e me ouviu discutindo com uma garota sobre como High School Musical era superficial e uma porcariada feita para alienar garotinhas pré-adolescentes sem um cérebro na cabeça (eu também era uma pré-adolescente, mas não gostava de assumir isso). A garota já estava quase arrancando minha cabeça quando eu ressaltei pequeno fato de que aquele musical mal feito nunca aconteceria em sua vida, uma vez que ela morava em Vargem, uma cidade do interior de São Paulo que ninguém conhecia. ―Você nem fala inglês!‖, disse eu, indignada. Assim sendo, ela me chamou de idiota e disse que nunca voltaria a falar comigo, por nada nesse mundo. O garoto, que ouvira tudo, virou-se para mim com o maior sorriso que já vi na vida. Disse que aquilo fora a coisa mais verdadeira que ele já escutara. E perguntou se eu assistia Supernatural — algo dentro de mim dizia que ele sabia que sim —, e eu respondi positivamente. No dia seguinte, assim que cheguei à sala de aula, ele se virou para mim e disse: ―guardei lugar para você, Sam‖. Ainda que eu soubesse que o Sam era um garoto, eu me lembro de ter achado aquele apelido a coisa mais legal e fofa do mundo. Comecei a chamar o garoto de Dean, por conseguinte. Passávamos a aula quase toda discutindo maneiras de matar demônios e tentando adivinhar o que aconteceria na segunda temporada. Dividíamos nosso lanche no intervalo e, ao invés de irmos para o refeitório e escutarmos as músicas ruins que exibiam para nós, ficávamos na sala conversando, comendo, fazendo as tarefas ou lendo. Nunca chamei Dean por outro nome senão Dean. Mas ele respondia à chamada como Pedro Lucas. Meio desnorteada, tentando lidar com os meus pensamentos, encarei o Dean/Pedro Lucas à minha frente. Céus. Era ele. Mais alto, com certeza, mais forte, mais magro, sem aparelho nos dentes. Mas era ele. Com certeza era ele. Minha nossa. Abri a boca para dizer alguma coisa, qualquer coisa plausível, quando meus olhos foram para a janela e eu percebi que passara pela Praça José Guilherme de Oliveira. Teria de andar uns bons cinco minutos para chegar ao meu destino. Droga. Não podia deixar o ônibus simplesmente continuar a rodar. Levantei-me. — Preciso ir — disse ao Pedro Lucas, que me encarou com confusão nos olhos muito pretos de índio. Puxei a cordinha com tanta força que ela quase quebrou e saltei do ônibus na parada seguinte, quase desesperadamente. Segundo o relógio do meu celular, eu já estava mais do que atrasada para o trabalho. Mesmo assim, só consegui tirar os olhos do ônibus depois que ele virou a rua, sumindo de vista.