Pronta Para Ir - Sarah Malta

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Pronta Para Ir Sarah Malta Capa: Ana JĂşlia Desenhos


Sinopse Ingryd Prado tem uma vida perfeita — com a deliciosa exceção de seu emprego horrível, sua faculdade terminantemente difícil, sua irmã vulgar, seu ex-namorado inconveniente e, é claro, sua necessidade de pegar ônibus todo santo dia útil. Entretanto, ao reencontrar um ex-colega de classe — e não gostar nada disso no primeiro momento — Ingryd vê sua vida desgostosa virar completamente do avesso. Pedro Lucas, que prefere perder o amigo ao perder a piada, com sua irritante insistência e eminente consciência da própria atratividade física, ensina a nossa protagonista a alegria de viver e se apaixonar. Às vezes, a vida impõe condições nada justas às pessoas e as fazem escolher entre um caminho e outro, sem dar uma dica de qual decisão é a correta. Será que Ingryd está pronta para tomar a decisão, por mais dolorosa que pareça? Será que ela está Pronta Para Ir?


Nota da Autora Esta história é fictícia; eu a inventei. Os nomes aqui utilizados são meramente ilustrativos — e isso inclui as cidades de Vargem e Bragança Paulista, e até mesmo a beliche que fica no canto esquerdo do quarto da Ingryd. Como todo escritor — perceba que eu não disse ―todo bom escritor‖ —, utilizei-os de acordo com a minha comodidade, muito obrigada. Por exemplo: o Clube Atlético Bragantino não possui um time juvenil, e não existe uma pizzaria ―Al Gusto‖ no centro da cidade. Esta não é uma história baseada em fatos reais. Qualquer semelhança — E VOCÊ SABE QUE EU TINHA QUE DIZER ESSE CLICHÊ — é mera coincidência.


Talvez eu deva ser forte Pedir ao mar por mais sorte E aprender a navegar

Mallu Magalhães, ―Por Que Você Faz Assim Comigo‖


Sumário Capítulo 1. Pior do que pegar um ônibus é ter de aturar um moleque falante dentro dele Capítulo 2. O dia já não estava estressante o bastante Capítulo 3. A natural neurose da minha irmã somada ao meu desagradável ex-namorado Capítulo 4. Nada como uma noite (a)normal de trabalho Capítulo 5. Amigos são para essas coisas Capítulo 6. Eles não estão me manipulando Capítulo 7. Só deu certo porque deu errado Capítulo 8. Beijar pessoas pode te deixar pensativa Capítulo 9. Seja honesta, seja honesta, seja honesta Capítulo 10. Nada como uma noite (a)normal de trabalho – parte II Capítulo 11. ESTOU MESMO NAMORANDO?! Capítulo 12. Agradeço a quem me impedir de subir demais Capítulo 13. É possível amar um cachorro à primeira vista Capítulo 14. Não sou apaixonada pela ideia de dirigir. Nem de brigar. Capítulo 15. Surpresa no meio de uma madrugada triste Capítulo 16. Feliz aniversário, Ingryd Capítulo 17. Aprendendo a observar Capítulo 18. Falar é bom Capítulo 19. Falar não é tão bom assim Capítulo 20. Cunhado não é parente Capítulo 21. Um desses dias excepcionais Capítulo 22. O medo é o sapato e eu sou o inseto Capítulo 23. Minha natural capacidade de provocar o que eu mais temia Capítulo 24. Eu não acho que vá a lugar algum Capítulo 25. Eu só quero que cicatrize Capítulo 26. Escolhi ser feliz Capítulo 27. A melhor noite de comemorações Epílogo. Melhor aula de trânsito da história


Capítulo 1 Pior do que pegar um ônibus é ter de aturar um moleque falante dentro dele

Não há nada no mundo que eu deteste mais do que ônibus. Odeio o cheiro de combustível queimado, odeio suas paradas bruscas, odeio a movimentação infernal e incessante, odeio a proximidade imposta a todos os pobres passageiros com pessoas que sequer se conhecem. Odeio quando começa a chover e eu preciso aguentar respingos no meu cabelo já cheio de frizz. Odeio quando o motorista ainda insiste em parar em cada ponto e adicionar mais gás carbônico ao oxigênio debilitado da condução, embora o ônibus já esteja transportando 327 pessoas. Odeio quando é sexta-feira e um grupo de adolescentes arruaceiros escutam funk carioca nos últimos volumes de suas inúteis caixinhas de som de R$ 60 reais. Odeio, por Deus, como eu odeio quando sou obrigada a sentir todos os cheiros de desodorantes vencidos de todo tipo de trabalhador sãopaulino existente. Mas, sem dúvida, o que eu mais odeio em ônibus é não ter como deixar de usálo. Não tenho carteira de motorista; para dizer a verdade, nem tenho a mínima ideia de como dirigir um carro. (Onde devo pisar para acelerar? Esquerda ou direita? E para frear? Santo Deus, para que serve uma embreagem? Quando devo mudar de marcha? Sério. Fico nervosa só de pensar.) E, sendo eu uma simples estudante de Relações Internacionais na Universidade de São Francisco, que mora com os pais e trabalha em uma pizzaria, você já deve saber que eu não tenho grana para comprar um carro. Mesmo que soubesse dirigi-lo. De modo que o ônibus se tornou minha única opção — isto é, se eu quiser estudar e ser alguma coisa na vida. Hoje era só mais um dia, e aqui estava eu. Em pé na parada de ônibus em frente ao shopping, onde eu havia passado depois da aula para comprar um livro e um novo fone de ouvido. Tendo recebido meu salário ontem, consegui pagar a fatura vencida do cartão de crédito para poder usá-lo hoje. Portanto, dava até para dizer que não era um dia tão ruim assim. Isto é, se você tirar toda a parte da aula de Sistema Monetário e Financeiro Internacional, a parte de acordar cedo, e a parte de andar de ônibus. Melhor: vamos classificar como ―não tão ruim assim‖ só o tempo que passei na Fnac. Então quando o ônibus ―Bragança Paulista – Vargem‖ passou, eu quase caí para trás quando vi que ele estava praticamente vazio — o que, na língua de um cidadão Paulista de classe média, quer dizer que havia dois ou três assentos vagos. Meu Deus!, pensei, tentando manter-me de pé e consciente. Só pode ser um milagre! Será que algo de terrível vai acontecer com este ônibus e isso seria um sinal para que eu não entre? Será que se eu aproveitar essa oportunidade, o ônibus será assaltado/capotado/explodido de alguma forma? Ingryd idiota. É claro que eu pulei para dentro do ônibus o quanto antes. Fiz questão de pagar o cobrador o mais rápido possível e me direcionei como um furacão para o assento vazio, no meio da condução, ao lado de um garoto fofo com cara de índio. Não sei dizer exatamente por que fiz aquilo. É como se alguma parte do meu cérebro soubesse que, se eu não ocupasse um dos assentos naquele exato momento, alguém acabaria pulando na minha frente e sentando-se primeiro. Mesmo que eu fosse a única pegando o ônibus.


Finalmente instalada na confortável poltrona — saboreie a ironia —, respirei fundo e deixei que o cheiro gostoso de diesel queimado — agora se lambuze com ela — adentrasse minhas narinas, antes de pegar o celular na mochila para que pudesse escutar alguma música. Acabei optando pelo primeiro álbum de minha banda preferida, a Panic! At The Disco. Que é uma das melhores bandas que esse mundo já teve a honra de receber, se você quer compartilhar da minha opinião. Ainda que seja mais fácil você decorar a letra da maior parte das músicas em mandarim do que se lembrar do nome completo de outras. (Quer dizer: There's a Good Reason These Tables Are Numbered, Honey, You Just Haven't Thought of It Yet. 1 Sério.) De qualquer maneira, isso não é um fato que me chateie em relação à banda. As músicas são animadas e enevoadas, ótimas para se escutar em um ônibus, onde eu, milagrosamente, não estava viajando em pé. Isso parecia bom. Agora, eu só precisava fechar os olhos por alguns minutos, esperar a reprodução mp3 do celular atingir a faixa 10, e descer do ônibus, sem dor nas pernas dessa vez. Olha. Isso não estava tão ruim assim. Não, até, é claro, alguém arrancar um dos meus fones de ouvido no meio da faixa cinco. Virei-me para matar. — Oh meu Deus, Ingryd! Ingryd Prado! — oi? Como é? O garoto com cara de índio que eu ia matar me conhecia? — Cara, é você mesmo! Quanto tempo, hein? Devo ter olhado para ele com a maior cara de ―de onde diabos você surgiu?‖, porque ele sorriu e perguntou: — Não se lembra de mim? Franzi o cenho, olhando para o moleque índio que ainda me encarava, sorrindo. Ainda sentia vontade de matá-lo, e fiz questão de deixar isso bem explícito em minha expressão. Também na minha educação. De modo que respondi, apenas: — Não. E recoloquei meu fone bem lentamente, subtendendo: e não puxe esse fio de novo, seu grande filho de uma vaca gorda. O rapaz sorriu de novo, mas acho que captou a mensagem subtendida, pois não retirou meus fones. Bom para ele. Com os fones, Brendon Urie gritando em meus ouvidos, Ryan, Jon e Spencer tocaram sua música a todo vapor. O que não pôde impedir que eu escutasse a voz do rapaz ao meu lado: — Fiz a quinta série com você. Pedro Lucas. Não lembra mesmo, nem um pouquinho? Suspirei. Meu querido, eu passei inacabáveis quatorze anos dentro de uma sala de aula, incluindo a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio. Estudei aproximadamente com 450 pessoas durante a vida. Como diabos você quer que eu me lembre de um guri esquisito que por algum motivo estudou comigo oito anos atrás?! Quis gritar tudo isso para o Pedro Lucas, ao meu lado, que ainda sorria. Mas pensei que seria muita grosseria de minha parte. — Não lembro mesmo — disse, apertando os lábios e voltando o olhar para o nada. Honestamente, meu dia podia até estar bom, mas não estava tão maravilhoso para que eu pudesse reestabelecer o contato de uma das piores épocas da minha vida. 1

Faixa 12 do CD “A Fever You Can’t Sweet Out” da banda de rock alternativo norte-americana Panic! At The Disco. Na tradução: “Existe uma boa razão para essas mesas estarem numeradas, querido, você apenas ainda não pensou sobre isso”. (N.A.)


Meus onze anos, quero dizer. Quando você descobre a puberdade, cansa de assistir As Meninas Superpoderosas e pergunta a Deus todo santo dia o porquê de seus peitos não crescerem. Quando você faz quinze, desiste de perguntar e volta a assistir As Meninas Superpoderosas. Mas essa já é outra fase. — Puxa, me sinto mal — Pedro continuou falando, como se não sacasse todas as minhas tentativas de ―não socializar‖. Controlei-me o máximo que pude para não suspirar e passar uma mão pelo rosto, chateada. — Eu tinha uma queda enorme por você. Então eu suspirei e passei uma mão pelo rosto, chateada. — Sabe, Pedro, não me leve a mal — eu retirei meus fones. Sério. Retirei meus fones. E acredite em mim: quando eu retiro meus fones, é por que você me irritou. Irritou de verdade. — Mas se você realmente não quer se sentir mal em relação ao meu total desconhecimento sobre você, desculpe, você deveria ter dito que tinha uma queda enorme por mim quando de fato tinha uma queda enorme por mim. — Não disse a ele que essas ocasiões eram raríssimas. — Aí, eu posso garantir, me lembraria de você com certeza. Pedro riu da minha cara. Já estava quase vomitando nele. — Bem, você não iria gostar de mim de qualquer jeito — disse ele, dando ombros, fazendo com que roçassem nos meus. — Eu era muito fofinho, se é que você me entende. Mas, sabe, a gente pode recuperar o tempo perdido agora que sou alto e atlético. Quer sair um dia desses? Eu mereço. Agora entendo o porquê de o ônibus estar vazio. É isso aí. Deus quis me mandar um aviso de que eu encontraria o Pedro Lucas aqui e teria de aturar sua presença entediante, e eu, louca por comodidade como sou, não entendi os sinais claros de que algo estava errado naquela situação inteira. Não. Eu tive de ignorar tudo, por mais evidente que estivesse. Saquei, Deus. Entendi. Da próxima vez eu espero o ônibus vir lotado para ter certeza de que nada de ruim vai acontecer. (Ou não.) De qualquer maneira, encarei o Pedro Lucas ao meu lado como se ele houvesse acabado de me dizer que havia contraído AIDS. Ele dava um meio sorriso completamente convencido, e seus olhos muito pretos me encaravam como se estivessem implorando por um sim. Uau, parabéns, rapaz, você tem um belo olhar de flerte. Que pena ter de desapontá-los. ―Não vai dar, querido. Passei na USF e pretendo dedicar os próximos quatro anos inteiramente ao estudo, portanto, namorar realmente não é uma boa ideia. Não tenho tempo para isso, me desculpe‖. Isso é o que eu diria, caso fosse fofa. — Hum... não, valeu — como não sou, fui breve e curta. Voltei para a Panic! At The Disco e virei o rosto como se Pedro Lucas não estivesse ali. Eu sei que as regras de socialização deveriam sugerir que eu aceitasse tomar pelo menos um chope com ele. Ou, se ele não bebesse, um café. Ou, na pior das hipóteses, um pastel de queijo com caldo de cana. Mas acontece que eu realmente não estava a fim, pelos motivos que listei acima, mas não contei ao Pedro. Estou estudando muito, sério, tanto na faculdade quanto em casa. Durmo aproximadamente seis horas por dia. Vou para a faculdade de manhã, volto


para casa (hoje é uma exceção). Estudo (e, no máximo, checo meu Facebook). Tomo um banho e vou trabalhar. Não tenho tempo nem para fazer amigos. Não tenho tempo nem para ler (o que pode te deixar intrigado do porquê de ainda continuar comprando livros, mas eu os lerei todos, acredite). Um namorado seria completamente inviável. Não importa o quanto minha bisavó adore jogar na minha cara que, na minha idade, já havia parido quatro crianças. Os tempos são outros, bisa. Lide com isso. Sua jovenzinha decidiu se guardar para os ingleses, quando ela finalmente conseguir a transferência de seu curso de Relações Internacionais para Londres. — Por favor, Ingryd, cadê a consideração? Acabei de me declarar completamente para você e não tenho direito nem a um encontro? — a voz dele atravessava o instrumental dos meninos da P!ATC, o que me deixou bastante irritada. Gostaria realmente de encerrar aquela conversa, não importa se eu precisasse ser uma filha da mãe mal educada. Mais uma razão para ele não querer sair comigo. Por isso, fui fofa mais uma vez e fingi não ouvi-lo. — Eu sei que você está me escutando. E, sério mesmo, acho que você deveria dar uma chance para o Pedro aqui — meu Deus, que esperto, ele fala de si mesmo na terceira pessoa. — Quer que eu faça uma lista de motivos pelos quais você tem que sair comigo? — Nos nossos três minutos de conversa eu já posso citar uma lista de motivos pelos quais eu não tenho que sair com você — encarei-o. Nossos ombros ainda roçavam um no outro pelo movimento do ônibus, mas eu honestamente poderia dispensar essa proximidade. Pedro não era muito forte ou espaçoso para que a poltrona ficasse tão pequena para nós. Quer dizer, era, mas... Eu poderia dispensar, o.k.? Contato físico em casos como esse não é nada legal. — Sabia que você estava me escutando — ele sorriu para mim, mesmo que eu estivesse enforcando-o com o olhar. Seus globos pretos brilhavam para mim também. Mas isso só me enfurecia mais. — Vamos lá, eu sou legal. Sou engraçado. Sou sociável e carinhoso. Tenho um emprego decente. Não uso drogas, raramente bebo, não tenho ficha criminal... Respirei fundo. — Você não tem um carro — disse eu, calando a boca do Pedro Lucas e virando-me para frente de uma vez. Finalmente! Mas, ele não parou de falar, como você e eu pensamos. Seu silêncio só durou cinco segundos. — Você tem razão — ele insistiu. — Mas sei fazer ligação direta. Posso roubar qualquer carro para você. Eu não ri. Juro. Não ri por fora. Mas por dentro eu estava rindo. Estava rolando de rir. — Muito lisonjeiro. Mas eu prefiro ficar quieta e escutar minha música até o trabalho, e sei que você vai me deixar em paz, porque você é um cara super ―legal‖ — disse eu, relembrando-me de sua lista idiota. Minha mãe vivia dizendo que a melhor maneira de espantar um homem é sendo simpática com ele. Por isso não comecei a gritar, xingá-lo e etc. Acredite em mim, era exatamente o que eu queria fazer. Embora eu ainda estivesse rindo por dentro por causa da piada da ligação direta. — É aí que você se engana. Posso ser legal, mas esqueci de mencionar que sou insistente e que isso pode ser totalmente desagradável. E eu sei que estou fazendo a coisa certa porque não são muitas garotas por aí que usam o vocábulo ―lisonjeiro‖ em uma conversa de ônibus — ele sorria enquanto falava, bem-humorado. Respirei fundo e


levantei meu celular, aumentando o volume. Meus fones novos não eram muito potentes, mas ele não precisava saber disso. — Você ainda está me escutando, Ingryd. Não é nada demais, poxa, só estou te pedindo um encontro! Não vai te matar! Uma saída. Um cinema. Um jantar. Um chope. Um pastel com caldo de cana? — eu continuava ignorando-o. Nem sequer olhei para seu rosto. Tentei me perder na música, balançando a cabeça discretamente. — Não finja que não está me escutando. Sei que está. E está me ignorando porque sabe que não vai resistir e vai acabar saindo comigo. Vamos, acaba logo com isso. Você só precisa dizer sim. — Ele não parava de insistir. Eu, por minha vez, era tão cínica que já estava até cantarolando a letra da música. — Vamos continuar a lista, então, né? Lá vai: eu sou bonito. Por dentro e por fora. Cheguei a mencionar que sou bem dotado? — Eu não o olhava, mas realmente desejei não ter escutado aquilo. Fingi não ter ouvido nada. Outra vez. — Ingryd. Vamos lá. Eu sei que você me ouve. Qual é. — Ele estalou os dedos na frente dos meus olhos. Respirei fundo, ignorando-o totalmente. — Tá, vou recitar um poema para você: rosas são vermelhas, violetas são azuis. Meu nome é Pedro, por favor me dê atenção. Ai, meu Deus. Tudo bem. Não me julgue por isso, mas dessa vez eu não me aguentei. Deixei uma risadinha escapar. Sério, de onde havia surgido aquele garoto? Quanta insistência! Honestamente, eu não podia estar sendo mais desagradável, grossa e filha da mãe, mas ele continuava batendo na tecla. Caramba. Eu não me lembrava do Pedro Lucas quando tinha onze anos, e estava começando a suspeitar que meu cérebro o bloqueara da minha memória. Como acontece com aquelas pessoas que têm experiências muito traumáticas e acabam esquecendo-se de tudo para se absterem do sofrimento, involuntariamente. Não conseguia entender o porquê de ele querer tanto sair comigo. Seria eu um fetiche antigo? Quem sabe eu possa ter provocado sua primeira ereção, sei lá. Não estou dizendo isso como se eu fosse uma modelo, porque não, eu não sou. Não sou ―gostosa‖. Sou, na verdade, medianamente bonita, acho. Sabe? Olhos castanhos, cabelos ondulados, um e setenta de altura. Aos onze anos, eu era a mesma coisa que sou hoje, só que bem mais magra, bem mais baixa e com bem mais espinhas (e com bem menos seios). O que me confunde ainda mais. Estava quase chegando à conclusão de que o Pedro Lucas era, na verdade, algum tipo de louco. — Uma risada! Finalmente alguma coisa! Como você não riu da piada da ligação direta e está rindo do poema? — Pedro continuou a encher o meu saco. Suspirei, decidida a acabar com aquilo. Retirei os fones. Cara, ele merecia ser metralhado por me fazer retirar meus fones duas vezes em menos de meia hora. — Escuta, vou ser bem direta — disse eu, virando-me totalmente para ele e encarando-o duramente. — Eu não estou a fim de sair com você. Foi mal. É isso. Não vou sair contigo. Não importa o quanto você seja insistente e chato e me liste as suas qualidades. Simplesmente não quero sair com você e não vou fazer nada que eu não queira. Encarei o Pedro Lucas ao meu lado esperando que seu rosto se contraísse pela minha grosseria. Normalmente não sou tão desagradável com as pessoas, eu juro, não pense que eu sou uma senhora virgem de cara fechada que anda xingando o mundo inteiro por aí. Não é assim que as coisas funcionam. Quer dizer, o Pedro Lucas parecia mesmo uma pessoa legal, e minha intenção ali não era magoá-lo. Garanto. Digamos que eu aprendi da pior maneira que é melhor se manter longe de caras engraçadinhos. Melhor prevenir do que remediar, é o que dizem.


Entretanto, ao contrário do que eu pensei, o Pedro Lucas não ficou com raiva de mim. Ele não contraiu o rosto, não me xingou, nem sequer revirou os olhos. Também não me encarou com aquela expressão de desprezo e jogou as mãos para cima, como se dissesse: ―Uau! Tudo bem, senhorita sou-boa-demais-para-você‖. Não. Em seus olhos muito pretos perdidos em sua pele morena de índio, eu não vi nenhum vestígio de um sentimento ruim. Em seu rosto, nada mais tinha do que humor. Na boa. Humor. O Pedro Lucas riu. — Tudo bem, então — disse ele, dando de ombros. Por algum motivo, sua frase soara exatamente o oposto na minha cabeça. — Você pode não querer sair comigo, mas eu tenho toda a liberdade para te convencer do contrário. Meu Deus do Céu. Ele não vai desistir. Em resposta ao seu argumento ridículo, minha boca quase disse um ―tente‖. Mas pensei que eu deixasse que essa frase saísse, o Pedro pudesse interpretar como um flerte. Eu sabia muito bem que aquela seria a hora inapropriada para paquerar. Sobretudo quando eu não queria paquerar, porque não queria sair com ele, e porque não queria namorar. E, não, também não queria nada de amizade colorida ou relacionamento aberto, como você pode sugerir apenas para ter com o que se entreter. Não é assim que a banda toca para a Ingryd. Por isso, fiz a melhor coisa que poderia ter feito: bufei e virei o rosto, incomodada com sua presença. — Onde você desce? Suspirei. Não, ele não vai me deixar em paz. Não, eu não vou conseguir escutar esse CD hoje. — Na Praça Central — mas por algum motivo eu disse a ele para onde estava indo. Sabe, como se ele houvesse ganhado a briga argumentativa por insistência. Porque se eu dissesse ―não te interessa‖, ele diria ―se não me interessasse eu não perguntaria‖, então eu diria ―vai se danar‖, e ele diria algo como ―só se for com você‖ etc., e eu não estava a fim. — Tenho que trabalhar — disse antes que ele perguntasse, porque, sabe, se ele perguntasse o que eu iria fazer na Praça, e eu dissesse ―não te interessa‖, ele ia dizer ―se não me interessasse eu não perguntaria‖, etc. É um ciclo sem fim. Mas meu tom de voz estava obscuro e tedioso de qualquer maneira. — Puxa, não sabia que existiam demônios na Praça. Você tem matado todos? Dean e Sam têm te ajudado? Então eu me lembrei do Pedro Lucas. Digamos apenas que eu passei a adolescência inteira obcecada pela série Supernatural. Minha irmã, Fernanda, tinha quinze anos quando começou a assistir e eu assistia com ela. Era a única coisa que fazíamos juntas na época. Eu costumava dizer que Jared Paladecki casaria comigo. Então, enquanto todas as meninas da minha sala caíam de amores pelo Zac Efron ou pelos carinhas mexicanos da banda Rebelde, eu estava maluca de paixão por anjos e demônios, por Sam e Dean (como a família Winchester podia gerar genes tão bons?), e por tudo o que envolvia o que era sobrenatural. Um garoto sentava-se a minha frente e me ouviu discutindo com uma garota sobre como High School Musical era superficial e uma porcariada feita para alienar garotinhas pré-adolescentes sem um cérebro na cabeça (eu também era uma préadolescente, mas não gostava de assumir isso). A garota já estava quase arrancando minha cabeça quando eu ressaltei o pequeno fato de que aquele musical mal feito nunca aconteceria em sua vida, uma vez que ela morava em Vargem, uma cidade do interior


de São Paulo que ninguém conhecia. ―Você nem fala inglês!‖, disse eu, indignada. Assim sendo, ela me chamou de idiota e disse que nunca voltaria a falar comigo, por nada nesse mundo. O garoto, que ouvira tudo, virou-se para mim com o maior sorriso que já vi na vida. Disse que aquilo fora a coisa mais verdadeira que ele já escutara. E perguntou se eu assistia Supernatural — algo dentro de mim dizia que ele sabia que sim —, e eu respondi positivamente. No dia seguinte, assim que cheguei à sala de aula, ele se virou para mim e disse: ―guardei lugar para você, Sam‖. Ainda que eu soubesse que Sam era um garoto, eu me lembro de ter achado aquele apelido a coisa mais legal e fofa do mundo. Comecei a chamar o garoto de Dean, por conseguinte. Passávamos a aula quase toda discutindo maneiras de matar demônios e tentando adivinhar o que aconteceria na segunda temporada. Dividíamos nosso lanche no intervalo e, ao invés de irmos para o refeitório e escutarmos as músicas ruins que exibiam para nós, ficávamos na sala conversando, comendo, fazendo as tarefas ou lendo. Nunca chamei Dean por outro nome senão Dean. Mas ele respondia à chamada como Pedro Lucas. Meio desnorteada, tentando lidar com os meus pensamentos, encarei o Dean/Pedro Lucas à minha frente. Céus. Era ele. Mais alto, com certeza, mais forte, mais magro, sem aparelho nos dentes. Mas era ele. Com certeza era ele. Minha nossa. Abri a boca para dizer alguma coisa, qualquer coisa plausível, quando meus olhos foram para a janela e eu percebi que passara pela Praça José Guilherme de Oliveira. Teria de andar uns bons cinco minutos para chegar ao meu destino. Droga. Não podia deixar o ônibus simplesmente continuar a rodar. Levantei-me. — Preciso ir — disse ao Pedro Lucas, que me encarou com confusão nos olhos muito pretos de índio. Puxei a cordinha com tanta força que ela quase quebrou e saltei do ônibus na parada seguinte, quase desesperadamente. Segundo o relógio do meu celular, eu já estava mais do que atrasada para o trabalho. Mesmo assim, só consegui tirar os olhos do ônibus depois que ele virou a rua, sumindo de vista.


Capítulo 2 O dia já não estava estressante o bastante

Wesley estava bravo comigo. Desde que arrumamos emprego na Pizzaria Al Gusto, situada bem no meio da Praça Central, jogávamos cartas/dominó antes do expediente. O Seu Antônio nunca brigou conosco por isso; acho que ele gostava um pouco do nosso espírito competitivo e, como éramos os mais novos da equipe, ele acreditava que seríamos mais úteis se estivéssemos sem atrapalhar ninguém. Então, eu e o Wes armávamos uma mesinha de ferro e jogávamos qualquer coisa a dois, o que era sempre divertido e servia para que colocássemos o papo em dia. Embora eu fosse bem melhor do que o Wesley em jogos que envolviam a inteligência. Ganhei dele antes mesmo do jogo acabar por ter ―matado uma de suas buchas‖ (hoje estávamos jogando dominó). — Ai, Pudim, sua vaca! — exclamou ele, largando as peças de dominó na mesinha, desistindo abertamente. — Não tem a mínima graça jogar com você. Sorri. — Você só precisa usar a lógica — dei de ombros, embaralhando as peças de dominó para que começássemos a jogar novamente. — Cada número tá repetido em sete peças. Só precisa ficar de olho e contar o jogo. Wes bufou. — Sou músico, não preciso disso — disse ele, pegando suas catorze pedras da vez (as regras do jogo ―dominó a dois‖ foram inventadas por mim, portanto as vinte e oito peças são divididas igualmente entre os únicos jogadores). Mas caso você esteja se perguntando, sim!, é verdade. Wesley é o músico mais talentoso que eu já conheci. Ele toca mais ou menos sete instrumentos (incluindo, tipo, gaita), e é tecladista de uma banda indie que faz um sub-sucesso na Internet com vídeo-covers de hits do momento. Alguns dos vídeos já chegaram às cem mil visualizações. Pelo que sei, o que Wes e seus amigos fazem é pegar músicas normais (como uma dessas músicas estouradas da Rihanna, por exemplo) e transformá-las em um indie dançante e divertido. Isso atrai o público internauta. Mas não dá dinheiro algum. De modo que, como eu, Wesley precisa trabalhar para sobreviver. Enquanto não assina o contrato com uma gravadora e torna-se rico e famoso, serve quatro-queijos e modas-da-casa para os cidadãos de Vargem que visitam a pizzaria do Seu Antônio. Pelo seu cabelo despojado — quero dizer, o do Wes —, seu corpo alto e atlético, seus olhos castanhos penetrantes, sua pele muito branca e seu sorriso fácil, Wesley recebe cantadas quase toda vez que vai atender uma mesa. De garotas. Sério. Garotas. Porque, aparentemente, o fato de que o Wesley é inegavelmente gay só é aparente para mim. Às vezes eu tenho vontade de dar um tapa no rosto das meninas que se interessam e dizer: ―você não notou a calça dele?!”. (São as mais apertadas que eu já vi. A bunda do Wesley é mais bonita do que a minha.) — Sobre o quê eu estava falando mesmo? — a memória do meu amigo estava sendo gradativamente destruída pelos cigarros que ele insistia em fumar. — Ah, é. Você é maluca?! Apertei os olhos, encarando minhas catorze peças e o Wes.


— Como assim? — perguntei, enquanto percebia que havia ficado com noventa por cento do jogo de ás. Aquela rodada já estava ganha. — A história que você acabou de me contar, Di! — reclamou ele com seu sotaque sulista e gay. — Não acredito que o bofe estava tipo, maluco por você, e você não o agarrou. Pelo amor de Deus! Qual é o seu problema? Acredite ou não, eu ouvia a última frase com certa frequência. E, bem, como já deve ter ficado bastante claro, eu havia acabado de contar ao Wes sobre o Pedro Lucas e o nosso (re)encontro esquisito no ônibus. — Não tenho problema nenhum, Wes, que droga — bufei, esclarecendo. O que você deve saber sobre se ter um melhor amigo gay é que, provavelmente, ele sempre será completamente louco por contato físico. Perder uma oportunidade de fazer sexo é algo inaceitável para o Wesley. — Só não queria sair com o cara. Ele revirou os olhos pra mim, desdenhando-me. — Ei, olha! Eu estou com a bucha de seis! — ele soltou, afinando a voz e dando pulinhos em sua cadeira. Colocou a peça no centro a mesa. — Uma a menos que você, Di. Eu que revirei os olhos para ele dessa vez. — Pela última vez, alemão. Ela se chama sena. — Dá um tempo, na Alemanha não tinha isso — Wesley sorriu. Ele nunca foi à Alemanha, se é isso que você está perguntando. Mas seu tataravô fugiu de lá bem no meio da Primeira Guerra Mundial e foi parar no sul do Brasil, onde teve treze filhos com sua tataravó, uma gaúcha de pele morena. Quatro gerações depois, o sobrenome alemão de Wesley ainda prevalece. Ele se chama Wesley Schwarzhaupt. Nunca soube pronunciar isso. Falo sério. — Mas e aí, Pudim — disse ele, continuando a jogar. — O guri era pelo menos bonito? Mordi meu lábio, lembrando do Pedro Lucas/Dean. Bem, seria impossível negar que os olhos dele, muito pretos, eram estranhamente chamativos e bonitinhos. Apesar de não ser forte demais, eu consegui perceber o volume dos braços dele. Seu cabelo era uma graça. Eu apostava que existia uma barriga bem legal por baixo da camisa social. E, por favor, não ache isso estranho: as sobrancelhas dele são um charme. Sabe, grossas e tal, mas sem dar um ar desleixado ao cara. Entende? — Ele é bonitinho — disse eu, fechando o jogo. Minha ponta de ás. Wesley não ganharia aquele jogo nem se Deus guiasse suas mãos para o meu fracasso. — Sério, Di, sua vaca — ele bufou. — Vou te matar. Não soube dizer se sua ameaça seria por eu não ter agarrado o Pedro Lucas ou por tê-lo feito passar uma rodada.

De qualquer maneira, logo tivemos de encerrar nosso jogo e abrir a pizzaria de uma vez. Eu era a recepcionista — ou seja, cuidava de enviar os pedidos deliverys aos pizzaiolos, e depois passá-los para os motoboys. Também recebia todo o dinheiro que entrava e fazia todas as notas. O que pode parecer bem simples na teoria, mas na prática é um inferno. Sério. Eu ficava aproximadamente seis/sete horas sem ficar quieta. Tudo bem, não serei injusta; existiam aqueles raros cinco minutos em que eu não fazia absolutamente nada, e ficava aliviada por tudo estar tranquilo. Mas, sabe como é, você nem tem tempo de finalizar o pensamento quando o telefone toca, cinco pizzas saem, o computador


trava, a caneta fica sem tinta, e quatro grupos de adolescentes não conseguem se decidir se pedem a calabresa ou a portuguesa, tudo ao mesmo tempo. E isso perdurava até o fim da noite de um jeito categoricamente assustador. Eu só conseguia finalmente respirar depois da meia-noite, quando tudo ficava menos intenso (sem carga extra inesperada de trabalho, com acontece por volta das 21h). Deveríamos finalizar o expediente a essa hora, mas sempre tem um grupo ou outro que não nos deixa ir embora e dormir um pouco, para logo de manhã voltar à mesma rotina de escola-trabalho-casa-casa-trabalho-escola. Não. Essas pessoas acreditavam terminantemente que suas malditas cervejas e pedaços de pizza eram mais importantes do que o bem estar dos outros meros seres humanos, seus escravos. De modo que ficávamos todos nós: garçons, pizzaiolos e eu, olhando para a única mesa ocupada, como se perguntássemos a que horas os benfeitores iriam embora. Em contrapartida, eles nos olhavam de esgueiro e explodiam em risadas. Aquele dia não foi nada diferente. O último grupo só foi embora quando já passava da 00h e, como de praxe, nenhum de nós foi embora antes de limparmos o estabelecimento. Só fui chegar em casa (ou, no caso, à casa da minha mãe) depois da 1h da manhã, tão cansada que mal conseguia manter os olhos abertos. Evidentemente todas as luzes já estavam desligadas; meus pais estavam habituados ao meu horário tardio e, além disso, minha irmã mais velha é enfermeira e trabalha em plantões. Pode muito bem chegar do emprego às seis da manhã ou à meia-noite — tudo dependia de uma política que eu não conhecia. Nunca gostei de hospitais. Com muito cuidado, eu atravessei a sala de estar e andei por um corredor que seguia até o quarto que eu dividia com a minha irmã. Retirei as sapatilhas com os próprios pés e pisei no chão frio, sentindo um alívio imediato. Não importa o quão confortável a sapatilha pareça ser no início da manhã; ao fim da noite, seus pés estarão moídos. Perdi a conta de quantas vezes eu basicamente não conseguia andar de tanta dor. Hoje em dia eu aprimorava uma técnica infalível (ou não tanto) contra calos causados por sapatilhas: Band-Aid’s. Não funciona maravilhosamente bem, eu confesso, mas é melhor do que destruir os pés. Suspirei, largando a bolsa e o celular na escrivaninha. Eu estava tão cansada que podia jurar que havia ouvido meu beliche conversar comigo, pedindo-me para que eu me deitasse. ―Vamos, Di. Você sabe que quer descansar. Veja só o quanto estou macio hoje. Não quer aproveitar?‖. Ignorei-o, agarrei minha toalha e segui para o banheiro, almejando meu banho quente de vinte minutos, meu pijama e minha caminha macia. Nada mais justo para uma jovem de vinte anos que precisou aturar tudo e mais um pouco no dia de hoje. Mas a vida não é um mar de rosas, de modo que quando eu cheguei à porta do único banheiro da casa, ele estava ocupado. (OCUPADO. UM BANHEIRO OCUPADO À 1H DA MADRUGADA. EU MEREÇO MESMO ISSO?!). — Nanda? — bati levemente na porta, preocupada em acordar os meus pais. Minha voz já estava quase chorosa. Caramba, uma garota não pode simplesmente tomar um banho e dormir depois de um dia exaustivo?! Minha irmã mais velha não me respondeu. — Nanda, vai demorar aí? Foi quando eu escutei um soluço irrompendo através do som do chuveiro. — Me deixa em paz, Ingryd, que droga! — e esse foi o grito esganiçado que veio em seguida. Suspirei, passando uma mão pelo meu rosto e sentindo como se tudo em mim estivesse desmoronando aos poucos. Oh, não. De novo, não. Seu Namorado Do Mês havia terminado com ela. Ou ela havia terminado com ele por tê-lo traído com o Namorado Do Mês Que Vem; é difícil saber. A vida amorosa


da Fernanda é a coisa mais dramática desse mundo. Seus relacionamentos são instáveis desde que ela completou treze anos, e eu falo sério. Honestamente, não sei o que passa pela sua cabeça; se ela simplesmente não consegue ficar sozinha, ou se realmente acha que seu idiota mensal da vez é o homem de sua vida. A questão é: ela sempre machuca ou é machucada. Isso não é nada certo. Já tentei falar que ela deveria ser mais seletiva, dar um tempo a si mesma, mas Nanda acha que por estar posto de sua irmã mais nova nerd, eu não tenho direito algum para opinar sobre sua vida amorosa. (Embora seja sempre eu que a conforte depois de um fim de relacionamento). A porta do quarto dos meus pais se abriu, no fundo do corredor. Minha mãe olhou para a minha cara de suplício e encolheu os ombros. — Ela já chegou chorando. Parece que o rapaz terminou o relacionamento deles no meio de uma festa, ou algo assim — minha mãe suspirou. — Cuide dela, sim, Di? Fiz cara de choro para a minha mãe e simulei que estava dando um tiro na minha própria cabeça. Ela deu de ombros e murmurou ―seja boazinha‖. Mas olha só! Eu sempre sou boazinha, ora! Sou eu que sempre cuido da Fernanda, não é? Quem é que cuida dela toda vez que ela termina com alguém? Quem é que sempre a deixa usar o computador primeiro? Quem é que a deixava soprar as velhinhas no meu aniversário, ainda que ela seja de março, e não de abril? Quem é que sempre a deixou ver novela, mesmo quando estava passando Supernatural no outro canal? Quem? Bati novamente a porta, depois de tomar um pouco de coragem. — Nanda, por favor, abre aí — disse eu, com a voz manhosa. ―Seja boazinha‖. Sinceramente... — Você sabe que ficar enfiada aí não vai ajudar em nada. Deixa eu falar contigo. Como ela sabia que eu não sairia dali (e nem poderia, era o único banheiro da casa), a porta destrancou e eu a abri. O chuveiro estava ligado e transformava o banheiro em uma completa sauna, ao passo que minha irmã se encontrava agachada em posição fetal do lado da pia, emaranhada e encolhida como um bichinho desgrenhado. Seu cabelo louro tingido enorme, usualmente liso e perfeito, agora estava embaraçado e levemente cacheado. Seu rímel à prova d’água não suportou o choro latente, e seu rosto oval e simétrico já não estava tão perfeito assim, sujo de maquiagem. Fernanda Prado, a provável moça mais bonita da cidade, estava acabada. Embora minha irmã fosse uma grande pedra no meu sapato, cortava meu coração vê-la assim. De verdade. Era uma das piores coisas que eu costumava presenciar. Por isso sentei-me ao lado dela e, aos poucos, abracei-a. Deixei que ela apertasse minha cintura e chorasse alto no meu ombro, fungando o nome de seu ex-namorado, fazendo perguntas estridentes que eu jamais seria capaz de responder. Esperei que ela se acalmasse e fechei a válvula do chuveiro. Pedi a ela que me contasse sobre o término do namoro, e escutei absolutamente tudo, aproveitando os intervalos para abraçá-la, sem comentar nada; não era necessário. Repeti a mesma ladainha para ela depois disso: Nanda era uma moça esperta, além de muito bonita, e um dia, talvez amanhã ou daqui a anos, encontraria um homem que a merecesse de verdade. Precisei repeti-lo por algumas vezes até que ela se desse por menos aborrecida. Fiz com que ela tomasse um banho decente e, minutos depois, estávamos dormindo juntas, na parte de baixo do nosso beliche, como nos velhos tempos. Fernanda ainda fungava quando eu constatei no relógio que eram quase três da manhã.


E, olhando para seu rosto ainda cheio de dor, eu prometi a mim mesma que não me deixaria apaixonar e cortar meu coração a ponto de explodir em lágrimas ao lado da pia do banheiro. (Pelo menos, não de novo.)


Capítulo 3 A natural neurose da minha irmã somada ao meu desagradável ex-namorado

Tudo bem, você me pegou. Não vou dizer que eu, aos vinte anos de idade, nunca tive uma decepção amorosa. É claro que seria uma mentira deslavada; você já foi adolescente, sabe como é. Aconteceu uma única vez — quer dizer, que eu me apaixonei de verdade por um garoto. Seu nome era Matheus, e eu estava no último ano do ensino médio. Ele foi até a minha sala de aula para vender cursos preparatórios para o ENEM e, como eu me sentava bem na frente, percebi que no meu folheto havia um número de celular. Quando olhei para os dois meninos que nos contavam das inúmeras vantagens de se fazer um curso preparatório, o mais bonito deles sorriu para mim e piscou o olho. Meu coração nunca havia acelerado tanto. Liguei para ele. Marcamos um encontro, e outro, e outro. Tínhamos muita coisa em comum, e eu me apaixonei por ele sem medo das consequências — eu acreditava, veementemente, que nosso amor era aquele amor que duraria para sempre. Meus pais o amavam até mais do que eu; ele sempre foi cavalheiro e engraçado com a minha mãe e, não houve uma só vez que não deixou meu pai ganhar no jogo de sinuca. Até mesmo a Fernanda gostava do meu primeiro namorado, e me deu mais ou menos quatro mil dicas ao longo dos nossos seis meses — sim, só isso — de relacionamento. Tudo estava bem por um tempo, até que... algo ruim aconteceu comigo. Eu achei que enfrentaríamos isso como um casal, que nosso amor ainda seria o mesmo, que ele me apoiaria, e que nós ficaríamos juntos. E, segundo o que ele dava a entender, realmente ficaríamos; tudo parecia nos eixos, como deveria estar. Então ele me traiu. Cretino miserável. E eu fiquei muito mal, como é óbvio. Nunca tinha me decepcionado de uma maneira tão intensa, substancial — sabe o que dizem: não importa o quanto fale e leia a respeito, você só saberá a sensação quando sentir na pele. Eu não deixava que as pessoas notassem, entretanto. Graças a Deus havia terminado o ensino médio, de modo que me dediquei completamente aos estudos para o ENEM, afastando-me aos poucos das pessoas que poderiam perceber que eu não estava bem. Com a única exceção do Wesley. A questão é que eu realmente gostava do Matheus, achava que nós tínhamos um futuro. Ele havia tirado minha virgindade! Tudo em mim queria que voltássemos a ficar juntos, mas como eu poderia confiar em um homem depois dele me trair, não uma, nem duas, mas quatro vezes? Pode parecer engraçado para você agora, mas para mim foi um suplício. E foi mais ou menos nessa época que eu comecei a comprar livros também, para, sabe?, jogar-me de cabeça em uma história que não fosse terrível como a minha. Li muita coisa. Literatura americana, inglesa, russa, brasileira. Clássicos, livros contemporâneos, romance, aventura, terror, poesia. Eu não me importava muito com a história, apenas lia toda vez que tivesse um tempo livre, para que minha mente estivesse tão cheia que não houvesse espaço para a dor dos chifres, e coisa e tal. Deu certo. Superei a situação toda do Matheus — mesmo que eu ainda tenha vontade de matá-lo quando o vejo na rua, o que acontece com certa frequência. Apesar


de ser um cretino traidor, o Matheus também gostava muito de mim, mas expressava esse sentimento da maneira errada. Durante muito tempo, ele fez questão de me deixar com ciúmes para provar que tê-lo expulsado da minha vida (ainda que por justa causa) foi a pior coisa que eu poderia ter feito. De qualquer forma, prometi a mim mesma que terminaria meus estudos e estaria bem resolvida na vida da próxima vez que fosse me envolver com um homem. Além disso, faria o favor de só me apaixonar por ele se fosse amor de verdade. Não era o que eu Matheus tínhamos, eu percebi depois. Quer dizer, amor verdadeiro. Não parecia nada com o que Heathcliff e Cathy, ou Lizzie Bennet e Mr. Darcy, ou Romeu e Julieta, sentiam. Não parecia nem mesmo com o que Edward Cullen e Bella Swan sentiam. Nem mesmo com o que Anastasia Steele e Christian Grey2 sentiam. Isso me ajudou um bocado a superar. E com isso, você pode talvez não me julgar por ter sido tão frívola com o Pedro Lucas no outro dia. Algo no seu senso de humor e em sua insistência patética me lembrou muito o Matheus. Tudo o que eu menos preciso para a minha vida agora é outro Matheus. Às seis da manhã meu despertador apitou, perdido no tapete do nosso quarto. Segurei o celular e apertei a tecla ―end‖ até que a música cessasse. Tinha de ir para a faculdade. Sabia que tinha dormido por pouco mais de três horas, mas honestamente parecia que eu não pregara os olhos por quinze minutos. Preciso urgentemente de um emprego melhor. (E de uma irmã menos problemática também.) Nanda também acordou, como sempre. Seu sono é leve como uma nuvem, diferente do meu. Digamos apenas que assim que eu apago, desmaio mesmo, e você só vai me ver no outro dia. — Que horas são, Di? — perguntou ela, sua mão apertando a minha cintura. Eu estava quase caindo do beliche. Fernanda sempre foi a mais espaçosa de nós duas; até mesmo na hora de dormir. — Seis da manhã — disse eu, minha voz saindo esganiçada. — Volte a dormir. Volto às 15h. Você tem plantão hoje? Fernanda havia acabado de terminar seu curso de enfermagem e trabalhava no único hospital particular de Vargem. — Não — ela bocejou. — Por que não fica em casa hoje? Estava querendo tomar um café da manhã especial e pegar um cinema em Bragança — é claro que você imaginou que não existem cinemas em Vargem. — Por favor? — Não posso ficar matando aula, Nanda — suspirei. — Estou no módulo de Sistema Monetário e Financeiro Internacional. Perder uma aula pode ser vital para mim, acredite. Fernanda choramingou. — Ahn, Di, por favoooor — disse ela, balançando meu corpo para lá e para cá. — Você é inteligente pra caramba, e nem é semana de prova. Nunca vi você tirando menos do que 9 na média e você sabe que não é agora que vai tirar. Não é minha culpa se eu quero ser contratada por uma multinacional londrina e ganhar dinheiro para eles, para que eles possam me dar dinheiro, para que eu possa me casar com um britânico fofo e lindo de morrer. 2

Referencia aos livros: O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë; Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Romeu e Julieta, de William Shakespeare; Crepúsculo, de Stephenie Meyer; e Cinquenta Tons de Cinza, de E.L. James, respectivamente. (N.A.)


Disse isso a ela. — Mas você sabe que vai — disse ela, embora eu soubesse que ela acreditava no contrário. — Você sabe que quer matar aula. Só hoje. Eu imploro. — Não vai rolar, Nanda, desculpa — disse eu, ainda mantendo os olhos fechados, reunindo toda a coragem que precisava para sair daquela cama, me arrumar em dez minutos e seguir em direção à parada de ônibus para Bragança. — Eu lavo o banheiro no fim de semana para você. Jogo sujo. Aceitei, no fim das contas. Mandei uma mensagem de texto para a Giovanna (minha colega-amiga que senta ao meu lado em todas as aulas. Somos umas das poucas que se sentam na frente, prestam atenção nas aulas e não participam de bolos doidos3), dizendo-lhe que iria ter de matar aula e pedindo-lhe para anotar tudo para mim. Passaria à tarde em sua casa no dia seguinte. Giovanna morava em Bragança Paulista, apenas cinco minutos de distância da Universidade São Francisco. Sortuda. Fernanda ainda se sentia mal pelo Namorado Do Mês, mas estava bem melhor do que na noite passada. Ela pode ser melodramática e chata até dizer chega, mas sempre superou seus namorados na velocidade da luz. E ainda fica com raiva quando eu lhe digo isso. Mas é a mais pura verdade: Nanda Prado encontra o amor de sua vida pelo menos dez vezes por ano. Às vezes ela repete o rapaz — afinal, moramos em Vargem, e não existem muitos garotos decentes por aqui —, às vezes namora alguém que vem de Bragança todo dia para vê-la. Mesmo assim, quase sempre sai machucada, mesmo que apenas por um ou dois dias. É claro que você deve imaginar que ela é linda. E é mesmo. Provavelmente a garota mais bonita da cidade. Todos os garotos que eu cogitei a hipótese de beijar já cogitaram a hipótese de beijar a minha irmã, mas já faz muito tempo que aprendi a lidar com isso. Nunca aconteceu, pelo menos, de ela deixar-se levar por nenhum dos meus casinhos (todos os três!). Ela pode ser avoada, maluca, vulgar, e profundamente neurótica, mas se importa comigo, lá no fundo. Eu sei que sim. Entretanto, ficar um dia inteiro com ela pode ser realmente catastrófico. Depois de termos dormido até às onze da manhã, a Nanda fez panquecas com queijo — ela também cozinha muito bem. Comemos tranquilamente, e tudo estava muito bem, até Fernanda começar a dizer que ficaria do tamanho de uma baleia orca por ingerir tantas calorias no café da manhã. Foi quando ela me arrastou para a academia. Passamos uma hora inteira malhando. Eu não tenho contrato na academia (você já imaginava isso), mas o chefe do lugar é amicíssimo da Nanda e me deixou ficar um dia de graça, ―para ver como é‖. E ao invés de me deixar malhar em paz, andando na esteira tranquilamente ou quem sabe fazendo um pouco de musculação inofensiva, Fernanda começou a agir como se fosse minha personal trainer e o objetivo de sua vida fosse me deixar gostosa em uma hora. Não rolou. Mas não por falta de tentativa. Cheguei em casa esfolada, suada, pisada e dolorida, ao passo que minha irmã estava animada, elétrica e dizendo que eu precisava pagar os setenta reais mensais para 3

Gíria designada para dar nome à festa tipicamente brasiliense onde jovens se divertem ao ritmo de funk com muito sexo, drogas ilícitas e diversos tipos de bebida alcoólica. Geralmente acontece em fins de semanas. (N.A.)


fazer isso todo dia. Logo minha bunda estaria no lugar e minhas coxas dariam inveja em todas as mulheres da cidade. Fuzilei-a com os olhos e disse-lhe uma palavra feia. Fernanda me chamou de mal-agradecida e nós começamos a brigar por quem entraria no banheiro primeiro. Eu ganhei. O banho me revigorou bem. Fiz o favor de demorar um bocado só para deixar a Fernanda com raiva — acredite, ela faria o mesmo por mim. Quando nos vestimos para pegarmos o cineminha em Bragança Paulista (risos para você que acreditou que ela havia se esquecido disso), é que a grande diferença de personalidade acometida em nós, meras irmãs, se acentuou como sempre. Fernanda pegou um vestido justo que deixou suas curvas bem moldadas completamente marcadas. Passou a prancha cerâmica no cabelo com tantas luzes louras que podiam iluminar uma pequena cidade, e fez uma maquiagem simples em seu rosto. Eu, por minha vez, coloquei minha calça jeans mais cara — portanto, mais confortável —, meus Chuck Taylor’s vermelhos, os favoritos, e uma camiseta com a estampa ―Bazinga!‖4. Meu cabelo, diferentemente do da Nanda, é preto e ondulado, passando um pouco dos ombros. Raramente passo maquiagem. Raramente mesmo. Não tenho o rosto perfeito e oval dela, nem sua covinha no queixo. Minha aparência é até comum. Não almoçamos e fomos em direção à parada de ônibus mais próxima de nossa casa. O ônibus demorou uns cinco minutos para passar, lotado, como sempre. Subimos as escadas, pagamos e passamos pela roleta, até que eu fui completamente surpreendida ao olhar para frente. Você não vai acreditar em quem estava em pé, segurando-se em um dos bancos. — Ingryd! — Oh, não. Não, não, não. — Quanto tempo! Como vai você? Matheus. Droga. Muito embora eu não estivesse animada em ir ao shopping com a Fernanda, reencontrar o garoto que mais me machucou na história da minha vida era a última coisa que eu desejaria hoje. Odeio ter de olhar para o rosto dele e saber que eu já o beijei inteiro (e já quis socar cada pedaço dele também). É difícil ser amigável e simpática com um cara que já te viu nua, entende? — Ah, oi — disse eu, um sorriso forçado nascendo no meu rosto. Fernanda já havia entendido toda a situação e, graças a Deus, se segurou num ―poste‖ a um metro de distância do Matheus. — Pois é. Vou bem, e você? Ele abriu aquele sorriso enorme e arrebatador que tanto me encantou há uns anos atrás. — Ah, estou sobrevivendo, sabe como é — ele gesticulou com as mãos, sem abandonar sua antiga mania de falar com as pessoas sem se mexer todo. — Trabalhando muito para sustentar a família. — Família? — não fui eu quem perguntou. Foi a Nanda, atrás de mim. Senti sua mão pousar no meu ombro, como se fôssemos amigas íntimas, irmãs inseparáveis e tudo mais. Mas na realidade ela só estava assídua por fofocas (o que não é de se estranhar, tratando-se da minha irmã mais velha.) — A propósito, muito bom de ver de novo, Júnior. Só eu chamava o Matheus de Matheus. Para o resto do mundo, ele era o Matheus Henrique da Costa Júnior, ou apenas Juninho. Detesto-me por ainda lembrar seu nome completo.

4

Referencia à série de comédia norte-americana The Big Bang Theory. (N.A.)


— Ah, oi, Fernanda. Nossa, me assusto com a semelhança de vocês duas, às vezes — então ele estava sorrindo abertamente para ela também. Eu o encarei como se ele fosse doido, e apostava que minha irmã fazia o mesmo neste momento. — Sim! Acredita que tenho um bebê? Vou me casar no sábado. — Dei um sorriso, surpresa. Espero que a sua esposa te traia com quatro homens diferentes na sua Lua de Mel, seu filho da mãe. — Inclusive estou indo à Bragança para alugar meu terno. Fernanda foi fofa por mim: — Cara, sério?! Parabéns, Juninho, de verdade! — disse ela, seu sorriso iluminando e contagiando todo mundo. — Isso é realmente incrível. Qual é o nome do bebê? — disse eu, imaginando que pensar em uma criança fofa seria melhor do que pensar na noiva do Matheus, ainda que eu não tivesse ideia de quem ela era. Pra falar a verdade, como eu não fui saber disso? Vargem é uma cidade minúscula. Fofocas simplesmente correm. Bem, talvez não para uma pessoa que passa o dia inteiro em Bragança e fica na cidade só o tempo de dormir e anotar pedidos de pizza. — É uma menininha, se chama Iara — imediatamente comecei a sentir pena da criança. Quantas piadas iria aturar por causa da sereia? — Linda de morrer, Di, você precisa ver. — Qualquer dia desses — disse eu. — Ela deve ser uma lindinha mesmo — disse Fernanda. — Às vezes, no hospital, eu dou uma escapadinha só para ver as carinhas de joelho no berçário. É o único lugar naquele prédio onde o que domina é a vida e a inocência, e não... bem, a morte. Sabe como é. — Ah, sei — disse o Matheus, com sua cara de pena. Também torci os lábios, torcendo para que o assunto do hospital não se estendesse. — Vocês realmente iriam amá-la — o Matheus voltou a entoar, sorrindo. — Principalmente você, Di. Eu me lembro de como você ficava quando chegávamos perto de uma criança. Era um dos seus sonhos. Respirei fundo, inibindo minha vontade de mandar o Matheus para a o inferno por me lembrar disso. Por se lembrar disso. Não era justo. — Ainda é — disse eu. Quando namorávamos, eu não escondia dele (de ninguém, na verdade) que um dos meus maiores sonhos era ter um bebê, segurá-lo nos meus braços, e sorrir feito uma boba enquanto olhava sua carinha de joelho. Agora, Matheus usava essa arma, a pior de todas, sutilmente, contra mim. Queria matá-lo por isso. Queria matá-lo por tudo o que me fez passar. Ainda está fazendo. — Sei — disse ele, sorrindo. — Bem, você está ótima! Namorando? Fernanda tossiu atrás de mim de propósito. Eu não estava feliz com essa situação. Nada feliz. Estava quase descendo do ônibus e voltando a pé para casa, uma vez que ainda não tínhamos rodado muito. Matheus chegara mais perto de nós para que pudéssemos conversar melhor. — Não — foi só o que eu disse. Não agradeci pelo elogio, não dei detalhes. Também não menti para deixá-lo com ciúmes — sou madura o suficiente para saber que isso não tem chances de acontecer. Virei-me para trás e lancei um olhar de súplica para Fernanda, pedindo para ela, por favor, ser aquela tagarela de novo e começar a falar de sua vida durante todos os nossos trinta minutos de viagem. Ela torceu os lábios para mim e apertou meu ombro. — Qual é, Juninho, você sabe que das irmãs Prado, a Ingryd é a estudiosa, não a namoradeira — o seu tom de voz estava animado e iluminado, como sempre. Sorri para mim mesma. Era provavelmente a primeira vez que Nanda dava uma de irmã mais


velha, e eu lhe agradeceria eternamente por isso. Ela começou a falar sem parar do Namorado Do Mês, que se chamava Renan, e que por acaso era amigo do Matheus. Incrivelmente, Nanda dizia seu nome com a maior naturalidade do mundo, como se o término houvesse acontecido há meses. Pergunto-me para onde foi a garota que ontem à noite dormiu abraçada a mim, com o coração em frangalhos. Fernanda Prado, Senhoras e Senhores. Deu tudo certo. Nanda não parou de falar até o momento em que chegamos à rodoviária, e tomamos caminhos diferentes desde então. Se caminhássemos até o shopping rapidamente, ainda daria tempo de almoçarmos antes de pegarmos a sessão de 13h40. — Finalmente! Esse seu ex-namorado é um mala, puts! — ela reclamou assim que começamos a caminhar. Suspirei e assenti com a cabeça. — Ei, você tá legal, né? Fiz que sim novamente. — Não esquenta — dei de ombros. — Ele fez aquilo para me atingir, mas tá tudo bem. Já tem muito tempo que eu decidi não me chatear mais por causa do Matheus. — Hum... — ela torceu os lábios. — Não se chateia mesmo, poxa. Ele vai casar e ficar preso em Vargem para sempre, e você? Com essas suas notas, vai mesmo pra Londres e agarrar todos os britânicos bonitos daquela cidade. Você sabe que eles são loucos por carne brasileira. Eu ri. Essa minha irmã é uma figura. Uma figura chata, neurótica, vulgar e pirada. Mas ainda assim, uma figura. E eu não sei o que seria da minha vida sem ela.


Capítulo 4 Nada como uma noite (a)normal de trabalho

Como acontecia todos os dias, hoje eu cogitei a hipótese de faltar o trabalho. Estava segurando uma das quatro milhões sacolas de sapatos que Fernanda havia comprado — não me pergunte como aceitaram seu cartão de crédito —, em pé, no ônibus ―Bragança Paulista – Vargem‖. Minha irmã desmiolada falava sem parar. Meus pés estavam tão, mas tão doloridos, que eu estava quase sentando no colo da senhora ao meu lado. Brincadeira. Mas estava quase. Hoje foi um dia muito complicado e longo, e ainda assim parece que eu não fiz nada de significativo. Era para eu ter ido para a aula no início do dia, mas não fui, porque Fernanda queria que eu tomasse café da manhã com ela. Era para eu ter ficado em casa e estudado para os exames do fim do módulo, mas não o fiz, porque Fernanda queria malhar. Éramos para ter ido ao cinema, mas não fomos, pois Fernanda preferiu comprar sapatos. Era para eu ter ido ao apartamento da Giovanna para pegar a matéria atrasada, mas não fui, porque Fernanda quis tomar milk-shakes. Era para nós termos pego um táxi, mas não pegamos, porque Fernanda gastara todo o dinheiro com scarpins, saltos e coturnos. Então, basicamente, meu dia fora destruído porque minha irmã queria fazer coisas ao meu lado. Por essas e outras, não acredite quando dizem que os irmãos caçulas que têm tudo o que querem. É uma grande mentira. O resultado do meu dia, claro: eu estava moída e profundamente cansada, e tudo o que eu queria era deitar na parte de baixo do meu beliche, mas não podia, porque tinha de trabalhar. E, se eu faltar o trabalho, vou levar uma bronca enorme do Seu Antônio amanhã. Mas... tudo bem, esse não é meu maior receio em voltar para casa. Eu tinha medo de não conseguir dormir e ficar pensando no meu maldito encontro com o Matheus Júnior hoje. Suspirei de súbito, olhando para as ruas de Vargem, que iam e vinham conforme meu ônibus avançava, as cordas da sacola do coturno que Fernanda comprara marcando meus dedos. Uma garota, aparentando uns dezesseis anos de idade, estava sentada ao meu lado, as mãos levemente pousadas na barriga inchada. Eu havia dado meu lugar a ela. Podia ver que seu rosto estava distante, quase sombrio, e pensei, por um segundo, sobre os problemas que aquela jovem estaria enfrentando agora. Será que o pai daquela criança estava enfrentando os problemas junto com ela? Será que sua mãe a expulsara de casa? Será que ainda estava estudando? Bem, provavelmente não. O ano acabara de começar e ela ganharia o bebê daqui à no máximo três meses. Será que ela já tinha comprado o enxoval? Será que pensara em abortar? Bem provável que sim. Toda jovem pensa. Mas, no fim, algo em sua moral fê-la decidir por ser mãe. Será que já sabia o sexo do bebê? Senti vontade de perguntar. Será que chorou quando a criança se mexeu pela primeira vez? Fernanda colocou a mão lentamente pelo meu ombro e me olhou solidariamente. Ela havia notado o modo como eu encarava sorrateiramente a jovem grávida. Olhei para a minha irmã, e sorri, mostrando que eu estava bem, que estava tudo bem. Desde a traição do Matheus, eu sorri muitas vezes daquele jeito para ela. Também para minha mãe, meu pai, e para o próprio Matheus. Só não para o Wesley. Porque toda vez que eu


fazia aquilo, ele me abraçava e dizia que se fosse heterossexual, casaria comigo. Então eu riria, e choraria, tudo ao mesmo tempo. Odeio estar emotiva. Sério. — Tem certeza que não quer matar trabalho agora? Você andou pra caramba — disse Fernanda, quando eu entreguei seu coturno e puxei a cordinha do ônibus para descer na Praça. — Tô bem — disse eu, mentindo descaradamente. — Se Deus quiser, hoje o expediente vai ser tranquilo. Ela assentiu com a cabeça, torcendo os lábios, para depois fazer uma coisa inesperada. Nanda me abraçou. Mesmo. Simplesmente me puxou pra ela e me deu um abraço enorme e fraternal, no meio do ônibus que estava quase parando. Seu braço ainda segurava um banco pra que a gente não caísse no chão, mas ainda assim... Geralmente eu abraçava minha irmã (como a noite de ontem, em que a fiz dormir na cama comigo). Não ela a mim. — Qualquer coisa finge um desmaio, eu pego plantão pra cuidar de você — disse ela, sorrindo. Sorri também. O que deu nela para estar sendo tão legal? — Foi legal você ter passado o dia comigo. — Você é uma chata, mas gostei também — sorri. O ônibus parou, as pessoas começaram a sair. — O.k., tchau, te vejo daqui a pouquinho. Então desci, e quase fico para trás, porque o motorista estava com pressa. A Praça Central era justamente o que o nome dizia. A principal Praça de Vargem. Tinha duas pizzarias, vários bancos, muitas árvores, e era o point de encontro dos jovens desde sempre. Dei meu primeiro beijo em um banco em frente à pizzaria da qual hoje eu trabalho. O tal garoto hoje é um garçom da pizzaria ―rival‖ (note as aspas, pois ambos os donos são amicíssimos um do outro), e só se lembra disso quando está bêbado. Não me julgue por isso, tudo bem? Eu tinha apenas treze anos e estava na minha primeira noite fora de casa. Claro que, quando Fernanda me carregou para a Praça, eu já tinha no psicológico a intenção de achar algum garotinho legal e beijá-lo. Não me orgulho disso, mas aos treze anos, eu estava enjoada de ser a única garota do mundo que nunca havia beijado ninguém. Tinha esse menino, o Guilherme, e eu me encantei pelo seu cabelo grande (quase maior que o meu) e sua camiseta preta do Aerosmith. Ele era alto, muito, muito magro, e nem era tão bonito assim, mas tinha seu charme. Como eu usava minha camiseta com uma caveirinha sorridente (a preferida de quando tinha treze anos), encarei-o durante um tempo até que ele viesse conversar comigo. Não gostávamos das mesmas bandas. Ele curtia de tudo o que era pesado e antigo, e citou bandas que eu sequer havia ouvido falar (mas, meus pais, ao contrário...). Eu disse a ele sobre meu gosto pelos ritmos alternativos e pelo pop-rock (que era a moda na época). Conversamos sobre um bocado de outras coisas, e eu me lembro como se fosse ontem, Guilherme disse que eu era a garota mais engraçada que ele já conhecera. Então, perguntou-me se eu já havia beijado alguém. Respondi que não. Ele perguntou se poderia fazer isso. Eu disse que sim. E ele se inclinou e me beijou. Lembro-me de ter achado a coisa toda íntima e bastante molhada. Não foi exatamente bom. ―Estranho‖ classificaria melhor o momento em si. Depois que acabou, Guilherme sorriu, mexeu em seu cabelo enorme, e disse que eu beijava muito bem. Após essa noite, passamos a conversar apenas por intermédio de acenos. Quando acontecem festas às quais eu sou obrigada a frequentar, ele vem até mim, completamente chapado — Guilherme tem um pequeno problema com Vodca que eu


vim a descobrir ao longo dos anos —, segura meus ombros, e diz, orgulhoso: ―fui eu que tirei o BV dessa mina, cara! O Guibs aqui!‖. Todos riem da cara dele, eu me torno um pimentão, digo: ―você está muito bêbado, Guibs‖, e dou de ombros. Acredite ou não, essa cena já se repetiu mais vezes do que eu gostaria de assumir. Mas a Praça, apesar de tudo, era um lugar bonitinho e relativamente aconchegante. Pelo menos, quando não era feriado ou fim de semana. Hoje era quarta-feira. Dia de jogo de futebol. O Bragantino (que é o time do coração de todos os cidadãos vargenses) iria jogar contra o São Paulo (raramente jogamos contra times grandes), de modo que a cidade inteira estaria assistindo o jogo em barzinhos de esquina, ou no conforto de suas casas. Estava torcendo para que o dia fosse regado apenas à delivery’s. Seria bem mais fácil lidar com clientes estúpidos pelo telefone. Eles não podiam ver meu rosto de frustração. Eu trabalhava, como já mencionei, em uma das duas pizzarias que pareavam uma com a outra no meio da Praça Central. A pizzaria em si era alvo de piadas desde que eu me entendia por gente. Chamava-se ―Al Gusto‖ (em italiano, seria algo como ―para saborear‖), e me lembro de que quando comecei a trabalhar, no último ano do ensino médio, meus colegas me olhavam e diziam que eu estava ―trabalhando para o Augusto.‖ O pior de tudo era quando o Wesley me substituía na recepção. Com sua voz grossa e gay, ele dizia: ―Pizzaria Al Gusto, boa noite‖, e o cliente, em contrapartida, falava sempre: ―Oi, Augusto, quanto tá a calabresa grande?‖. Lembro-me que nas primeiras dez vezes, ele até se deu ao trabalho de corrigir. Depois desistiu. Era cansativo demais. — Ingryd! Achei que você tinha morrido, vaca! — a voz estridente do meu melhor amigo ecoou assim que atravessei os portões meio fechados. Um paradoxo. Com certeza, Wesley diria que eles estavam meio abertos. — E morri. Você está tendo uma alucinação com o meu espírito. Chame os bombeiros e mande-os trazerem uma camisa de força. Wesley me encarou com aquela expressão de ―nossa, Pudim, como você é engraçada‖. — Nossa, Pudim, como você é engraçada — disse ele, revirando os olhos e se aproximando de mim. Deu-me um beijo no rosto e me apertou, quase me esmagando, e eu sorri. Uma vez, quando ambos estávamos na Bragança Paulista, ele havia passado a noite inteira fingindo ser meu namorado, porque eu havia dado fora em um idiota grandalhão que não me deixava em paz. Foi um dos dias que eu mais senti medo na vida. — Eu sei que sou — disse eu, desvencilhando-me do seu abraço caloroso, e cumprimentando os meninos que empurravam a água suja para fora da cozinha com alguns rodos. Fui direto para o balcão, larguei minha bolsa de qualquer jeito, sentei-me em frente ao meu computador e meu bloquinho de pedidos. Wesley sentou-se a minha frente. — Você não tá legal — disse ele. — Desembucha. O que aconteceu? Torci meus lábios, puxando meu celular e checando que não havia me atrasado muito. Tudo bem. Meu chefe ainda nem dera as caras. — Encontrei o Matheus no ônibus hoje. Wesley bufou. Eu sabia que ele odiava o Matheus pelo que tinha feito comigo. — Ele vai se casar. E tem um bebê. Não sei por que eu acrescentei isso. Talvez eu quisesse que o Wes soubesse que eu estava chateada não por ter visto meu ex-namorado, embora minha frase tenha dado


a entender que eu estava triste por ele estar constituindo a família que nós dois planejamos com outra pessoa. Mas também não era isso. Não era nada disso. Já fazia muito tempo que qualquer sentimento nutrido pelo Matheus sumiu do meu coração. — É, eu soube mais ou menos da coisa toda do bebê. Mas, sabe, Pudim, você não deveria ficar chateada por isso, porque... — Ele disse que eu tinha que conhecer a filha dele e fez questão de rir quando disse que lembrava muito bem que ter um bebê era um dos meus sonhos, Wesley. Entendeu? Minha voz estava meio rude, mas Wesley nunca se importou com minha grosseria. Agora ele me olhava com aquela pena que Nanda me olhou ainda há pouco, só menos acentuada. Ele não sabia o que dizer. Ninguém nunca soube, para dizer a verdade. Mas o Wesley era incrível porque, então, ele tentava me fazer rir. Ele não sabia o quanto eu o adorava por tentar. — Aquele filho da... — começou ele, respirando pesado. — Droga! Nem existe um palavrão tão horrível que defina a mãe dele. Eu ri. — Não esquenta, Wes, só tô muito cansada. — Ai, Di, sério — ele deu de ombros —, não liga para aquele resto de aborto. Deixa ele se ferrar para lá. Tomara que a filha dele seja daquelas que se atira chorando no chão do supermercado quando ele não quiser comprar Sucrilhos. Novamente, deixei-me rir. — Isso não é coisa que se deseje. — Nunca disse que eu era uma boa pessoa. E é por isso que ele é meu melhor amigo. Depois da minha conversa com o Wesley, deixei-me animar um pouco. É claro que seria pedir demais por uma noite tranquila de trabalho; de modo que depois das dez da noite, os torcedores Bragantinos decidiriam assistir ao jogo enquanto comiam pizza. A pizzaria não estava apinhada de tanta gente como usualmente fica nos fins de semana, mas mesmo assim precisei acelerar o ritmo de trabalho, e o telefone começou a tocar com muito mais frequência. Meu corpo ainda sentia o cansaço pelo dia exaustivo que tive, mas, no entanto, eu não me sentia tão mal assim. Era bem mais fácil lidar com um cliente chato do que com a lembrança insistente do Matheus Júnior. — Pizzaria Al Gusto, Ingryd, boa noite — disse eu para o telefone depois de têlo atendido prontamente. Falar o nome do estabelecimento e, em seguida, o meu próprio nome, era uma regra do Sr. Antônio. Ele acreditava que dava um ar profissional à pizzaria. Deixe-me dizer uma coisa sobre ser recepcionista: ainda vai te fazer pagar muito mico. Perdi a conta de quantas vezes atendi o meu celular com “pizzaria-algusto-Ingryd-boa-noite”. Dá vontade de morrer. — Oi Ingryd, deixa eu te perguntar, vocês... O QUÊ...?! LADRÃO, DESGRAÇADO! ESSE MERDINHA DE JUIZ É SÃO PAULINO! FOI FALTA, JUIZ DE MERDA! TODO MUNDO VIU QUE FOI FALTA! — a voz no telefone começou a gritar. Ao fundo, eu ouvia mais gritos de mais pessoas. Suspirei. Isso acontecia com uma frequência extraordinária, acredite em mim. — Senhor? — Ah, desculpa aí. O que eu tava falando mesmo? — os gritos ainda interceptavam a ligação, mas não precisei responder a pergunta, pois o homem logo se lembrou: — Ah, é. Vocês fazem pizza tamanho família aí? Vi o Wesley quase entregar um pedido errado e gesticulei com a mão para ele.


— A gente faz, sim — respondi com o máximo de simpatia que pude. Wes olhou para mim e sussurrou ―mas não é a mesa seis?‖. Fiz um gesto para que ele revirasse a anotação ao contrário. Me conhece há anos e ainda não sabe distinguir o meu ―6‖ do meu ―9‖? — Ô, Ana, eles fazem! — a voz no telefone gritou. — Tá, então, vocês fazem metade-metade? Fazem, né? Manda pra mim uma meia portuguesa e meia frango com catupiry... MAS TODO MUNDO GOSTA DE CATUPIRY, ANA, SÓ VOCÊ QUE NÃO! ...VAI TER PORTUGUESA PRA VOCÊ TAMBÉM, QUE INFERNO! ...E... ah, não coloca ovo na portuguesa, tá? Eu já estava anotando no meu bloquinho. — Meia portuguesa sem ovo... e... meia frango... Tudo bem, o senhor... — É tamanho família, tá? — ele fez questão de deixar isso claro outra vez. — Já anotei — respondi. — Que sabor de refriger... — É tamanho família, já anotou? É que da outra vez que eu pedi, eu falei que era tamanho família e vocês me mandaram uma grande. Isso já aconteceu umas dez vezes. É tamanho família. — Já anotei, senhor. Tamanho família — repeti com toda a paciência do mundo, controlando-me para não suspirar ou demonstrar algum indício da profunda insatisfação que eu tenho para com clientes chatos. — Oi, Ingryd — alguém me chamou em frente ao balcão e eu fiz um sinal com a mão para que esperasse. Algo me dizia que a voz era familiar, mas eu estava muito ocupada anotando o pedido do homem chato. — Qual o refrigerante? — repeti para o telefone. — Qual você quer, Ana? ...Mas Coca Light dá câncer! ...AH, PELO AMOR DE DEUS, VOCÊS NÃO SE DECIDEM! Manda uma Coca-Cola, menina — disse ele, ainda que soubesse que meu nome era Ingryd. Anotei o pedido do homem e pergunteilhe seu endereço. Conforme eu ia anotando a rua no meu bloquinho de delivery’s, olhei para frente para pedir que a pessoa que chamava pelo meu nome esperasse por apenas um segundo. Quase caí da cadeira quando vi que essa pessoa era o Pedro Lucas. — MAS O QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?! — as palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse controlá-las. Arrependi-me no mesmo momento, enquanto o Pedro Lucas dava uma gargalhada com muito gosto. — Como é, menina? — Nada não — fechei os olhos por um segundo, odiando-me. — De trinta a quarenta minutos, tudo bem, Senhor? — Tá, mas se passar de quarenta minutos e essa pizza não chegar eu não vou querer mais! Da outra vez que pedi, eu esperei sabe por quanto tempo? DUAS HORAS. E a pizza chegou fria e queimada. É bom mesmo que chegue daqui a meia hora, o.k.? — De trinta a quarenta minutos, senhor — repeti, sem saber se ficava com mais raiva do homem que conversava comigo no telefone, do Pedro Lucas que ainda ria da situação, ou de mim mesma que estava lidando ridiculamente com isso. Então a linha finalmente ficou muda, e eu estava prestes a dirigir toda a minha atenção ao Pedro Lucas, mas de repente me lembrei de que eu precisava deixar o pedido para os meninos da cozinha. Virei-me de costas e fui até lá com o papel na mão, feliz por não dirigir uma palavra sequer a ele. Mas isso só durou um segundo, e logo estávamos frente a frente um ao outro novamente.


— Espero que você esteja aqui para pedir alguma coisa — disse eu, destampando minha caneta. Era bem difícil intimidá-lo com minha voz de criança de quatro anos de idade, mas eu tentei. — Estou — disse ele, sorrindo e sentando-se ao balcão. — Vocês vendem pizza por fatia, aí? Apertei os olhos. — Não. — Hum... — ele tamborilou os dedos nos lábios, pensativo, os olhos pretos ainda flertando comigo. — Isso complica muito a minha vida, Sam. Suspirei, massageando as têmporas. Mas que droga. Já não me basta ter me encontrado com o Matheus, agora vou precisar aturar o Pedro Lucas também? É claro que ele não viria até aqui para pedir pizza. Ele mesmo havia me dito no ônibus que era do tipo insistente, certo? Além do mais, me chamar de ―Sam‖ é sacanagem. — Vai pedir ou não? — Vai sair comigo ou não? — o sorriso divertido estava brincando nos lábios dele, enquanto ele me olhava diretamente nos olhos e puxava as mangas da camiseta social até o meio do braço. Suspirei, tentando achar Wesley com os olhos. Ele seria o cara perfeito para me tirar dessa; só precisaria fazer uma daquelas suas vozes de heterossexual e tudo daria certo. Encontrei-o vindo de encontro ao balcão, pronto para pegar o pedido da mesa quatro. — Não vai rolar. Eu tenho... — Ei, cara — Wesley cumprimentou o Pedro quando chegou ao balcão, me interrompendo, enquanto equilibrava a pizza em um dos braços. Sorriu amigavelmente para ele. Isso! Justamente o que eu estava precisando. Às vezes, sou uma profunda fã do bom senso do Wes. — Wesley! Não sabia que você trabalhava aqui! — disse o Pedro Lucas em contrapartida. — Enquanto a Hey Hurricane não decola, a gente tem que dar um jeito de tirar dinheiro — Wesley sorriu. — Mas e a Izzy, ela tá bem? O Pedro Lucas já tinha se virado totalmente para conversar com o Wesley, e eu devia estar com a maior cara de ―o que diabos está acontecendo aqui?‖ do mundo. — Vocês dois se conhecem?! — perguntei um pouco mais alto, interrompendo a falação do Pedro Lucas sobre uma tal de Izzy. — Ah, você já conheceu minha melhor amiga, a Ingryd? — disse o Wesley, sorrindo para mim. O Pedro sorriu para mim, quase malicioso. — Claro que conheço o Wesley, ele é o tecladista da banda do namorado da minha irmã — disse ele, agora completamente virado para mim. Percebi que o Pedro Lucas era um desses garotos que dedica toda a sua atenção à pessoa com quem estava conversando. — A Ingryd estudou comigo na quinta série. Nos reencontramos no ônibus outro dia, e agora eu estou tentando fazê-la sair comigo. Fiquei tão surpresa que quase caí da cadeira outra vez. O sorriso do Pedro era a coisa mais cínica que eu já havia visto, e o Wesley, como belo filho da mãe que é, simplesmente riu da situação e desejou sorte ao Pedro. Olhou para mim, sorriu de um jeito meigo, e disse ―Vai nessa, Pudim. Ele é legal.‖ Bem, isso significa que eu já posso descartar a ideia de fingir que o Wesley é o meu namorado.


— Um cara legal, o seu melhor amigo — Pedro virou-se para mim, sorrindo daquele jeito cínico. Que ótimo. — Eu sei — disse eu, suspirando, e decidindo ser o mais direta que eu puder. — Olha, Pedro, é sério, foi bom te reencontrar, mas eu não quero sair com você, simplesmente porque eu não estou apta a relacionamento nenhum por agora. Eu estou estudando pra caramba, e eu trabalho aqui de terça a domingo, e... eu não tenho tempo para nada. Sério, eu só... não dá. Foi mal. O Pedro sorriu para mim. — Tudo bem — disse ele, seus olhos escuros penetrando os meus, sua voz meio rouca atravessando minha mente. Franzi o cenho, perguntando-me se aquilo era alguma espécie de pegadinha, porque não podia ter sido tão fácil assim. — Então, hum... esse açaí que tá no cardápio. Vou querer um copo. Escute, eu ainda estava muito confusa. Jurava que ele iria simplesmente continuar a insistir, até que eu tivesse de ser grossa outra vez, mas... aparentemente não. Pressionei minha caneta com o papel e fiz uma pequena nota, levando-a ao João, o menino que se encarregava dos sucos e vitaminas. Quando voltei ao meu lugar, percebi que o Pedro Lucas ainda estava sentado bem à minha frente. — Mas a gente ainda pode conversar como amigos, certo? — perguntou ele antes mesmo que eu voltasse a me sentar. Eu franzi o cenho, desconfiada. Um lado de mim queria sorrir da audácia do Pedro Lucas, mas a outra parte — a maior delas — estava muito desconfiada de tudo isso. Não que ele não fosse agradável (e até mesmo bonito). Eu só não estava mesmo apta a um relacionamento. — O que você tem feito da vida, Sam? — perguntou ele, colocando os braços no balcão. Percebi que eles eram mais fortes do que pareciam ontem (eu te falei que ele era bonito, ora, tenho olhos). Torci os lábios, tentando decidir se falava ou não. — Estou fazendo Relações Internacionais na USF, e trabalho aqui pra tirar meu sustento desde os... dezessete anos. É isso. — Disse eu, de repente percebendo que realmente havia contado tudo o que fazia da vida. Não tocava nenhum instrumento nas horas vagas, nem fazia algum tipo de esporte, nem desenhava, nem estava escrevendo um livro. Não ia a festa nenhuma, não tinha um namorado. Meu ciclo de amizade era bastante limitado. E, embora essa tenha sido de fato a vida que eu escolhi para mim, não consegui deixar de pensar que isso era... meio triste. — Caramba, você passou na USF?! — perguntou ele, os olhos brilhando. Isso me fez sorrir. Por pior que parecesse para mim, era o bastante para ele. — Tirei uma nota boa no ENEM — disse eu, surpresa pela nossa conversa não estar sendo interrompida por nenhum cliente ou telefonema. No fundo da pizzaria, estava a maior gritaria por causa do jogo, mas ele não parecia se importar por causa disso. — Parabéns — disse ele, parecendo sincero, o que era mais provável. O Dean/Pedro Lucas que eu conhecia nunca fora de dizer alguma coisa que não fosse inteiramente verdadeira. — Obrigada — nossa conversa estava tão civilizadamente amigável que eu já estava me assustando. — Mas e você? Só lembro que você saiu da escola no ano seguinte pra morar em São Paulo. Ele assentiu com a cabeça, enquanto João deixava a vitamina de açaí na mesa. Entreguei ao Dean/Pedro Lucas.


— Ah, é. Não foi um ano legal — disse ele, abrindo a carteira e deixando uma nota de cinco reais no balcão. — Eu chorei durante uns dois meses por estar deixando você. Eu corei, enquanto abria a caixa registradora. Coloquei a nota dele no seu devido lugar e retirei seus três reais de troco de lá de dentro. Olhei bem dentro de seus olhos, ainda sorrindo, e... hum, deixe-me dizer uma coisa a você: o meu melhor amigo gordinho da quinta série tornara-se mesmo um homem bonito. Estendi minha mão para entregar-lhe seu troco, e minha mão tocou na dele. Sim, é claro que nossos corpos se tocaram no outro dia, no ônibus, mas mesmo assim... essa foi uma sensação diferente. A mão dele, quente, só tocou a minha por um segundo, mas foi o contato o suficiente para fazer com que o traíra do meu coração acelerasse um pouquinho. Coloquei minha mão para baixo do balcão imediatamente, forçando-me a me acalmar. Droga, desde quando tenho essas reações só por tocar em um homem? Aquilo era absolutamente inadmissível; ainda mais nas circunstâncias atuais. — Deve ser exaustivo ter que trabalhar à noite e estudar de manhã — ele retomou a conversa, olhando para mim, interrompendo minha raiva de mim mesma por não estar sabendo lidar com sua presença ali. Eu assenti, entretanto, pensando que seria muito bom se o Pedro Lucas simplesmente fosse embora. — É, um bocado. Mas não tenho outra escolha. Aqui eu ganho um pouquinho melhor do que ganharia se arranjasse outro emprego, e ainda mais lá em Bragança. — Sério? — Pedro sorriu, abertamente, olhando nos meus olhos. — Minha irmã tem uma facilidade enorme em arranjar empregos. Num dia ela é despedida, no outro volta a ser empregada. Devia conversar com ela, algum dia. — Acho que eu preciso, mesmo. Graças a Deus o telefone tocou. O Pedro Lucas se calou e tomou seu açaí enquanto eu tentava dar toda a minha atenção à mulher que pedia a pizza do outro lado da linha; duas de milho (existem pessoas que gostam da pizza de milho, acredite), duas caixas de suco de laranja, para entregar duas ruas acima da minha, se meu mapa mental de Vargem não estivesse errado. Enquanto eu anotava o pedido com a maior dedicação que pude, sentia o olhar fixo do Pedro em mim, e minhas bochechas começaram a ficar quentes. Ai, mas que ódio de mim mesma e dos meus hormônios idiotas e da minha bochecha idiota que fica vermelha por qualquer coisinha. Demorei um pouco com a ligação e depois de entregar o pedido aos pizzaiolos, tratei de passar outros seis pedidos para o Gabriel, o motoboy, que acabara de chegar de cinco entregas. Isso me tomou mais alguns minutos, e ao olhar para o Pedro Lucas, percebi que ele já terminara outro copo de açaí, mas ainda estava totalmente relaxado em sua cadeira. Como se ele não estivesse nem um pouco a fim de ir embora. Eu suspeitava de que era a causa disso. Voltei para meu lugar, e seus olhos pretos sorriram para mim. — Sabia que já são mais de onze da noite? — perguntei a ele, destampando minha caneta e tentando olhar para o dinossauro que estava desenhando antes dele chegar, ao invés da sua carinha de índio. Havia chegado à conclusão de que desenhar dinossauros seria bem mais produtivo para mim do que ficar Sentindo Coisas. — Estava pensando em esperar o jogo do Bragantino terminar por aqui — disse ele, mas seus olhos não estavam na televisão coisa nenhuma. — Achei que não gostasse de futebol — disse, praticamente inexpressiva. Escutei sua risada.


— Minha mãe me colocou em uma escolinha de futebol quando fiz catorze anos. Foi por causa disso que eu cresci, emagreci, fiquei alto, atlético, bonito, e com coxas grossas — disse ele, e então eu estava rindo. Não foi como se eu pudesse evitar. Por um segundo, pensei em desenhar coxas no dinossauro, mas desisti. — Mas eu ainda acho futebol uma droga, mesmo que jogue muito bem. — Tá certo — disse eu, ironicamente. Conversar com ele parecia ser bom, desde que eu não olhasse para o seu rosto. De certa forma, Pedro não tinha mudado absolutamente nada. Gradativamente eu me lembrava do quanto ele me fazia rir com suas piadas sobre si mesmo, geralmente se engrandecendo. Era como ter um déjà vu, e eu de repente me perguntei o porquê de ter me esquecido dele durante tanto tempo. — Você não acredita, né? Deixa só você me ver jogando com as coxas descobertas. Sorri outra vez, e fiz um corte de cabelo moicano no meu dinossauro. — Você não mudou nada mesmo, né? — as palavras saíram da minha boca sem que eu as controlasse. Estava completamente dividida entre a vontade de continuar conversando com o Pedro Lucas, e a vontade de inventar alguma desculpa e sair de perto dele para nunca mais vê-lo. Ele era um rapaz legal, mas eu sabia o que ele queria de mim, e eu apenas não queria o mesmo dele. — Claro que mudei, estou mais alto e atlético, como foi anteriormente frisado — tentei não me atrair pela forma como ele usou o verbo ―frisar‖ no particípio acompanhado do advérbio de tempo, e ri. Meu dinossauro ganhou sobrancelhas. — Você ainda ri do mesmo jeitinho também. Percebi que até mesmo o dinossauro estava rindo, e olhei para o Pedro. Atrás dele, Wesley virou-se de costas e fingiu que estava agarrando a si mesmo, fazendo-me morder meu lábio para não gargalhar. Minha bochecha foi ficando quente, e acho que o Pedro Lucas percebeu que eu olhava por cima do ombro dele, porque se virou e pegou o Wesley fazendo um gesto positivo com a mão para nós dois. Senti uma leve vontade de morrer. Minha bochecha estava pegando fogo. — Seu melhor amigo é mesmo um cara muito engraçado — ponderou o Pedro Lucas, fazendo-me rir, meio sem graça. — Ele é um idiota. — As melhores pessoas são. — Tá certo — ironizei, voltando a atenção para o penteado do meu dinossauro punk. Decidi chamá-lo de Kurt e comecei a desenhar um balão de fala, com a frase “Polly wants a cracker‖5 escrita dentro dele. — Tô falando sério — disse ele, com uma urgência na voz que me fez largar o Kurt por um momento para encará-lo. — Digo, o que é a vida sem a idiotice? Você pode ter todo o dinheiro do mundo, pode conquistar todas as suas metas, mas se você não perder a linha de vez em quando... do que isso vai adiantar? Ser idiota e brincalhão faz com que você seja feliz, entende? E a vida não vale a pena sem felicidade. — Algo me diz que você é perito nisso — brinquei, só por achar que ele estava dividindo comigo uma das grandes lições que aprendeu na vida. O modo como seus olhos brilharam denunciava claramente que o que ele dizia valia muito para ele. — Mais ou menos — disse ele. — Você pode descobrir melhor se aceitar sair comigo. E lá vamos nós outra vez. Como eu suspeitava, não havia sido tão fácil mesmo. — Não — disse, apenas. — Nem adianta. 5

Referência à música “Polly” da banda norte-americana Nirvana. O vocalista chamava-se Kurt Cobain. (N.A.)


O Pedro abaixou as mangas da camisa social até as mãos e sorriu para mim de um jeito fofo, para dizer o mínimo. — Tivemos nosso primeiro encontro aqui, Sam — ele sorriu. — Um dia você vai aceitar ter o segundo.


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