por Sarah Mund, de Cannes*
Raízes, nova versão da série que gerou controvérsias nos anos 1970, conta a trajetória de uma família desde a época da escravidão. As questões levantadas pela história de Kunta Kinte continuam válidas ainda hoje 2 6 + M on e t + O U T U B R O
UEM JÁ ASSISTIA À TELEVISÃO NOS ANOS 1970 certamente se lembra de quando a série Raízes foi exibida. Nos Estados Unidos, a história do escravo africano Kunta Kinte e de seus descendentes no país causou grande comoção. Foi exibida nas escolas, a herança africana nos EUA foi debatida e a procura por genealogia se tornou popular. Trinta e nove anos depois, a saga baseada na obra de Alex Haley é contada mais uma vez. O livro de Haley em si enfrentou Raízes ENTRE OS DIAS 17 E 20, SEGUNDA muitos questionamentos, até que o A QUINTA, 22H40, HISTORY, autor admitisse que boa parte do que 83 E 583 (HD) dizia ser a trajetória de sua família desde a chegada de um guerreiro africano na América do Norte não poderia ser provada por meio de documentos, e que muito da sua pesquisa se baseou no que foi contado de forma oral de um familiar a outro. Mas nada disso tira o impacto que os quatro capítulos duplos da nova produção causam. E foi ao tentar reproduzir para seu filho o que sentiu com o original que o produtor Mark Wolper decidiu que era hora de repetir os passos de seu pai, David L. Wolper, produtor de Raízes. “Percebi que aquilo era entediante para ele quando tentei fazê-lo assistir. Foi aí que me dei conta de que gerações inteiras não teriam acesso à história por uma questão de estilo e tecnologia”, justificou, entre lágrimas, explicando o que o levou a dar vida ao remake.
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A história é praticamente a mesma, mas dessa vez contada sob um novo ponto de vista: a partir dos integrantes da família Kinte. E para garantir que o público seria conquistado, o elenco foi escolhido a dedo, entre veteranos e rostos até então desconhecidos do grande público. Laurence Fishburne assume o papel de Haley, que é quem conta a história de seus antepassados. Forest Whitaker vive um personagem essencial para Kunta Kinte, interpretado pelo britânico Malachi Kirby. Outra mudança visível para quem assistiu à primeira versão de Raízes são as correções históricas. “Nós perguntamos a historiadores o que não sabíamos sobre a escravidão na África e na América e assim pudemos acrescentar informações que tornaram a trama ainda mais dramática”, explicou Wolper. É por isso que, dessa vez, passagens da Guerra Civil Americana foram incluídas, assim como era a vida em Jufure, não uma vila como se acreditava, mas uma cidade desenvolvida que contava com igrejas, mesquitas e comércio abundante onde hoje é a Gâmbia. Foi assim também que surgiu a personagem de Anna Paquin, que não constava na atração original. “Nancy Holt é uma mistura do que muitas mulheres estavam fazendo no sul dos EUA, se casando com donos de plantações e operando como espiãs para derrubar o sistema de dentro”, explicou o produtor. “Nunca tinha ouvido falar sobre essa parte da história e ela é muito empoderadora para as mulheres. Elas posavam de esposas perfeitas e, como os homens não lhes davam importância, falavam livremente em suas presenças. Mas apesar de minha personagem ser uma mulher corajosa, sinto como se fosse apenas uma visitante nesse lindo projeto. Acho que eu não sou a pessoa que melhor possa falar e representar essa realidade”, admitiu a atriz de forma a dar espaço para sua colega de elenco, Anika Noni Rose, dona de um discurso apaixonado sobre a importância de recontar essa trama. “Muitos não querem ver mais uma história de escravos. Há muitas narrativas que podem ser contadas, mas focar apenas na vitimização é uma herança da escravidão. Essa também é uma trajetória de sobrevivência heroica. Enquanto não começarmos a encarar dessa forma esses acontecimentos, sob os quais não possuímos nenhum poder de mudança, teremos o que aprender. Ainda há muita vergonha, dos brancos e dos negros, ao falar sobre escravidão. Essa é a oportunidade de mostrar o quanto melhoramos como sociedade. Nunca vi um judeu reclamar de mais um filme sobre o Holocausto, pelo contrário, eles se comprometem a nunca esquecer”, ponderou Anika, que interpreta a filha de Kunta Kinte, Kizzy, treinada pelo pai para também ser uma guer2 8 + M on e t + O U T U B R O
História de resistência – Em sentido horário, a partir da imagem maior: Kunta Kinte (Malachi Kurby) conta com Fiddler (Forest Whitaker) para se adaptar à realidade longe da África; Tom Lea (Jonathan Rhys Meyers) leva seu filho Chicken George (Regé-Jean Page) e o escravo Mingo (Chad L. Coleman) para uma briga de galos; Nancy Holt (Anna Paquin) cumpre o papel de boa esposa enquanto esconde sua filiação à causa abolicionista; LeVar Burton, primeiro intérprete de Kunta Kinte e agora produtor executivo, encontra seu sucessor; Kizzy (Anika Noni Rose) segura um de seus netos; Alex Haley (Laurence Fishburne) escreve a história de sua família
reira. Jonathan Rhys Meyers, apesar de irlandês e não tão diretamente afetado por essa herança, como ele mesmo descreveu, tem opinião semelhante: “Claro que ninguém quer ser lembrado de suas piores ações, mas é preciso aceitar que tudo isso aconteceu, é um capítulo da história e temos que aprender com ele, porque a escravidão ainda existe, apenas com nomes diferentes. Pode até ser incômodo e doloroso encarar, mas só assim podemos superar o que aconteceu e seus efeitos, que encaramos ainda hoje”. Embora a atração mostre a perseverança de uma família nos EUA, não há dúvidas de que histórias não muito diferentes aconteceram também entre o continente africano e terras ao sul do Equador, como a própria Anika fez questão de ressaltar: “Tenho certeza de que as pessoas se identificarão em outros países, especialmente no Brasil, onde há um forte movimento de consciência negra. É um país de misturas tão bonitas e herança africana tão significante, mas nada disso impede que o racismo exista de formas bastante complexas. Isso vem direto daqueles navios negreiros e acredito que a experiência [de assistir à série] será muito intensa para os brasileiros”. Preparem-se para rever seus conhecimentos sobre a escravidão e encarar seus próprios preconceitos em uma jornada para lá de emocionante. *A jornalista viajou a convite do canal O U T U B R O + M on e t + 2 9