Quarteto Bessler-Reis e Quarteto AmazĂ´nia
a poética villalobiana
Inquieto, ousado e controverso, Heitor Villa-Lobos marcou o pensamento musical de sua época e das gerações seguintes com narrativas que trouxeram o colorido de muitos brasis. Sua formação inicial, moldada ainda garoto pelas fugas e suítes de Bach – e embalada pelas vigorosas arcadas do pai ao violoncelo –, foi o rasgo para futuras inserções no universo sonoro mais formal, o que não o impediu de se aproximar dos instrumentistas da boemia carioca, e se apaixonar, desde cedo, pelos improvisos do choro e por tantas outras referências urbanas populares. Já mais tarde, a curiosidade juvenil o motivou a realizar algumas incursões pelo interior do país, estabelecendo paragens nas lendas dos caboclos de engenho dos sertões, nos cantos dos remeiros do São Francisco, nos sons da floresta do mundo amazônico e nos fragmentos ameríndios distribuídos por vários recantos.
O rigor da música erudita, aliado à leveza do imaginário popular e folclórico, constituiu a complexa personalidade de sua obra. Sinfonias, óperas, sonatas, concertos, músicas de câmara e outros gêneros abrigaram fraseados musicais fortemente marcados por uma tonalidade nacional. Esse impulso na direção das singularidades regionais intensificou-se a partir de sua segunda estada em Paris, quando se aproximou das correntes de vanguarda e se apercebeu da existência de um clima de valorização em torno do “exotismo” das culturas locais. Afora as críticas sobre as razões que o fizeram encampar essa estética – se a utopia em construir uma arte mais genuína ou simplesmente o desejo de projetar uma carreira internacional, atendendo ao ideário do primeiro mundo –, as características de inovação e experimentalismo expostas em sua linguagem composicional fizeram-no presente na Semana de Arte de 1922, harmonizando, com sua batuta, a plástica musical modernista. A importância do conjunto de sua produção transcende, inclusive, alguns momentos obscuros de sua trajetória, como o de sua aproximação com a política do Estado Novo de Vargas, quando implantou um extenso projeto educacional voltado à inserção do canto orfeônico nas escolas públicas.
Vasta, uma grande parte da criação artística de Villa-Lobos ainda continua desconhecida pelo público. Com o intuito de melhor entender os meandros do seu processo criativo, o Sesc apresenta o conjunto de sua obra para quarteto de cordas, composto no período de 1915 a 1957, representando diferentes fases do seu caminho artístico. Em dezessete peças, distribuídas em setenta movimentos, o Quarteto Bessler-Reis e o Quarteto Amazônia trazem um pouco do imaginário estético-musical do compositor, revelando as diversas camadas de sentidos advindas de sua colorida e intensa trama sonora. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
cd 1
quartetos de cordas 1, 2, 3 QUARTETO BESSLER – REIS Bernardo Bessler (1º violino) Michel Bessler (2º violino) Marie-Christine Springuel (viola) Alceu Reis (violoncelo)
Produzido por Mario de Aratanha / Produtor Fonográfico: Kuarup / Direção Musical: Bernardo Bessler / Gravado em DAT por Denilson Campos e Mario ‘Leco’ Possolo, nos Studios Master, Rio de Janeiro, Brasil, em julho de 1988 (nº 1) e de setembro a dezembro de 1989 (nº 2 e 3)
quarteto de cordas nº1 (1915) 1. Cantilena (Andante) 1’52 2. Brincadeira (Allegretto scherzando) 1’10 3. Canto lírico (Moderato) 4’24 4. Cançoneta (Andantino quase allegretto) 1’40 5. Melancolia (Lento) 5’35 6. Saltando como um Saci (Allegro) 2’36
ISRC: BRKUA9104501 ISRC: BRKUA9104502 ISRC: BRKUA9104503 ISRC: BRKUA9104504 ISRC: BRKUA9104505 ISRC: BRKUA9104506
quarteto de cordas nº2 (1915) 7. Allegro non troppo 8. Scherzo 9. Andante 10. Allegro deciso-final (Prestíssimo)
5’17 3’00 4’10 7’10
ISRC: BRKUA9104507 ISRC: BRKUA9104508 ISRC: BRKUA9104509 ISRC: BRKUA9104510
quarteto de cordas nº3 (1916) 11. Allegro non troppo 12. Molto vivo 13. Molto adagio 14. Allegro con fuoco
6’00 4’30 7’06 5’45
ISRC: BRKUA9104511 ISRC: BRKUA9104512 ISRC: BRKUA9104513 ISRC: BRKUA9104514
cd 2
quartetos de cordas 4, 5, 6 QUARTETO BESSLER-REIS Bernardo Bessler (1º violino) Michel Bessler (2º violino) Marie-Christine Springuel (viola) Alceu Reis (violoncelo)
Produzido por Mario de Aratanha / Produtor Fonográfico: Kuarup / Direção Musical: Bernardo Bessler / Gravado em PCM-Digital por Carlos de Andrade e Mário ‘Leco’ Possolo nos Studios Master, Rio de Janeiro, de junho a agosto de 1987.
quarteto de cordas nº4 (1917) 1. Allegro com moto 2. Andantino (Tranquilo) 3. Scherzo (Allegro vivace) 4. Allegro
6’46 5’29 4’51 5’49
ISRC: BRKUA8803401 ISRC: BRKUA8803402 ISRC: BRKUA8803403 ISRC: BRKUA8803404
quarteto de cordas nº5 (1931) 5. Poco andantino 6. Vivo e enérgico 7. Andantino 8. Allegro
5’55 4’08 3’04 3’42
ISRC: BRKUA8803405 ISRC: BRKUA8803406 ISRC: BRKUA8803407 ISRC: BRKUA8803408
quarteto de cordas nº6 (1938) 9. Poco animato 10. Allegretto 11. Andante quasi adagio 12. Allegro vivace
6’06 5’12 6’25 7’07
ISRC: BRKUA8803409 ISRC: BRKUA8803410 ISRC: BRKUA8803411 ISRC: BRKUA8803412
cd 3/4
quartetos de cordas nº 7, 8, 9, 10, 11 QUARTETO AMAZÔNIA Cláudio Cruz (1º violino) Igor Sarudiansky (2º violino) Horácio Schaefer (viola) Alceu Reis (violoncelo)
Produzido por Mario de Aratanha / Produtor assistente e engenheiro de gravação: Alexandre Hang / Direção Musical: Quarteto Amazônia / Gravado em digital no Drum Studio, Rio de Janeiro, 1996.
disco 3
quarteto de cordas nº7 (1942) 1. Allegro 2. Andante 3. Scherzo 4. Allegro justo
10’33 10’15 7’04 10’42
ISRC: BRKUA9608001 ISRC: BRKUA9608002 ISRC: BRKUA9608003 ISRC: BRKUA9608004
quarteto de cordas nº11 (1947) 5. Allegro non troppo 6. Scherzo vivace 7. Adagio 8. Poco andantino
6’44 5’14 7’58 8’05
ISRC: BRKUA9608005 ISRC: BRKUA9608006 ISRC: BRKUA9608007 ISRC: BRKUA9608008
disco 4
quarteto de cordas nº8 (1944) 1. Allegro 2. Lento 3. Scherzo 4. Quasi allegro
6’32 7’18 5’49 7’09
ISRC: BRKUA9608009 ISRC: BRKUA9608010 ISRC: BRKUA9608011 ISRC: BRKUA9608012
quarteto de cordas nº9 (1945) 5. Allegro 6. Andantino vagaroso 7. Allegro poco moderato 8. Molto allegro
5’59 9’41 6’47 4’14
ISRC: BRKUA9608013 ISRC: BRKUA9608014 ISRC: BRKUA9608015 ISRC: BRKUA9608016
quarteto de cordas nº10 (1946) 9. Poco animato 10. Adagio 11. Scherzo 12. Molto allegro
7’16 8’16 4’45 4’09
ISRC: BRKUA9608017 ISRC: BRKUA9608018 ISRC: BRKUA9608019 ISRC: BRKUA9608020
cd 5
quartetos de cordas 12, 13, 14 QUARTETO BESSLER-REIS Bernardo Bessler (1º violino) Michel Bessler (2º violino) Marie-Christine Springuel (viola) Alceu Reis (violoncelo)
Produzido por João Pedro Borges e Mario de Aratanha / Produtor Fonográfico: Kuarup / Direção Musical: Bernardo Bessler / Gravado em DAT por Mario ‘Leco’ Possolo no Multi Studio, em julho de 1991 (nº 12 e 13), e nos Studios Master, em julho de 1989 (nº 14).
quarteto de cordas nº12 (1950) 1. Allegro 2. Andante melancólico 3. Allegretto leggiero 4. Allegro (Bien rythmé)
5’48 7’08 4’58 4’33
ISRC: BRKUA9105101 ISRC: BRKUA9105102 ISRC: BRKUA9105103 ISRC: BRKUA9105104
quarteto de cordas nº13 (1951) 5. Allegro non troppo 6. Scherzo (Vivace) 7. Adagio 8. Allegro vivace
4’47 3’50 8’06 3’20
ISRC: BRKUA9105105 ISRC: BRKUA9105106 ISRC: BRKUA9105107 ISRC: BRKUA9105108
quarteto de cordas nº14 (1953) 9. Allegro 10. Andante 11. Scherzo (Vivace) 12. Molto allegro
5’26 4’56 3’44 3’41
ISRC: BRKUA9105109 ISRC: BRKUA9105110 ISRC: BRKUA9105111 ISRC: BRKUA9105112
cd 6
quartetos de cordas 15, 16, 17 QUARTETO BESSLER-REIS Bernardo Bessler (1º violino) Michel Bessler (2º violino) Marie-Christine Springuel (viola) Alceu Reis (violoncelo)
Produzido por Mario de Aratanha / Produtor Fonográfico: Kuarup / Direção Musical: Bernardo Bessler / Gravado em PCM-Digital por Mario ‘Leco’ Possollo nos Studios Master, Rio de Janeiro, Brasil, de outubro a dezembro de 1988.
quarteto de cordas nº15 (1954) 1. Allegro non troppo 5’10 2. Moderato 4’23 3. Scherzo vivo 1’56 4. Allegro 4’18
ISRC: BRKUA9004201 ISRC: BRKUA9004202 ISRC: BRKUA9004203 ISRC: BRKUA9004204
quarteto de cordas nº16 (1955) 5. Allegro non troppo 6. Molto andante (Quasi adagio) 7. Scherzo vivace 8. Molto allegro
4’58 5’11 4’17 4’20
ISRC: BRKUA9004205 ISRC: BRKUA9004206 ISRC: BRKUA9004207 ISRC: BRKUA9004208
quarteto de cordas nº17 (1957) 9. Allegro non troppo 5’29 10. Lento 4’58 11. Allegro vivace 3’16 12. Allegro vivace con fuoco 4’58
ISRC: BRKUA9004209 ISRC: BRKUA9004210 ISRC: BRKUA9004211 ISRC: BRKUA9004212
inventando uma tradição: os quartetos de villa-lobos Paulo de Tarso Salles
Introdução Ao escutar os dezessete quartetos e doze sinfonias compostos por Heitor Villa-Lobos (1887-1959), nos deparamos com uma série de contradições entre a produção real desse grande compositor e a apreciação crítica sobre sua obra. Afinal, quartetos de cordas e sinfonias são gêneros extremamente caros à música de concerto europeia, cercados por convenções e tradições tanto no que diz respeito a sua criação como quanto a sua execução. No sentido oposto, o juízo crítico construído a respeito de VillaLobos o define como um compositor avesso a convenções de qualquer espécie, desinteressado em formalidades de qualquer assunto que não diga respeito à cultura e à natureza brasileiras. Logo, seus quartetos de cordas (vamos nos ater a eles, já que são o conteúdo exclusivo deste box) parecem propor uma espécie de desafio: o que teria levado Villa-Lobos a compor uma das maiores séries de quartetos de cordas em todo o século XX? Ao
que se sabe, Darius Milhaud (1892-1974) é um dos poucos que o teria superado em quantidade, escrevendo dezoito quartetos. Além disso, não havia à época de Villa-Lobos uma tradição brasileira na escrita de quartetos: Carlos Gomes (1836-1896), à maneira de Verdi, escreveu apenas um quarteto, o instigante Burrico de Pau, que permaneceu relativamente pouco conhecido até meados do século passado; os quatro quartetos de Henrique Oswald (1852-1931) são escassamente documentados e provavelmente pouco executados até o início do século XX, especialmente se comparados com seus quartetos com piano, muito mais reconhecidos; Alberto Nepomuceno (1864-1920) escreveu três quartetos, que permaneceram inéditos durante sua vida; tampouco há obras de vulto por outros compositores. Assim, Villa-Lobos praticamente inaugura uma vertente onde aos poucos o estilo nacionalista se ajusta à forma e dialoga com a produção europeia. Essa proposta, no entanto, enfrentou percalços, os quais começam por certa rejeição da crítica, forjada ao longo da carreira do compositor: os quartetos villalobianos são por vezes considerados obras “mal compostas”, seja por não se ajustarem ao “temperamento livre” do compositor, seja por sua “falta de domínio
técnico”, ou mesmo por sua “má compreensão da forma sonata”. Outros críticos, mais abalizados, preferem dissociar o compositor de quaisquer procedimentos composicionais estudados, talvez receosos de diminuir a importância de seu talento e de seu esforço como autodidata. Arnaldo Estrella (1908-1980), em seu importante estudo sobre os quartetos villalobianos, diz que o compositor rejeitava a forma sonata: “Ignora-a completamente. O molde não lhe convinha, não o seduz”1; além disso, Estrella refuta qualquer influência de Joseph Haydn (1732-1809) – apesar do próprio Villa-Lobos reivindicar esse vínculo. Tais afirmações, proferidas por um músico e teórico do porte de Estrella – exímio pianista e amigo pessoal de Villa-Lobos, selaram o juízo crítico sobre essas obras, sedimentando a visão idealizada de um compositor genialmente intuitivo e totalmente voltado à representação da nacionalidade. Nota-se certa incompreensão a respeito da forma sonata e das estratégias composicionais desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX, especialmente nas diferenciações entre os estilos clássico e romântico – e 1 Estrella, Arnaldo. Os quartetos de cordas de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/ Museu Villa-Lobos, 1970, p. 11.
isso não é algo atribuível exclusivamente a Estrella ou aos musicólogos brasileiros, mas ao estado da questão àquela época. Estudos importantes sobre o estilo clássico, como os de Charles Rosen e Leonard Ratner, vieram à luz somente nas décadas de 1970 e 19802, portanto, ainda havia certo desconhecimento da importância de Haydn e de certas especificidades da sonata clássica em relação ao modelo romântico difundido a partir de Carl Czerny (1791-1857)3. A inclusão de Joseph Haydn no cânone ocidental só se sedimentou paulatinamente após a Segunda Guerra, impulsionada pela comemoração de seu bicentenário de nascimento (em 1932) e esteve em curso nas décadas seguintes. Desse modo, enquanto a menção a Bach no projeto composicional das Bachianas Brasileiras era vista de maneira positiva, as coisas foram diferentes em relação a suposta influência de 2 Rosen, Charles. The Classical Style: Haydn, Mozart, and Beethoven. New York: Norton, 1997 (1ª edição 1971); Ratner, Leonard. Classic Music: Expression, Form, and Style. New York: Schirmer, 1980. 3 Aluno de Beethoven, Czerny publicou, além de composições e métodos para piano, um tratado (Die Schule der Praktischen Tonsetz Kunst, Op. 600, 1830, em 3 volumes) onde faz uma descrição da forma sonata “clássica”, a qual todavia se mostrou mais uma descrição dos processos usados pelos românticos (ver Rosen, 1997).
Haydn nos quartetos de Villa-Lobos, pois o compositor austríaco era ainda considerado como um caso historicamente localizado, sem conexão direta com a música composta no século XX. Tratam-se de dois tipos diferentes de elaboração “neoclássica” na obra villalobiana, recebidos de maneira oposta pela musicologia até meados dos anos 1980. Uso da forma sonata Apesar da importância pioneira do estudo de Arnaldo Estrella, é importante ressaltar que é possível ver (e ouvir) nos quartetos villalobianos o uso extensivo, criativo e pessoal da forma sonata, tanto na exploração do chamado “Allegro de sonata”, em suas diferentes possibilidades, como na elaboração do ciclo em quatro movimentos. Villa-Lobos compôs, de certo modo, “à maneira de Haydn”, porém repensando os conceitos de harmonia, contraponto e forma de acordo com seu estilo pessoal e naturalmente com a sensibilidade do século XX. Quero convidar o ouvinte (e leitor) a fazer essa reinterpretação. A forma sonata está ausente apenas nos quartetos nº 1 (1915) e nº 5 (1931) de Villa-Lobos; certos quartetos, como os nos 3, 9 e 15, apresentam até mais de um movimento em forma de sonata;
os quartetos nos 2 e 3 são ainda exemplares da chamada concepção cíclica, em que os temas exibidos no primeiro movimento são reapresentados e transformados nos demais movimentos, tornando o último uma espécie de síntese e clímax de toda a obra, tendência que se consolidou na Europa sobretudo a partir do êxito e influência crescente da Nona Sinfonia de Beethoven, que se tornou modelo para a geração de compositores como Vincent d’Indy e César Franck. É a partir do Sexto Quarteto (1938) que Villa-Lobos adota o modelo haydniano com mais consistência; logicamente, sua linguagem harmônica e características rítmicas não têm nada a ver com o maestro austríaco do século XVIII, trata-se da assimilação de aspectos estruturais e subliminares, presentes na construção formal, na disposição dos materiais e no caráter dos movimentos, os quais Villa-Lobos ajusta ao seu próprio estilo, e também com sua concepção de “brasilidade”4. Os quartetos villalobianos podem ser agrupados de acordo com certas características de estilo: 4 Sobre o estilo de Villa-Lobos, ver: Salles, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Ed. Unicamp, 2009.
grupos
qc
classificação
I Aforístico
1 (1915)
Obra em forma de suíte e com caráter aforístico, sem desenvolvimentos.
II Cíclicos
2 (1915) 3 (1916)
Desenvolvem o princípio de forma cíclica da Escola Francesa de Franck e d’Indy.
III Rapsódico
5 (1931)
Tentativa de estilo rapsódico, abandonado pelo compositor.
IV Haydniano
6 (1938) 7 (1942) 8 (1944) 4 (1917-1949)
Adoção do modelo formal haydniano (que se mantém quase inalterado até o final da série). Definição dos tipos cadenciais e das estilizações temáticas de caráter nacional para a linguagem do quarteto.
V “Expressionista”
9 (1945) 10 (1946)
Quartetos quase “expressionistas”, dialogando com o cromatismo de Berg e Bartók.
VI Estilo maduro
11 (1947) 12 (1950) 13 (1951) 14 (1953) 15 (1954) 16 (1955) 17 (1957)
Quartetos “maduros”, onde o equilíbrio dos quatro movimentos é mantido. O material temático é permutado entre as diversas situações e funções dentro da forma, alternando entre tipos estilísticos populares, inspirados pela música brasileira, e tipos temáticos que dialogam com a tradição europeia, especialmente em fugatos e figurações de contraponto livre.
Observa-se que os quartetos abrangem praticamente toda a carreira do compositor, com exceção da década de 1920, quando ele se dedicou à composição da série de Choros. Na classificação acima, o Quarto Quarteto está colocado fora da ordem cronológica oficial de composição (cujas datas estão entre parêntesis na tabela supracitada), pois sua estreia ocorreu apenas em 1949. Os primeiros quartetos: em busca de uma linguagem pessoal Há dúvidas quanto à datação do Primeiro Quarteto (QC1). Os dados disponíveis sobre a obra são incongruentes: o catálogo do Museu Villa-Lobos5 oferece a mesma informação que consta no manuscrito da partitura, a qual localiza a composição em 5 de março de 1915 (dia do 28º aniversário do compositor); todavia, a estreia da peça teria acontecido antes dessa data, em 3 de fevereiro do mesmo ano. Como isso seria possível? Ao que parece, a versão estreada (em audição privada, na casa do compositor Homero Barreto em Nova Friburgo) em fevereiro tinha apenas três movimentos: “Cantilena”, “Cançonetinha grega” e “Brinquedo”, que correspondem respectivamente ao primeiro, quarto (cujo título 5 Villa-Lobos, sua obra. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 3ª ed., 2009.
final ficou “Cançoneta”) e segundo movimentos (“Brincadeira”) do QC1. A obra foi chamada então de Suíte Graciosa. De acordo com o depoimento de Mariuccia Iacovino – líder e primeiro-violino do Quarteto Iacovino, que fez as primeiras audições de várias obras villalobianas – a estreia do QC1 deu-se após 1943, fazendo supor que os movimentos adicionais (3º: Canto Lírico; 5º: Melancolia e 6º: Saltando como um saci) provavelmente foram compostos posteriormente (talvez na data oficial de composição, indicando a finalização da obra, um mês após sua estreia incompleta)6. Não obstante tais questionamentos, os seis movimentos dessa obra apresentam leveza e frescor compatíveis com outras de suas obras de juventude, como reconhece o musicólogo finlandês Eero Tarasti7. Não há desenvolvimentos internos nem relação temática entre as seis partes, reunidas como uma suíte. O terceiro movimento (Canto lírico) é descrito pelo compositor como uma paródia, “cujo sabor irônico, numa intencional e
6 Iacovino, Mariuccia. “O quarteto de Villa-Lobos”. Em: Presença de Villa-Lobos, v. 10, Rio de Janeiro: MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, pp. 163-166, 1977. 7 Tarasti, Eero. Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959. North Carolina: McFarland & Co., p. 299, 1995.
elevada caricatura às árias românticas, transcende a saborosa hipótese de uma “romanza” de um barítono, acompanhado por uma orquestrinha provinciana”8. Melancolia, é talvez, o movimento mais ambiciosamente elaborado do QC1, com suas passagens cromáticas. O último movimento, Saltando como um saci, é estruturado como um fugato cujo tema sugere a imagem daquele mito brasileiro, evocado pelo título espirituoso. Em oposição ao QC1, os quartetos 2 e 3 são obras em larga escala, moldados de acordo com o conceito de sonata cíclica em moda na virada do século. Villa-Lobos estudou o Cours de Composition Musicale (1909) de Vincent d’Indy (1851-1931), compositor que reverenciava a estruturação cíclica dos temas em obras de Beethoven, Franck e em suas próprias criações; certamente isso se manifesta na construção dos QC2 e 3 de VillaLobos, cujos temas principais são ouvidos ao longo de todos os quatro movimentos. Nas duas obras, o movimento final é uma síntese de todos os temas apresentados nos demais, em um esquema formal semelhante ao do único quarteto composto por César Franck (1822-1890). 8 Villa-Lobos, em seu manuscrito contendo notas de programa sobre seus quartetos.
No QC2 (1915) é possível reconhecer não apenas elementos exógenos, de influência “francesa”, como também o interesse do compositor pela exploração do cromatismo no tema principal, que alterna cadeias de terças maiores e menores, também presente na obra de muitos compositores alemães como Richard Strauss (1864-1949), Arnold Schoenberg (1874-1951) e Anton Webern (1883-1945). Não obstante, ainda há espaço para alusões ao ritmo do samba, como se pode ouvir à altura de 1’05 ainda no primeiro movimento. No primeiro movimento (Allegro non troppo), são apresentados dois temas cíclicos, recorrentes nos demais. Na verdade, o segundo tema é ainda apenas um fragmento temático, que se destaca a partir do segundo movimento. Este (Scherzo) remete – segundo o compositor – a uma melodia tocada em flautas nasais pelos índios Paresi do Mato Grosso. O terceiro movimento (Andante) tem certo sabor análogo ao das modinhas e serestas brasileiras. O quarto se subdivide em três seções bastante nítidas: Allegro deciso, Presto e Prestíssimo; os temas cíclicos reaparecem e interagem com o tema de caráter ibérico desse movimento, que se torna uma grande síntese de toda a obra.
O QC3 (1916) se distingue pelo uso da escala pentatônica que muitos atribuem também à influência do compositor francês Claude Debussy (1862-1918) – o compositor, no entanto, comentou que tal escala é “idêntica a de todos os povos de civilização primitiva como são os habitantes aborígenes do Brasil, das Américas, da Ásia, da África, da Oceania e outras culturas que ainda possuem raças de civilização embrionária”9. O segundo movimento (Molto vivo) é o mais conhecido, dado o caráter curioso de suas melodias e acompanhamento em pizzicato, que lhe valeu o apelido de “patacas e potocas” dado pelo próprio compositor; o movimento final (Allegro con fuoco) é uma tocata com vigorosos ostinatos, com caráter “selvagem” como o que se ouve nos Choros. A obra foi apresentada na famosa Semana de Arte Moderna realizada no Theatro Municipal de São Paulo em 1922, selando a colaboração de Villa-Lobos com o movimento modernista e aproximando-o do poeta e musicólogo Mário de Andrade (1893-1945). O QC4 muito provavelmente começou a ser escrito em 1917, como se pode deduzir da escuta do tema inicial do primeiro 9 Villa-Lobos, notas de programa para os quartetos de cordas, manuscrito.
movimento (Allegro con moto), muito semelhante ao tema inicial do QC2; porém, ao longo da obra escutam-se muitas figuras musicais ouvidas em obras dos anos 1940, fazendo suspeitar que a peça foi reelaborada durante os 32 anos em que permaneceu engavetada. Há certa proximidade entre temas presentes no QC4 com obras sabidamente escritas nos anos 1940, não apenas o QC8 como também canções como o Lundu da Marquesa de Santos (o segundo tema do primeiro movimento é uma variante da melodia do Lundu da Marquesa) ou mesmo no segundo movimento (“Martelo”) da Bachiana nº 5, cuja evocação do canto do sabiá da mata (presente na letra escrita por Manuel Bandeira para ilustrar com a onomatopeia “liá, liá, o sabiá da mata cantador” a melodia composta por Villa-Lobos). Houve, portanto, um hiato de praticamente quinze anos entre o terceiro e o quinto quartetos. Nesse meio tempo, veio à luz a magistral série dos Choros, considerada como a realização musical mais ousada de Villa-Lobos, concebida durante os anos em que viveu em Paris. Ao longo dessa década, o estilo do compositor consolidou-se como uma espécie de representação das musicalidades brasileiras, incorporando elementos indígenas, caipiras, afro-brasileiros, nordestinos e, naturalmente, da
música popular do Rio de Janeiro. Villa-Lobos deixou aflorar o convívio que teve com os chorões durante sua mocidade e passou a compor vastos painéis sonoros evocando suas memórias e idealizações da chamada “alma brasileira” (aliás subtítulo do seu Choros nº 5). Assim, o retorno para a composição de quartetos se dá de maneira a deixar para trás certos trejeitos formais afrancesados; no QC5 (1931) Villa-Lobos retoma os temas folclóricos usados em suas Cirandinhas (1925) para piano, costurando-os à maneira de uma rapsódia em quatro movimentos. O resultado é uma de suas criações mais felizes e acessíveis, explorando recursos técnicos das cordas, como sons harmônicos e pizzicati com muito bom gosto. Dedicado a João Alberto Lins de Barros, interventor nomeado por Getúlio Vargas para o estado de São Paulo, o QC5 marca a um só tempo nova fase na carreira do compositor, que na década de 1930 passou a ser um dos coordenadores e consultores da política cultural do governo, e também determina o rompimento com Mário de Andrade – que se manteve ferrenho opositor de Vargas durante sua atuação na Secretaria da Cultura Municipal de São Paulo entre 1935-1938.
Explorando a forma: Villa-Lobos descobre Haydn A princípio, Villa-Lobos pareceu disposto a iniciar uma série especial de quartetos, dando o subtítulo de “quarteto popular” ao QC5. Mas, passados sete anos, o QC6 (1938) apresenta um subtítulo ligeiramente alterado: “quarteto brasileiro”, e a ideia de uma nova série de quartetos, especialmente representativos do caráter nacional, acabou sendo abandonada. Certamente algo significativo mudou na cabeça do compositor10: o estilo rapsódico calcado em melodias folclóricas foi substituído por um uso mais controlado da forma, tomando como modelo o classicismo de Haydn, no qual temas de caráter brasileiro – mas de criação original – se adequam às expectativas da forma sonata. A partir daí esses temas “nacionais” se sedimentaram no estilo que Villa-Lobos desenvolveu para seus quartetos: o canto do sabiá da mata; o toque do berimbau; o ritmo de tamborim e do cavaquinho; as baixarias do violão de sete cordas; as representações idealizadas do indígena e do caipira; o tema do canto de Xangô; o 10 Pode-se especular também que o término do casamento com Lucília Guimarães e o começo do relacionamento com Mindinha (Arminda), em 1936, tenham representado importante mudança de rumos na vida de Villa-Lobos.
aboio, a cantiga de cego; a sonoridade das rabecas e violas caipiras; a melancolia da modinha e também outras figurações recorrentes, mas não de caráter nacional, como a progressão omnibus, o ziguezague, o uso de simetrias intervalares e palíndromos. O primeiro movimento do QC6 (Poco animato) é uma sonata monotemática, bem ao estilo de Haydn. No entanto, o tema tem caráter nordestino, evocando a sonoridade de rabecas. As seções de desenvolvimento revelam o gosto villalobiano pela simetria, repletos de palíndromos e outros tipos de espelhamento entre notas, ritmos e orquestração. Não é à toa que esse movimento foi o mais longo composto por Villa-Lobos até então, com seus 240 compassos; sua inspiração é guiada pelo rigor com que comanda o desenvolvimento temático e a engenhosidade que leva à recapitulação. O terceiro movimento (Andante, quasi adagio) ao mesmo tempo que sugere a “marcha fúnebre” de Chopin, também antecipa certos gestos harmônicos e melódicos ouvidos em canções de Tom Jobim, evidenciando pontos de influência que o criador da bossa nova sempre admitiu receber de Villa-Lobos. O QC7 (1942) é um autêntico tour de force, demandando virtuosismo dos intérpretes. O movimento inicial (Allegro) é notável pelo tema (que também tem algo de fúnebre, mas que também
evoca o “quarteto das quartas”, Op. 76 nº 2 de Haydn)11 e pela ampla seção de desenvolvimento, onde podem ser ouvidas complexas combinações e superposições rítmicas. O segundo movimento (Andante) começa com o quarteto apresentando uma figuração rítmica em ostinato que parece evocar o “paradigma Estácio” (conforme estudo de Carlos Sandroni, em sua releitura do samba)12, como se fosse uma estilização da linha de tamborim. No terceiro movimento (Scherzo), o motivo principal é exaustivamente trabalhado, demonstrando o domínio técnico do compositor em termos comparáveis à “developing variation” (variação progressiva), expressão que Schoenberg criou para explicar certos processos composicionais beethovenianos13. O movimento final (Allegro giusto) começa com um tema de caráter mecânico, à maneira de certos ostinatos de Chostakovich. 11 Salles, Paulo de Tarso. “Haydn, segundo Villa-Lobos: uma Análise do Primeiro Movimento do Quarteto de Cordas no 7 de Villa-Lobos”. Per Musi, Revista Acadêmica de Música, no 25, jan.-jun. Belo Horizonte: UFMG, pp. 27-38, 2012. 12 Sandroni, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 13 Schoenberg, Arnold. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 1993, pp. 35-42.
No QC8 (1944) o tema principal do movimento inicial (Allegro) evoca o canto do sabiá da mata (cuja melodia também é ouvida no “Martelo” da Bachiana nº 5, com emblemática letra de Manuel Bandeira comentada acima, no QC4); esse mesmo motivo já desempenhava papel importante no 1º movimento do QC3, assinalando a recapitulação; agora, a mesma figuração é protagonista dessa peça em forma sonata, sendo apresentada polifonicamente, do cello para o 1º violino. O segundo movimento (Lento) tem o caráter torturado da modinha, que VillaLobos adotou segundo o filtro de Catulo da Paixão Cearense. O Scherzo (terceiro movimento) é repleto de jogos simétricos e bastante desafiador para os instrumentistas, devido sua intrincada rítmica; o compositor conta “que na primeira impressão de leitura a execução nos pereceu desconcertada”, mas que “uma vez amadurecido o seu preparo para uma audição, torna-se clara a sua estrutura técnica”14. O quarto movimento (Quasi allegro) começa com uma sequência harmônica simétrica e em movimento contrário (a chamada “progressão omnibus”, descrita originalmente pelo teórico norte-americano Victor Yellin em 14 Villa-Lobos, manuscrito com notas de programa sobre os quartetos.
contextos tonais)15, outra figuração recorrente em Villa-Lobos, encontrada já no quarto movimento do QC5. Daí vamos ao QC4, deslocado cronologicamente em função de sua estreia somente após o oitavo quarteto. No segundo movimento (Andantino) Villa-Lobos emprega um “tema de Xangô”, recolhido por Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira (1928), melodia que o compositor empregou também em uma peça para canto e piano, além de uma versão para coro. O cello entoa essa melodia, sob um acompanhamento etéreo dos demais instrumentos – o qual poderia também sugerir o caráter percussivo de atabaques. Além das referências temáticas ao QC2, e do motivo do sabiá da mata no primeiro movimento (Allegro con moto), o Scherzo (terceiro movimento) começa sintomaticamente com outra “progressão omnibus”, como no finale do QC8. Como se vê, não faltam razões para sustentar que a peça foi reescrita desde sua origem em 1917 até sua data de estreia na década de 1940.
15 Yellin, Victor. The Omnibus Idea. Michigan; Harmonic Park Press, 1998.
O entreato “expressionista”: quartetos nos 9 e 10 Os quartetos seguintes, nº 9 (1945) e nº 10 (1946), são densamente cromáticos e dialogam – ainda que tardiamente – com o atonalismo de obras como a Suíte Lírica (1925-1926) de Alban Berg (1885-1935) ou o Terceiro Quarteto (1927) de Béla Bartók (1881-1945). Villa-Lobos compôs outras obras de caráter semelhante nessa mesma época, como o Trio para cordas ou o Concerto nº 1 para piano e orquestra, ambos de 1945. Bartók pouco foi a Paris enquanto Villa-Lobos lá esteve, na década de 1920, o que pode explicar o diálogo tardio entre os quartetos villalobianos e o ciclo bartókiano. É provável que Villa-Lobos só tenha tomado contato com a música de Bartók nos anos 1930, no congresso de educação musical em Praga (International Congress in Music Education, ICME, 1936) durante o qual foram debatidos os folclorismos de Bartók, Kodály e Dvorák16; Villa-Lobos foi o único representante oficial da América Latina naquele congresso. Talvez a ida de Villa-Lobos aos Estados Unidos (1944-1945), ocasião em que suas obras 16 Volk, Terese. Music, Education, and Multiculturalism: Foundations and Principles. Oxford and New York: Oxford University Press, 1998, p. 55.
foram interpretadas pelo regente Serge Koussevitzky (1874-1951), tenha lhe dado oportunidade de conhecer melhor a música de Bartók, já que nessa mesma época Koussevitzky fazia a estreia do Concerto para orquestra (1943) que havia encomendado ao compositor húngaro17. Com relação a Berg, Villa-Lobos teria dito que o considerava um “compositor tão revolucionário como Wagner ou Debussy”, em entrevista a Alejo Carpentier em 195318; além disso, é sabida a influência que Berg exerceu sobre o próprio Bartók, inspirando suas obras mais radicalmente cromáticas, como o Quarteto nº 3 mencionado anteriormente. O primeiro movimento do QC9 (Allegro) retoma o rigor do tratamento motívico já visto no Scherzo do QC7, em movimentos enérgicos submetidos à lógica formal da sonata, de acordo com o estilo villalobiano. À altura de 1’15 aproximadamente, o 17 Villa-Lobos regeu a Boston Symphony Orchestra a convite de Koussevitzky em 23 e 24 de fevereiro de 1944 em New York. No programa, Bachianas Brasileiras nº 7, Choros nº 12 e Rudepoema. Em 14 de março, no Carnegie Hall, foi a vez de Koussevitzky reger o Choros nº 12 e Rudepoema (Appleby, David. Heitor Villa-Lobos: A Life. Lanham, Maryland, and London: Scarecrow Press, pp. 146-7, 2002). 18 Carpentier, Alejo. Villa-Lobos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, p. 58, 1991.
material se torna mais lírico, à maneira de um “segundo tema” na exposição de uma sonata. Ao longo do desenvolvimento, Villa encontra espaço para expressar elementos de brasilidade, como o tema de caráter “caipira” por volta dos 4’10. Aos 5’15 o cello anuncia a recapitulação e o retorno à sobriedade do tema principal. O segundo movimento (Andantino vagaroso) parece remeter ao “Andante amoroso” da Suíte Lírica de Berg, com seu denso e apaixonado cromatismo e suas surpreendentes mudanças de humor. O terceiro movimento do QC9 (Allegro poco moderato) também é escrito em forma sonata; o primeiro tema começa com uma frase sinuosa tocada em oitavas pelo 1º violino e cello, com uma característica “bartókiana” em sua célula inicial, o trítono entre a primeira e última notas (Lá – Mib); há também outra alusão ao monotematismo de Haydn (como no primeiro movimento do QC6), já que esse tema reaparece em outra região, ainda na exposição (Ré – Láb, aos 22”), como se sinalizasse a chegada ao segundo grupo de temas, fora da “tônica”. O tema principal, então, se transforma dentro do chamado “desenvolvimento”, realizando a transição para um novo tema contrastante (cerca de 1’28). Segue, então, um fugato, que parece evocar
certos temas bartókianos (conferir por volta de 2’54), como no 2º movimento (Allegro) de Música para cordas, percussão e celesta (1936), ou mesmo no Finale do Concerto para orquestra. O quarto movimento (Molto allegro) apresenta uma introdução breve e suave (talvez a sugestão de um toque de berimbau?), que subitamente dá lugar a um vigoroso ostinato, cheio de dinamismo. O material temático é bem conciso, as texturas são densas e as melodias, poderosas. O QC10 dá continuidade ao projeto arquitetônico do QC9, de alguma forma. O cromatismo é denso e predomina na maioria das texturas, bastante “ásperas”, dissonantes. O primeiro movimento (Poco animato) é estruturado em forma sonata: a exposição é bastante sucinta, mas apresenta três temas (c. 1-29). O primeiro tema é ouvido no cello (começando em Lá), sendo respondido logo em seguida pela viola (em Ré), o segundo tema no 1º violino (a partir de Ré) e o terceiro tema volta ao cello (em Dó), com figuração de acompanhamento que lembra a “Embolada” da Bachiana nº 1 (1930). Há uma longa seção de desenvolvimento (1’14, c. 30-132) onde os três temas e algumas figuras de acompanhamento também presentes na exposição, como o padrão rítmico de embolada do terceiro tema (cuja semelhança
com a “Introdução” da Bachiana nº 1 é revelada plenamente aos 2’26), são explorados em diversas combinações. Tais jogos combinatórios têm caráter semelhante ao de certas superposições rítmicas vistas no primeiro movimento do QC7. Na recapitulação, o contraste tonal ocorre apenas no 1º tema, embora se observe também a inversão dos registros, que passam para o agudo (1º violino, Dó; 2º violino, Fá). Os demais temas não têm alteração de nota inicial, apenas de registro (tema 2 no cello, em Ré; tema 3 na viola, em Dó). O segundo movimento do QC10 (Adagio) apresenta certa semelhança com o segundo movimento da Bachiana nº 1 (“Prelúdio/Modinha”), tanto em relação ao caráter melódico (SolLáb-Sib são as notas iniciais no quarteto tocadas pelo 1º violino; Ré-Mib-Fá são as notas iniciais da “Modinha” da Bachiana) como também quanto ao padrão de acompanhamento, com o crescendo/decrescendo dos acordes que caracterizam a seção A. Aos 56” começa a seção B, onde podemos ouvir uma espécie de “cantiga de cego”, entoada pela viola, cuja figuração de acompanhamento, tocada por cello e 1º violino em movimento contrário, parece evocar uma sanfona “desafinada”. Após breve retorno da seção inicial, “modinheira”, e uma cadência sobre um acorde
“típico” villalobiano (a superposição de Mib menor e Fá maior, aos 3’37), começa o Più mosso (seção C), anunciado por vigorosa melodia de caráter nordestino (realçado pelo modo lídio) no violoncelo. Aproximadamente aos 5’ temos o retorno do tema inicial (agora transposto para Dó-Réb-Mib, na viola), seguido por reapresentação da seção B, com melodia no 2º violino. Assim, a forma geral se configura como A1-B1-A2-C-A3-B2-Coda, uma espécie de rondó. Ainda se ouvem ecos da “embolada” no terceiro movimento (Scherzo – Allegro vivace) do QC10, que começa com vigorosas arcadas em cordas duplas distribuídas por todo o quarteto, podendo também sugerir o toque “rasgueado” da viola caipira. A divisão seccional desse movimento amplifica a ideia de rondó lançada no Adagio, cuja melodia ainda é ocasionalmente citada. O quarto movimento (Molto allegro) tem uma introdução na qual a melodia do cello, sob os acordes sustentados dos demais instrumentos, soa como um “aboio” evocando os vaqueiros das regiões rurais do Brasil. No entanto, logo em seguida vem uma fuga, retomando o caráter mais “erudito” esperado em um quarteto.
O “estilo maduro”: cristalização dos processos dinâmicos e formais No final da década de 1940, Villa-Lobos chega à sua fase “madura”; seus gestos composicionais se tornam mais condensados e são apresentados de maneira ainda mais clara. No âmbito da forma-sonata, vamos ver certos “tipos temáticos” serem transformados, permutando sua função com maior frequência de uma obra para outra. Tais características podem ser vistas no primeiro movimento (Allegro non troppo) do QC11 (1947), cujos temas apresentados reaproveitam motivos bem característicos desenvolvidos pelo compositor ao longo dos quartetos anteriores. O primeiro tema parece ser a junção de dois desses motivos: o primeiro deles é ouvido no quarto movimento do QC9, apresenta tênue semelhança com uma figuração típica de berimbau em seu perfil rítmico-melódico de intervalo de 2ª Maior; o segundo motivo é a “progressão omnibus”, presente já no quarto movimento do QC5, também comentado acima. Novamente é feita outra alusão ao monotematismo de Haydn: o tema inicial, ouvido em Ré no primeiro compasso, é repetido em Lá no compasso 17, sugerindo a dicotomia clássica entre “tônica e dominante”. Outros temas são apresentados em sequência, antes de chegar
propriamente à seção de desenvolvimento (2’12). O tema 2 é um arpejo ascendente e descendente, que faz lembrar um trecho do Momo Precoce para piano e orquestra (1929); o tema 3 é mais expressivo e amplo (c. 30-6); o tema 4 é uma versão invertida e cromática, quase em “modo menor”, do primeiro tema; o tema 5 é uma figuração em ziguezague que tanto sugere a escala de Ré menor como também uma variante do tema 1; finalmente, o tema 6 é o mais lírico de todos, apesar de seu curto enunciado melódico. A recapitulação é praticamente uma transposição direta (5ª acima) da exposição, estratégia que Villa-Lobos usou para obter equilíbrio tonal entre exposição e recapitulação na maioria dos quartetos subsequentes. O segundo movimento é um Scherzo cheio de “alternativas tonais e atonais”, bem como motivos “caipiras” e “nordestinos”, segundo Arnaldo Estrella19. Sua forma geral é simples e direta: um motivo básico – cinco colcheias em sentido descendente por grau conjunto – é apresentado de início, sendo logo ampliado como um tema completo, prosseguindo como base para o tema em ziguezague da seção seguinte. Uma das “alternativas tonais 19 Estrella, 1970, p. 94.
e atonais” apontadas por Estrella estão claramente perceptíveis na chegada à nova seção, preparada pelo cruzamento entre uma espécie de dança “rústica” – caracterizada por um ostinato em staccato – e entradas e saídas do motivo “berimbau”. Na Coda, o tema principal reaparece aumentado ritmicamente. O terceiro movimento (Adagio) é caloroso, mesclando cromatismo e expressão de maneira peculiar, flertando com gestos que tanto podem sugerir a Segunda Escola de Viena (cuja harmonia cromática e atonal é, às vezes, sinônimo de “expressionismo”), quanto a modinha, estabelecendo pontes insuspeitas entre esses universos tão distintos. A primeira seção (A) é subdividida em três partes, bem definida em atmosfera e textura; os episódios têm estrutura mais livre, sendo abertos para expressar as muitas mudanças de caráter, textura, métrica e cor, com referências à cultura brasileira. Estruturado em forma sonata, o quarto movimento do QC11 (Poco andantino, quasi allegro) apresenta elementos diatônicos e pentatônicos. Seu motivo inicial é uma espécie de versão pentatônica do motivo principal do Scherzo, uma sequência descendente de colcheias em 4ªs paralelas (uma das maneiras com que Villa-Lobos convencionou representar musicalmente o
“indígena”). O segundo tema é diatônico, fundado na escala de Dó menor eólio e seu acompanhamento traz algumas sugestões rítmicas do samba, tocadas em cordas duplas por cello e viola. A seção de desenvolvimento apresenta um novo tema, mas mantém as quartas paralelas. O hiato de três anos entre os QC11 e QC12 pode ser justificado pelo diagnóstico de câncer no compositor em 1948, que o levou a buscar tratamento nos Estados Unidos. Mesmo assim, seus compromissos como regente e as encomendas de novas composições foram mantidas pela década seguinte. O QC12 (1950) não apresenta indícios que possam ser relacionados à doença e seu tratamento, pois trata-se de uma obra afirmativa, dando continuidade ao projeto esboçado no QC11, com sua clareza temática e formal. No primeiro movimento do QC12 (Allegro) a exposição curta apresenta dois temas bem contrastantes, o primeiro cromático, o segundo diatônico. O retorno do primeiro tema no registro grave do cello dá à exposição um formato ternário (do tipo ABA), que é repetido na recapitulação com diferentes intervalos de transposição: o primeiro tema é transposto 4ª abaixo, enquanto o segundo tema é reapresentado 5ª acima. A seção de
desenvolvimento começa com uma variante do primeiro tema (1’13), que lembra um tema do Concerto para violão e orquestra (1951); logo esse tema se conecta com um motivo de caráter “indígena” tocado pelo cello (com notas repetidas e acentuadas)20, o qual evolui enquanto o andamento decresce, conduzindo a uma seção mais lenta em estilo de modinha (cuja melodia faz lembrar do “tema da Marquesa” usado no primeiro movimento QC4). Após esse episódio sentimental, o ritmo acelera subitamente, levando a uma cadência em oitavas sobre a nota Sol (3’58), sinalizando a chegada à recapitulação. Além do quinto movimento do QC1, a expressão “melancolia” recorre somente no segundo movimento do QC12 (Andante malinconico). Estrella considera esse movimento de caráter “nostálgico e modinheiro”; a canção folclórica “Anquinhas” é citada na 20 Villa-Lobos representou a figura do “indígena” em sua música pelo menos com três recursos estilísticos: 1) uso de temas recolhidos por pesquisadores em gravações ou transcrições; 2) uso de texturas baseadas em sons harmônicos, glissandos e intervalos de 4ª ou 5ª justa; 3) temas estilizados, baseados na escala pentatônica ou diatônica, com notas repetidas e ritmo acentuado/staccato. Naturalmente, o interesse etnográfico é reduzido nesses casos, já que se tratam de representações idealizadas, que desconsideram a diversidade entre os povos indígenas.
segunda seção em estilo de modinha; Villa-Lobos havia citado essa melodia na notável “O gatinho de papelão” da suíte A Prole do Bebê nº 2 (1921). Referências diretas a canções folclóricas nos quartetos villalobianos só ocorrem neste movimento do QC12 e no QC5. Merece destaque a polifonia triunfante e tonal, como um pastiche beethoveniano, da seção central (Trio) em Dó maior (3’05), que contrasta com o sentimentalismo predominante. Muito embora o Allegreto leggiero (terceiro movimento do QC12) não traga a palavra “scherzo” no título, seu caráter como scherzo é inegável, seguindo a tradição que remonta a Haydn e Beethoven – que recebeu importantes releituras no século XX, como nos quartetos de Debussy e Ravel. Estrella diz que suas “células rítmicas simples irão crescer organicamente, e costurar a roupagem sonora com fluência e naturalidade”21, enquanto Tarasti fala na “típica técnica de fragmentação villalobiana”22. Apesar de parecerem contraditórias entre si, já que “crescimento 21 Estrella, 1970, p. 102.
22 Tarasti, Eero. “Villa-Lobos’s String Quartets.” In: Jones, Evan (ed.) Intimate voices: The Twentieth-Century String Quartet: v. 1, Debussy to Villa-Lobos, pp. 223-255. Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 247.
orgânico” e “fragmentação” soam como noções potencialmente opostas, ambas opiniões de Estrella e Tarasti podem ser justificadas pelo fato de Villa-Lobos retomar em parte o estilo de alguns de seus Choros, com muitos ostinatos e súbitas mudanças de textura, numa espécie de mosaico musical. Na mesma linha, o quarto movimento do QC12 (Allegro ben ritmato) revive não só o estilo dos Choros como também o das Bachianas. Cello e 1º violino tocam a introdução em oitavas, anunciando o primeiro tema, cujo acompanhamento em terças tem um sabor “caipira”. O segundo tema inicia uma espécie de perpetuum mobile, alternando entre cada instrumento por vez e, ocasionalmente, todos os quatro em oitavas. Um novo tema surge na seção seguinte (Poco meno), tratado homofonicamente a princípio, para se converter numa espécie de recitativo do 1º violino, em diálogo com o cello (1’10). Na 3ª seção, um tema de caráter popular faz lembrar do “Miudinho” das Bachianas nº 4, concluindo no acorde pentatônico Dó-Sol-MiLá-Ré, uma das terminações favoritas de Villa-Lobos. A forma global é a de um rondó com elementos de sonata; a recapitulação da seção A é feita 5ª acima, como nos movimentos villalobianos em forma sonata.
A exposição do QC13 (1951) no Allegro non troppo (1º movimento) é ainda mais curta que a do QC12. O primeiro tema é um fugato cromático a quatro vozes; uma breve transição leva ao segundo tema, marcado pelo lirismo e pela figura de tercina, seguido por outro tema de características semelhantes. A seção de desenvolvimento é igualmente breve, estruturada em forma ternária desdobrada em duas partes. Não há alterações significativas na textura, eminentemente homofônica, e o cromatismo predomina. Na recapitulação, a transposição do fugato faz com que a célula temática (Sol-Sib-Mib-Ré) apareça no cello no começo da exposição e ressurja na mesma altura ao final do fugato na recapitulação, dando a sensação de certo desfecho tonal à maneira clássica. No Scherzo (2º movimento) do QC13 há o mais consistente uso das progressões omnibus em todo o ciclo de quartetos villalobiano: diversos tipos de combinações simétricas são explorados, partindo do motivo inicial, que lembra uma tarantela. Também nesse scherzo há elementos de forma sonata, onde a recapitulação é transposta 5ª acima em relação a exposição. Reminiscências do “tema de xangô” do movimento lento do QC4 podem ser ouvidas no Adagio do QC13 (3º movimento).
Melodia e harmonia oferecem um certo caráter modal, sugerindo Ré eólio. Esse tema é seguido por outro, cuja sequência melódica e harmônica sugere uma espécie de tema “neobarroco”, novamente evocando a atmosfera das Bachianas. Gestos e maneirismos barrocos também podem ser ouvidos no Allegro vivace (4º movimento) do QC13, onde Villa-Lobos parece mais preocupado com progressões tonais do que com seus habituais jogos de simetria. O movimento apresenta características de rondó, mas também de um “tema com variações”. O Allegro do QC14 (1953) foi chamado de “quarteto das quartas” por Arnaldo Estrella, dada a verdadeira cadeia de quartas justas ouvidas vertical e/ou horizontalmente por todo o primeiro movimento23. As figurações em ziguezague se concentram na transição para o segundo grupo temático, onde o tema 2 tem síncopas que evocam o estilo dos chorões e o tema 3 investe em ostinatos igualmente sincopados. O Andante (2º movimento) do QC14 começa com um fugato (seção A) que, segundo Tarasti, “evoca o cromatismo das fugas de Franck”24; a segunda seção 23 Estrella, 1970, p. 109.
24 Tarasti, 2009, p. 248.
(B) muda drasticamente de textura, com acompanhamento homofônico e melodia em tercinas (56”). Dois acordes dramáticos, seguidos pela reaparição do tema cromático do fugato, na viola, antecedem a chegada ao Trio (2’04). No Trio (seção C), VillaLobos adota uma solução incomum: a partir de um bem definido Dó maior, figurações de arpejo explorando as cordas soltas dos instrumentos proporcionam uma sonoridade que lembra um acordeom. A forma geral apresenta o desenho A-B-A-C-B-A com Coda, à maneira da chamada “forma em arco” atribuída a Bartók. Os temas do Scherzo (3º movimento) do QC14 têm caráter decididamente mais gestual que melódico. A primeira seção se concentra em três gestos musicais específicos: glissandos e rápidos fragmentos escalares cromáticos; um ostinato de terças em dois níveis – em semicolcheias no agudo e colcheias divididas entre viola e cello; e um novo motivo em ziguezague. Desse modo, a chegada ao tema lírico da segunda seção é um evento marcante, dado o grande contraste em relação a seção anterior e pela estabilização textural finalmente estabelecida. No entanto, o caráter relativamente “frio” da melodia tocada pelo 1º violino provoca sensação distinta das melodias calorosamente modinheiras habitualmente oferecidas pelo compositor. Uma cadenza
do 1º violino serve como transição, chegando a um acorde pentatônico (Fá-Dó-Lá-Ré-Sol) tão ao gosto do compositor; depois disso, a seção A é repetida, transposta 4ª acima (2’16). A melodia descendente do cello (3’10), com notas repetidas em tercinas, caracteriza a seção C, que vai direto à coda. Dando continuidade à gestualidade do Scherzo, o finale do QC14 (Molto allegro) apresenta texturas densas, com uso frequente de cordas duplas em todos os instrumentos. O tema 1 é outra variante possível para a progressão omnibus, na qual o movimento contrário é restabelecido a cada três notas; o tema 2 estabelece cuidadosa simetria, a partir de um motivo descendente de sétima que divide a escala diatônica em três tetracordes (c. 3-5). Desse modo, o restante do movimento explora diversas possibilidades de estabilização por meio de simetria, especialmente no chamado eixo intervalar simétrico, presente na maioria dos acordes do tema 3. Na quarta seção, a viola realiza um gesto descendente em quartas, como se fosse reminiscência do primeiro movimento (“quarteto das quartas”). A seção é estendida até um fugato diatônico – verdadeira exceção na escrita villalobiana, onde invariavelmente os fugatos são marcados pelo cromatismo. O retorno ao tema de quartas interrompe essa
breve passagem polifônica; uma quarta seção (D) leva finalmente à coda. O plano formal pode ser descrito como A1-B-A2-C (melodia em 4ªs e fugato) -A3-D-Coda. Apelidado de “quarteto dos harmônicos” por Arnaldo Estrella, por causa do abundante uso de sons harmônicos no segundo movimento25, o QC15 (1954) é caracterizado pelas sonoridades brilhantes e abertas com timbres “flautados”, como Tarasti observa26 no primeiro movimento, Allegro non troppo. Nesse movimento, os temas estão justapostos formando uma verdadeira cadeia temática, de modo que não faz sentido dividi-los em grupos, já que não há transição entre eles e tampouco o estabelecimento de regiões tonais tradicionais. Pode-se falar em uma “exposição contínua” para descrever o que ocorre nessa peça – uma proposta formal que revela que Villa-Lobos não estava acomodado, mesmo lutando contra a doença e se aproximando do final de sua carreira. A única cadência mais perceptível é a chegada à escala frígia com centro em Dó (c. 33, 1’04). 25 Estrella, 1970, p. 118.
26 Tarasti, 2009, p. 250.
Os sete temas presentes nessa extensa exposição se relacionam de alguma forma: os temas de 1 a 4 apresentam alguns elementos harmônicos em comum, já que o tema 1 e o tema 4 são inteiramente diatônicos e os temas 2 e 3 têm ao menos uma camada diatônica; a partir do tema 5 o cromatismo passa a imperar. Apesar disso, os temas são muito distintos em caráter: temas 1 e 5 têm perfil textural, de modo que os instrumentos se integram em um todo praticamente não divisível; temas 2 e 4 são estruturados a partir de uma melodia principal e um acompanhamento sequencial; o tema 3 tem uma textura dialogicamente dividida entre pares de instrumentos: violinos x viola/cello; temas 6 e 7 se baseiam na oposição entre ostinato e solo. A respeito do segundo movimento do QC15 (Moderato), Tarasti destaca a “superfície sonora impressionista e viscosa, criada por sons flautados (harmônicos) e arpejos de quintas em cordas soltas. Cores mais distintas são introduzidas pelos trilos de violino e viola descendo em quartas paralelas, como se estivessem com surdinas. O terceiro efeito sonoro logo antes da entrada da melodia é produzido pelo pizzicato com sons harmônicos nas cordas Sol e Ré. Nesse ambiente extraordinário, surge
a viola com seu tema enigmático, estranhamente insinuante. É como se fosse uma dança, num sonho em câmera lenta”27. Tarasti descreve justamente a seção de exposição em mais uma peça em forma sonata. Novamente, como no Scherzo do QC14, o tema 1 apresenta forte caráter gestual, com figurações distribuídas em três formatos, resultando em objetos sonoros específicos: 1) harmônicos + arpejos; 2) trilos; 3) harmônicos + pizzicato. Desse modo, a melodia da viola assume a função de segundo grupo temático (ou segundo tema), com resposta no 1º violino. A seção de desenvolvimento (aos 36”, c. 18) baseia-se no perfil melódico e motivo rítmico do segundo tema, mas usando a estratégia de inversão – presente nos arpejos do primeiro tema – como elemento transformador do tema 2. O desenvolvimento se desdobra em uma espécie de “prelúdio e fuga” (o “prelúdio” começando por volta de 1’30 com os quatro instrumentos em oitavas, a fuga aos 2’20), tendo o motivo do segundo tema como célula-base. Na recapitulação, as transposições são definidas por rigorosas relações de simetria, envolvendo espelhamentos entre diversos parâmetros e camadas. 27 Tarasti, ibidem.
O Scherzo (3º movimento do QC15) pode ser definido por sua simplicidade. Estrella fala em “leveza despreocupada”, uma espécie de “alívio para a carga emocional dos Andantes”. 28 A seção inicial (A1) é praticamente diatônica com quase nenhuma nota fora da coleção “Dó maior”; as alterações cromáticas surgem na seção B1, que é tocada duas vezes seguidas. A forma geral pode ser esquematizada como A1-B1-A2-B2-Coda. Enquanto A2 é repetição estrita de A1, B2 é uma versão resumida de B1, transposta uma 5ª acima. A coda é sinalizada pelos trilos do 1º violino, com uma passagem rápida em colcheias (única na peça, toda escrita em semínimas e mínimas) a cargo do 2º violino. O quarto movimento do QC15 (Allegro) também está estruturado em forma sonata, como o primeiro e segundo movimentos. A exposição é longa e apresenta três temas, o primeiro deles apresentado como um fugato, cujas entradas das vozes seguem um esquema incomum de organização intervalar: cello em Sol, viola em Dó, 2º violino em Fá e 1º violino em Sol. O tema 2 (23”) apresenta um diálogo entre os violinos, com viola e cello em 28 Estrella, 1970, p. 119.
segundo plano; o tema 3 (43”) começa com o cello, mas logo é assumido novamente pelos violinos. O desenvolvimento é sinalizado pela escala ascendente na viola (1’10). Há grande diferença entre o Allegro non troppo que abre o QC16 (1955) com relação ao primeiro movimento do QC15; na obra anterior, Villa-Lobos usou uma espécie de “exposição contínua”, onde os temas estão justapostos, mas no QC16 o procedimento é diferenciado. O tema 1 (c. 1-12) é estruturado fundamentalmente como uma sentença com dois enunciados: a ideia básica proposta pelo 1º violino (c. 1-4) e a resposta na viola (c. 9-12). Os enunciados são interpolados por uma digressão, onde a terminação da ideia no violino se superpõe a um motivo em ziguezague tocado pelo cello. O tema 2 é de caráter lírico, na região aguda do 1º violino; as figurações de acompanhamento evocam o contraponto do violão de sete cordas no choro (comumente chamado de “baixaria”). Mais à frente (44”), o motivo em ziguezague assume o protagonismo, favorecido por seu perfil melódico marcante (o qual lhe dá status incomum para um tema secundário), dando início ao desenvolvimento. O segundo movimento do QC16 (Molto andante, quasi adagio) começa com expressiva melodia no 1º violino, acompanhado
por acordes dissonantes nos demais instrumentos. Apesar da dissonância considerável, segundo padrões tradicionais, essa progressão de acordes é estruturada de acordo com eixos internos de simetria, que no “idioma” harmônico de Villa-Lobos têm uma função análoga à consonância; ou seja, trata-se possivelmente de um jogo entre a sonoridade do acorde e seu equilíbrio intervalar. “Equilíbrio” talvez seja palavra adequada para definir o Vivace: scherzo (3º movimento do QC16): Suas seções não apenas são muito bem definidas (32 compassos cada), mas também têm duração temporal praticamente idêntica, ao serem tocadas. A primeira seção é primordialmente diatônica (usaria quase que somente as teclas brancas do piano, caso fosse arranjada para teclado). No entanto, isso não implica em nada muito estático: o tema 1 tem caráter de dança alternando o ritmo composto que progride em colcheias com uma espécie sincopada de três semínimas – que Tarasti definiu como “hemíola latino-americana”; o efeito de dança é acentuado pelo acompanhamento em pares de notas no cello, gerando superposição polirrítmica (três notas na melodia contra duas no acompanhamento). A seção final usa um recurso encontrado no famoso Trenzinho do Caipira
(4º movimento das Bachianas Brasileiras nº 2): o ostinato vai parando gradualmente, até sobrar apenas a viola. A forma global pode ser descrita como A-B-A-C. O quarto movimento do QC16 (Molto allegro) também está estruturado em forma sonata. Caracteriza-se pela gestualidade impetuosa dos glissandi, associados a “baixarias”, “progressões omnibus” e outros dispositivos encontrados com frequência nos demais quartetos villalobianos. Disso resulta que o chamado “primeiro tema” pode ser definido como “caótico”, por causa dos pequenos módulos sonoros que o integram. A longa transição (c. 7-23) serve como veículo para o virtuosismo do 1º violino, brilhando por sobre acordes de 4 ou 5 sons tocados com forte marcação rítmica; o segundo tema (48”) tem maior homogeneidade que o primeiro, mas ainda preserva o gesto do glissando ascendente no último tempo de cada compasso. A ideia de “exposição contínua”, vista no QC15, é retomada por Villa-Lobos no Allegro non troppo (1º movimento do QC17, 1957). Arnaldo Estrella diz: “A música flui incessantemente. Não há, a bem dizer, um tema principal. Os desenhos melódicos, confiados ao 1º violino e dobrados pela viola, nos quais são intercalados apartes dos outros instrumentos – os quais se integram
organicamente no tecido musical”29. Os seis temas da exposição se encadeiam sem preparações ou cadências, como se o compositor fizesse da sonata uma rapsódia, ao sabor de suas memórias e desejos. O tema 1 é mais “geométrico”, explorando o movimento contrário entre violino e cello; tema 2 explora um motivo ouvido na introdução; o tema 3 é uma variante do primeiro; o quarto tema chega a lembrar a melodia da canção As Time Goes By (Herman Hupfeld, 1931), sucesso no filme Casablanca (1942), algo possível, dado o interesse do compositor pelo cinema; no tema 5 há ecos sertanejos de Plantio do Caboclo (1936), primeira peça do Ciclo Brasileiro para piano; finalmente o tema 6 explora aquele motivo que evoca o toque do berimbau. O segundo movimento do QC17 (Lento) tem estrutura do tipo A-B-A, onde a seção central lembra vagamente a Ária das Bachianas Brasileiras nº 5. A melodia da seção principal, por seu turno, se assemelha à da Floresta do Amazonas (1958), obra que, meses antes de sua morte, o compositor gravou com a notável soprano Bidu Sayão. O terceiro movimento (Scherzo) oferece 29 Estrella, 1970, p. 128.
grande contraste, cheio de ironia e movimentos “mecânicos” impulsionados por ostinatos. A estrutura formal é A-B-A-C (Trio)-AD-Coda. Na seção A, dois temas contrastantes predominam; as demais seções apresentam apenas um único tema, com destaque para a quase “giga” da seção C. A coda apresenta uma sequência dramática de gestos cadenciais, com desfecho em uma passagem com pizzicati. No último movimento (Allegro vivace, con fuoco) a estrutura geral é a de um rondó (A-B-C-A-D-Transição-E-Coda). O tema inicial é homofônico, cheio de energia rítmica e dinâmica; ainda na seção A, segue-se outro tema levado pelo cello, onde a textura mescla elementos do “tipo xangô” (como no 2º movimento do QC4) com terças paralelas do tipo “caipira”; na seção B, o acompanhamento da viola, em sextas paralelas, dá continuidade ao “sotaque” caipira da textura; a seção C tem uma melodia expressiva no violino; a seção D oferece outra dança de caráter “selvagem”; uma “progressão omnibus” serve como transição entre D e E; a seção E apresenta divisão instrumental em pares: a melodia é tocada pelos violinos, em oitavas, contra viola e cello em sul ponticello. A coda, é marcada por um gesto melódico ascendente que inicia no cello e sobe até o 1º violino, passa por
densas progressões de acordes, de até 8 notas, e conclui com oitavas sobre a nota Dó. Villa-Lobos deixou apenas fragmentos, poucos compassos, do QC18.
Paulo de Tarso Salles é professor livre-docente no Departamento de Música ECA/USP. Autor dos livros Villa-Lobos: processos composicionais (Ed. Unicamp, 2009) e Aberturas e impasses: a música no pós-modernismo (Ed. Unesp, 2005). Coordena o grupo de pesquisa PAMVILLA (Perspectivas Analíticas para a Música de Villa-Lobos) e organizou duas edições do Simpósio Internacional Villa-Lobos em São Paulo (2009 e 2012). É pesquisador e parecerista ad hoc da Fapesp.
Fragmento do QC18, manuscrito de Heitor Villa-Lobos. Fonte: Museu Villa-Lobos.
Quarteto Bessler-Reis e Quarteto Amazônia
Editoras União Brasileira de Compositores - UBC / Universal Music Publishing MGM / Peermusic do Brasil Edições Musicais Ltda. Remasterizado no estúdio Classic Master por Carlos Freitas Fotos Villa-Lobos Acervo do Museu Villa-Lobos, fotógrafos Mamed e Adrian Siegel (direitos reservados) Fotos das folhas Leticia Kamada Direção de arte Alexandre Amaral Projeto gráfico Érico Peretta
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Comunicação Social Ivan Paulo Giannini Técnico-Social Joel Naimayer Padula Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli Selo Sesc Gerente do Centro de Produção Audiovisual Silvana Morales Nunes Gerente Adjunta Sandra Karaoglan Coordenador Wagner Palazzi Produção Giuliano Jorge, Ricardo Tifona Comunicação Alexandre Amaral, Raul Lorenzeti Administrativo Katia Kieling, Thays Heiderich, Yumi Sakamoto Áudio João Zilio, Marcelo Sarra
Av. Álvaro Ramos, 991 São Paulo I SP l CEP 03331-000 Tel: (11) 2607-8271 selosesc@sescsp.org.br sescsp.org.br/selosesc sescsp.org.br/livraria