209581583 battista mondin os grandes teologos do seculo vinte vol 2

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Bctüsta Mondin

OS GRANDES TEÓLOGOS DO SÉCULO VINTE VOL 2 -Os te<'logos protestartes e ortodoxos

BARTH BRUNNER TOUCH NIEBURHR BULTMANN CULLMANN B ^BULGAKOV TLOROVSKY LOSSKY

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Este segundo volum e de Os grandes teólogos do século vinte, dedicado aos teóiogos protestantes e ortodoxos, com pleta a exposição clara e sin­ tética do pensam ento dos vários teólogos contem porâneos, feita com elogiável com petência p or B attista M ondin. Com o no volum e anterior, antes de apresentar os teólogos, o A u to r traça em grandes linhas a história das teologias protestante e ortodoxa. Expõe a seguir, de cada teólogo, vida e obras, um a bibliografia selecionada e suas teorias. P or fim , faz um a avaliação critica, a fim de orientar o leitor. U m a obra de grande valor para todos aqueles que desejam estar infor­ m ados com clareza sobre a teologia de nossos dias. Ú til instrum ento de trabalho para jornalistas, professores e estudantes de teologia, pessoas de cultura e todos aqueles que querem m an ter-se atualizados. B A T T IS T A M O N D IN : m issio n á rio xaveriano, nascido em Vicenza, Itá lia (1 9 2 6 ); laureado (P h.D .) em H istó ria e F ilosofia da R eligião (H arvard, EUA). Livredocente de H>stória da Filosofia M edieval na U niversidade C atólica do Sagrado Coração. M ilã o ; decano da Faculdade de F ilosofia da P ontifícia Faculdade Urbaniana, R om a; ca te d rá tico de a n tro p o lo g ia Filosófica na m esm a Faculdade; vice-p re sid e n te da A ssociação dos Professores Ita lia n o s de F ilosofia (A D IF ); m em bro da direção nacional da A ssociação Teológica Ita lia n a (A T I); co n su lto r da Sagrada C ongregação para o C lero; colaborador o rd in á rio do O sservatore Rom ano. Obras traduzidas o o r E dições P au lin a s: As T eologias do nosso te m p o , 1979 A linguagem te o ló g ica . C om o fa la r de Deus hoje, 1979 A n tro p o lo g ia T eológica, 1979 0 hom em . Q uem é ele? E lem entos de A n tro p o lo g ia F ilosófica, em prep. Introd uçã o â F ilosofia, em prep. Os filó s o fo s do O cidente (3 vo l.) — H is tó ria da F ilosofia, em prep.

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edições paulinas


Battista Mondin

Os grandes teólo do século v ite O s teólogo

Vol. 2 antes e ortodoxos

Edições Paulinas

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CIP-Brasil. Catalogaçãona-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

M749g v. 1-2

Mondin, Battista, 1926Os grandes teólogos do século vinte / Battista Mondin; [traduziu José Fernandes], — São Paulo: Edições Paulinas, 1979-1980. 277 pp. (Teologia hoje; v. 16) Bibliografia. Conteúdo: v. 1, Os teólogos católicos. — v. 2. Os teólogos pro­ testantes e ortodoxos. 1. Teologia dogmática — História 2. Teologia dogmática — His­ tória — Século 20 3. Teólogos I. Título.

CDD-230.092 -230.09 -230.0904

80-0985

índices para catálogo sistemático: 1. Século 20: Teologia dogmática cristã 230.0904 2. Teologia dogmática cristã: História 230.09 3. Teólogos cristãos: Biografia e obra 230.092


Título original I grandi teologi dei secoto ventesimo — 2. I teologi protestanti « ortodossi © Borla Editore, Turim, 1969 Edição revista e atualizada pelo Autor para esta tradução. Traduziu José Fernandes Revisão de Luiz Antonio Miranda

Vol. 1 — Os teólogos católicos: Garrigou-Lagrange, Teilhard de Chardin, Guardini, Rahner, Chenu, Congar, De Lubac, Von Balthasar, Schillebeeckx, Lonergan

Com aprovação eclesiástica © Edições Paulinas ■ São Paulo, 1980 Reservam-se todos os direitos de reprodução


INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA TEOLOGIA PROTESTANTE

A história da teologia protestante é comumente dividida em cin­ co grandes períodos: 1) Fundadores; 2 ) Ortodoxia ou Escolástica; 3) Aufklärung ou Iluminismo; 4 ) Liberalismo; 5 ) Neo-ortodoxia. Nesta breve introdução, procurarei oferecer algumas informações essenciais para que se compreenda o porquê do seu surgimento e as características que os distinguem. Comecemos pelo primeiro perío­ do, o dos fundadores.

I. A T E O LO G IA DOS FUNDADORES

A teologia dos fundadores do Protestantismo (Lutero, Calvino, Zwinglio, Melanchthon) representa, para os evangélicos, não tanto uma reflexão teológica, mas muito mais o documento original da fé. As obras dos fundadores não são consideradas como estudos sobre a fé cristã, mas sim como fontes. Na história da teologia protestante, elas ocupam um lugar semelhante ao ocupado pelos escritos dos Apóstolos e dos Evangelistas na teologia católica: são fontes primárias. Pode-se ter uma idéia aproximada da natureza da teologia dos fundadores fazendo-se uma distinção entre forma e conteúdo. O con­ teúdo doutrinal é resultado da aplicação sistemática e coerente do prin­ cípio de que a salvação deriva imediata e diretamente de Deus. Desse princípio resulta a eliminação de todos os intermediários: o papa, os bispos, os sacerdotes, os santos, Nossa Senhora, os sacramentos, as boas ações, as indulgências etc. Para que sejamos salvos, é necessário apenas fé na palavra de Deus, que nos garante o perdão dos nossos pecados. O batismo é o atestado do seu perdão. Ele nos introduz na comunidade dos salvos, a Igreja, a qual, segundo a célebre definição de Lutero, é o lugar em que a Palavra de Deus é pregada e ouvida e em que os sacramentos são administrados segundo a instituição de Cristo. As boas ações têm valor puramente simbólico: não nos fazem merecer a salvação, mas demonstram que Cristo age em nós e que, conseqüentemente, fomos perdoados e salvos.


Quanto à forma, a teologia dos fundadores tem caráter eminen­ temente bíblico e, geralmente, assistemático. Os Reformadores, parti­ cularmente Lutero, condenam o uso da razão na teologia e a utilização da filosofia na interpretação da Palavra de Deus. Para eles, a razão é uma prostituta, filha de Satanás, totalmente corrompida e, portanto, ab­ solutamente incapaz de conhecer Deus e entender as realidades espiri­ tuais. Eles vêem no racionalismo teológico uma das principais causas da corrupção da Palavra de Deus e dos desvios da Igreja. Assim, para reconduzir o Evangelho à sua pureza original, invocam sua libertação da filosofia. Para eles, a teologia consiste na proclamação do verda­ deiro Evangelho, livre de toda a poluição filosófica x.

II. A ESCO LÁ STICA PRO TESTA N TE OU O RTO DO XA Já Melanchthon abandonou a intransigência dos outros Refor­ madores e colocou seu profundo conhecimento do pensamento aristotélico a serviço da Escritura, sustentando que aquilo que há de errado em Aristóteles deve-se aos editores e comentadores. Segundo Me­ lanchthon, a sadia filosofia aristotélica é um instrumento indispensável para a teologia, não só no aspecto metodológico, mas também do ponto de vista de conteúdo: “ A filosofia não é necessária somente pelo método: o teólogo também pode tomar emprestado dela grande parte da física” 2. A posição de Melanchthon se afirmou, tornando-se generalizada na teologia protestante do século X V II. Na história do Protestantis­ mo, esse período equivale ao da Escolástica na teologia católica, sendo por isso chamado de período da Escolástica ou da O rtodoxia3. Nessa fase, a exemplo dos teólogos católicos do século X I I I , os teólogos protestantes procuram dar uma expressão sistemática às doutrinas dos fundadores e defendê-los dos ataques de seus adversários, nesse caso os teólogos rom anos4. Para alcançar esses dois objetivos, abandonam o método exegético e recorrem à filosofia de Aristóteles, então bastan­ te conhecida e apreciada, além de utilizada pelos teólogos com os quais polemizavam 5. Com a adoção da mesma base filosófica, a teologia protestante torna-se muito semelhante à católica, não só na forma, mas, freqüen­ temente, também no conteúdo. Diferentemente dos Reformadores, os 1 J. P e lik a n , From Luther to Kierkegaard, Londres, 1963, pp. 1-23.

2 Citado de P e l i k a n , ibid., p. 33. 3 “A teologia luterana do século dezessete merece certamente o nome de ‘escolás­ tica’ se por escolástica se entende a integração da teologia cristã com a filosofia aris­ totélica” (Idern, ibid., pp. 54-55). 4 I d e m , ibid., pp. 49, 59. 5 Sobre a situação filosófica da Alemanha e sobre aposição que nela ocupava Aristóteles no século X V II, cf. P e l i k a n , ibid., pp. 49-55.


teólogos do século X V II reconhecem a aptidão da razão a conhecer Deus e receber a Revelação, defendem a necessidade da teologia na­ tural (provas da existência de Deus, conhecimento analógico da na­ tureza divina e dos atributos de Deus, possibilidade da Revelação etc.) e aplicam o princípio de causalidade para explicar muitos dados re­ velados. “ Assim, tratando do nascimento de Cristo, falam da Virgem Maria como causa materialis, do Espírito Santo como causa efficiens, da salvação humana como causa finalis, e da concepção miraculosa de Jesus como causa instrumentalis. Em certos casos, a lista das causas é ampliada de tal forma que até o problema da eleição pode ser resolvido mediante uma hábil manipulação das várias causas in­ cluídas na salvação do homem” à. Os expoentes máximos da Escolástica protestante são Johann Gerhard (1582-1637), David Hollaz (1648-1713) e Johannes A. Quenstedt (1617-1688).

I II. O RACIO NALISM O

Durante o século X V III, vale dizer, durante o Iluminismo, que os alemães chamam cie Aufklärung, acentua-se o impulso racionalista que assaltara a teologia protestante no período escolástico: agora, não se contenta mais em provar a racionalidade da fé demonstrando que as verdades reveladas se harmonizam com os cânones da razão, mas também submete a Revelação ao tribunal da razão, dando a esta o dever de purificá-la de todos os elementos sobrenaturais 7. A passagem do racionalismo escolástico ao racionalismo iluminísta foi gradual. O primeiro momento do racionalismo do século X V III procurou preservar a autoridade da Revelação bíblica, valen­ do-se dos mesmos argumentos que a Ortodoxia invocava anteriormen­ te. Esta afirmara que nenhum homem intelectualmente honesto pode­ ria rejeitar a autoridade da Bíblia. Nenhum filósofo, fiel à filosofia e ao sadio exercício da razão, poderia colocar seriamente em dúvida as doutrinas fundamentais da fé cristã. Muitos expoentes do pensamen­ to religioso protestante do século X V III fazem suas essas teses da Ortodoxia e procuram novos argumentos para provar a veracidade do Cristianismo. Para tanto, alguns recorrem à filosofia, outros à filologia e outros ainda à história. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) recorre à filosofia. Con­ trariamente àqueles que, como Descartes, cavam um abismo entre fé e razão, ele procura estabelecer uma harmonização sistemática en­ ibid., p . 65. 7 Sobre a teologia do Aufklärung, cf. P e l i k a n , ibid., p p . 76-96; E. W. The Legacy of Luther, Westminster (Maryland), 1954, pp. 103-200. 6 Idem ,

Z eeden,


tre filosofia e teologia. Na Teodicea, para justificar a conduta de Deus em relação ao homem e ao mundo, utiliza-se dos ensinamentos e das técnicas de ambas as disciplinas. O primeiro a voltar-se para a filologia e a história foi Johann A. Ernest (1707-1781). Numa obra sobre a interpretação do Novo Tes­ tamento, ele sustenta que a Bíblia deve ser interpretada da mesma maneira como são interpretados os outros livros da Antiguidade clássi­ ca: deve ser julgada textual, histórica e filologicamente. Com tais procedimentos, Ernest considera poder provar que os textos sacros são absolutamente plausíveis. Mas o emprego da filosofia, da filologia e da história logo trans­ forma-se em um bumerangue: ao invés de fornecer argumentos em favor da Revelação cristã, faz aflorar questões que contestam sua validade. Utilizando-se do método filológico e histórico, Johann S. Semler (1725-1791) faz ver que a origem das Escrituras não é completa­ mente divina, como ensinara a Ortodoxia, mas que para elas também contribuíram fatores humanos, como se pode depender dos erros cien­ tíficos, históricos e geográficos. Por causa desses erros, a simples leitura do texto bíblico não pode bastar para persuadir o leitor de sua veracidade, como afirmara a Ortodoxia. Gottlieb E. Lessing (1729­ 1781), servindo-se em Nathan der Weise (Nathan, o Sábio) do mes­ mo método de Semler, chega a conclusões ainda mais radicais: nega qualquer distinção entre cristianismo e religiões não-cristãs e, em lugar do cristianismo, propõe introduzir a religião do Ser supremo. Mas, seguindo o caminho filológico, as conclusões extremas cabem a Hermann S. Reimarus (1694-1768), que sustenta que todos os ele­ mentos miraculosos e sobrenaturais do Evangelho são invenções dos apóstolos: Jesus em absoluto não ressuscitou, mas morreu desespe­ rado, ao ver o insucesso de sua pregação em torno do advento do Reino dos Céus. Os efeitos contraproducentes do emprego da filosofia no cam­ po teológico manifestam-se bem claramente em Emmanuel Kant ( 1724­ 1804). Mostra que a filosofia especulativa não pode prestar qual­ quer auxílio à religião porque não pode demonstrar nem mesmo a existência de Deus. Esta só pode ser alcançada seguindo as exigências práticas da moral. Na obra A Religião dentro dos Limites da Razão, elabora uma interpretação racionalista da Revelação cristã, na qual to­ dos os elementos dogmáticos são reduzidos a simples símbolos. As­ sim, por exemplo, Jesus é o símbolo da luta da humanidade contra o mal e de sua vitória sobre este. Contra Kant elevou-se o protesto solitário de Johann G . H a­ mann (1730-1788). Este contestou a utilização que o filósofo de Königsberg fizera da razão: não se pode presumir que ela se erija em juiz da Revelação. Deus não fala ao homem somente através da razão, mas também de uma totalidade de manifestações. Toda a reali­ dade é revelação de Deus e a Escritura ocupa uma posição privilegiada


em relação à natureza e à história, que são como seus comentários, já que constituem antecipações suas e não o oposto. Mas a Escritura só tem um caráter revelador para quem tem fé. O protesto de Hamann, porém, não obteve eco. As duas prin­ cipais doutrinas kantianas no que se refere à religião — a) a trans­ ferência da religião da esfera da razão para a da vontade e do sen­ timento e b) a interpretação racionalista da Revelação — permane­ cem como fundamentos de toda a teologia protestante do século X IX .

IV. O PR O TESTA N TISM O LIBE R A L

O protestantismo liberal, isto é, a teologia protestante do sé­ culo X IX , inspira-se em dois princípios aparentemente contraditórios de Kant: a) a remoção da religião da esfera especulativa; b ) a redu­ ção do cristianismo aos limites da razão. Partindo desses princípios, Schleiermacher, Hegel, Feuerbach, Nietzsche, Strauss, Baur, Ritschl e Harnack tendem para a secularização total do Cristianismo, alcançando tal meta por ambos os caminhos traçados pelos racionalistas, o filosó­ fico ( os quatro primeiros) e o histórico-filológico ( os quatro últi­ mos )8 . Friedrich E. D. Schleiermacher (1768-1834) é considerado uni­ versalmente como o pai do protestantismo liberal. Foi o primeiro a elaborar uma nova teologia partindo dos postulados kantianos. Em virtude de tais postulados, transfere a religião da esfera da razão pa­ ra a do sentimento e reduz os dogmas a simples expressões dos sentimentos comuns de um povo em relação à Divindade. Duas proposições, tornadas célebres, são fundamentais para o seu con­ ceito de religião: “ 1) A religiosidade não é ciência nem ação, mas sim uma determinação do sentimento e da autoconsciência imediata. 2) o que há de comum a todas, mesmo às mais diferentes mani­ festações religiosas, aquilo pelo qual elas ao mesmo tempo se dis­ tinguem de todos os outros sentimentos — em outras palavras, a essência invariável da religiosidade — , consiste no fato de que nós simplesmente temos consciência da nossa dependência de Deus, isto é, da nossa relação com E le ” 9. Portanto, segundo este autor, a essência da religião consiste no sentimento de dependência radical. Esse sentimento nasce no momento em que o homem torna-se conscien­ te de si mesmo e do universo que o circunda. Então ele se dá conta de que depende radicalmente de um “ O utro”, isto é, de Deus, que 8 Sobre o protestantismo liberal, cf. o ótimo estudo de B. G h e r a r d i n i , La Secon­ da Riforma, Bréscia, 1964, v. I. 9 F. S c h l e i e r m a c h e r , Der Christliche Glaube, citado por "W o b b e r m i n no verbe­ te sobre Schleiermacher da Enciclopédia Religion tn Geschichte und Gegenwart V, p.

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não é alcançado, portanto, através do conhecimento conceituai, como afirmavam os racionalistas, mas por meio da intuição e do sentimento: “ Se o homem não se une ao Eterno na unidade da intuição e do sen­ timento, dele permanecerá eternamente separado” 10. Mas, em sendo assim, que tarefa cabe ao teólogo? Não a tarefa de examinar e orde­ nar as fórmulas dogmáticas, que, como já se disse, para Schleiermacher não passam de descrições de sentimentos religiosos comuns, mas sim a tarefa de estudar a origem da religião e a história dos dogmas. A ênfase que este pensador coloca sobre os elementos subjetivo e his­ tórico faz dele o pai da “ teologia liberal” . Georg G. F. Hegel ( 1770-1831) critica tanto Kant quanto Schleiermacher, reconduzindo a religião ao domínio da razão. Segun­ do Hegel, a religião é um dos momentos conclusivos da dinâmica dia­ lética do Absoluto, ou seja, um dos três momentos em que Ele toma consciência de si mesmo. A religião, portanto, tem o mesmo conteúdo da filosofia e da arte, delas diferindo apenas pela forma. Com efeito, aquela autoconsciência do Espírito absoluto, que na filosofia é reali­ zada conceitualmente, especulativamente, e na arte pela intuição sen­ sível, na religião se realiza imaginativamente. O órgão da religião é o pensamento, e a religião é essencialmente pensamento, como a filo­ sofia: mas pensamento em forma de imagens, símbolos, metáforas. Mas o retorno ao domínio racional operado por Hegel não significa para a religião cristã nenhuma recuperação de sua sobrenaturalidade e transcendência. Pelo contrário, a tal retorno corresponde um novo impulso em direção à secularização. Numa obra juvenil sobre a vida de Jesus, o pensador já reduzira o fundador do cristianismo a um bom moralista que praticava perfeitamente a moral do imperativo categó­ rico. Nas obras mais maduras, não vê nos dogmas da Encarnação e da Redenção outra coisa que símbolos da realização completa da auto­ consciência divina concretizada dialeticamente no espírito humano atra­ vés da negação. A vaga secularizadora torna-se impetuosa com Feuerbach e Nie­ tzsche. Ludwig Feuerbach (1804-1872) dissolve toda religião, inclu­ sive a cristã, na “ hipostatização ” * das necessidades do homem. Em sua Essência do Cristianismo, afirma que o fundamento da verdadeira filosofia não é colocar o finito no infinito, mas sim o infinito no finito, ou seja, a filosofia deve provar que o homem não é produto de Deus, mas sim Dens nm produto do homem: não foi a Idéia que criou o '-'"»nft-ói-in ™ homem que criou a Idéia. Assim, por exemplo, Feuerbach sustenta que o conceito de Deus como Pai nasce da exigência de segurança sentida pelos homens; a idéia de Deus feito carne exprime a excelência do amor pelos outros; a idéia de um Ser perfeitíssimo surge para representar ao homem aquilo que ele Ueber die Religion, Hamburgo, 1958, p. 38. * Aqui — e em outros lugares — , por falta de terminologia adequada em língua portuguesa, preferimos conservar o neologismo, em geral adaptando-o à índole de nos­ so idioma. (Nota do Revisor). 10 S c h l e i e r m a c h e r ,


deveria ser, mas que, na realidade, nunca consegue se tornar. Da mes­ ma forma, a fé na vida futura (ou seja, a idéia de uma existência ultraterrena) outra coisa não é que a fé na vida terrestre, não como ela é, mas como deveria ser. Chegando-se a esse ponto, Friedrich W. Nietzsche (1844-1900) pode proclamar legitimamente: “Deus está morto” . Dessa maneira, através da filosofia, o protestantismo liberal chegou à supressão total da teologia. E chegou aos- mesmos resultados também pelo outro caminho, por meio da filosofia e da história. Seguindo as pegadas de Reimarus, David Strauss (1808-1874) interpreta a vida de Jesus como um mito construído mais ou menos conscientemente por seus discípulos. Ele nega a divindade de Cristo e o valor salvífirn de sua paixão e morte. Ferdinand C. Baur ( 1792­ 1860), fervoroso seguidor da filosofia hegeliana, aplica ao Novo Tes­ tamento a doutrina do contínuo transformar-se e desenvolver-se da Idéia universal através da série indefinida de teses e antíteses que desembocam na síntese conclusiva. O cristianismo, conseqüentemente, representa uma fase transitória do devir religioso da humanidade. Cristo inaugurou tal fase aderindo à idéia religiosa elaborada nos séculos anteriores e tornando-a capaz de conquistar o mundo, conec­ tando-a com o messianismo judaico. O esforço ulterior da idéia reli­ giosa para libertar-se da forma especial que lhe foi impressa pelo fundador resume toda a história da religião cristã. AIbrecht Ritschl (1822-1899), discípulo de Baur, procura levar o protestantismo para um sentido histórico-crítico mais profundo, es­ perando, dessa forma, colocar a genuína concepção do Evangelho a sal­ vo de toda forma de catolicismo e de toda forma de misticismo, tan­ to pietista como romântico. Na comemoração do seu centenário, em 1922, Harnack assim resumiu retrospectivamente o trabalho de Rit­ schl em sua maturidade: “ Fundando-se num conceito de Deus extraí­ do do Evangelho e também aqui seguindo algumas das idéias princi­ pais de Lutero, eliminou a decadente herança filosófico-religiosa da Antiguidade, salvando na doutrina da religião cristã somente aquilo que se referia à fé em Deus como Pai de Jesus Cristo. Postulou um conhecimento da religião cristã bem claro e válido para todos, mas excluiu sem cerimônias, triturou ou simplesmente declarou individual aquilo que não era compatível com aquela rígida e fechada constru­ ção” u . Em Ritschl, desvaloriza-se toda diferença confessional, compro­ mete-se a expressão genuína do Evangelho, reduz-se a-fé cristã a um puro empenho moral, pouco se aprecia o dogma e as tradições da Igreja. Essas também são as conclusões a que chega o seu discípulo Adolf von Harnack (1851-1930), último e máximo representante do protestantismo liberal. Harnack é essencialmente um historiador, no que aliás é muito grande, sendo um dos maiores historiadores do 11 Citado por B. N e u n h e u s e k , “La Teologia Protestante in Germania” Problemi e Orientamenti di Teologia Dogmatica, Milão, 1957, v. I, pp. 589-590.

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cristianismo, sobretudo de suas origens. A sua obra-prima é A História dos Dogmas. Mas durante algumas décadas ele também exerceu uma enorme influência como teólogo. Em seus estudos sobre o cristianismo, parte da convicção de que o método histórico-crítico, elaborado pela ciência no século X IX , é um instrumento perfeitamente idôneo, inclusive indispensável, para a interpretação da Revelação. Harnack considera que não pode haver outra interpretação séria da Sagrada Escritura e da Tradição fora da interpretação científica. Mas, seguindo esse caminho, também chega, como Strauss e Ritschl, a eliminar da vida de Cristo tanto os mila­ gres como os dogmas. Segundo Harnack, os dogmas seriam fruto da helenização do cristianismo, ao passo que os milagres seriam produto da mentalidade mágica e supersticiosa dos primeiros discípulos 12. Assim, no século X IX , assistimos na teologia protestante à pro­ gressiva e, depois, total liquidação da essência do cristianismo, que não só, no fim das contas, não se distingue mais das outras religiões como também deixa até mesmo de ser uma religião. Mas nem todos os teólogos protestantes do século passado do­ braram-se às doutrinas do protestantismo liberal. Não faltaram aqueles que tentaram deter a vaga secularizadora então em curso. São dignos de menção sobretudo Kierkegaard e Káhler. Contrariamente à filosofia hegeliana, que procurava aprisionar o cristianismo dentro do sistema, Sõren Kierkegaard (1813-1855) pro­ clama “ a infinita diferença qualitativa” que separa Deus do homem: “ O homem é um existente particular, incapaz de ver as coisas sub specie aeternitatis. . . Já Deus é infinito e eterno” 13. Evidencia, ade­ mais, a precariedade da existência humana, a paradoxalidade da fé e a incompreensibilidade da Revelação. A fé é um risco: “ Sem risco não há fé e quanto maior o risco tanto maior é a fé ” 14. Para o crente, a razão só serve para estabelecer “ que crê contra a razão” 15. Enquanto o protesto de Kierkegaard dirige-se contra os filósofos, o de Martin Kàhler (1835-1912) tem por alvo os historiadores. Em seu famosíssimo Der Sogennante Historische Jesus und der Geschichtli­ che Biblische Christus, ele procura salvar o cristianismo dos ataques mortíferos do método histórico-crítico introduzindo na linguagem teo­ lógica a célebre distinção entre Historie e Geschichte i6, para poder 12 Harnack todavia, soube conciliar sua liberdade de historiador com uma piedade pessoal pouco dogmática mas bastante viva. Ele sempre foi um cristão con­ victo e ativo. Durante dez anos, de 1903 a 1912, foi presidente dos Evangelische Soziale Kongresse. Longe de levá-lo ao naufrágio da fé, o método histórico-crítico pa­ rece tê-lo conduzido ao autêntico Evangelium Christi, liberado das excrescências do pietismo e emancipado dos radicalismos do cientismo. 13 K i e r k e g a a r d , Concluding Unscientific PostScript, Princeton, 1644, p . 195. M Idem, ibid., p. 188. Idem, ibid., p. 504. 16 “Historie é o passado, constituído pelos acontecimentos particulares, sobre os quais pode ser realizada a pesquisa científica; é o conjunto daqueles bruta fad a que, em relação ao problema cristão, nada têm a dizer à fé, ‘jazendo como pedra morta no início do desenvolvimento do Cristianismo’. Geschichte, ao contrário, é um fato


falar do Jesus histórico separadamente do Cristo da fé. Sem colocar em dúvida a efetiva realidade dos acontecimentos narrados pela E s­ critura, ele os aborda “ com a convicção de entrar em contato com o testemunho que ela presta ao Filho de Deus, crucificado e ressus­ citado, ao Cristo centro da fé e vida do mundo, bem diferente daquela figura mesquinhamente redimensionada pela chamada crítica histórica que se tornou conhecida como o Jesus da história” 17. Tanto a tentativa de Kierkegaard como a de Káhler, contudo, mostraram-se ineficazes para deter a vaga secularizadora, pelo menos naquele momento.

V. DA N EO -O RTO D O XIA AO A TEÍSM O CRISTÃO

A primeira reação eficaz contra o liberalismo teológico foi pro­ movida por Karl Bar th. Logo depois da Primeira Guerra Mundial, re­ tomando Kierkegaard, denunciou vigorosamente todas as tentativas de amordaçar a Palavra de Deus com a razão. Contra um cientismo inge­ nuamente triunfal e um racionalismo seguro de si, Barth afirmou que todo verdadeiro conhecimento provém de Deus. Este é o “ Totalmente O utro” . Essencialmente enfraquecido em sua unidade originária, o homem não pode mais alcançá-lo com suas forças; ao contrário, tudo aquilo que é humano, razão, filosofia, cultura, religião, encontra-se em substancial oposição a Ele. Somente pelo sacrifício de Jesus Cris­ to é que essa oposição é superada e a unidade restabelecida. Em síntese, é esse o protesto vibrante de Karl Barth contra a teologia liberal, expresso no célebre comentário à Epístola aos Roma­ nos ( Der Ròmerbrief), obra que impôs ao movimento teológico pro­ testante uma virada decisiva, reconduzindo-o da degeneração racionalista aos trilhos da Ortodoxia, ou seja, do pensamento genuíno dos fundadores do Protestantismo, Lutero e Calvino. Por isso, o movi­ mento teológico iniciado por Barth foi chamado “ Neo-ortodoxia” , ou então “ Teologia da crise” , ou ainda “ Teologia dialética” . Inicialmente, também Brunner, Bultmann, Niebuhr, Gogarteii e Tillich aderiram ao movimento; mas depois, quando foi questão de escolher uma nova expressão para a mensagem dos Fundadores, dele se afastaram. Com efeito, estava claro que aquela mensagem não po­ deria ser eficaz se não fosse traduzida em uma linguagem moderna, compreensível para o homem do século X X . Mas qual linguagem de­ via-se escolher? A bíblica, a filosófica ou então a secular? ou uma série de fatos do passado que, no entanto, não cessam de interessar no pre­ sente. Não perderam sua eficácia operativa no momento de seu cumprimento, mas se lançam adiante, preenchendo o tempo e a consciência do homem. Apenas a Geschichte, portanto, é autêntica história” ( G h e r a r d i n i , La Seconda Riforma, v. I , p. 3 5 4 ) . 17 G h e r a r d i n i , La Seconda Riforma, v . I , p . 353.


I * f t ** . ^ Nesse ponto, voltou à baila a questão da posição da filosofia no seio da teologia, dado que, mais ou menos explicitamente, a lin­ guagem com que se dá expressão à Revelação é sempre uma linguagem filosófica. E assim eclodiu novamente o problema da teologia natural, daí nascendo os vários movimentos em que se fracionou a teologia pro­ testante contemporânea 18. Alguns teólogos, com Barth à frente, repeliram categoricamente a teologia natural e, com ela, qualquer empenho filosófico. Outros aceitaram a teologia natural, mas não do mesmo modo: há os que, como Mascall, não hesitam em seguir a teologia natural de são Tomás; já outros, como Brunner, aceitam uma teologia natural notavelmente redimensionada e reduzida. Por fim, vários teólogos (Bultmann, Tillich, Gogarten e Ebeling) escolheram uma linguagem filosófica diferente da linguagem da teologia natural, preferencialmente o existencialismo, o personalismo e a fenomenologia. Mas a utilização das novas filosofias e a pretensão de submeter a mensagem cristã a revisões radicais por meio das técnicas de demitização (Bultmann) e de secularização (Bonhoeffer) levaram ao sui­ cídio e à liquidação da teologia, como pode ser constatado nos “ teó­ logos da morte de D eus” (van Buren, Hamilton e Altizer) 19. Mas já estão em curso (na Alemanha e em outros lugares) vi­ gorosas reações que tentam deter o desmantelamento total da teologia. Vários teólogos, como E. Kásemann, G. Ebeling, W. Pannenberg e J. Moltmann, esforçam-se por corrigir e superar as posições de Bult­ mann e Bonhoeffer, ressaltando o caráter objetivo e histórico da Re­ velação, evidenciando o seu componente escatológico e desenvolvendo uma “ teologia da esperança” 20,

18 Os estudiosos não estão de acordo na identificação das principais correntes da teologia protestante contemporânea. J. B. C obb , em Living Options in Protestant Theo­ logy (Filadélfia, 1962), reduz as correntes a três: teologia natural (Mascall, Bertocci, Wieman), positivismo teológico (Brunner e Barth) e existencialismo teológico (Bult­ mann, Tillich e Niebuhr). S. P. S c h i l l i n g , em Contemporary Continental Theologians (Londres, 1966), também as reduz a três, mas as denomina diversamente: teologias da Palavra de Deus (Barth, Diem e Hromadka), teologias da existência (Bultmann, Go­ garten, Ebeling) e teologias neoluteranas (Schlink e Wingren). G. F. H. H e n r y , no artigo “ Cross-current in Contemporary Theology” in Jesus of Nazareth: Saviour and Lord, a cargo do próprio Henry (Grand-Rapids, Michigan, 1966), da mesma forma concorda com o número três; porém, para ele se trata das correntes liberal, dialética e existencialista. 19 Sobre os teólogos da morte de Deus, cf. B. M o n d i n , I Teologi delia Morte di Dio, Borla, Turim, 1968. 20 Sobre o desenvolvimento mais recente da teologia na Alemanha, cf. R. M a r l e , “Comincia un’Era Nuova nella Teologia Protestante Tedesca?” in La Civiltà Cattolica, 1968, v. I l l , pp. 214-225. Sobre a teologia da esperança, cf. B. M o n d i n , I Teologi delia Speranza, Borla, Turim, 1970.


KARL BARTH E A TEOLOGIA DA PALAVRA DE DEUS

Nos últimos tempos, o domínio de Karl Barth sobre a teologia protestante começou a dar sinais de cansaço, passando a ceder lugar para Bultmann, Tillich, Bonhoeffer e os “ teólogos da morte de D eus” J. No entanto, desde a publicação de Der Rõmerbrief (1 9 1 9 ) até a conferência ecumênica de Amsterdã (1 9 4 8 ), Barth foi o teólogo mais admirado, influente e seguido na Igrejaevangélica! Cõmo^á vimos no capítulo anterior, sua oBrã teológica desenvol­ ve-se em meio ao liberalismo teológico mais exagerado,” tendo nascido cxatamêntlTcwno reação.radical a ete. A origem é ò desenvolvimento de tal obra foram esplendidamente sintetizados por P. Burgelin num discurso proferido por ocasião da entrega do título de “ doutor honoris causa” a Karl Barth por parte da Faculdade Teológica de Strasbourg, em 1959. Naquela ocasião, disse o prof. Burgelin: “Numa época em que a filosofia e as ciências históricas tornavam incertos os princípios, ela consolidou a autonomia da ciência teológica, demonstrando — e o seu próprio sucesso o confirma — que a doutrina dos Reformadores, compreendida, reexaminada e interpretada livremente em formas e expressões, novas, mantém intacta sua plena atualidade. Mesmo tendo andado muito por esse caminho, ela está entre aqueles que nunca se consideram satisfeitos com as metas até agora alcançadas. Ela reelaborou, refez o seu Comentário, assim como em seguida transformou a sua Dogmática apenas esboçada numa obra monumental, a Dogmática Eclesiástica, na qual ainda trabalha. A obra prossegue com segurança, mas ao longo do seu percurso se retifica, se amplia gradualmente, sob o contínuo impulso de suas leituras, de suas experiências, da reflexão e da meditação” 2. I. VIDA Karl Barth nasceu na Basiléia em 10 de maio de 1886. Sua ori­ gem suíça é digna de nota: durante o período nazista, colocou-o em condições de opor-se a Hitler sem graves conseqüências; o máximo 1 “Não obstante tudo aquilo que, nos detalhes, permanecerá de Barth e de sua grande obra, no conjunto foi Bultmann quem sobrepujou Barth no interior da teologia protestante na Europa” (K . R a h n e r , “Théologie et Anthropologie” in Théologie d’Aujourd’hui et de Demain, Paris, 1967, p. 114). 2 Citado por G. C a s a l is , Karl Barth, Turim, 1960, p. 116.


que o nacional-socialismo pôde fazer contra ele foi repatriá-lo. Da terra suíça, parece qui~Barth herdou também muitas convicções po­ líticas e sociais: o apego à democracia, uma tendência ao conservado­ rismo, a desconfiança em relação aos blocos políticos, uma propensão para a neutralidade (entre Rússia e Estados Unidos). Filho de j>ais protestantes 3, recebeu sua educação religiosa inicial na Igreja Reformada. Essa educação deixou marcas indeléveis em sua mente, as quaíi podem ser notadas em toda a sua produção teológica. Por toda a Dogmatica Ecclesiastica ressoam as frases majestosas do Catecismo de Heidelberg. Seus estudos teológicos, iniciados em sua pátria, mais precisa­ mente em Berna, foram prosseguidos na vizinha Alemanha, tendo passãdo pelas Universidades de Berlim, Marburg e Tübingen. Seus profes­ sores foram os mestres mais célebres do último liberalismo teológico: Harnack, Gunkel, Schlatter e Herrmann. De Harnack já se disse o suficiente no capítulo anterior. Hermann Gunkel (1862-1932) era um dos representantes mais radicais da crítica histórica bíblica. Sua metodologia fundava-se no princípio de que não se pode compreender um pensamento, uma época, uma pessoa, sem compreender sua pré­ -história, isto é, sem inseri-la adequadamente na concatenação da história. E por isso explicava o Antigo Testamento inserindo-o nas mitologias antigas do Oriente Médio. Adolf Schlatter (1852-1938), ao contrário, era um dos poucos que procuravam pôr um paradeiro à crítica histórica triunfante, demonstrando a autonomia dos conceitos bíblicos tanto em relação aos conceitos gregos quanto aos orientais. Wilhelm Herrmann (1846-1922) foi o mestre mais estimado por Barth e do qual assimilou mais profundamente as doutrinas. Em 1925, Barth dizia recordar “ como se fosse hoje” o dia em que lera pela primeira vez a Etica de Herrmann, exprimindo ainda uma profunda estima pelo seu professor de Marburg. Herrmann ensinava que a an­ tropologia não pode ser resolvida fora do encontro com Deus vivente e que a vida religiosa pessoal só pode nascer e se desenvolver em contato com a vida de Jesus, personalidade religiosa perfeita. A expe­ riência religiosa decisiva se produz em contato com um ser excepcional, que a ciência religiosa não pode captar inteiramente em seus traços essenciais nem evidenciar sua potência efetiva. No decorrer de seus estudos universitários, Barth conheceu Eduard Thurneysen, o qual se manteve por toda a vida o seu amigo de todas as horas, o companheiro indefectível de sua aventura teológica. Concluídos seus estudos, foi convidado a ser assistente da paró­ quia reformada suíço-alemã de Genebra. Em 1911, foi promovido a pastor de Safenwill, onde transcorreram os dez anos decisivos da matu­ ração do seu pensamento teológico. A experiência pastoral mostrou3 Seu pai, Fritz Barth, era professor de teologia, especialista no Novo Testamento: uma Introdução, de sua autoria, publicada em 1908, apresenta até hoje notável inte­ resse.


-lhe imediatamente a incongruência entre o que havia estudado e as exigências da vida cristã. Quando subiu ao púlpito, percebeu a inuti­ lidade de todos os estudos histórico-críticos da vida de Cristo e do Evangelho. Aquilo que o povo lhe pedia era o anúncio da Palavra de Deus e não doutas dissertações sobre aquilo que pertencia à his­ tória e aquilo que pertencia à fé. Pedia-lhe, ademais, um anúncio cor­ reto, atual, que correspondesse aos problemas colocados pela indus­ trialização, pela socialização, pela luta de classes, pela guerra. Então, Barth começa a “ dedicar-se a um intenso estudo da Bí­ blia, no qual imerge ainda mais quando se desencadeia a Primeira Guerra Mundial. Mesmo resguardado pela neutralidade suíça, Barth não sente de maneira alguma estar fora da confusão e nem deseja estar. Participa intensamente de cada fase da luta e compreende cla­ ramente que, em meio às explosões das bombas e aos gritos dos mo­ ribundos, a pregação só tem sentido se não ressoa como uma mensagem incolor e insípida, inadequada para a época, carente de resposta as dramáticas interrogações espirituais colocadas à humanidade pelo fundir-se da guerra e de suas atrocidades. A pregação deve reabrir to­ das as questões, deve ouvi-las e iiummá-las numa nova perspectiva, deve colocá-las diante duma escala de valores objetivos que dê ao es­ pírito perturbado dos homens a serenidade, a coragem, a fé num Deus cujo amor parece vilipendiado pelos acontecimentos” 4. Aí encontramos duas das mais importantes características da teo­ logia" que Barth começava então a construir: profunda inspiração HbHcã~e~lIEnitada~aEertura pira todos os problemas do homem moderno. Dentre os textos da Sagrada EscriturãT.o que Barth mais pre­ feria para suas meditações era a Epístola aos romanos. A assídua leitu­ ra desse texto teve sobre ele o mesmo efeito que tivera sobre Lutero. Este havia encontrado nele um novo conceito da justificação: a jus­ tificação apenas pela fé, sine operibus. E Barth reencontrou substan­ cialmente a mesma mensagem: de novo a sola fides, mas, desta vez, não enquanto contraposta às obras, mas sim enquanto oposta à razão. Com efeito, o jovem pastor de Safenwill elaborou o Der Ròmerbrief (1 9 1 9 ). Nele combate o racionalismo, o humanismo e o libera­ lismo, que tinham invadido a teologia protestante no século X IX , e traz novamente à luz a unicidade e o paradoxo da fé bíblica. Contra a teologia liberal, que eliminara a infinita distância que separa o ho­ mem de Deus e a razão da Revelação, Barth, inspirando-se em Kier­ kegaard, reivindica “ a infinita diferença qualitativa” entre religião natural e Revelação, entre~Tilosofia e Bíblia. Para dar relevo a tal diferença, utiliza o método dialético do “ não” de Deus a tudo aquilo a que o homem diz que “ sim ” . O Der Romerbrief suscitou interesse e viva reação em todos os ambientes teológicos da época, em particular no protestantismo ale­ mão. Mais tarde, Barth escreveria a propósito: “ Pareço mais um ra■ < C a s a lis , o . c . , p p . 23-24.


paz que, subindo ao campanário da igreja paroquial, puxa uma corda ao acaso e, sem querer, coloca em movimento o sino maior: trêmulo e amedrontado, percebe que acordou não apenas sua casa, mas também a aldeia inteira” . Em 1921, Karl Barth é nomeado “ professor honorário de teolo­ gia reformada” na Universidade de Goettingen. Lá, em 1922, junta­ mente com E. Thurneysen e F. Gogarten, funda uma revista que leva o significativo nome de “ Zwischen den Zeiten” : entre os tempos, en­ tre Pentecostes e o advento do Reino, ou seja, no tempo da paciência de Deus, que é também o tempo da Igreja. Em 1926, deixa Goettingen e parte para Muenster, na Westfália, onde se torna sempre mais claramente precisa a linha teológica original e independente que se manteria como tal até hoje. Em 1927, inicia a publicação de um grande tratado de dogmática, intitulado Die Christliche Dogmatik (A Dogmática Cristã). Também nessa obra, a exemplo de Der Rõmerbrief, continua se utilizando da linguagem exis­ tencialista kierkegaardiana para exprimir a mensagem cristã. Portanto, está convencido de que a linguagem dos existencialistas é a mais apta para traduzir .oJiyangelho a uma linguagèm ínteligíveT”p aran o ssa ge; raçãfti “ A Palavra de D eus”, afirma ele, “ é um conceito só acessível ao pensamento existencial” 5. Certamente, Barth não subordina a Re­ velação ao existencialismo na mesma medida de Bultmann. Entretanto, nesse primeiro projeto de teologia sistemática, a “ Palavra de D eus” é de tal modo condicionada pela antropologia existencialista que, con­ cluído o primeiro volume, Barth se dá conta de que não podia mais continuar trilhando aquele caminho. Por essa razão, em 1932, reto­ ma o projeto desde o início, com Die Kirchliche Dogmatik (A Dog­ mática Eclesiástica). Nesse meio tempo, em 1931, conclui seu estudo sobre o Fides Quaerens Intellectum de santo Anselmo 6. Nessa obra, Barth estuda melhor a natureza e a função da teologia. Compreende que sua tarefa não é tanto acentuar a distância entre homem e Deus, mas muito mais penetrar no significado do conhecimento de Deus que é coloca­ do à disposição do homem na Revelação. Então, impõe-se inelutavelmente a Barth o problema da analogia, como o único método apto a resolver o problema do significado da Palavra de Deus. Somente com o método da analogia é que o teólogo pode chegar a compreender o conteúdo da Revelação. Não, porém, por intermédio da analogia entis (analogia do ser), que, sendo uma categoria filosófica e humana, não pode estar em condições de entender a Palavra de Deus. A única analogia que pode compreender Deus e sua Revelação é a analogia da fé ( analogia fidei): a analogia que parte da fé ao invés de partir da razão, ou seja, que parte do alto ao invés de partir de baixo. 5 B a r t h , Die Christliche Dogmatik, Munique, 1927, p. 111. 6 “Fides Quaerens Intellectum” é o subtítulo do célebre Proslogion de santo Anselmo.


O Fides Quaerens Intellectum assinala, portanto, a segunda vi­ rada decisiva na maturação teológica de Karl Barth: o abandono da dialética em favor da analogia. Na analogia fidei, Barth encontrou finalmente o instrumento capaz de exprimir o conteúdo que procurara em vão comunicar no Der Rõmerbrief. Foi a descoberta da analogia da fé que induziu Barth a aban­ donar o projeto da Dogmatica Cristiana e substituí-lo pelo da Dogmatica Ecclesiastica. Nessa obra monumental (é muito mais volumosa do que a Suma Teológica de são T om ás), Barth elabora uma interpre­ tação sistemática de todos os aspectos da Revelação, utilizando-se do método da analogia fidei. A elaboração da Dogmatica Ecclesiastica absorveu a maior parte do tempo deTnosso teólogo de 1930 em diante. Mas Barth nunca foi apenas um homem de estudo. Seus anos de vida pastoral haviam-lhe ensinado a grande lição de que o Evangelho não deve servir só para pregar e regular nossas relações com Deus, mas tambélri para nos ensinar como nos comportarmos com os outros homens; e isso não de maneira genérica e abstrata, mas sim de modo concreto, de acordo com a variação cias circunstâncias e das situações históricas. E preciso voltar-se para o Evangelho a fim de conhecer o juízo de Deus sobre as decisões, os empreendimentos e os programas humanos. Por isso, o teólogo de Basiléia não se contentou em meditar so­ bre o Evangelho para descobrir os mistérios profundos da vida divina e o tecido secreto que os mantém unidos, mas sempre procurou confrontá-lo com a situação presente, para iluminá-la com a luz divi­ na. Barth comportou-se diante dos grandes acontecimentos históricos de sua época como os antigos profetas de Israel: por um lado, pers­ cruta os desígnios neles ocultos por Deus e, por outro lado, avalia sua conformidade ou não com as Suas intenções. Dentre os muitos acontecimentos importantes do nosso século, aquele que solicitou mais do que qualquer outro a intervenção querigmática de Barth foi a política do nacional-socialismo na Alemanha. Quando Hitler subiu ao poder (1 9 3 3 ), Barth era professor de teologiá' em Bonn, Õ acontecimento foi saudado em termos entusiás­ ticos pelos responsáveis da “ Igreja Evangélica da Nação Alemã” , criada em 25 de abril de 1933: “ Um poderoso movimento nacional conquistou e reanimou o nosso povo alemão. Está se afirmando uma vasta reestruturação do Reich na nação alemã, que está em pleno des­ pertar. A essa virada histórica, dizemos um ‘sim’ reconhecido. Foi Deus que no-la deu” 7. Ao mesmo tempo, nascia o movimento dos “ Cris­ tãos alemães” , que fundamentava a doutrina da nova Igreja Evangé­ lica nas palavras-chave do nazismo: “ Nação, Raça, Führer” . Barth denunciou imediatamente tanto os erros do nazismo como as aberrações da “ Igreja E vangélica da Naçao Alemã"7 No inícTõ de 7 Primeira proclamação do chamado “Dreimaennerkollegium”, 28 de abril de 1933.


julho de 1933, juntamente com o amigo Thurneysen, deu vida a uma nova revista, intitulada Theologische Existenz Heute (A Existência Teológica H oje). No primeiro número, entre outras coisas, podemos ler: “ Só se tem uma verdadeira existência teológica quando se com­ preende que Jesus Cristo, e só ele, é o nosso guia, ao passo que não se tem existência teológica quando se invoca um guia eclesiástico, ao invés de ser guia no serviço que se nos ordenou. Toda invocação a um Führer é tão vã quanto o grito dos sacerdotes de Baal: ‘Baal, escuta­ -nos!’ ” A Theologische "Existenz Heute transformou-se logo no instru­ mento em que o autêntico protestantismo, que agora toma o nome de Igreja Confessante, expunha a própria doutrina e recebia o alimento de que necessitava. Com coragem similar à dos mártires durante a época das perse­ guições romanas, Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer e Martin Niemoeller sustentaram e guiaram a resistência da Igreja Evangélica contra a agres­ são do nazismo. Em Barmen, em 31 de maio de 1934, Marth e Nie­ moeller redigiram o documento decisivo, que na história da Igreja seria recordado com o nome de “ Confissão de fé de Barmen” e que já tem o seu lugar entre os textos simbólicos da Igreja Evangélica. Naquele admirável documento, entre outras coisas, podemos ler: “ Se­ gundo o testemunho das Escrituras, Jesus Cristo é a única Palavra de Deus. Unicamente a ela devemos ouvir e somente a ela devemos con­ fiança e obediência na vida e na morte. Repudiamos a falsa doutrina pela qual a Igreja poderia e deveria reconhecer, como fonte de sua mensagem, além e ao lado dessa única Palavra de Deus, outros even­ tos, outras forças, personalidades e verdades como revelações de Deus ” . Assim, já se tornava inevitável o confronto com as autoridades do Reich, Na primavera de 1935, Barth foi expulso da Alemanha. Decidiu então se estabelecer na Basiléia, sua cidade natal, onde “ empe­ nha-se menos na ação, dispõe de maior tempo, escreve em ritmo in­ tenso, publica livros e artigos para revistas de temas religiosos ou variados, prepara conferências e sermões e lança os fundamentos da resistência espiritual ao nazismo em todo o mundo. A objetividade, a proximidade e a autoridade de Barth, exilado na própria pátria e freqüentemente suspeito para o seu próprio governo, tornam sua atividade nesse período não menos preciosa do que a desenvolvida em Bonn” 8. Concluída a Segunda Guerra Mundial, quando as potências alia­ das ameaçavam cancelar do mapa a nação alemã, Barth assumiu sua defesa e, com a audácia que só a caridade pode inspirar, escreveu: “ Dar coragem aos alemães no modo justo, no modo que hoje se im­ põe! Que outros possam unir-se ao nosso esforço!” 9 8 C a s a lis , o.c., p . 38. 9 B a r t h , Zur Genesung

des Deutscben Wesens,

p.

57.


Em 1948, participou ativamente da Conferência Ecumênica de Amsterdã e conmbuiu eFicazmente ~para a retomada do movimento ecumênico. Enquanto nos primeiros volumes de sua obra principal, a Dog­ matica Ecclesiastica, Barth adotava uma atitude fortemente crítica em relação ao catolicismo e ao humanismo, acusando-os de colocar o ho­ mem no lugar de Deus, já nos últimos anos ele abriu um sereno e franco diálogo com alguns pensadores católicos, demonstrando, entre outras coisas, grande interesse pelo Concílio Vaticano II e pelo de­ senvolvimento pós-conciliar do catolicismo. Viu no Concílio os sinais de um novo Pentecostes, apresentando-o como exemplo para as igre­ jas evangélicas. Morreu na Basiléia em 10 de dezembro de 1968, deixando mu­ lher e quatro* fffiõsT'""' '

II. OBRAS

Na seção anterior, já falamos de algumas de suas obras. Mas trata-se apenas de uma parte mínima da vastíssima produção teológica de Karl Barth 10. Seus escritos podem ser divididos em quatro grupos principais: cbras exegéticas, históricas, dogmáticas e políticas. a) Obras exegéticas. — Dentre estas, o primeiro lugar cabe ao Der Römerbrief (2 11 edição, Kaiser, Munique, 1922), de que já se falou nos dados biográficos. Outros comentários: Erklärung des Phi­ lipperbriefes (Explicações da Epístola aos filipenses), Kaiser, Muni­ que, 1927. Pode-se incluir entre os comentários muitas pregações que têm por tema versículos da Sagrada Escritura. b) Obras históricas. — A maturação dogmática de Karl Barth foi acompanhada por uma incessante e minuciosa pesquisa histórica. No período em que o Der Römerbrief estava em elaboração e em cur­ so de publicação, Barth ocupou-se constantemente do confronto radical com a teologia morta ou viva do fim do século X IX e do início do século X X . Em 1923, publica uma série de respostas ao Professor Harnack; em 1927, Ludwig Feuerbach, Schleiermacher; em 1931, o célebre Fides Quaerens Intellectum. Anselms Beweis der Existenz Gottes (Kaiser, 1931), de que já assinalamos a importância; em 1947, Die Protestantische Theologie im X I X Jahrhundert. Ihre Vorge­ schichte und Geschichte (Zollikon, Zurique, 1947). Este é o maior 10 Uma bibliografia completa, até dezembro de 1955, de nada menos do que 406 títulos, pode ser encontrada na obra: Antwort. Karl Barth zum 70. Geburtstag, Zurique, 1956, pp. 945-960.


dos seus escritos históricos. Nele, depois de pintar um admirável quadro da teologia protestante durante o período do Iluminismo, Barth nos apresenta os retratos dos grandes teólogos do século X IX que, de Schleiermacher a Ritschl, aplicaram à teologia protestante as conquistas da “ filosofia das luzes” . c) As obras dogmáticas. — Dentre as várias dezenas de obras de caráter dogmático, as principais são as seguintes: Das Wort Gottes und die Theologie (A Palavra de Deus e a Teologia, Kaiser, Munique, 1 9 2 4 ); Die Lebre vom Worte Gottes. Prolegomena zur Christlichen Dogmatik (A Doutrina da Palavra de Deus. Prolegômenos a uma Dogmática Cristã, Kaiser, Munique, 1927). Este, como sabemos, é o primeiro esboço de sua teologia sistemática, esboço logo deixado de lado, sobretudo por razões de método. Em 1932, inicia a publicação de Die Kirchliche Dogmatik (A Dogmática Eclesiástica). Em 1934, publica a réplica a Brunner Nein! Antwort an E. Brunner (Kaiser, Munique, 1934), em que repele incondicionalmente todo conceito de teologia natural. Depois, publica: Credo (Kaiser, Munique, 1935), uma explicação do Símbolo Apostólico dada num ciclo de conferên­ cias para estudantes holandeses; Das Evangelium und Gesetz (K ai­ ser, Munique, 1935), um estudo sobre as relações entre graça e obediência, sobre justificação e santificação; Gotteserkenntnis und Gottesdienst (Conhecimento de Deus e Serviço de Deus, Zollikon Evangelischer Verlag, Zurique, 1938), comentário à Confissão de Fé escocesa apresentada na Inglaterra no quadro das Gifford Lectures; Dogmatik im Grundriss (Esboço de uma Dogmática, Zollikon, Zuri­ que, 1947), lições sobre o Credo ministradas aos estudantes de Bonn; Einführung in die Evangelische Theologie (Zollikon, Zurique, 1962), uma espécie de testamento teológico, no qual o autor procurou “ pres­ tar contas a si mesmo e aos seus contemporâneos daquilo que até agora teve fundamentalmente em mira, aquilo que aprendeu e aqui­ lo que defendeu no campo da teologia evangélica por diversos cami­ nhos e reviravoltas ao longo dos cinco anos transcorridos como es­ tudante, dos doze em que foi pároco e de quarenta anos de professora­ d o ” 11. Grundfragen (Questões Fundamentais, Nijkerk, 1935) é uma excelente síntese do pensamento barthiano sobre alguns temas centrais. A obra-prima teológica de K. Rahner, como sabemos, é Die Kirch­ liche Dogmatik (Zollikon, Zurique, 1932ss). O plano completo da obra consistia em cinco partes. Mas só chegou ao terceiro volume da quarta parte. O quarto e último volume da quarta parte estava em prepa­ ração no momento de sua morte. A quinta e última parte deveria tra­ tar dos Novíssimos. Eis o panorama dos volumes publicados: I Parte, A Palavra de Deus, que compreende dois volumes: 1/1: A Palavra de Deus como Critério da Dogmática (1 9 3 2 ); 1/2: A Revelação de Deus, a Sagrada Escritura, o Anúncio da Igreja (1 9 3 8 ); II Parte, 11 K.

Ba rth,

Introduzione alia Teologia Evangélica, Milão, 1968, p. 5.


Deus, que compreende dois volumes: I I / 1: A Obra da Criação (1 9 4 0 ); I I / 2 : A Eleição Gratuita de Deus. — O Mandamento de Deus (1 9 4 2 ); I II Parte, A Criação, que compreende quatro volumes: I I I / 1: A Obra da Criação (1 9 4 5 ); I I I / 2 : A Criatura (1 9 4 8 ); I I I /3 : O Criador e a sua Criatura (1 9 5 0 ); I I I / 4 : O Mandamento do Cria­ dor (1 9 5 1 ); IV Parte, A Reconciliação, também constituída de qua­ tro volumes: I V / 1: O Objeto e os Problemas da Doutrina da Recon­ ciliação. Jesus Cristo, o Senhor como Servo (1 9 5 3 ); IV /2 : Jesus Cristo, o Servo como Senhor (1 9 5 5 ); IV /3 : Jesus Cristo, a Verda­ deira 'Testemunha (1 9 5 9 ); IV /4 : este volume trataria da ética da re­ conciliação, examinando detalhadamente a doutrina dos sacramentos. d) As obras políticas. — Neste grupo, a obra fundamental é Rechtfertigung und Recht (Justificação e Direito, Zollikon, Zurique, 1938). Nela, rompendo definitivamente com o dualismo político lu­ terano, Barth demonstra que a obra de Deus, entendida como uma obra de justiça e justificação, implica em que o arbítrio não impere mais nas relações entre os homens, mas seja limitado, corrigido e reprimido em todo caso pelo direito.

III. D E FIN IÇ Ã O DA T EO LO G IA A primeira preocupação do teólogo é conhecer aquilo que deve fazer: antes de mais nada, deve compreender o que significa “ teologar” . Em que consiste sua atividade? Quais são os objetivos que deve alcan­ çar? Deve comentar a Revelação ou prolongá-la? Deve aprofundá-la, organizá-la ou defendê-la? E, para fazê-lo, de que instrumentos concei­ tuais e lingüísticos deve se utilizar? Barth colocou-se repetidamente essas questões 12. E das respostas a tais questões podemos extrair a sua definição de teologia. Para captar o sentido exato daquilo que ele entende por teo­ logia, é importante atentar para os títulos que ele dá aos seus trata­ dos de dogmática: não os chama simplesmente “ teologia dogmática” , como fazem habitualmente os teólogos católicos, mas sim “ dogmática cristã”, “ dogmática eclesiástica” ou “ teologia evangélica” . Com os termos “ cristã” , “ eclesiástica” e “ evangélica” , pretende indicar aspec­ tos essenciais de sua teologia. Vejamos sucintamente o seu pensamen­ to sobre cada um deles. 1. Dogmática cristã. — Com o termo “ cristã” , Barth quer dizer que nao se pode pensar teologicamente “ senão tendo d!ãnte~Bõs olHõs 12 Cf. Die Kirchliche Dogmatik 1/1, pp. 6ss; 1/2, pp. 815-867; I I I/2 , pp. 1-20; Dogmatik im Grundriss, pp. 73ss; Introduzione alia Teologia Evangélica, pp. 7-16; Eides Quaerens lntellectum, passim.


a figura viva de Cristo. Uma dogmática cristã deve ser cristológica em sua estrutura fundamental como em cada uma de suas partes, se é verdade que o seu único critério é a Palavra de Deus revelada e atestada pela Sagrada Escritura e pregada pela Igreja e se é verdade que essa Palavra de Deus revelada se identifica com Jesus Cristo” 13. “ A cristologia deve ocupar todo o espaço na teologia. . . vale dizer, em cada ramo da dogmática e da eclesiologia. . . A dogmática deve ser fundamentalmente uma cristologia e nada m ais” 14. Nessa preocupação de colocar Cristo no centro de toda a reflexão teológica está a nota mais inovadora e característica da obra de Karl Barth. Cristo constitui o ponto de vista no qual Barth se coloca para entender todo o resto da Revelação. “ As afirmações do Credo refe­ rentes a Deus Pai e a Deus Espírito”, declara o teólogo de Basiléia, “ devem ser interpretadas partindo desse ponto central, como uma explicação complementar. Toda vez aue os teólogos cristãos tentaram construir diretamente e em abstrato uma teologia do Deus criador erraram o caminho, mesmo empenhando-se com o máximo respeito e a~maior~senedade. O mesmo aconteceu qüãndò os teólogos tentaram edificar uma "TêoIõgÍãr~J5isêã5ã~lTõ~Tèrcêtf5~ artigo,'~~ümã~te'otogia do Espirito, da experiência espiritual, em oposição a teologia do Deus criador. . . Quando se enfrenta o problema da relação entre Deus e o Tiomem — problema que nunca deixa de nos estupefazer e do qual não podemos falar sem incorrer nos mais graves riscos de erro — , para ver e entender as coisas em sentido cristão, é preciso partir de Jesus Cristo e só dele. Só partindo da relação expressa pela pessoa de Jesus Cristo é que podemos compreender a relação entre a criação, a criatura e a existência, de um lado, e a Igreja, a redenção e Deus, de outro; e não certamente baseando-nos numa verdade geral ou em dados da história das religiões. Somente em Cristo podemos com­ preender o que significa: Deus acima do homem (primeiro artigo) e Deus com o homem (terceiro artigo). Eis porque o segundo artigo, a cristologia, é a pedra de toque de todo conhecimento de Deus, no sentido cristão do termo, o critério de toda teologia. ‘Diz-me qual é a tua cristologia e te direi quem és’. É aqui que os caminhos diver­ gem, é aqui que se precisam as relações entre teologia e filosofia e, por­ tanto, entre conhecimento de Deus e conhecimento do homem, entre revelação e razão, entre Evangelho e Lei, entre verdade divina e ver­ dade humana, entre mundo da alma e mundo do corpo, entre fé cris­ tã e fé política. É aqui que tudo se torna claro ou obscuro, nítido ou confuso. Estamos no centro e, por mais Inacessíveirmisterioso e difíciT que esse ponto central possa nos parecer, poderemos ainda afirmar: agora tudo se torna simples, plano, infantil” 15.

13 Die Kirchliche Dogmatik 1/2, p. 135. M Idem, 1/2, p. 975. 15 Dogmatik im Grundriss, pp. 73ss.


2 . Dogmática evancélica. — Com o termo “ evangélica” , Barth quer sígniticar que a intenção da dogmática “ é captar, compreender e exprimir em palavras o Deus ão Evangelho pelo caminho por ele mesmo indicado: aquele Deus que se anuncia no Evangelho, fala de si aos homens e age entre eles e sobre eles. Donde deriva que onde ele é objeto de uma ciência humana e, como tal, torna-se sua origem e sua norma, aí temos uma teologia evangélica” 16. A teologia evangé­ lica distingue-se de todas as outras porque tem consciência dos seus limites. Por isso, ela nunca pretende apossar-se do Deus do Evangelho. Este, com efeito, “ senhoreia não só os programas das outras teologias, mas também o da teologia evangélica, permanecendo o Deus que se revela e que é necessário sempre descobrir de novo, ao passo que nem mesmo a teologia evangélica tem-no à disposição ou pode colocá-lo à sua disposição. . . A teologia evangélica pode e deve pensar a partir da decisão e da ação em que o próprio D eus faz brilhar sua glória dian­ te de todos os deuses. Mas ela não pensaria e não falaria a partir disso se procurasse extrair daí qualquer glória para si, a exemplo de outras teologias. Bem ou mal, ela deve seguir seu caminho fundamentalmente e desde a origem, diversa de todas as outras. Mas deve consentir em ser vista e entendida na mesma linha das outras, sem participar, com o título de ‘filosofia da religião’, da tentativa de ser comparada e co­ locada em relação com elas. Ela não pode esperar sua própria justifi­ cação senão de Deus. Ela só pode dar glória a ele, não a si mesma” 17. Portanto, com o termo “ evangélica”, Barth não pretende assina­ lar um novo oLjêtcTda teologia nem uma' nova perspectiva teológica, masTsim uma atitude particular, uma~3Iipõsição interior do teólogo. O objeto e a perspectiva estio sempre em Cristo. E não poderia ser de outra maneira, dado que o D e u sd o Evangelho outro não é senão Jesus Cristo. Mas o D eus do Evangelho, o Cristo, é abordado com uma atitude especial, feita de Humildade, modéstia, respeito, temor. Na meditação teológica, a mente deve deixar-se guiar por ele; nunca pode pretender submetê-lo aos seus critérios, sejam os da história, da psicologia, da política, da metafísica ou da antropologia. Qualquer espécie de racionalismo é um atentado contra a teologia evangélica e deve ser drasticamente reprimido 18. 3. Dogmática eclesiástica. — Outro aspecto essencial da teolo­ gia é a “ eclesiasticidade ” . Segundo Barth, a teologia não é uma ta­ refa deste ou daquele cristão, mas sim da Igreja. Por quê? Para com­ preendê-lo, devemos partir do objetivo da teologia, que é o de interme­ diar a mensagem evangélica para os homens de uma dada época se­ gundo as categorias mentais e a linguagem própria daquela época. Na Igreja Católica, essa operação cabe em parte ao Magistério e em 16 Introduzione alia Teologia Evangélica, p. 9. 17 Idem, pp. 10-11. 18 Idem, p. 12.


parte à teologia: à teologia na medida em que cabe a ela procurar os novos meios de expressão; ao Magistério na medida em que é sua tarefa julgá-lôs e, depois, utilizá-los para a transmissão do querigma. Portanto, na Igreja Católica, a teologia é uma atividade confiada aos indivíduos e não à Igreja enquanto tal; já o Magistério é função pró­ pria da Igreja. Por isso, na Igreja Católica não se fala de teologia eclesiástica, ao passo que se fala de Magistério eclesiástico. Na Igreja Evangélica, porém, não existe nenhuma autoridade investida de poder magisterial e, conseqüentemente, não há nenhuma distinção entre Magistério e teologia. Por essa razão, a própria teolo­ gia assume caráter magisterial e, por isso, também eclesiástico. Karl Barth insiste muito sobre a natureza eclesiástica da teologia, sobretudo no prínseiro volume da Dogmatica Ecclesiastica, onde afir­ ma que a teologia >4 a prova a que a Igreja cristã se submete no que se refere~ão conteúdo de sua mensagem em relação a D eus; é o amö-'exame científico d a íg r e ja cristã em relação à linguagem teológi­ ca” . A Igreja deve submeter-se a essa prova, exame, já que sua missão é a pregação da Palavra de Deus expressa na Bíblia. Se a pró­ pria Bíblia já trai a Palavra de Deus, a pregação é ainda mais defor­ mação e contrafação daquilo que tenciona exprimir. Daí ser necessá­ rio que a Igreja, dada a sua responsabilidade em relação à sua missão de anunciadora, tenha o direito e o dever de debruçar-se con­ tinuamente sobre sua atividade, reexaminando-a, criticando-a, retifi­ cando-a. Assim, “ a dogmática não se interroga sobre aquilo que dis­ seram os~ Apóstolos~e Profetas, mas sim sobre aquilo que nós devemos dizer ‘com base nos Apóstolos e oos Profetas’ ” I9. Por que motivos é necessário que a Igreja realize essa verifica­ ção acerca da funcionalidade da comunicação da Palavra de Deus? Barth dá três motivos. O primeiro é que nem todas as categorias men­ tais e nem todas as expressões lingüísticas estão aptas a servirem_de veícuk) da Palavra dê Deus.TCT segundo é que nossa compreensão da” Palavra é sempre~Imutã3ãT~‘ Nós conhecemos, sim, aquilo que é per­ feito em si 'mesmo, mas o conhecemos somente através do prisma de um ato que, por~maÍs radical e existenciaTque jJossa sèrT permanece ' sempre 'uln ato hüm ãn i^que não oferece nenhuma garannã ho jju e -. 'se refere ¥ correta ãpropríação dã~Párávra, já que é falível. Por isso, "necessita "3ê "critica, de revisão e~"3é"controle contínuo A~força cria­ dora que a ação reveladora de Deus assume na dogmática é um pro­ gresso laborioso de uma compreensão limitada a uma outra com­ preensão limitada” 20. O terceiro motivo é que as formas conceituais 19 “Darum fragt die Dogmatik als solche nicht nach dem, was die Apostel und Propheten gesagt haben, sondern nach dem was ‘auf dem Grunde der Apostel und Propheten’ wir sagen sollen’’ (Die Kirchliche Dogmatik, 1.1, p . 1 5 ). E m a is a d ia n te : "Die Aufgabe der Dogmatik sei also die Untersuchung der kirchlichen Werkündigung hinsichtlich ihrer Uebereinstimmung mit dem Worte Gottes, hinsichtlich ihrer Angemes­ senheit an das, was sie verkündigt” ( p . 2 6 3 ) . 20 Idem, p . 14.


e lingüísticas estão sempre variando; com efeito, a revisão deve estar sempre em curso, mesmo porque “ a rê v lsa o dãTmiguagem só pode atingir uma fração mínima daquela que está em prática hoje, e daquela que será utilizada amanhã somente uma parte mínima poderá ser sub­ metida à revisão no devido tempo, e mesmo no que se refere a essa parte, tratar-se-á sempre de uma revisão provisória” 21.

IV. RELAÇÕ ES EN TRE T EO LO G IA E FILO SO FIA

Falando da necessidade da teologia, Barth abordou continuamen­ te a questão das relações entre teologia e filosofia. Portanto, a ação de verificação da funcionalidade das categorias mentais e das expres­ sões lingüísticas, que deve a teologia realizar, o que mais é senão a determinação da “ assuntibilidade” e da funcionalidade de uma dada filosofia como forma da Palavra de Deus? Mas Barth também enfrentou mais direta e explicitamente a questão das relações entre filosofia e teologia, já que seu protesto contra Harnack e o protestantismo liberal foi em definitivo um pro­ testo contra a submissão da teologia a uma filosofia particular: o idea­ lismo alemão. Os escritos em que ele examina mais atentamente essa questão são os seguintes: Fides Quaerens Intellectum; Das Wort Gottes und die Theologie; Grundfragen e Die Kirchliche Dogmatik (especialmen­ te em 1/2, pp. 815-867; I I I / 2 , pp. 1-20). Podemos resumir como segue o núcleo de tudo o que ele diz nessas obras. Antes de mais nada, é preciso repelir não só a solução do pro­ testantismo liberal, que reduz a religião a um momento da filosofia, mas Também a solução, que Barth identifica com a católica, que man­ tém uma continuidade entre filosofia e Revelação, vendo nesta apenas um outro plano do mesmo edifício. Essa doutrina dos “ dois planos” , segundo a teologia da Basiléia, é inadmissível porque incompatível com o princípio da “ infinita diferença qualitativa” . r^Ci-Cú'\ z No entanto, não sêTpode eliminar a filosofia. Esta, de resto, se­ ria uma pretensão absurda, porque todos nós usamos “ alguma espé­ cie de óculos” , caso contrário não poderíamos ver. Os escolásticos usavam os óculos da filosofia aristotélica, os Reformadores os óculos da filosofia platônica, os protestantes liberais os óculos da filosofia Icantiana. De fato, a mensagem cristã sempre foi expressa com cate­ gorias filosóficas desde o início. Todavia, em termos de direito, há incompatibilidade, inclusive conflito natural, entre filosofia e teologia. Não só há diversidade de objeto ( natural o da filosofia e sobrenatural o da teologia) e ~dè 21 Idem, pp. 87-88.


princípio cognoscitivo (razão para a filosofia e fé para a teologia), como ensinam os teólogos católicos, mas há também uma incompati­ bilidade efetiva, porque quando o conteúdo divino assume forma hu­ mana, há uma contradição entre forma e conteúdo. Antes da Revela­ ção, não temos nenhum pressentimento de tal estado de coisas. JSó nos tornamos conscientes da contradição no instante da Revelação, quanHõ~r>eus~nõs faz v e F que.nossa existência, em todas as suas es­ truturas e dimensões , está em contradição com~ e le / AT contradição é superada pela Encarnação de Deus na carne humarfa e em tudo aqui­ lo quê"pertence ao h om em linguagem , categorias mentais, conceitos científicos, etc. O teólogo deve continuar a encarnação iniciada por Deus. Mas essa operação é difícil e perigosa, porque aqueles conceitos que pre­ tende utilizar como forma da Palavra de Deus já podem ter um deter­ minado conteúdo que pode levar o teólogo a um modo de pensar contrastante com a Palavra de Deus. Para que isso não ocorra, deve deixar que o objeto revelado determine as suas formas conceituais e lingüísticas.- A Palavra não deve ser submetida a pressupostos huma­ nos, estes sim é~que devem estar sujeitos à Palavra. Obviamente, os pressupostos humanos não saõ de maneira alguma eliminados, mas o teólogo deve compreender que eles não entram na teologia como parte de uma síntese, mas sim como forma de um objeto dominante ( beherrschende Sache) e que tal forma não é por nada necessária. A teologia não se vincula a nenhuma filosofia particular; ela não deve prestar conta de suas afirmações a nenhuma filosofia; “ só deve pres­ tar contas diante de Deus em Jesus; concretamente: diante do Espí­ rito Santo, no seio da Igreja” 22. Esses são os critérios fundamentais que, segundo Barth, devem regular as relações entre filosofia e teologia. Uma fórmula digna de nota, que ele utiliza freqüentemente nes­ se contexto,/’ é a fórmula “ forma-conteúdo ”) A teologia, diz Barth, é constituída- por dois elementos, um formal ( a filosofia) e um material—Cã_JigygIação ). Os termos 1forma ” e “ matéria ” ( “ conteúdo ” ) são utilizados pelo teólogo da Basiléia segundo o sentido tradicional da filosofia aristotélica: a forma tem valor de princípio de especificação, ao pas­ so que a matéria tem valor de princípio potencial, suscetível de vá­ rias determinações. Mas é preciso atentar para o fato de que Aristó­ teles faz dois usos do conceito de forma. Utiliza-o para explicar tanto as modificações substanciais como as acidentais. Ora, quando Barth diz que a filosofia constitui a forma da Palavra de Deus, que signifi­ cado pretende dar ao termo “ form a” , o primeiro ou o segundo? Dadas as suas declarações inequívocas sobre a absoluta liberdade da Palavra de Deus diante de qualquer filosofia, está claro que en-

22 Grundfrageti, p. 24.


tende o termo “ form a” no sentido de revestimento acidental e não de co-princípio substancial. Tal distinção é extremamente importante, porque as funções da teologia são radicalmente diversas, respectivamente, se os conceitos de conteúdo e forma são interpretados num ou noutro senticta. Com efeito, se a filosofia é apenas uma forma acidental, resulta que: a) a filosofia não é princípio substancial da teologia e, portanto, a dis­ tinção entre forma e conteúdo extingue-se no evento revelador: “ A distinção entre forma e conteúdo não pode ser aplicada ao con­ ceito bíblico da Revelação. Por isso, lá onde, segundo a Bíblia, a Revelação é um acontecimento, não é admissível uma investigação pa­ ra estabelecer qual é o conteúdo” 23; b ) é possível ter uma cognição à parte, direta e imediata da Revelação (como é possível ter um con­ ceito da substância independentemente de todos os seus acidentes); c) o problema de traduzir o conteúdo de uma filosofia a uma outra não é árduo (como não são difíceis as transformações acidentais de uma substância já completa em si mesma). Se, ao contrário, a filosofia é forma substancial, então é impossível conhecer a Revelação prescin­ dindo dela, porque, nesse caso, a filosofia seria um componente es­ sencial da própria Revelação. Muitos teólogos recentes (e todos os teólogos radicais) não vêem na filosofia uma forma “ acidental”, mas sim “ substancial” da Reve­ lação. Daí serem suas transformações do cristianismo tão transtor­ nantes. Um importante corolário da doutrina barthiana sobre as rela­ ções entre filosofia e teologia e entre filosofia e Revelação é que a teologia, se fazemos abstração do seu conteúdo, outra coisa não é que pensamento humano, uma filosofia; diante do seu objeto, ela tem caráter hipotético, relativo e contingente. Por isso, não pode passar de uma ancilla; a domina permanece sempre a Palavra de Deus.

- V. O M ÉTODO DA A N A LO G IA DA FÉ vv; De que modo, com que método o teólogo deve tratar a Palavra de Deus para poder entendê-la e interpretá-la corretamente? A solução da questão metodológica está sempre implicada na solução da questão das relações entre filosofia e Revelação, sendo di­ versa à medida em que se vê na Revelação só uma espécie de filosofia, um plano do mesmo edifício ao qual pertence a filosofia, algo de dia­ metralmente oposto à filosofia óu, por fim, algo que, mesmo sendo totalmente diferente da filosofia, dignou-se no entanto a assumi-la em sua própria esfera. No primeiro caso, o método para entender e inter­ Die Kirchliche Dogmatik, 1/1, p. 351.


pretar a Palavra de Deus é o mesmo método da filosofia (podendo ser tantos quantas são as “ filosofias” ; no segundo, é um método análogo ao da filosofia (K . Barth o chama método da “ analogia do ser” ); no terceiro, é o método da dialética; no quarto, é o método que Barth chama de “ analogia da fé ” . Historicamente, os métodos mais freqüentes utilizados foram os da analogia do ser e da dialética; a analogia foi usada pelos teólogos católicos e a dialética pelos protestantes24. Num primeiro momento, quando professava os princípios da teo­ logia liberal, Karl Barth fez uso do método positivo. Este pretendia investigar a Revelação partindo daquilo que é reconhecível cientifica­ mente pela razão. Tal método coadunava-se perfeitamente com a concepção~protestante-liberal da Revelação, que a considerava como um momento preliminar da filosofia. Ao romper com a teologia liberal. Barth abandonou o método po­ sitivo, substituindo-o peto da dialética. Inicialmente, entendeu a dia­ lética no sentido kierkegaardiano de oposição e negação de tudo aqui­ lo que é humano, criado, por parte de Deus e como reviravolta total dos pontos de vista da razão e aceitação cega da palavra da Revela­ ção. Em seguida, porém, Barth passou a interpretar a dialética num sentido menos unilateral: passou a acentuar sempre menos o mo­ mento negativo e a valorizar mais o positivo. Então, sua dialética adquire os traços hegelianos típicos de perene movimento entre “ não” e “ sim ” por parte do teólogo que procura compreender a Pa­ lavra de Deus. Âo teólogo, diz admiravelmente Barth a propósito disso, “ não resta outra coisa que colocar continuamente em relação esses dois aspectos um com o outro, o positivo e o negativo: explicar o ‘sim’ com o ‘não’ e o ‘não’ com o ‘sim’, sem nunca se deter mais de um instante num rígido ‘sim’ ou ‘não’, isto é, não falar da majestade divina na Criação sem salientar muito claramente (lembrando-se de Rm 8) que, aos olhos humanos, Deus está totalmente escondido na natureza; não falar da morte e da caducidade da nossa vida sem levar em conta a majestade da outra vida que se descerra diante de nós exatamente na morte; não falar longamente da imagem divina no homem sem recordar, de uma vez por todas, que o homem que nós conhecemos é uma criatura decaída, da qual nos aparece mais evidente a miséria do que a glória; e, por fim, não falar do pecado sem indicar que não teríamos conhecimento desse pecado se ele não nos fosse perdoado” 25, í'\ * . */»«.?; <y* _ Contudo, na Die Kirchliche Dogmatik, sem renegar a dialética26, Barth considera que o equilíbrio entre os dois momentos se expressa mais adequadamente através da analogia da fé ( analogia fidei). 24 Sobre esse ponto, cf. B. M o n d i n , “ Analogy in Theology” in The New Catholic Encyclopedia, v. I. 25 Gottes Wort und die Theologie, Munique, 1924, pp. 171ss. Na Introdução à Teologia Evangélica (trad. ital.: Introduzione alia Teologia Evangélica), um dos últimos livros de Barth, podemos ler: “ A teologia perderia o seu


O que é a analogia? Por que é o método mais adequado para interpretar corretamente a Palavra de Deus? A essas questões Barth responde com admirável lucidez na seção 27 do volume I I / 1 de Die Kirchlicbe Dogmatik. A parte central da explicação é tão bela que não poderemos resistir à tentação de citá-la textualmente. Ei-lo: “ Nós sabemos ou acreditamos saber o que significam ‘ser’, ‘es­ pírito’, ‘soberania’, ‘criação’, ‘redenção’ . . . quando utilizamos esses termos para descrever a criatura. Sabemos também, ou pelo menos acreditamos saber, o que estamos afirmando quando, no domínio da criatura, dizemos ‘olho’, ‘orelha’, ‘boca’, ‘amor’ . . . Mas todas essas palavras têm o mesmo significado quando as atribuímos a Deus? Obviamente, não podemos afirmar isso; nem a verdade do nosso co­ nhecimento pode ser buscada numa semelhança desse tipo entre o nosso conhecimento e aquele que é conhecido. Uma igualdade dessa espécie significaria que Deus cessou de ser Deus e tornou-se uma simples criatura, ou então que o homem tornou-se Deus. . . Mas en­ tão devemos falar duma diversidade de conteúdo e significado quando atribuímos uma descrição à criatura por um lado e a Deus por outro? Quando atribuímos a Deus espírito, soberania, olhos, orelhas e boca. . . estamos entendendo algo diverso de quando usamos essas mesmas palavras em relação às criaturas? Devemos estar atentos àquilo que queremos afirmar se dissermos que sim a isso. Podemos estar movidos por um exagerado respeito pelo conhecimento de Deus, o qual, po­ rém, não funciona em seu louvor, mas arrasta à sua negação. Com efeito, uma tal diversidade significa necessariamente que não conhe­ cemos Deus; porque, se o conhecemos, devemos conhecê-lo com os meios que foram colocados à nossa disposição; caso contrário, não o conhecemos de maneira alguma. O fato de que o conhecemos quer dizer que, com os nossos conceitos, as nossas palavras e visões, nós não descrevemõs~aIgo absolutamente diverso dele, màs que com esses nossos nieios — os únicos à nossa disposição — descrevemos e signi­ ficamos o próprio Deus. Caso contrário, supondo uma completa di­ versidade, sem qualquer relação, não pode existir nem mesmo o pro­ blema do nosso conhecimento de Deus. Em tal caso, toda Revelação deve ser considerada como exclusivamente negativa, como uma re­ lação de exclusão mútua. E por isso não se poderia falar de nenhuma comunhão entre “ cognoscente ” e conhecido. A Revelação divina se­ ria só um esconder-se, não podendo ser concebida como Revelação. . . Nessa perplexidade, a teologia das épocas passadas aceitava o conceito próprio objeto e se arrumaria a si mesma se pretendesse ver, compreender e exprimir qualquer momento do evento divino de modo estático, ao invés de na sua constituição dinâmica — comparável a um pássaro em vôo e não a um pássaro pousado no galho — . se, ao invés de identificar e proclamar ‘os grandes feitos de Deus’, quisesse falar de um Deus coisificado e de uma coisa divina. Seja como for que se apresentem as coisas a propósito dessa questão para os deuses das outras teologias, o Deus do Evan­ gelho se subtrai a uma teologia que, em qualquer de seus setores, se tenha enrijecido nesse sentido. No que se refere ao Deus do Evangelho, a teologia evangélica não pode íenão ser e permanecer uma teologia viva e móvel” (pp. 13-14).


de analogia para descrever a comunhão em questão. Com esse termo, tanto a falsa tese da igualdade como a falsa tese da diversidade eram atacadas e destruídas, mas os elementos de verdade contidos em cada uma delas eram evidenciados. Ao invés de igualdade e disparidade, ‘analogia’ significa semelhança, isto é, correspondência e acordo par­ cial “(isto é, de maneira a limitar tanto a igualdade como a dispari­ dade entre dois ou mais seres diversos). É um termo pesado, dado o seu uso em teologia naturai, e por isso necessita de algumas clari­ ficações. Mas, nesse ponto, é inevitável” 21. A argumentação de Barth é duma clareza extrema. Parte da constatação de que nós usamos as mesmas palavras, como, por exemplo, olhos, boca, ser, espírito. . . tanto para a criatura quanto para Deus. Ademais, nós acreditamos saber aquilo que pretendemos dizer não só quando as aplicamos à criatura como quando as aplicamos a Deus. Segundo Barth, essa situação não pode ser expressa justamente nem pela univocidade (já que entre Deus e homem não existe a paridade suposta pela univocidade), nem pela equivocidade (porque a dispari­ dade suposta pela equivocidade torna impossível qualquer conheci­ mento de Deus, o que está em flagrante contradição com o fato de que nós falamos tanto do homem como de Deus; ora, não se pode falar de algo que absolutamente não se conhece). Portanto, é inevitá­ vel a conclusão de que o único método próprio da teologia é a ana­ logia. Mas Barth preocupa-se em esclarecer depois que a analogia que ele pretende adotar como método teológico não é a analogia entis dos católicos, mas sim a analogia fidei-, “partindo da verdadeira reve­ lação de Deus, nós somos impulsionados à palavra ‘analogia’ ” . De­ clarando que a analogia é o critério da linguagem teológica, “ nós não confiamos num poder cognoscitivo e numa correção imanente em nós ou em nossa palavra. Com efeito, nós sabemos que ela não pode ter tal poder. Nós confiamos, porém, na verdadeira revelação divina e, portanto, também nas Palavras de Deus. Em virtude da revelação divina, o homem e a sua palavra não podem ser abandonados a uma fundamental impiedade ” . Por que razões a analogia da fé é aceitável e, ao contrário, a analogia ~Ho ser não q é? A analogia do ser — que considera poder dizer algo de Deus, de sua natureza, dos seus atributos, partindo do ser das criaturas — é repelida por Barth em virtude da infinita diferença qualitativa que separa Deus de suas criaturas e, portanto, também do conhecimento e da linguagem do homem. Na seção 26 do volume I I / 1, Barth con­ testa vigorosamente a doutrina da Igreja Católica, que, segundo o teólogo da Basilgia, ensinaria que a razão natural pode conhecer Deus como Senhor, Criador, Reconciliador e Redentor. Barth sustenta que nós não possuímos nenhuma analogia que nos possa tornar acessíveis 27 Die Kircbliche Dogmatik, I I / l , seção 27, pp. 224-225.


a natureza e o ser de Deus como Senhor, Criador, Reconciliador e Redentor. Nenhuma das idéias que nós temos de “ senhor” e “ senho­ ria” etc. poderá jamais nos fazer chegar a uma idéia tal, mesmo que a estendamos ao infinito. Só quando nós conhecemos a senhoria, a criação, a reconciliação e a redenção de Deus é que nossas idéias de senhoria, criação, reconciliação e redenção podem ter conteúdo e, em seus limites, existência. Assim, “ se nós conhecemos Deus como Se­ nhor (Criador, Reconciliador e Redentor), não é porque conheçamos outros senhores e senhorias. E tampouco é verdadeiro que o nosso conhecimento de Deus como Senhor deve-se, em parte, ao nosso co­ nhecimento de outros senhores e senhorias e, em parte, à revelação. O nosso conhecimento de Deus como Senhor deve-se total e exclusi­ vamente à revelação de D eus” . Segundo Barth, só a analogia da fé é um método teológico acei­ tável, porque^ de acordo com o teólogo da Basiléia, só a revelação pode fornecer acTTiomem conceitos análogos de Deus: “ À pergunta de cõmcTcKêgãmos a conhecer Deus por meio do nosso pensamento e da nossa linguagem, devemos responder que, sozinhos, nós nunca po­ demos chegar a conhecê-lo. Ao contrário, isso só acontece quando a graça da revelação de Deus nos alcança, a nós e aos instrumentos do nosso pensar e do nosso falar, adotando-nos a nós e.a eles, perdoando, salvando e protegendo a nós e a eles. Só nos é concedido e permitido utilizar, e numa utilização bem sucedida, os instrumentos colocados à nossa disposição. Não somos nós que criamos esse êxito e tampou­ co os nossos meios, mas sim a graça da revelação de D eus” . Mas de que modo um conhecimento tão exclusivamente radicado em Deus pode ser chamado, verdadeiramente, conhecimento do homem? Barth sempre esteve profundamente convencido de que só se pode assegurar a realidade do homem e do seu conhecimento religio­ so resguardando a realidade de Deus e da revelação. No entanto, per­ cebeu também que uma ênfase exagerada no elemento divino acaba por desembocar numa ameaça ao elemento humano. Por isso é que ele preocupa-se amiúde em dar consistência a esse elemento. Por exemplo, no problema que estamos examinando, Barth afirma que são exigidas duas condições, Deus por um lado e o homem por outro: “ a possi­ bilidade do conhecimento de Deus funda-se antes de mais nada em Deus, na medida em que ele mesmo é a verdade: em sua Palavra, por meio do Espírito Santo, ele se dá ao homem para ser conhecido como a verdade. Mas essa possibilidade também se encontra no ho­ mem, na medida em que este, através do Espírito Santo, torna-se o objeto da benevolência divina e, portanto, torna-se partícipe da ver­ dade de D eus” . A cognoscibilidade de Deus exige não só uma disposição de ser conhecido por parte de Deus, mas também uma disposição de receber esse conhecimento por parte do homem: trata-se, por conseguinte, do conhecimento de Deus por parte do homem. Se não houvesse 2 • O s grandes te ó lo g o s ...

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nenhuma disposição no homem, não poderia haver nenhum conhe­ cimento de Deus. Haveria somente um conhecimento de Deus por parte do próprio Deus. Isso, porém, nunca pode tornar-se uma ques­ tão de estudo para o homem. E, no entanto, a disposição do homem a conhecer Deus, para Barth, como já vimos, não pode ser algo independente, autônomo, fundado em si mesmo ou no homem, mas sim em Deus. É uma dis­ posição recebida, emprestada pela fonte de toda disposição, vale dizer, por Deus. Por isso, Barth conclui que a Palavra não pode ser Conhecida pelo homem, mas apenas reconhecida, e issõ~na medida em que ela mesma se~3á*~ã~reconhecer e ouvir, nunca à mercê do sujeito “ cognos­ cente”, mas livre até mesmo quando é conhecida e ouvida: “ o co­ nhecimento que o homem pode ter da Palavra divina não pode" con­ sistir senão no reconhecimentoL e o reconhecimento não pode tornar­ -se real e compreensível senão pela ação dessa mesma Palavra” 28. Como se vê, está sempre presente o princípio geral que inspira a teo­ logia barthiana: o movimento é sempre do alto para baixo, de Deus para o homem, nunca no sentido inverso. Além dos conceitos para pensá-lo, o homem também recebe de Deus as palavras para nomeá-lo ./O s argumentos em que "Barth baseia essa sua convicção são os q u e seguem. 1. Deus criou a linguagem humana para si, isto é, para que o homem a utilize antes de mais nadcTpara filar dele: “ Quando Deus, na revelação, nos autoriza e ordena fazer uso de nossas visões, con­ ceitos e palavras, ele não faz algo, por assim dizer, inapropriado, como se, para serem aplicados a ele, as nossas visões, conceitos e palavras devessem ser alienados do seu sentido e uso próprio e original. Não, o que ele faz é retomar algo que originariamente pertencia exata­ mente a ele. . . As criaturas que são justamente o objeto de nossas visões, conceitos e palavras são efetivamente criadas por ele. E tam­ bém o nosso pensamento e a nossa linguagem, precisamente na sua aptidão a exprimir esse objeto, são criados por ele. . . Nossas pala­ vras não são nossa propriedade, mas dele. E, dispondo delas como de sua propriedade, ele as coloca à nossa disposição. . . Por exemplo, as palavras “ pai” e “ filho” não são primeira e propriamente verda­ deiras no nosso pensamento e em nossa linguagem. . . De um modo oculto e incompreensível para nós, mas na prioridade incontestável que o Criador tem sobre a criatura, o próprio Deus é o Pai e o Filho. Já que Deus é o criador da linguagem e a criou antes de mais nada para o seu próprio uso, ele permanece sempre senhor de sua palavra: ele não está preso a ela, mas sim ela a ele” 29.

28

Idem ,

1/1, p. 194.

29 Idem, I I / l , pp. 228-229.


2. O pleno significado de nossas palavras só se verifica em Deus. Tomemos, por exemplo, a palavra “ pessoa” . Segundo Barth, o pro­ blema não é saber se Deus é uma pessoa, mas sim saber se nós o somos. Ousaríamos afirmar que há entre nós homens que se possa dizer uma pessoa no sentido completo da palavra? Já Deus, ao con­ trário, é realmente uma pessoa, realmente um sujeito liberto e pen­ sante. 3, Por fim, quando D eus, através de Jesus, seu representante, santifica o ser dos homens na esfera. visível dos eventos humanos, associando-os à Igreja, então ele santifica também a sua linguagem, transformando-a na linguagem divina, tal como é encontrada na Igreja. " Por todas essas razões, Barth considera poder afirmar que Deus investiu a linguagem humana da capacidade de falar dele. Como se vê, segundo o teõlogo d a Bã s ilé ia, nós estamos certos dessa capacidade não em virtude duma especulação TÍTõsófica. baseada nas aptidões naturais do homem, mas cm conseqücncia do lato da Revelação: só o fato de que Deus, na Revelação, concedeu à lin­ guagem Rumana a capacidade de exprimir idéias divinas é que auto­ riza o homem a considerar que pode falar de Deus sem dizer uma blasfêmia ou cometer uma impiedade. Não é o exame da natureza da linguagem humana, das suas propriedades e possibilidades, que po­ de levar a essa descoberta. Um tal exame nunca poderia dizer nada a esse respeito. De resto, se o homem pudesse descobri-lo por si mesmo, não mais seria uma graça de Deus. Até aqui, Barth mostrou a validade do método da analogia fidei tanto no plano gnoseológico como no plano semântico, mas ain­ da não estabeleceu em que medida. Enfrenta esse problema sobretu­ do nas seções 5 e 27 da Die Kirchliche Dogmatik. A questão a resolver é a seguinte: que poder a analogia da fé dá aos nossos conceitos e às nossas palavras?.Coloca-nos em concííçòes dê^cõntiècer Deus e nomealxj abertamente, perfeitamente, ab­ solutamente? Ou no-lo desvela e comunica só de maneira obscura, imperfeita e incompleta? Segundo Barth, e nisso ele se coloca nas mesmas posições de são Tomás e de outros teólogos católicos, a analogia da fé garante aos nossos conceitos e às nossas palavras apenas um poder limitado, lmperfefto e misterioso. E a razão é óbvia: o simples fato de que Deus criou as idéias e as palavras antes de mais nada para si mesmo e só secundariamente para o homem prova suficientemente que só Deus pode entendê-las plena e claramente. Já que o homem permanece sem­ pre homem, mesmo depois da Revelação, não lhe é nunca possível compreender plenamente a Palavra de Deus, nem penetrar profun­ damente em seus conceitos, nem captar todo o significado quando eles são aplicados a Deus. Todos os conceitos e todas as palavras, quando são utilizados por Deus ou para Deus, permanecem sempre obscuros, velados, misteriosos, ambíguos: “ A Palavra de Deus é diver­


sa de todas as outras palavras e a sua ação é diversa de todas as outras ações. . . De resto, a Palavra de Deus seria verdadeiramente sui generis se nós pudéssemos circunscrever o seu suum genus e de­ terminar-lhe um lugar fix o ? . . . A Palavra de Deus é e permanece sempre a Palavra de Deus, livre, irredutível a esta tese ou àquela an­ títese. . . Só Deus se compreende também em sua Palavra. O con­ ceito que nós temos de Deus e de sua Palavra só pode ser um indício da nossa compreensão. Por isso e nesse sentido é que nós falamos da linguagem de Deus como de um mistério” . Os conceitos e os nomes de Deus são misteriosos também por uma outra razão: a “ mundanídade” (Weltlichkeit) de que se cobrem quando são comunicados ao homem. “ Quando Deus fala ao homem, esse fato nunca é tão separado dos outros acontecimentos que estes possam ser sem dúvida excluídos por ele” . Deus deita seus conceitos e suas palavras em conceitos e palavras que já têm uma configuração mundana: ele opera no plano cognoscitivo e semântico uma encarna­ ção igual àquela que opera no plano ontológico em Jesus Cristo. O contraste entre o aspecto mundano e o divino no conhecimen­ to e na linguagem teológica, que caracteriza a analogia da fé, é ilus­ trado por Barth com a mesma fórmula utilizada por ele para ilustrar as relações entre filosofia e Revelação: a fórmula “ forma-conteúdo” . Também aqui, como antes, o conteúdo é divino, enquanto a forma é mundana. Õs conceitos e as palavras, considerados em sua forma, são sempre e só palavras e conceitos humanos e, portanto, mundanos. Já o seu conteúdo é o concretissimum, o próprio Deus. Entretanto — e essa é uma observação importantíssima — o homem, por si só, nun­ ca conseguirá separar a forma do conteúdo, distinguir o significado divino sob a forma humana. E nem mesmo a fé pode fazê-lo, porque a fé, segundo Barth, consiste precisamente em ouvir o conteúdo di­ vino da Palavra de Deus, se bem que nada mais que a forma munda­ na seja discernivel. Concluindo, a analogia da fé é um dom pelo qual Deus comu­ nica “"ãcPhomem conceitos e palavras que o habilitam a conhecê-lo e nómeá-fo, mas sempre dentro dos limites impostos pela infinita dife­ rença qualitativa, pela qual Deus permanece sempre essencialmente incognoscível e inefável.-

VI. A PALAVRA D E DEUS Visto o método, passemos agora a considerar o objeto da teo­ logia barthiana._ Segundo Karl Barth, o objeto da teologia dogmática é a Palavra de Deus. Mas o que entende ele por “ Palavra de D eus” ? Como também para Lutero e Calvino, para Barth a Palavra tem um significado mais amplo do que aquele da Sagrada Escritura. Para o


teólogo da Basiléia, esta não é mais que um testemunho, um simples sinal da Palavra de Deus revelada 30. Para- Barth. _a Palavra de Deus é todo o conjunto da automanifestacão divina. Contrariamente à teologia católica, que, quando tra­ ta da Palavra de Deus, tende a ficar no plano semântico da Revela­ ção (no plano da Escritura e da pregação), Barth dá à expressão “ Pa­ lavra de D eus” uma tal densidade a ponto de fazê-la abarcar também toda a dimensão ontológica da Revelação. A automanifestação de Deus é absolutamente extraordinária e original: “ Como a realidade do Criador se distingue de‘ toda outra rea­ lidade pelo fato de que ele e somente ele existe para si, isto é, origi­ nariamente, assim sua automanifestação se distingue da de qualquer outro ser e espírito criado, pelo fato de que ele e somente ele pode manifestar a sua existência autenticamente, veridicamente, eficaz­ mente, documentando assim o seu ser em sua revelação” 31. Segundo Barth, a automanifestação divina assume três aspectos ou formas í Gestalten \ : a revelãrlo^a Bíblia e a pregação. A revelação é o acontecimento através do qual Deus visitou o seu povo, fez-se um de nós, escondendo sua glória em nossa miséria. Numa palavra, o .acontecimento da Polavra-feita-carne, da revelação em Cristo. Na revelação, a Palavra de Deus manifesta-se imediata­ mente, crno ato do seu ser temporalmente pronunciada (illic et tunc visum est De o ) ” 32. A Bíblia é o atestado da revelação da Palavra ocorrida. A Bíblia é “ o instrumento concreto mediante o qual a Igreja pode recordar a revelação" de "Deus ocorrida e ser solicitada, autorizada e guiada /para a espera da revelação futura^e, com essa, para a pregação/’ 33. A pregação, por fim, é o anúncio da revelação ocorrida que é feito pela Igreja. Ela, por isso, se subordina essencialmente à Palavra révèlaaa, que forma a sua base, o seu critério, o acontecimento mila­ groso em que ela encontra o seu constituinte essencial. A pregação tem um caráter absolutamente relativo e vicário. Esse caráter “ subtrai a Palavra de Deus a qualquer pretensão de posse por parte da Igreja, da maneira — diz Karl Barth — como ocorre no Catolicismo. Para evitar esse perigo, a palavra pregada deve submeter-se a Cristo, ba­ seando-se num acontecimento que ligue a pregação a um fato externo, a uma Palavra já pronunciada, a uma revelação já verificada, da qual a pregação seja uma recordação fiel {Erinnerung). A Igreja deve reco­ nhecer nele uma autoridade que lhe é externa, concreta e histórica, que se exprime sob a forma de um testemunho. E este é a Palavra escrita, isto é, aquele complexo de Escrituras que, enquanto trazem

30 31 32 33

Idem, 1/1, pp. 114ss. Idem, I I I / l , p. 399. Idem, 1/1, pp. 89-124 Idem.


o eco da primeira pregação eclesiástica, apostólica e profética, cons­ tituem a norma de toda pregação ulterior” 34, Essa realidade complexa e ao mesmo tempo tão simples que é a Palavra de Deus, em cada uma de suas formas, é ao mesmo tempo alocução, ato e mistério. É alocução na medida em que Deus fala, is­ to é, se exprime através de uma linguagem: não há Palavra de Deus sem uma sua manifestação física, seja ela a pregação ou o sacramento, a palavra escrita ou a natureza humana do Verbo. É ato na medida em que a palavra divina é ela mesma ação que se verifica em três momentos qualitativamente diversos mas intimamente conjugados: o momento divino que se protrai no tempo de Jesus Cristo, o momento da profecia e do apostolado e o momento da Igreja e da pregação em torno do testemunho profético-apostólico. Por fim, é mistério na medida em que a teologia nunca pode tornar-se dona do seu objeto. Como Deus, também a sua Palavra conserva tal inefabilidade que ne­ nhuma mente de teólogo jamais conseguirá sequer arranhar. E aqui Barth aplica a Deus uma série de atributos que a teologia clássica habitualmente reservava a Deus: simplicidade, invisibilidade, ima­ turidade, espiritualidade, transcendência. Essa é a substância do ensinamento barthiano sobre a natureza e os aspectos da Palavra de Deus. Trata-se, obviamente, de uma sín­ tese extremamente pobre e esquelética sobre o objeto específico e constante da teologia barthiana. A Palavra de Deus, com efeito, é o ângulo escolhido pelo teólogo da Basiléia para compreender e explicar todos os mistérios do Cristianismo. Como bem diz Brunero Gherardini: “ O pensamento barthiano, se essa é uma expressão barthiana per­ mitida, está todo na meditação sobre a Palavra de Deus. Deus e sua Palavra são dois termos da mesma realidade, sendo a Palavra toda a substância divina, a sua personalidade, a sua liberdade, a sua deci­ são, a sua intencionalidade, a sua espiritualidade. E isso de modo originário e constitutivo, absolutamente soberano, independente do mundo e do homem. Um Barth diferente, talvez surpreendido a filo­ sofar sobre a crise e o átimo, sobre a situação limite e o salto, sobre a decisão e o existente, não passaria de uma sombra evanescente ou mesmo irreal do verdadeiro Barth, cujos méritos e cujos limites devem ser buscados em seu papel de teólogo da Palavra de D eus” 35.

V II. DEUS COMO TO TA LM EN TE OUTRO E COMO PAI Em torno da Palavra de Deus, Barth desenvolve um imenso complexo doutrinário. A fim de dar ao leitor uma idéia menos inexata do seu pensamento, abordaremos suscintamente as suas doutrinas so­ 34 B . G h e r a r d i n i , L a Seconda Riforma, v. I I , p. 131. 35 G h e r a r d i n i , idem, p p . 138-139.


bre Deus, Cristo e a Igreja, todas elas tão típicas de sua teologia que esta poderia também ter sido chamada “ teologia do totalmente O utro” , “ teologia cristocêntrica” ou “ teologia eclesiástica” . Vejamos antes de mais nada a sua doutrina sobre Deus. Em sua doutrina sobre Deus, mais que em qualquer outra, mos­ tram-se bem visíveis as mudanças, as transformações, o desenvolvi­ mento e a maturação do pensamento barthiano. Durante longos anos, a teologia de Barth teve como leitmotiv a soberania de Deus, a sua absoluta transcendência, a sua total “ alteridade” . Contra o liberalismo teológico, que degradara Deus a um ser qualquer, que a razão podia manipular facilmente, Barth jiunca se cansa de proclamar a soberania de Deus, tanto no ser como no a g i ^ no ser: a distância entre Deus e as criaturas é tão infinita que ele é tudo e a criatura n a d a /n o agir: Deus faz tudo, razão pela qual não há nem cooperação nem liberdade de ação na criatura, No Co­ mentário à Carta aos Romanos, ele escreve: “ Deus é Deus, sendo to­ talmente diverso de qualquer realidade humana, inclusive da cultura e da religião do homem” . E, em 1922, numa carta a um amigo: “ Nun­ ca deixes de afirmar: ‘Deus é Deus’. Não te contentes em pregá-lo. . . Aprende a afirmar que ‘Deus é D eus’ com precisão teológica, ou seja, com toda a exultação que a acompanha: ‘Jesus é o Cristo’ ” . Com base no conceito de Deus como totalmente Outro, Barth constrói a teologia do Der Rõmerbrief, dos Prolegomena e também dos primeiros volumes de Die Kirchliche Dogmatik, uma teologia totalmente dominada pela preocupação de deter as ambições da razão de subir até Deus. Do conceito de total “ alteridade” de Deus deriva a negativa sempre categórica de Barth à teologia natural, tanto do tipo católico como do tipo brunneriano 36. Entretanto, quando Barth começa a compreender, o significado da analogia tidei. dá-se conta de que na ^teologia centrada exclusiva­ mente na “ alteridade” há o perigo de cair no erro oposto do liberalis­ mo. Então, começa a dar relevo a um outro aspecto da mensagem evangélica, o da paternidade e humanidade de Deus. Como se efe­ tuou essa mudança no seu pensamento? A propósito, ele nos deixou um eloqüente testemunho, que nos é lícito citar textualmente. Em uma conferência pronunciada em Aarau sobre o tema “ A Humanidade de D eus”, Barth afirma, entre outras coisas: “ Gostaria de dar à minha exposição o caráter duma prestação de contas, examinando as tarefas que estão diante de nós e levan­ do em conta a virada realizada em seu devido tempo. . . “ Em linha geral, ou, pelo menos, em todos os seus expoentes mais representativos, a teologia evangélica degenerara em formalismo religioso, tornando-se, portanto, antropocêntrica e em certo sentido 36 A propósito, cf. o célebre Nein! Antwort an E. Brunner, Munique, 1934.


humanista. . . Não se pode negar: o homem fora elevado desmedi­ damente, em prejuízo de D eu s. . . “ Mais fundamental ainda para a origem do nosso movimento foi a descoberta de que o tema central da Bíblia — a despeito da exegese de que provínhamos, tanto a de orientação crítica como a moderada — não concerne à religião do homem, à sua moral religiosa, e muito menos à essência divina inserida em sua pessoa, mas exatamente à divindade de Deus. . . “ Todavia, por melhores que fossem as nossas intenções, essas coisas foram ditas de forma um pouco dura e verdadeiramente ca­ rente de humanidade, quando não, por vezes, em tom um pouco heré­ tico. Fizemos tabula rasa — e de que maneira! Tudo aquilo que parecia mistificador, moralista, pietista, romântico ou que tivesse sabor de idealismo foi considerado suspeito e proscrito, ou então sujeito a tais reservas que na prática se constituía numa rejeição. E fre­ qüentemente se reagiu com risos zombeteiros, quando teria sido mais oportuno um simples sorriso, triste talvez, mas afetuoso. O conjunto do movimento não se assemelhava talvez mais a uma execução em massa do que à boa nova daquela ressurreição a que ele mesmo as­ sim tendia?. . . “ Penso que estávamos errados exatamente lá onde tínhamos ra­ zão; isto é, estávamos bem longe de saber desenvolver de modo coe­ rente e completo esse novo conhecimento da divindade de Deus. . . “ Deus não revela a sua essência, a sua divindade, no vácuo de uma autÓ-suHcíência divina; ao contrário, manifesta-se no existir, no falar, no agir, como companheiro do homem ( companheiro, en­ tenda-se, superior). Àquele que age de tal modo é o Deus vivo. E a liberdade com que age é a sua divindade, que também, como tal, tem o caráter duma humanidade. Dessa forma positiva, e só dessa for­ ma, é que convém interpretar a divindade de Deus em contraposição à teologia do passado, da qual, porém, não se deve repelir irrefletidamente aquela parte de verdade que não pode ser-lhe negada, mes­ mo quando tenha sido demonstrada claramente a sua fraqueza. Enten­ dida corretamente, a divindade de Deus inclui, portanto, a sua hu­ manidade” 37, Barth deu um relevo sempre maior ao aspecto da paternidade e humanidade de Deus nos últimos volumes da Die Kirchliche Dog­ matik e em outras obras mais recentes, fazendo ver que se a divinda­ de de Deus implica a sua humanidade, nada daquilo que é humano e terrestre lhe é estranho: o cosmo inteiro é obra sua e preciosíssimo objeto do seu amor; por isso é que ele não hesitou em sacrificar-se em Cristo, a fim de reconduzi-lo à sua totalidade. “ O Deus do Evan­ gelho” , escreve Barth na Introdução à Teologia Evangélica, “ não é um Deus solitário, autárquico e fechado em si mesmo; não é um Deus ‘absoluto’ (isto é, separado daquilo que não é ele). É certo 37 C ita d o e m C a s a lis , o . c ., p p . 62-63.


que ao lado dele não há nada que possa limitá-lo e determiná-lo. Mas ele não é nem mesmo prisioneiro de sua própria majestade, nem é oErígado ã ier somente o ‘totalmente outro’ . Como é em si o uno na unidade da sua vida,, como Pai, Filho e Espírito Santo, assim, em rélação à realidade distinta de si, é de jure e de facto livre de estar não..só ao lado ou acima do homem, mas também perto dele e com ele, sobretudo de ser Deus para ele, não só como seu senhor, mas também como seu pai, irmão e amigo, como seu Deus, isto é, do homem. . . Um Deus que se limitasse a dominar o homem, permane­ cendo afastado e estranho a ele, numa divindade sem humanidade, não poderia ser senão um Deus dum “ desevangelho” , dum Não des­ denhoso, judicante e mortífero; um Deus que o homem deveria te­ mer e do qual deveria fugir, se pudesse; um Deus que ele preferiria não conhecer, não podendo satisfazê-lo. . . O Deus que é o objeto da teologia evangélica é excelso como é humilde: excelso exatamente na sua humildade. Assim, o seu inevitável Não está incluído no seu Sim ao homem. Assim, aquilo que ele quer e opera para o homem e com o homem é uma obra de socorro, salutar, ordenadora e, portanto, portadora de paz e alegria” 38.

V III. O CRISTO CEN TRISM O A teologia barthiana muitas vezes é chamada de cristocêntrica. O próprio Barth diz ter operado, em sua dogmática, uma concentra­ ção cristológica 39. Mas_o cristocentrismo será compatível com o objeto de sua teo­ logia, a PãTavfa de D eus, e o seu ponto de partida, a “ alteridade” divina? Não se trataria de motivos diversos e contrastantes? De ma­ neira alguma, pois “ a Palavra de Deus outra coisa não é que o pró­ prio Jesus Cristo” e a “ alteridade” divina, por sua vez, está subs­ tanciada na pessoa de Jesus. Jesus Cristo é a única 9ue chama o homem, comoTiomem, à vida,, transferíndo-o para o reino da vida e da li­ berdade diante de Deus e em Deus. Portanto, a função primária da teologia é falar de Deus falando de Jesus Cristo como a sua palavr^críãdõra,' redentora, reveladora, isjò e,~falando da humanidade de Deus. Quanto à “ alteridade ” . entre “ só D eus” e “ só Cristo” há um nexo'Jogico essencial, pois o “ reconhecimento da divindade_de Deus constitui o fundamento do reconhecimento da sua humanidade” . Des­ se modo, Barth inverteu a trajetória que os protestantes liberais ha­ viam imprimido ao discurso teológico. Segundo eles, a teologia partia 58 lntroduzione alia Teologia Evangélica, p p . 14-15. 39 B a r t h , "Parergon" in Evangelische Theologie, 1948,

p . 272.


do homem e ascendia a Deus através de Jesus Cristo. Já segundo o teólogo da Basiléia a teologia parte de Deus e através de Jesus Cristo desce até o homem. Fazendo valer o princípio do cristocentrismo, JBarth coloca to­ dos os mistérios^ revelados em torno da pessoa de Cristo e faz ver qué eles só se tornam inteligíveis para o homem quando são relacio­ nados a ele e iluminados por sua luz. Antes de mais nada os mistérios de Deus: Cristo revela que Deus “ é Pai, Filho e Espírito Santo, Criador, ^Reconciliador e Reden­ tor, o Altíssimo, o único Senhor verdadeiro, cujo conhecimento ocorre nessa inteireza ou não ocorre absolutamente. Com efeito, não há uma essência de Deus aquém ou além de tal inteireza; tudo aquilo que é possível conhecer e dizer sobre a essência de Deus só pode ser uma explicação ulterior de sua inteireza” 40. Depois, os mistérios do homem, de sua criação e eleição: Cristo é o protótipo ( U rbild) pelo qual o homem foi modelado; Cristo é, ainda, o primeiro dos eleitos e dos predestinados, que tornou possível a nossa eleição e a nossa predestinação. É no amor de Deus por Cristo, seu Filho, que se baseia o amor que ele tem por nós: “ Em vista desse seu Filho, que devia tornar-se homem e portador dos pecados dos homens, Deus amou o homem e, com o homem, todo o mundo desde a eternidade, antes ainda de criá-los ” 41. Até agora, vimos a doutrina barthiana das relações de Cristo com os outros mistérios, vale dizer, o cristocentrismo; agora, resta­ -nos para ver a doutrina sobre o mistério de Cristo. Quem é Cristo para Karl Barth? Para Barth, ele é essencialmente o reconciliador:. “ A eterna Palavra de Deus escolheu essência e existência humana, saritIHcou-a e assumiu-a até Fazer dela uma só realidade consigo mes­ mo, de maneira a tornar-se,Enquanto verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a Palavra da reconciliação dita ao homem por D eus” 42. Barth não considera o homem filosoficamente, mas sim teolo­ gicamente, assim como a Sagrada Escritura o dá a conhecer. Dela resulta que o homem foi criado por Deus “ para estar com ele” ( mit Gott zusammensein) , para ser seu companheiro, sócio da sua aliança. Porém o homem pecou, ou seja, traiu Deus, abandonou-o, sepa­ rou-se dele. Essa ruptura, essa dissociação, danificou a natureza hu­ mana naquilo que ela tinha de mais precioso, razão pela qual corrom­ peu-a profunda e totalmente, Para reintegrar a natureza humana, para restabelecer a aliança original entre Deus e o homem, o filho de Deus fez-se homem, ou seja, fez sua a sorte do homem, não obstante esse mesmo homem o tenha renegado “ como criador para perder-se como sua criatura” . 40 Die Kirchliche Dogmatik, I I / 1, pp. 41 Idem, I I I / l , pp. 53-54, 42 Idem, 1/2, p, 134; o grifo é meu.

55-56.


Com a Encarnação, o Santíssimo participa da condição do homem de­ caído, aliás, coloca-se em seu lugar, de maneira a ser ao mesmo tempo o juiz do seu pecado e aquele que, tendo vicariamente assumido suas responsabilidades, faz-se a si mesmo o julgado: “ Já que era homem como nós, encontrou-se na condição de ser julgado enquanto homem. Como Filho de Deus e Deus ele próprio, tinha toda a competência e autoridade para fazer-se justiça. E, ademais, enquanto juiz divino em meio a nós, tinha toda a autoridade, no seu próprio abandonar-se ao juízo em nosso lugar, para exercer a justiça da graça, para declarar­ -nos verdadeiramente livres da acusação, do juízo e da pena, em vir­ tude daquilo que ele teve que experimentar em nosso lugar, e para nos salvar do iminente perigo de nos perder. Colocando-se com divina liberdade no caminho da obediência, não vacilou em fazer sua, nesse mesmo abandono, a vontade do seu Pai. Fazendo isso por nós, as­ sumindo a si, para que a justiça se cumprisse inteiramente, a nossa acusação, o nosso juízo e a nossa pena, sofrendo portanto em nosso lugar e por nós, realizou a nossa reconciliação com D eus” 43.

IX . A IG R E JA A ação reconciliadora de Cristo, que conclama o homem a uma nova vícla como liiho dê' Deus~ cKSma-õ, ao mesmo tempo/ a fazer parte da Igreja, “ a comunidade viva de nosso Senhor Jesus Cristo” . Como já se viu, a Igreja tem essencialmente a função de pregar a Palavra e atestar a revelação da Palavra ocorrida!“ Iluminada e susten­ tada pelo Espírito Santo, ela foi enviada ao mundo para prestar tes­ temunho de Jesus Cristo diante de todos os homens, para proclamar que a aliança entre Deus e o homem por ele restabelecida constitui o significado último da história, que se concluirá com o seu retorno. Os meios com os quais a Igreja exerce o seu ministério são a palavra e a ação. A palavra pertencem a adoração, a pregação, a ins­ trução, a evangelização, a missão, a teologia. A ação pertencem a oração, a cura das almas, o diaconato ou serviço em benefício daque­ les que necessitam e a ação profética. Todos esses ministérios impli­ cam em responsabilidade por parte da comunidade, tanto em seu componente clerical como no seu componente leigo. Os membros da igreja têm dons e funções diferentes, mas nenhum está autorizado a ficar de “ braços cruzados” . Num de seus últimos ensaios, intitulado “ A Noção da Igreja” 44, Barth desenvolve a doutrina da Igreja segundo os quatro pontos centrais da teologia tradicional (unidade, santidade, catolicidade e Idem, IV /1, p. 124. 44 B a r t h , “ La Notion cTÊglise” in Catholiques et Protestants, Paris, 1963, pp. 154-169.


apostolicidade), a fim de estabelecer os pontos de contato e de con­ flito que existem nessa questão entre a Igreja Católica e as igrejas evangélicas. Barth encontra nesses quatro pontos específicos da Igreja uma profunda consonância entre a doutrina católica e a evangélica. Mas depois ressalta que, não obstante toda a consonância, persistem graves divergências, que se mantêm insanáveis. Em seguida, prova com agudeza que essas divergências têm todas, em definitivo, as suas raí­ zes na diferente concepção de fé: “ Para nós, protestantes, a fé é o recebimento e a posse humana da graça de Deus, recebimento e pos­ se que já estão sob o impulso da graça. E esta é precisamente graça, ou seja, benefício indizível de Deus, na medida em que, tanto em relação àquele que a recebe como em relação ao ato do recebimento, é e permanece graça de Deus, realidade do Logos e do Espírito de Deus. Este predispõe o homem e o impele a perceber essa graça sen­ sivelmente (na Palavra e no sacramento) e racionalmente; coloca-o à prova dentro de seu íntimo, sem que com isso — e esse é o ponto decisivo — o homem possa de qualquer modo dispor da graça como pode dispor de outras realidades que encontra, percebe e experimenta. E assim é, porque quando se trata da graça estamos diante do Deus santo, do Deus que, no momento mesmo em que nos inunda com sua graça, permanece inacessível a quem quer que seja; e também porque o homem é pecador e a comunhão com Deus não lhe é possível e real, em nenhum momento e sob nenhum ponto de vista, a não ser por meio do próprio Deus, sem nenhuma reciprocidade, sem que o homem possa alcançar Deus como Deus alcança o homem. Em qualquer mo­ mento e a respeito de tudo o homem é levado por Deus e só por ele, nunca por si mesmo” 45. Essa concepção de fé — prossegue Karl Barth — reflete-se lite­ ralmente na concepção da Igreja. Como na fé o homem nunca pode se tornar colaborador e muito menos substituto de Deus, da mesma forma a Igreja, na obra de reconciliação dos homens, não pode nunca cooperar e muito menos representar Cristo. “ A assistência de Deus nos chega por meio dela e nela, sem que por isso nós tenhamos direi­ tos sobre ele e sobre aquilo que pertence a ele e só a ele. Qualquer outra assistência poderia corresponder a um direito de nossa parte, de maneira a tornar-se um bem que nós poderíamos exigir. Mas a assistência .divina não pode comportar nenhuma exigência de nossa parte. Diversamente de qualquer outra relação, a relação com Deus é irreversível. O fato de que a Igreja nos tenha sido dada, que nós tenhamos sido convocados ( evocatio) e tenhamos recebido a assistên­ cia divina da graça não significa que nós tenhamos recebido em nossas mãos um direito, nem que nesse lugar e nesse instrumento visível, humano e histórico da graça nos tenha sido confiado um instrumento que nos permitisse dispor da graça ao nosso bel-prazer e ter uma ga45 Idem, pp. 162-163.


rantia sobre ela. Como poderia a graça ser ainda graça se, através da Igreja, houvesse uma outra garantia além da garantia baseada no pró­ prio D e u s?” 46 Quanto às relações entre a Igreja _e _ojiu n d o , Barth não as con­ cebeu seSpreTdo mesmo modo. Nessa questão, seu pensamento sofreu a mesma evolução que já registramos em sua doutrina sobre Deus. No Der Rõmerbrief, quando o seu critério .teológico era o prin­ cípio da infinita diferença qualitativa, a oposição radical entre Deus e o mundo encontrava expressão emblemática na Igreja, porque na Igreja “ as coisas do outro mundo tornaram-se uma realidade metafí­ sica e, por conseguinte, um simples prolongamento das coisas deste mundo” . A Igreja — escrevia então Barth — é a tentativa mais ou menos decidida de humanizar o divino, de temporalizá-lo, de fazer dele uma coisa. Na Igreja, tenta-se secularizar o Deus vivo transcen­ dente, tornar compreensível o seu caminho incompreensível mas ine­ vitável. Já em Die Kirchliche Dogmatik, onde a infinita diferença quali­ tativa é temperada pelo princípio da humanidade de Deus, Barth apre­ senta a Igreja como uma comunidade enviada ao mundo para salvá­ -lo. A \rêrdadeira comunidade de Cristo, como o próprio Cristo, existe para o mundo. Nessa sociedade, “ é concedido ao homem ver e entender o mundo como é, tornar-se solidário a ele em suas vicissitu­ des, ajudá-lo a realizar os seus destinos” .

X. AVALIAÇÃO Numerosos estudiosos formularam categorizados juízos sobre a obra teológica de Karl B arth 47. Dentre os mais dignos de nota es­ tão os dos católicos von Balthasar e Bouillard, que são ainda mais merecedores de elogio quando se sabe que o próprio Barth reconheceu ter sido compreendido bem melhor por eles do que “ pela pequena bi­ blioteca que gradativamente se amontoou em torno de mim” . Em suas obras, o leitor poderá encontrar um exame bem mais aprofun­ dado e detalhado das doutrinas barthianas do que nos seria possível fazer nas poucas páginas de que podemos dispor para a análise crítica neste livro. Assim, nos contentaremos aqui com poucas observações gerais mais facilmente destacáveis. Consideremos antes de mais nada que não_ é possível formular um juízo unitário sobre a obra barthiana, dado que "nao nos" encon­ trámos diante de um só Barth, mas de três: o Barth pré-dialético, o Barth dialético e o Barth da analogia da fé. Quem considera todo o 46 Idem, pp. 163-164. 47 Uma lista dos mais importantes pode ser encontrada na breve nota bibliográfica no fim deste capítulo.


complexo teológica barthiano deve emitir três juízos substancialmente diversos. Mas aqui nos interessa somente o último Barth, aquele que quer ser também o..verdadeiro- Barth. Por isso, nossa avaliação será substancialmente unitária. Mencionemos para começar alguns méritos inegáveis da teologia de Karl Barth. O primeiro e maior mérito é o primado absoluto que ela dá a Deus, a Cristo, à Revelação, à fé. Ela restitui a Deus o seu lugar, dele expulsando todos os intrusos (a filosofia, a ciência, a psi­ cologia, a história). Graças a Barth assistimos no século X X a uma nova “ purificação do templo” . O segundo mérito da teologia barthiana é o de reconhecer como única norma absoluta, tanto da reflexão teológica quanto da pregação e " da ação, a revelação divina tal como foi conservada na Sagrada Escritura. Um outro grande mérito pode ser identificado na analogia da fé. Mesmo tendo limites e defeitos bastante vistosos, assim como o entende Barth, esse método parece-nos ter também inegáveis méritos: ele consegue evidenciar melhor do que a analogia entis que o verda­ deiro conhecimento de Deus não é fruto da razão, nem mesmo da razão dos maiores filósofos, mas sim da Revelação. Nisso, Barth tem ao seu lado toda a teologia patrística. Ademais, ele parece proteger melhor do que a analogia entis a inefabilidade e a incognoscibilidade de Deus, duas doutrinas também muito caras aos Padres da Igreja. Por essas razões, nutrimos muita simpatia pela teologia de Karl Barth, porém não a ponto de concluir, como fizeram Küng e Fries, que ela não justifica um cisma dentro da Igreja única. A prin­ cipal razão que provocou o cisma do Ocidente, com efeito, ainda se encontra presente na teologia barthiana. A razão que provocou o cisma foi a doutrina luterana de que a salvação é causada por D.eus somente, imediatamente e diretamente, sem nenhuma cooperação por parte do homem e sem nenhum intermediário (nem sacramentos, nem santos, nem a Nossa Senhora, nem indulgências, nem boas ações etc.). Dessa doutrina saiu uma teologia que concebe a Igreja, os Sacramen­ tos, a Graça e a Salvação de maneira profundamente diversa de como concebe a teologia católica. Pois Barth, apesar do seu grande mérito de ter restituído o primado absoluto a Deus e à Graça, concebe tal primado assim como o concebiam os Reformadores e elabora toda a sua teologia em conformidade com tal princípio, sem nunca deixar espaço para nenhum intermediário, para nenhuma cooperação autên­ tica, para nenhuma causalidade instrumental, como, ao contrário, en­ sina a Igreja Católica. Além dessa reserva principal, há outras ainda que apenas lembra­ remos. Em virtude dos seus “ solus D eus", “ sola fides” e “sola gr atia", Barth corre o risco de dissipar a consistência ontológica da natureza humana. Isso pode ser notado tanto na cristologia como na antropo­ logia. Na cristologia, Barth tende excessivamente a reduzir a parte


de humanidade na pessoa e na ação do Verbo Encarnado: observa-se nele uma forte tendência para uma espécie de mono-energismo. Na antropologia, ele reduz a função da natureza humana na obra da Sal­ vação a um simples cenário em que ela se desenvolve. A distinção forma-conteúdo — que ao autor parece ser a ca­ tegoria mais importante da teologia barthiana, na medida em que Barth utiliza-se dela para exprimir as relações entre Revelação e fi­ losofia, entre graça e natureza, entre divindade e humanidade, entre criação e reconciliação — nunca é elaborada nem analisada metodi­ camente por ele. Pelas rápidas abordagens que ele faz do assunto, temos a impressão de que Barth entende as relações entre forma e conteúdo muito extrinsecamente: a forma não corresponde nem um pouco ao conteúdo; é mais um recipiente do que uma verdadeira e própria forma. Aliás, é assim que o teólogo da Basiléia entende as relações entre filosofia e Revelação em teologia, entre expressão li­ terária e Revelação na Bíblia. Segundo ele, a Revelação pode adotar indiferentemente qualquer filosofia; a Bíblia pode ser passível de qualquer deformação sem que o conteúdo revelado seja prejudicado. A última crítica a Barth, que não podemos deixar de fazer, diz respeito à sua doutrina trinitária: nela, a real distinção entre as três pessoas divinas parece gravemente comprometida por um cristo­ centrismo que tende a transformar-se sistematicamente em cristomonismo.

Nota bibliográfica. — É muito abundante a literatura barthiana. Lembraremos aqui apenas alguns títulos dentre os mais significativos. Citemos antes de mais nada os estudos de quatro grandes teólogos católicos: H. U r s v o n B a l t h a s a r , Kar Barth. Darstellung und Deutung seiner Theologie, Hegner, Colônia e Olten, 1951; J . H a m e r , Karl Barth. L ’Occasionalisme Théologique de K. B. Étude sur sa Méthode Théologique, Desclée, Paris, 1949; H. B o u i l l a r d , Karl Barth t. I: Genèse et Évolution de la Théologie Dialectique; t. II-III: Parole de Dieu et Existence Humaine, Aubier, Paris, 1857; H. K ü n g , Rechtfertigung. Die Lehre Karl Barth und eine Katholische Besinnung, Johannes, Einsiedeln, 1957. Entre os estudos de origem não-católica, os mais notáveis são: E. B r u n n e r , Natur und Gnade. Zum Gespraech mit Karl Barth, Tübingen, 1935; G. W i n g r e n , Theology in Conflict: Nygren, Barth, Bultmann, Londres, 1958; T. F. T o r r a n c e , Karl Barth. An Introduction to his Early Theology, 1910-1931, S. C. M ., Londres, 1962; G. C. B e r k o u w e r , Karl Barth, KO K, Kämpen, 1937; I d e m , Barthianisme en Katholicisme, KO K, Kämpen, 1940; I d e m , The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth, Paternos­ ter, Londres, 1956; C. B r o w n , Karl Barth and the Christian Message, Chicago, 1966; J. F a n g m e i e r , Le Théologien K. Barth, Labor et Fides, Genebra, 1969; P. L a n g e , Konkrete Theologie? K. Barth und F. Gogarten “Zwischen den Zeiten” (1922-1933), Theologischer Verlag, Zurique, 1972; K. G. S t e c k e D. S c h e l l o n g , Karl Barth und die Neuzeit, Kaiser, Munique, 1973; J. M o l t m a n n , Anfänge der Dialektischen Theologie. I : Karl Barth, Heinrich Barth, Emil Brunner, Kaiser, Munique, 1976. Em italiano, existem as traduções de duas ótimas introduções à figura e ao pensa­ mento de K. Barth: B. W i l l e m s , lntroduzione al Pensiero di Karl Barth, Queriniana, Bréscia, 1966; G . C a s a l is , Karl Barth, Claudiana, Turim, 1967; existe também a sín­ tese brilhante e crítica de B. G h e r a r d i n i , La Seconda Riforma, Morcelliana, Bréscia, 1966, vol. II, pp. 80-196, além do estudo mais amplo embora menos sólido de E. R iv e r s o , La Teologia Esistenzialistica di Karl Barth, Istituto Ed. Mezzogiorno, Nápo­ les, 1955. Sobre a questão da “ analogia” em K. Barth, cf. B. M o n d i n , “ La Dottrina dell’Analogia in Karl Barth” in Divus Thomas, 1959, pp. 168-172.


EMIL BRUNNER E A TEOLOGIA DIALÉTICA

Juntamente com Barth, Emil Brunner é um dos mais insignes pioneiros da teologia protestante do século X X . Juntamente com Barth, ele comandou o movimento da Teologia Dialética, que, como sabe­ mos, procurou corrigir as aberrações racionalistas do Protestantismo Liberal, repelindo todas as pretensões apresentadas pela razão no campo teológico através da filosofia, da psicologia, da história e da ciência, aceitando incondicionalmente a “ alteridade” absoluta da Pa­ lavra de Deus. “ Teologia dialética” é a designação que foi dada a todo o movi­ mento antiliberal. Aqui, nós o utilizamos para qualificar a teologia de Brunner porque este, ao contrário de Barth, quis permanecer sem­ pre fiel ao método dialético em toda a sua obra teológica.

I. VIDA Muito já foi escrito sobre o pensamento e as obras de Emil Brunner, mas bem pouco sobre a sua vida 1. De sua vida só podemos recolher os dados que se seguem. Heinrich Emil Brunner nasceu em 23 de dezembro de 1889 em Winterthnr. na Suíça. Transcorreu grande parte de sua existência na pátria, mas também viveu no exterior: na Alemanha, Inglaterra, E s­ tados Unidos e Japão. Realizou seus estudos liceais em Zurique, formando-se em 1908. Depois dedicou-se aos estudos teológicos, primeiro em Zurique, de­ pois em Berlim e NOTa~YõrE~è^ínalm^ tfé liovõ^rn ^iT n que, õnde oT)teve o doutorado'ênrTêõíõgia em 1913. De 1926 até sua morte M 96M . foi professor de teologia em Zurique. ~~ ~~ juntamente com Karl Barth, como já dissemos, fundou o movi­ mento da Teologia Dialética logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial. O movimento se dissolveu na década de trinta, quando Barth aderiu ao método da analogia da fé e Tillich ao método da correlação. 1 Um dos mais significativos escritos biográficos é o de E. G rin , “Emil Brunner: in Memoriam” in Revue Théologique et Pbilosophique, 1966, pp. 389-397.


Pouco antes da eclosão da Segunda Guerra, ministrou cursos de teologia em Princeton durante um ano (1938-1939) e depois da guer­ ra ensinou teologia no Japão durante dois anos (1953-1955). Brunner fez sentir sua influência mais no exterior do que em sua pátria, que já estava tomada pela maior personalidade de Barth. O seu perfeito conhecimento da língua inglesa favoreceu a penetra­ ção do seu pensamento no mundo anglo-saxão: todas as suas maiores obras, escritas originalmente em alemão, foram prontamente traduzi­ das em inglês. Emil Brunner recebeu um amplo reconhecimento em escala mun­ dial por sua obra. Em 1949, por ocasião do seu sexagésimo aniversá­ rio, foi-lhe dedicado um Festschrift. Em 1962, a editora Macmillan publicou na coleção “ The Library of Living Theology” um volume intitulado The Theology of Emil Brunner, uma coletânea de ensaios escritos por Paul Tillich, Reinhold Niebuhr e outros insignes teólogos. Além do campo teológico. Brunner também dedicou grande inte­ resse a ação pastoral, e...missionária. Durante muitos anos" lecionou psicologia pastoral. Escreveu volumosos livros sobre problemas morais e sociais. Meditou longamente sobre as relações entre teologia e filo­ sofia, entre fé e ciência. Também sentiu vivamente os problemas po­ líticos de nossa época. Como em outras questões, tomou posição contra a linha conciliadora de Karl Barth em relação ao comunismo. Sobre essa linha disse que “ sem ser comunista, serve aos interesses do co­ munismo ” .

II. OBRAS Apresento aqui, em ordem cronológica, uma lista 2 das principais obras de Emil Brunner: Das Symbolische in der Religiösen Erkenntnis. Beitrage zu einer Theorie des Religiösen Erkennens (O Simbólico no Conhecimento Religioso. Contribuições a uma Teoria do Conhecimento Religioso, Mohr, Tübingen, 1914). Die Mystik und das Wort (A Mística e a Palavra, Mohr, Tü­ bingen, 1924). Philosophie und Offenbarung (Filosofia e Revelação, Mohr, Tü­ bingen, 1925). Der Mittler (O Mediador, Mohr, Tübingen, 1927). Religionsphilosophie Protestantischer Theologie (Filosofia da Re­ ligião na Teologia Protestante, Oldenbourg, Munique, 1927). Gott und Mensch (Deus e o Homem, Mohr, Tübingen, 1930). 2 Uma lista completa dos escritos de E. Brunner até 1950 pode ser encontrada em Das Menschenbild im Lichte des Evangeliums. Festschrift zum 60. Geburtstag von Prof. Dr. Emil Brunner, Zurique, 1950, pp. 171-185.


Natur und Gnade, Gespräch mit Karl Barth (Natureza e Graça, Diálogo com Karl Barth, Furche, Berlim, 1934). Das Wort Gottes und der Moderne Mensch (A Palavra de Deus e o Homem Moderno, Furche, Berlim, 1937). Der Mensch im Widerspruch (O Homem em Conflito Consigo Mesmo, Furche, Berlim, 1937). Wahrheit als Begegnung (A Verdade Como Encontro, Furche, Berlim, 1938). Offenbarung und Vernunft (Revelação e Razão, Zwingli, Zurique, 1941). Gerechtigkeit, Eine Lehre von der Grundgesetzen der Gesell­ schaftsordnung (Justiça. Doutrina sobre os Princípios Fundamentais da Ordem Social, Zwingli, Zurique, 1943). Dogmatik. Em três volumes, intitulados respectivamente: I. Die Christliche Lehre von Gott (A Doutrina Cristã de Deus, Zwingli, Zurique, 1946). II. Die Christliche Lehre von Schöpfung und Erlösung (A Dou­ trina Crista da Criação e da Redenção, Zwingli, Zurique, 1950). III. Die Christliche Lehre von der Kirche, von Glauben und von der Vollendung (A Doutrina Crista da Igreja, da Fé e da Consumação, Zwingli, Zurique, 1960). Das Ewige als Zukunft und Gegenwart (O Eterno como Futuro e como Presente, Zwingli, Zurique, 1953).

III. A D IA LÉTIC A A primeira obra de Emil Brunner leva o título de Die Mystik und das Wort (A Mística e a Palavra); nela, toma posição contra a teo­ logia liberal protestante, na qual vê uma perversão racionalista e romântica do cristianismo, e se coloca a favor da teologia dialética, o movimento teológico promovido por Barth para reconduzir a teologia protestante ao genuíno pensamento dos reformadores. Contra o liberalismo teológico, que exaltara o misticismo como o clímax da cultura religiosa, Brunner afirma que o misticismo é o con­ trário da fé, na medida em que procura superar o fato da Palavra de Deus para alcançá-lo através de uma experiência imediata. Segundo Brunner, não pode haver senão uma exclusão recíproca entre a fé baseada na experiência mística, por um lado, e a humilde escuta da Palavra de Deus, por outro lado. Mas isso não significa — explica ele — que a teologia possa garantir uma posse segura da Palavra de Deus. Ao contrário, “ na medida em que imaginamos ‘possuir’ a Pala­ vra de Deus e concebemos seu conhecimento como nossa propriedade e na medida em que a teologia se substitui a Deus, aquilo que faze­ mos não tem nada de teologia. . . Qual dos dois constitui o mal


maior, o intelectualismo da ortodoxia ou o psicologismo da escola romântica, é uma questão que não vem ao caso. Todos os dois pro­ vêm da mesma fonte, a irreverência. Ambos querem possuir ao invés de crer” . Portanto, conclui Brunner, uma teologia que quiser ser ver­ dadeiramente teologia deve ter inicialmente uma tunção negativa! “ Quando Deus fala,~ã~função de toda teologia deve ser a de tirar "3o caminho tudo aquilo que pode impedir a sua palavra e a nossa escuta, fncíusivê~ã~teologia. Por conseguinte, a teologia não é uma construção, mas sim uma purificação. Não por acaso os preceitos da Bíblia são muito mais freqüentemente negativos do que afirmativos e nos escri­ tos dos Profetas os Não são muito mais freqüentes do que os Sim, as­ sim como a mais excelsa revelação de Deus é a Cruz. Deus obtém os seus direitos quando o homem confessa as suas culpas” . Os mesmos conceitos são retomados e desenvolvidos numa obra mais madura, publicada em Londres em 1931, The Word. and the World, onde podemos 1er, entre outras coisas: “ Qualquer discurso sobre Deus é necessariamente ‘paradoxal’. Somente através da contra­ dição entre duas idéias — Deus e o Tiomem, graça e responsabilida­ de, santidade e amor — é que podemos captar a verdade contraditó­ ria de que o Deus eterno entra no tempo ou de que o homem pecador é declarado justo. A teologia dialética é o modo de pensar que p ro ­ tege esse caráter paradoxal próprio Tlõ conhecimenu) religioso das es­ peculações não paradoxais da razão” . A tese da estrutura dialética de teologia é reafirmada ainda em Der Mensch im Widerspruch, uma das obras mais profundas e ma­ duras de Brunner. Nessa obra, podemos 1er: “ Se a fé significa que o pensamento e a vontade do homem capitulam diante da verdade e da vontade de Deus, então a teologia nunca poderá ser outra coisa senão uma tentativa de transcrever, de alguma maneira, a controvérsia entre a Palavra de Deus e o pensamento do homem. Por isso, uma teologia genuína só pode ser dialética” . E mais adiante, no mesmo livro, Brunner nos revela que desde 1925 a dialética entre a lei e o Evan­ gelho já era o ponto central de sua teologia. Em conclusão, segundo Emil Brunner, a dialética dos opostos é o único instrumento adequado para entendêF e exprimir a Palavraclê "Deus, Nesse ponto, está perfeitamentè~3e~ãcõrdo com Barth7 : ' Porém logo se separa do teólogo da Basiléia, quando se trata de determinar a natureza dos opostos e as relações existentes entre eles. Para o pólo humano, Barth só tem negações: não há nada no homem que possa torná-lo apto T receber a Palavra de Deus; ele en­ contra-se totalmente alienado de Deus. Para Barth, a dialética signifi­ ca essencialmente conflito, uma absoluta incongruência entre os opostos. Brunner, ao contrário, pensa de maneira iniëfiamëHïê' diversa. Para ele, na dialética o “ não” é a primeira palavra mas não a última. O “ não” 'sem Tpara salvaguardar a infinita diferença qualitativa, mas não explica a natureza dos opostos nem as suas relações. Para tornar


possível uma efetiva dialética, Brunner considera ser necessário reco­ nhecer a ambos os opostos uma efetiva ^consistência ontológica, colo­ cando-os não em posição de alienação, mas de atração recíproca. Com base nesses princípios, em sua Dogmatik, Brunner desen­ volve uma teologia^ da “ correspondência pessoal ” . Nela, o homem é definido^como “ ser responsável” , “ ser que responde”, ao passo que a Revelação é concebida como resposta de Deus, através de sua auto­ manifestação pessoal, realizada de uma vez para sempre. Como veremos em seguida, toda a teologia brunneriana se ca­ racteriza por dois traços fundamentais: a) a colocação dialética dos problem as3; a solução positiva dos mesmos, solução que Brunner está em condições de alcançar por ter concebido a dialética não como re­ pulsão entre os opostos, como fizera Barth, mas sim como atração, como tinham feito, ainda que não propriamente do mesmo modo, Tillich e Guardini. IV. FÉ E RAZÂO O problema central da teologia de Brunner é a questão das re­ lações entre fé e razão4. Recorrendo à sua concepção de cTíaletica, procura encontrar uma solução intermediária para esse problema, en­ tre o fideísmo absoluto barthiano e o dualismo católico. No próprio título de sua obra Offenbarung und Vernunft pre­ tende exprimir explicitamente a antítese à posição católica, na inver­ são do binômio em questão: não mais razão e revelação, como no catolicismo, mas sim revelação e razão. A conservação do binômio, por outro lado, é um indício de sua contraposição à paradoxal negação barthiana da razão. Contrariamente à teologia católica, que afirma que o homem pode chegar a Deus só por meio da razão, Brunner, seguindo Kant, nega que a razão seja naturalmente^ capaz de çofíhecer Deus: ela não está nem mesmo em condicões de resolver os problemas do homeiru Segundo Brunner, “ um dos erros mais graves na história do pensa­ mento humano é o princípio intelectualista de que a inteligência seja o único meio que nos habilita ao conhecimento da realidade” 5. “ Com uma vigorosa doutrina do conhecimento e com seu trabalho em parte negativo e em parte positivo, Kant foi o primeiro a abater decidida­ mente o preconceito já radicado ab antiquo de que somente a razão é mediadora do conhecimento” 6. 3 Isso é confirmado pelos próprios títulos das obras: Die Mystik und das Wort, Philosophie und Offenbarung, Gott und Mensch, Das Gebot und die Ordnungen, Natur und Gnade, Das Wort Gottes und der Moderne Mensch, Offenbarung und Ver­ nunft e Bros und Liebe. 4 Esse, segundo Brunner, não é “ só o problema de toda teologia, como também o problema fundamental da cultura ocidental” ( Offenbarung und Vernunft, p. V II). 5 Das Symbolische in der Religiösen Erkenntnis, p. 111. 6 Ibid., p. 127.


Brunner afirma que só a Revelação pode oferecer uma solução válida aos problemas que atormentam o homem: “ Em sua revelação, Deus nos faz conhecer o seu e o nosso ser. . . A sua primeira afirma­ ção é de que o homem não deve ser conhecido partindo do seu ser, mas apenas de D eus” 7. Contrariamente a Barth que, .como sabemos, nega à razão qual­ quer disposição para_a Revelação, Brunner mostra que esta solTTritêlf gfvêl se se admite que a razão é dotãdaH e uma certa disposição, que elê~chama de Ãnknüpfü ^ s punkt (ponto de contato): “ Se o homem í^co«, n a,,c alguma cojsa recipiente no qual ele derrama alguma coisa, então se poderia falar da Revelação^-, mesmo sem conhecer nada do ser que sofre essa ação. Contudo, i á \ \ que ela é um encontro pessoal, é necessário aprender a conheceiMsí-^ pessoa a cujo encontro Deus vai e o modo como essa pessoa &e^SpreP/ senta para tal encontro com Deus. . . O fato de que D e u ^ \si!IgíOTifesta mediante sua Palavra pressupõe que o homem seja isrtn ser cri á do para esse gênero de comunicação, para a c o m u n ic a ç ã o ^ f^ v é ^ 3 pala­ vra . . . Esse fato, já evidente em si mesmo, QjWe Qi^Xtanto mais fortemente ressaltado quando se sabe que<^um^ 'fafea-^xplicação do sola gr atia e o temor de cair na doutrin a/geláffl^^bu na do ‘sinergismo’ levaram ao ponto de trocar a pura (rçc^avidade do homem na Revelação por uma passividade oHettóãv^Mn—que a parte do homem poderia ser geralmente eliminad^Q \ “ Que no homem exista um^ponEo de contato ( Anknüpfungspunkt) para a graça dr na_da sâíyaçao é algo que não pode ser con­ testado por ninguém que/ reconheça que nem as pedras nem os tron­ cos de árvore, m aíf^SfrasSa^su jeito s humanos, podem receber a Pa­ lavra de Deus e a ^ p í n ^ Santo. O ponto de contato é evidente: é a imago Dei forgayTxQw^não foi retirada nem mesmo ao pecador, o ser Kumano d> gto.Mi sua'Hõumãnitãs, com seus dois momentos caraciodade de receber a Palavra de Deus e de ser resterístio d ) fato “de que o homem é um ser apto a receber a que ele e só ele é um ser capaz de receber a Palavra de ao lhe foi retirado nem mesmo pelo pecado. Só que essa tividade’ não deve ser entendida em sentido material. Com efei­ to^ ela nada diz quanto ao dizer Sim ou Não à Palavra de Deus. Mas é simplesmente a aptidão formal ao ‘interpelar’ (Ansprechbarkeit)” . “ Essa aptidão constitui também o pressuposto da responsabili­ dade. Só um ser dotado de aptidão para o ‘interpelar’ é responsável; só no que se refere a ele pode-se falar de decisão. Só uma semelhante natureza pode pecar. Todavia, na medida em que peca responsavel­ mente, também sabe algo do pecado. Esse conhecimento aproximativo do pecado constitui um pressuposto essencial para a compreensão do anúncio da graça divina. Não se pode aniquilar a dialética desse conhe7 Der Mensch im Widerspruch, pp. 52-53. 8 Offenbarung und Vernunft, p. 49.


cimento do pecado dizendo: ‘o conhecimento do pecado é fruto apenas da graça de D eus’. Essa proposição é tão verdadeira quanto a outra que diz que a graça de Deus só pode ser compreendida por quem já tem conhecimento do pecado. Encontramo-nos aqui diante da mesma situação dos mandamentos de Deus e da Lei: o homem natural os co­ nhece e não os conhece. Não seria um homem se não os conhecesse; mas não seria pecador se os conhecesse eficazmente. . . ” “ Não é possível negar a presença desse ponto de contato com a graça; pode-se fazê-lo apenas em virtude de um mal-entendido. O mal-entendido nasce quando não se observa a distinção entre deter­ minação material e formal. Da mesma forma como se disse antes que não há mais no homem a imago Dei material, ao passo que a imago Dei formal permanece intacta, também devemos dizer agora em relação ao ponto de contato: não se dá nenhum ponto de contato material, ao passo que o ponto de contato formal constitui o pressuposto essencial. A Palavra de Deus não causa no homem a capacidade de receber a Palavra. Jile_nunca perdeu tal capacidade-” ela constitui a condição pãrã~qüe o homem possa ouvir a Palavra de Deus. No entanto, já o crer na Palavra de Deus, como também a capacidade de ouvi-la à maneira de quem a escuta crendo, são causados diretamente pela Palavra de Deus. Ê evidente que essa doutrina do ponto de contato não prejudica em nada a doutrina da sola gratia” 9. A doutrina do “ ponto de contato” fez chover acusações de he­ resia sobre Brunner. Barth e outros teólogos protestantes viram nela um retorno à posição católica e tomista da teologia natural. Em Natur und Gnade, Brunner defende-se dos ataques de seus adversários demonstrando, por um lado, que sua doutrina é essencial­ mente diferente da doutrina tomista e, por outro, que ela está em plena conformidade com a doutrina de Calvino. Sua argumentação baseia-se na distinção entre ordem objetiva e subjetiva: para Calvino (e para o próprio Brunner), a teologia natural tem valor na ordem objetiva, mas não tem nenhum valor na ordem subjetiva: “ Para nós, ela não tem nenhum valor prático; foi tornada completamente supér­ flua e inapta pelo melhor conhecimento que temos em Cristo” 10. Já para a teologia católica, especialmente para a tomista, a teologia na­ tural tem valor tanto na ordem objetiva como na subjetiva: “ H á uma teologia natural autônoma, separável da teologia revelada, para a qual se constitui em sólida base um sistema da razão completamente auto­ -suficiente” 11. Em conclusão, Brunner reconhece, além de um conhecimento sobrenatural, também um conhecimento natural de Deus, mas conside­ ra este último conhecimento tão incerto e opaco a ponto de negar-lhe 9 Natur und Gnade, pp. 18-19. 10 Ibid., p. 29. 11 Ibid., p. 32; cf. p. 33.


um efetivo valor até que seja ratificado e aperfeiçoado pelo conheci­ mento sobrenatural. Desse modo, substitui a exclusão recíproca entre fé e razão defendida por Barth e a harmonia entre fé e razão ensinada pela teologia católica por uma coordenação entre as duas, que, por um lado, não retira a soberania e a eficácia exclusiva da graça no evento salvífico e, por outro, não inutiliza o poder da razão. Essa solução é perfeitamente coerente com os princípios de sua dialética, que exige não a aniquilação de um dos dois pólos em favor do outro, mas sim a sua coordenação.

V. O HOM EM E A IM AG O D E I %

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O pensamento de Brunner sobre o homem já foi exposto em par­ te, quando se tratou da questão das relações entre fé e razão. A solu­ ção dessa questão já é indicativa de uma concepção do homem dife­ rente tanto da concepção barthiana quanto da concepção católica. Brunner alcança essa solução intermediária através de uma análise acurada do conceito de imago Dei, um conceito familiar a toda a teo­ logia antiga e medieval, bem como da teologia dos Reformadores. Abordando a questão não de um ponto de vista ontológico, mas histórico, Brunner nega que se possa falar de duas imago Dei, uma so­ brenatural e outra natural, de que só a primeira teria sido perdida com o pecado original. Segundo ele, a imago Dei é uma só; mas o pe­ cado não a destruiu, porém só a perverteu ( não mais graça e natureza, mas sim natureza e graça). “ No sentido genuíno da Bíblia, o homem deve ser interpretado por um princípio único, pela Palavra e imagem de Deus originais. A humanidade do homem é uma dualidade na uni­ dade, natureza e graça. A destinação divina é a natureza originária própria do homem e aquilo que agora nós reconhecemos no homem como sua ‘natureza’ é ‘natureza desnaturada’, é apenas um mísero res­ to do original. O homem não perdeu uma sobrenatureza com o peca­ do, mas precisamente a sua natureza, aquela que lhe foi dada por Deus, e tornou-se inatural, inumano” 12. “ Como o ser gerado pela Palavra de Deus implica o ouvir e o crer na Palavra — e portanto uma relação espiritual com a Palavra de Deus — , assim também a criação originária do homem na Palavra de Deus é tal que faz dele não só um produto, mas também um acolhedor da Palavra de D eus” 13. Contrariamente à doutrina católica, Brunner sustenta que “ não há uma dupla semelhança, uma que não pode ser perdida, a imago, e outra que pode ser perdida, a similitudo, a primeira fazendo parte da natureza e a segunda da atual relação com Deus; a essência do homem, ao contrário, deve ser entendida unitariamente do ponto de 12 Der Mensch im Widerspruch, p. 84. 13 Ibid., pp. 60-61.


vista da relação com Deus, sem distinção entre natureza e sobrenatureza: essa teologia unitária é invertida pelo pecado, mas mesmo na inversão ela mostra, na estrutura humana, os traços da imagem de Deus, de maneira que o formale humanum remete precisamente à ori­ gem perdida” 14. , Já diante da teologia reformada a intenção de Emil Brunner “ volta-se para a renovação de sua concepção fundamental, que se perdeu, ainda que de modos diversos, tanto com os luteranos orto­ doxos como com os barthianos, isto é, a concepção de que o homem deve ser entendido como uma totalidade do ponto de vista de Deus, que por isso a humanidade do pecador é uma humanidade corrupta, mas que, precisamente por isso, a humanitas ainda existente deve ser entendida do ponto de vista da imagem originária de Deus e da rela­ ção com ele” . “ Por isso eu ensino, com Lutero” , prossegue Brunner, “ que essa humanitas é um simples ‘resto’ da humanitas original, mas que, pre­ cisamente por isso, aquilo que nela não pode ser perdido — aquilo que distingue o homem — não é um profanum e uma bagatela; isso, porém, deve ser entendido do ponto de vista da imago original e, por­ tanto, teológica e cristologicamente. A humanidade atual não é, como^ ensina o Catolicismo, a autêntica n]ãtureza_ humana original (à quaF faltaria apenas o donum superaaãitum) ,e tampouco, como ensina Barth, um simples fato material profano, teologicamente irrelevante, mas sim, 'precisamente no seu caráter puramente' formal, é "aquilo que restou ao homem de sua relação"original com Deus. Esse resto, contu d ^ nao deve le r entendiclo"™ como fazem os Reformadores — ape­ nas quantitativamente e sim dialeticamente, ou seja, como a estrutu­ ra da atual humanidade referindo-se dialeticamente ao Evangelho. An­ tes de mais nada, essa estrutura pode, em certa medida, ordenar a vida humana; em segundo lugar, mantém necessariamente o homem na relação com Deus, ainda que invertida; em terceiro lugar, serve como ponto de contato para o Evangelho; e, por fim, ela constitui ao mesmo tempo também o ponto da máxima oposição e repulsa a ele” 15. Noutro trecho, Brunner resume com felicidade o núcleo de sua tese da seguinte maneira: “ O pecado não significa aniquilamento, mas sim a inversão daquilo que existia na origem ” ifa. Dessa tese derivam duas conseqüências principais. ^Tprimeira é que o estado de pecado não exclui, antes implica a atual dependência da criatura “ homem” em relação a Deus: o ho­ mem encontra-se ainda diante de Deus, ainda está em relação com ele. “ A característica da antropologia bíblica é considerar o homem ‘natural’, inclusive o pagão e o sem Deus, sempre como quem está diante de D eu s. . . O homem está sempre negativa ou positivamente 14 Ibid., p. 530. 15 Ibid., pp. 530-531. 16 Offenbarung und Vernunft, p. 75.


diante de Deus, nunca sem relação com ele” 17. “ O pecado não é um afastamento de uma vez por todas, mas sim um persistente desvio, e por isso a revelação primitiva, aquilo de que se afasta continuamente, é um presente, ainda que um presente renegado. Precisamente por isso o homem é responsável e indesculpável” 18. A segunda conseqüência é que a imago Dei não é anulada, antes sofre uma inversão, uma reviravolta: “ O pecado é a inversão da posi­ ção original. Isso muda o ser-para-Deus em ser-longe-de-Deus” 19. E com essa inversão tudo sofre uma reviravolta. Daí a impossibilidade da religião natural, de uma justificação racional da fé, das boas ações, etc. Todavia, não obstante todas as inversões e reviravoltas, essa formalis imago Dei, que persiste mesmo depois do pecado, ainda témHüm~pãpel muito importante a desenvolver, o papel de Ànknüpfungsjnmkt ( ponto de contato) para a Palavra de Deus. Com efeito, tem a capacidade de receber a Palavra de Deus e ser responsável por ela. E trata-se de uma capacidade viva e não morta, como resulta da implícita nostalgia por Deus que se manifesta na ânsia insatisfeita da vida. 3 ^ Até aqui, Brunner provou a existência de uma única imago Dei (contra a teologia católica) e sua sobrevivência mesmo depois do pecado (contra a teologia barthiana), mas ainda não esclareceu com­ pletamente sua natureza. Em que r n n s i s t e _ efetivamente a imaço De.i2 Emil Brunner repele decididamente a doutrina católica, para a qual a imago Dei consiste essencialmente na racionalidade, identifi­ cando a racionalidade com a essência original do homem e baseando a autocomunicação de Deus na natureza racional, à qual a similitudo Dei advém como um posterius, um sobrenatural, o qual, pelo pecado, pode desaparecer sem que a natureza humana, o homo, animal ra­ tionale, seja prejudicada 20. Segundo Brunner, o erro fundamental do catolicismo é o de ter aceito o conceito clássico da filosofia grega cfõ homem como animal rationale e tê-lo identificado com a imago Dei natural. Nesse erro é que deriva “ todo o edifício de dois planos da teolpgia e da con­ cepção católica da cultura” 21, um edifício composto por contribuições pagãs e contribuições cristãs, uma construção em que to\ios os valores humanos racionais (ciência, filosofia, teologia, etc.) àão afirmados ao lado dos valores sobrenaturais. ' Contra a..imago Dei entendida como essência racional, Brunner propõe a im a ão S Je T entenHl3ã~como relação com D eus. E na relação com Deus, afirma ele, que consiste a essência 3o homem e, portanto, é em tal relação que consiste a imago D ei: “ O homem é um ser ‘teo­ 17 18 19 20 21

Ibid., p. 52. Ibid., p. 53. Der Mensch im Widerspruch, p. 126. Offenbarung uttd Vernunft, p. 91. Der Mensch im Widerspruch, p. 83.


lógico’, ou seja, o seu fundamento, o seu fim, a sua norma e a possi­ bilidade de compreender a sua natureza residem todos em D eus” 22. Enquanto criatura relacionada a Deus, o homem é um ser res­ ponsável. “ O homem não é em primeiro lugar ser humano e só depois responsável; mas sua existência humana consiste na responsabilidade. E o homem não é em primeiro lugar responsável e só depois, como acréscimo, tem uma relação com Deus; porém a relação com Deus se identifica com a responsabilidade” 23. A responsabilidade do homem deve ser concebida mais ontologicamente do que moralmente; com efei­ to, é conseqüência do fato de que o homem, possuindo a existência no Verbo de Deus, deve ouvir sua palavra para poder existir. O homem é um ser “ verbicompetente ” 24. Além da existência presente, o homem também deve ao Verbo a criação. Esta, porém, segundo Brunner, não deve ser concebida como um evento cósmico ocorrido no passado, que fez “ existir nas obscuras idades da pré-história o Adão criado à imagem de Deus, mas sim um evento que faz existir a mim e a todos os outros” 25. A criação, ade­ mais, não deve ser concebida como produção, comunicação de ser a algo, mas sim como uma comunicação pessoal dirigida pelo Verbo de Deus ao homem26. Como se pode facilmente observar, enquanto a doutrina brunneriana sobre as relações entre razão e revelação é fortemente influen­ ciada pela filosofia kantiana, sua doutrina sobre a natureza do homem, por sua vez, está toda permeada pelos temas da filosofia personalista (existência como responsabilidade, criação como comunicação pessoal, etc.). VI. DEUS Já vimos que, segundo Brunner, Deus não..pode ser conhecido pela razão através de suas próprias forças, mas somente com o auxílio dã~Revelação. A justificação dessa sua tese tem um caráter primorosa­ mente gnoseológico. Com efeito, para Brunner, conhecer algo significa apossar-se d ele27. Por isso, se Deus~cleve permanecer Senhor, não pode~ ser pensado. Com efeito, sendo Deus” Pessoa Absoluta, ele permanece um mistéricT mesmo depois da revelação. A personalidade absoluta de Deus, o seu ser sempre sujeito e nunca objeto, é o tema dominante '3a "teologia" de Emil Bmnner. Deus é o “ Totalmente..O utro’’ . P o r e s s e motivo, Brunner acentua constantemente a d isparid ad e entre .o Deus da reveTação e o Deus

22 “The Christian Understanding of Man” in Cburch, dres, 1938, v. II, pp. 159ss. 25 Ibid., p. 159. 24 Das Wort Gottes und der Moderne Mensch, p. 21, 25 Der Mensch im Widerspruch, p. 102. 26 Ibid., p. 87. 27 G ott und Mensch, p. 15.

Community and State,

Lon­


da filosofia. O Deus dos filósofos, declara ele, é um artifício do pen­ samento humano, um corolário do mundo, não sendo, portanto, nada mais do que uma idéia, já o Deus da Bíblia não pode ser conhecido co­ mo uma idéia, mas somente em sua auto-revelação histórica 28. Brunner nunca se cansa de repetir as palavras de Pascal: “ O Deus de Abraão, Isac e Jacó, não dos filósofos” . Como já vimos, ele nega categorica­ mente a possibilidade da teologia natural. Mas o Ser de Deus, em si mesmo totalmente fora do horizonte do pensamento Ümnãnó". reV ^i^se^F lio s e clesse modo tornou-se cognoscível também para o_ homem7^ A Escritura nos revela Deus como Deus de santidade e amor, vale dizer, cômõ sinrésèTdè opostos. Por conseguinte, _a santidade é a característica que distingue Deus de toda outra coisa,___sendo pois & característica que o afasta de nós. Já o amor .é a característica pela qual Deus entra em comunhão conoscoJ°. Santidade e amor encontram-se em contradição e, no entanto, o amor aperfeiçoa a santidade e, vice-versa, só há um perfeito amor onde há uma perfeita santidade. A unidade e ao mesmo tempo a não•identidade entre a santidade e o amor representam a principal ca­ racterística de tudo o que a Revelação nos diz sobre D e u s31. A ira divina mostra que Deus leva a sério a sua santidade.^A mensagem bíblica contém uma tensão dialética entre ira e misericórdia, e n tre a santidade que forma uma só coisa com o amor e a santidade que se levanta contra nós e se identifica com a ira divina. Essa dia­ lética não pode ser solucionada. As tentativas feitas pelos teólogos para solucíõnaTa desembocaram na doutrina calvinista do duplo decre­ to, de salvação e condenação, ou então na doutrina da salvação univer­ sal: ambas erradas, porque Deus tem um só decreto (em Cristo); todavia, por outro lado, não há salvação universal, porque existe uma área que permanece fora de Cristo 32. A dialética é aplicada por Brunner não apenas ao estudo dos atributos do amor e da santidade, mas também aõ~l:studó" ctê muitos outros atributos de D eus. Aqui,..nos limitaremos a recordar somente um outro caso, o da justiça e da liberdade. A justiça representa a constância da vontade divina. A justiça de Deus consiste em procurar a consecução do seu fim através da obra de Cristo. Na justiça, Deus leva a sério a sua Lei, que é baseada em sua soberania. Daí punir o pecador; caso contrário, não haveria nenhuma constância em sua vontade. Esse aspecto da vontade divina, que é designada pela justiça, constitui o elemento racional da doutrina de Deus 33. 28 29 30 31 32 33

Ibid., p. 12. Dogmaiik, I, p. 133. Ibid., p. 196. Ibid., p. 303. Ibid., p. 250. Ibid., pp. 297ss.


Em contrapartida, a liberdade de Deus significa que Deus não é a lei e que a lei não é Deus, mas sim que Deus ditou a lei. Portan­ to, Deus está acima da lei e manifesta a sua liberdade perdoando o pecador. Quando quer, Deus pode deixar de lado a sua lei M. Deus revela-se a si mesmo e seus atributos sob três nomes: Pai, Filho e Espírito Santo. Esses três nomes significam a ordem imutá­ vel da comunicação interna de Deus: do Pai, através do Filho, ao Espírito Santo. Os três nomes não se dispõem um acima do outro, mas numa ordem de prioridade e posterioridade. A Trindade exprime a tríplice personalidade de D e u s35. A Trindade é o mais profundo de todos os mistérios, mas não é um mistério de ordem lógica. “ Que existam três pessoas divinas, cuja relação mútua e cuja unidade paradoxal são incompreensíveis, é uma idéia que nunca assaltou a mente dos Apóstolos” 36. Em sua doutrina trinitária, a Igreja procurou sintetizar o pensa­ mento bíblico com a especulação filosófica antibíblica; mas foi uma tentativa infausta, especialmente quando definiu Deus como “ una substantia” . Conceber Deus como uma só substância está em fla­ grante contradição com a Bíblia, que o concebe como Sujeito Abso­ luto. A substância é um objeto e foi um triste erro ter introduzido tal conceito no Credo 37.

V II. A IG R E JA Para completar o quadro da teologia de Brunner, devemos di­ zer algo sobre a sua doutrina eclesiológica, que se distingue pela estrutura fortemente personalista e pelo conteúdo rigidamente protes­ tante. Brunner encontra na filosofia personalista uma confirmação da eclesiologia dos Reformadores, que, como é sabido, privaram a Igreja de qualquer estrutura hierárquica e sacramental. Brunner define a Igreja como órgão portador da revelação do Evangelho: ê a éxütencíã prõclãmadora ( verkündigende Existenz) 38. Igreja é toda forma de existência histórica que tem origem em Jesus Cristo e o reconhece como seu fundamento e norma suprema 39. Na Igreja, não há nenhuma distinção hierárquica. Segundo Brun­ ner, sãô iJ aulo não reconhece nem a ordem presbiterial nem a ordem episcopal. O Espírito — declara o nosso teólogo — não cria^-cargos. mas serviços. Da fé em Cristo saiu uma comunhão de vida, a ecclesia, mas não uma instituição. A Igreja do Novo Testamento não é uma 34 35 36 37 38 »

Ibid., pp. 303ss. Ibid., pp. 228ss. Ibid., p. 239. Ibid., p. 254. Dogmatik, III, p. 19. Ibid., p. 19.


organização, mas sim um corpo vivo e unificado de dons espirituais e livres. “ A essência da Igreja no Novo Testamento”, escreve Brunner em Understanding the Church, “ é a unidade de comunhão com Cristo mediante a fé e a fraternidade no am or. . . O maior inimigo da men­ sagem cristã não é a hostilidade de quem não crê, mas o ‘eclesiasticismo’ clerical” . Com a mesma firmeza, Brunner nega o caráter sacramental da Igreja. Mesmo admitindo que nas epístolas de são Paulo existem ex­ pressões que se referem aos sacramentos, Brunner sustenta que eles devem ser considerados como resquícios do pensamento helenístico, na medida em que os sacramentos estão em contraste com o caráter personalista do pensamento paulino. À doutrina católica do batismo e dos outros sacramentos, Brunner objeta que eles se tornam veículos de redenção que não exigem nenhuma participação pessoal40. O personalismo — conclui Brunner — não admite nem sacra­ mentos que operam automaticamente, nem autoridades que se substi­ tuam às decisões individuais. O Carisma não criou nem uma ordem, nem centros de comando, nem direitos à obediência41.

V III. AVALIAÇÃO Para um católico, é fácil formular um juízo sobre a teologia de Emil Brunner, colocando-se na encruzilhada da distinção entre for­ ma filosófica e conteúdo bíblico. O conteúdo de sua teologia é claramente protestante: inspira-se no princípio da sola fides (como vimos nas doutrinas da Igreja, da salvação e da fé ), sendo portanto inaceitável para um teólogo cató­ lico. Pode-se fazer uma exceção para as doutrinas do “ ponto de encon­ tro” ( Anknüpfungspunkt) e da “imago D ei”, justamente aquelas que provocaram a acusação de catolicismo por parte de vários teólogos protestantes. Com referência a essas doutrinas, podemos nos pergun­ tar: num genuíno protestantismo, pode haver lugar para o “ ponto de encontro” com a Graça e para o “ resto” da imago Dei depois do pecado? Serão essas doutrinas necessariamente católicas? Quem tem razão nessa questão, Barth ou Brunner? Parece-me que a posição bar­ thiana está sem dúvida mais de acordo com o princípio da sola fides, assim como o conceberam os Reformadores, do que a posição brunneriana. Mas Brunner teve o mérito de fazer ver quão pouco válida é a concepção da sola fides. Então, as doutrinas brunnerianas do Anknüpfungspunkt e da ima­ go Dei são certamente doutrinas católicas? Não creio que se possa 40 Ibid., p. 72. 41 Ibid., p. 85.


responder a essa pergunta com um simples “ sim ” ou “ não” . É pre­ ciso fazer uma distinção. Se essas doutrinas forem tomadas assim co­ mo foram enunciadas, dever-se-ia dizer que não. Com efeito, segundo Brunner, tanto no caso do Anknüpfungspunkt como no caso da imago Dei, não se trata de uma essência preservada substancialmente íntegra, mas duma relação com Deus que o homem nunca pode perder. Toda­ via, se considerarmos o fato de que a expressão que Brunner dá a es­ sas doutrinas é condicionada por sua aversão à metafísica clássica e por sua visão personalista e histórica das coisas, em minha opinião, as duas doutrinas em questão devem ser consideradas como substan­ cialmente católicas, como disse Karl Barth. A forma da teologia brunneriana é extraída de duas filosofias: da filosofia kantiana, no que se refere à gnoseologia, e da filosofia personalista, no que tange à antropologia e à metafísica. Nós consideramos não existir nenhuma ligação necessária entre as duas filosofias, de forma que podemos acolher o personalismo sem sermos obrigados a considerar o kantismo. Brunner escolheu as duas porque ambas correspondiam às exigências do seu teologar. A teoria kantiana do conhecimento confirmava a sua doutrina teológica da impossibilidade da teologia natural. A filosofia personalista permi­ tia-lhe exprimir o dado revelado de maneira a não fazer dele uma verdade abstrata, fixa, imóvel e exterior, mas sim uma verdade con­ creta, viva e interior. Dos dois componentes da forma da teologia brunneriana, con­ sidero que um católico só deve repelir peremptoriamente a primeira, a que se refere à epistemologia, dado que ela compromete inexoravel­ mente a racionalidade da fé, como também a sua expressão objetiva. Entretanto, creio que o segundo componente, o personalismo, pode ser utilizado proficuamente, como de resto já tivemos oportunidade de constatar estudando Guardini e Schillebeeckx. Com efeito, entre o personalismo e a filosofia clássica não existe absolutamente aquela incompatibilidade que Brunner vê entre eles. Muitas de suas críticas às doutrinas da filosofia clássica são evidentemente fruto de uma incompreensão do seu autêntico significado, como, por exemplo, as suas críticas à doutrina da substância. Certamente, o personalismo brunneriano deverá ser considerado com a máxima cautela, porque está profundamente permeado pelo subjetivismo.

Nota bibliográfica. — Os principais estudos são os seguintes: L. M a l e v e z , “Théologie Dialectique, Théologie Catholique et Théologie Naturelle” in Recherches de Science Religieuse, 1938, pp. 385-449; 527-569; H. B o u i l l a r d , Karl Barth, t. I: Genèse et Évolution de la Théologie Dialectique, Aubier, Paris, 1957; P. G. S c h r o t e n b o e r , A New Apologetics, an Analysis and Appraisal of the Eristic Theology of Emil Brunner, KOK, Kampen, 1955; The Theology of Emil Brunner, a cargo de W. K e g l e y e W. B r e t a l l , Macmillan, Nova York, 1962; J. J. S m i t h , Emil Brunner’s Theology of Reve­ lation, Ateneo University Publications, Manila, 1967.


PAUL TILLICH E A TEOLOGIA DA CORRELAÇÃO

Em muitos círculos, Paul Tillich é hoje considerado como o maior teólogo protestante do nosso século. Já há alguns anos, um dos mais competentes teólogos católicos norte-americanos, Gustave Weigel, es­ creveu sobre ele: “ Esse homem é extremamente significativo para a teologia ocidental. Pode-se asseverar sem precipitação que ele é a figura mais impressionante da teologia protestante hodierna, embora se distinga por um grande número de nomes insignes, tanto na Europa como nos Estados Unidos” . Mas a conquista de tanto prestígio por parte dele não foi rápida nem fácil. De origem e formação alemã, Paul Tillich, ao deixar sua pátria, com quase cinqüenta anos de idade, estava bem longe de ocupar no campo teológico uma posição que pudesse competir com as de seus coetâneos Barth e Brunner. Mesmo nos Estados Unidos, sua pátria de adoção, Tillich ficou envolvido na obscuridade por mais de uma década. Somente nas duas últimas décadas de sua existência octagenária é que ele conseguiu ocupar um lugar de proeminência no firmamento da teologia. Isso ocorreu também pelo fato de que todas as suas maio­ res obras foram publicadas nos últimos anos de sua vida. Como teólogo, Paul Tillich coloca-se a meio caminho entre o protestantismo liberal e a neo-ortodoxia barthiana. Num primeiro mo­ mento, ele fez parte do movimento da teologia dialética, chefiado por Barth para- combater e superar a erosão do cristianismo causada pelo liberalismo teológico; mas depois, quando Barth entregou-se ao fideísmo, Tillich dissociou-se do teólogo da Basiléia. Desde então, se opôs com o mesmo vigor à pura razão de Harnack, por um lado, e à pura fé de Barth, por outro, baseando-se no princípio da correlação, que é a cimalha que sustenta todo o seu sistema.

I. VIDA Paul Johannes Tillich nasceu em 20 de agosto de 1886 em Starzeddel, um pequeno povoado da Alemanha setentrional, filho de pais protestantes; o pai, aliás, era pastor da Igreja Luterana. Realizou seus primeiros estudos em Schoenfliess-Neumark, para onde o pai se trans­ ferira, nomeado que fora superintendente diocesano. Com doze anos 3 • Os grandes teólogos... ■ Vol. 2


de idade, ingressou no Gymnasium da vizinha cidade de Königsberg. Em 1900, sua família transferiu-se para Berlim, onde seu pai assumi­ ria um importante cargo eclesiástico. Entretanto, nem as freqüentes transferências nem os estudos tinham até então contribuído para modificar os ideais religiosos, políticos e culturais profundamente con­ servadores do jovem Tillich. Nem mesmo a movimentada vida da ca­ pital conseguiu cavar novos sulcos no mundo espiritual do nosso jovem, que continuava a viver no ambiente fechado da sociedade prussiana e de sua família. “ Foi preciso uma guerra mundial e uma catástrofe política”, revela-nos Tillich em suas recordações, “ antes que eu pudesse acabar com aquele sistema de autoridade e pudesse colocar-me em condições de afirmar a minha fé nos ideais democráti­ cos e na revolução social. Ainda mais difícil de superar era a influên­ cia do sistema autoritário sobre a minha vida pessoal, especialmente em seus aspectos religiosos e intelectuais. Tanto meu pai como minha mãe eram personalidades bastante conservadoras” x. Em Berlim, o jovem Paul concluiu seus estudos liceais e iniciou os universitários, que tiveram prosseguimento em Tübingen para a láurea em filosofia e em Halle para a láurea em teologia. Em filoso­ fia, estudou com arrebatamento todos os grandes filósofos alemães, sobretudo Schelling, que despertou seu interesse por sua “ fundação duma filosofia cristã em contraste com a filosofia humanista da essên­ cia de Hegel e por sua interpretação da história como história da sal­ vação” 2. Tanto a sua tese de Tübingen3 como a de H alle 4 analisam o pensamento desse autor. Em teologia, esteve na escola dum dos maiores mestres da época, Martin Kahler (1835-1912), autor, entre outras obras, do famoso Der Sogenannte Historische Jesus und der Geschichtliche Biblische Christus (1 8 9 2 ), em que, valendo-se da dis­ tinção feita pela língua alemã entre Historie (crônica histórica) e Geschichte (H istória), mostra que os Evangelhos não podem ser con­ siderados como documentos de crônica histórica da vida de Jesus, mas apenas como documentos históricos da mensagem pregada pela Igreja primitiva, ou seja, do kerygma. Este contém, portanto, o Cristo his­ tórico, mas não nos permite reconstruir fielmente os acontecimentos de sua vida, mas só o testemunho prestado pela Igreja a Jesus como o Cristo. Essa distinção entre o Cristo histórico e o Cristo da crônica histórica influenciou profundamente Tillich e encontra-se na base do seu forte ceticismo sobre tudo o que se refere aos episódios particula­ res da vida de Cristo (à exceção de seu nascimento e da sua morte na cruz).

1 “Autobiographical Reflections” in The Theology of Paul Tillich, a cargo de W. e R. W. B r e t a l l , Nova York, 1952, p. 8. 2 The Interpretation of History, Nova York, 1936, p. 6. 3 Die Religionsgeschichtliche Konstruktion in Schellings Positiver Philosophie, Ihre Voraussetzungen und Prinzipen, Breslau, 1910. 4 “Mystik und Schuldbewusstsein in Schellings Philosophischer Entwicklung” in Beiträge zur Förderung Christlicher Theologie, 16 (1912), n. 1.

K e g le y


Concluídos os seus estudos universitários, em 1912, dedicou-se à cura de almas até a eclosão da Primeira Guerra. Então, alistou-se co­ mo capelão militar. A experiência bélica foi-lhe de grande utilidade para o amadurecimento de sua personalidade. Antes de mais nada, o encontro com as classes sociais mais baixas, com as quais tinha seu primeiro contato, levou-o a refletir sobre a sua exploração por parte de autoridades que até então ele tinha reverenciado, a aristocracia fundiária, o Exército, a Igreja e o Estado. Esse imprevisto encontro com o povo e com seus sofrimentos “ transformou-o completamente” . “ A transformação” , informa o nosso autor, “ ocorreu durante a ba­ talha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante to­ da a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e horrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte de minha filosofia clássica ruiu aos pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre a essência e a existência. . . Lembro-me que sentava sob as árvores das florestas francesas e lia Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da libertação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o con­ ceito tradicional de Deus estava mesmo m orto” 5. Esse trecho autobiográfico é de capital importância, porque re­ gistra o momento em que Tillich despiu as vestes da visão liberal, burguesa e idealista da realidade em que fora criado e começou a colo­ car as vestes duma visão mais concreta, ainda que menos atraente, das coisas. A frase “ o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto” já contém em germe todo o futuro programa teológico de Tillich, que, persuadido de que o conceito tradicional de Deus não tem mais significado para o homem moderno, dedicará toda a sua vida e as suas energias para transformar a mensagem cristã, dar-lhe uma nova expressão, fazer com que corresponda mais aos problemas e às exigências do homem contemporâneo. Assim, enquanto para a maior parte dos seus contemporâneos a Primeira Guerra Mundial significou apenas o fim da visão de mundo do século X IX , o fim da cultura burguesa, o fim de todas as filosofias tradicionais, do idealismo ao positivismo, do voluntarismo ao espiritualismo, para Tillich aquele cataclisma teve um significado ainda mais profundo: para ele, com o capitalismo ruíram também todas as suas estruturas e superestruturas, inclusive a religião. A concepção deísta de Deus como senhor providente colocado fora do mundo não se sustentava mais, tendo-se tor­ nado mesmo um obstáculo para a religião, uma razão pela qual muitos não tinham mais fé. Para salvar a religião, era preciso abandonar Deus assim como ele era concebido tradicionalmente. A revisão do conceito 5 Citado no Time, 6 de março de 1959, p. 47.


de Deus tornava-se, pois, um dos principais objetivos da obra de Tillich. Terminada a guerra, ao retornar à pátria, o nosso teólogo encon­ trou-se em meio à revolução. A libertação dos presos políticos colo­ cara em circulação os elementos mais perigosos e exaltados do movimento revolucionário socialista. Logo as greves se multiplicaram. Por toda parte surgiram “ sovietes” de soldados, marinheiros, operá­ rios. Nessa situação, Tillich considerou necessário que os intelectuais fizessem causa comum com os proletários, porque era preciso que as muralhas da velha construção do século X I X fossem desmanteladas antes de dar início à nova construção. O fato de que as massas dos trabalhadores davam sinais de irreligiosidade constituía para Tillich um motivo de esperança ao invés de desespero. A natureza laica do movimento socialista parecia-lhe a moldura mais adequada para a manifestação do eterno ( o Kairos, como o chama o nosso autor) duma forma totalmente nova e integralmente pura. Juntamente com alguns amigos, fundou um movimento político chamado “ socialismo religio­ so ”, movimento baseado no princípio de que sem um fundamento religioso nenhuma sociedade pode salvar-se da destruição. Mas as massas operárias não estavam em condições de compreender um programa tão nobre como o do partido de Tillich e o movimento fracassou. Os anos do após-guerra devem ser considerados entre os mais interessantes da vida de Paul Tillich, não só pela experiência do socia­ lismo religioso, mas também e sobretudo pela rápida maturação em sua mente de idéias, princípios e doutrinas originais; em suma, de todo o embasamento de sua futura construção teológica. As noções do princípio da correlação, do princípio protestante, da sola fides, da fé como empenho supremo e do kairos encontraram a sua primeira formulação durante aquele período. Isso foi confirmado pelo próprio teólogo. “ Em Marburg” , escreve ele, “ em 1925 comecei a trabalhar em minha Teologia Sistemática, cujo primeiro volume foi publicado em

1952 6 Naquela época, lecionava em Marburg nada menos que Heidegger, a cuja influência Tillich foi muito sensível. A ele deve o componente existencialista do seu pensamento. Ao mesmo tempo, o nosso jovem teólogo sentia-se atraído pela teologia dialética de Karl Barth, que em alguns pontos fundamentais considerava corresponder plenamente ao seu programa teológico. Com efeito, o Barth da teologia dialética procurava construir uma relação orgânica entre a criatura e Deus. E esse era também o ponto central da concepção tillichiana das relações entre teologia e cultura, entre fé e razão, entre homem e Deus. Porém, quando mais tarde Barth passou-se para a neo-ortodoxia, os dois se separaram, tornando-se ad­ versários declarados. ”

6 The Tbeology of Paul Tillich, p. 14.


Nesse meio tempo, tivera início a brilhante carreira universitá­ ria do nosso teólogo. De 1919 a 1924, foi livre docente em Berlim; em 1924/25 foi professor em Marburg; de 1925 a 1929, em Dresden e Leipzig; de 1929 a 1933, em Frankfurt. Entrando em conflito com o nazismo imperante, foi demitido da cátedra, tendo sido o primeiro professor não-judeu a sofrer essa vexação. Mas precisamente em 1933 encontrava-se na Alemanha R. Nie­ buhr, o já famoso teólogo norte-americano, que convidou Tillich a ir com ele para os Estados Unidos. Aceitou o conselho, em novembro do mesmo ano emigrou com toda a família para os Estados Unidos. Graças ao apoio de Niebuhr, logo encontrou um lugar entre os pro­ fessores do “ Union Theological Seminary” de Nova York. Seu in­ gresso naquele célebre seminário foi determinante para o nosso teólogo, na medida em que facilitou sua inserção no novo mundo, oferecendo­ -lhe imediatamente a possibilidade de conhecer o ambiente cultural e social norte-americano e descobrir novas perspectivas para o seu pensamento. “ O Union Seminary” , escreve Tillich, “ não é uma co­ munidade isolada. Se Nova York é a ponte entre os continentes, o ‘Union Seminary’ é o caminho que conduz a essa ponte, sobre a qual se movem as igrejas do mundo. Uma contínua corrente de visitantes de todos os países e de todas as raças passa por nosso quadrilátero. Em tal ambiente, é quase impossível permanecer provinciano. A aber­ tura mundial, tanto no campo teológico como nos campos cultural e político, é uma das coisas pelas quais sinto maior gratidão” 7. Além dos teólogos norte-americanos e europeus, protestantes e católicos, Tillich mantém freqüentes contatos com o movimento da “ psicologia do profundo” , através de seminários e discussões sobre as relações entre a compreensão teológica e psicoterápica do homem, na “ Colum­ bia University” e no próprio “ Union Seminary” , bem como através de contatos pessoais com analistas e psicólogos. A relação entre a dis­ ciplina psicanalítica e a teologia sempre foi considerada como muito estreita pelo nosso autor: segundo ele, não é “ possível hoje em dia elaborar uma doutrina cristã do homem sem usar o imenso material descoberto pela ‘psicologia do profundo’ ” 8. Como observou justamente meu amigo Leibrecht9, nos Estados Unidos Tillich não mudou o conteúdo essencial do seu pensamento, mas apenas o adaptou às novas circunstâncias. Enquanto que para os teólogos europeus, que olhavam com desprezo a arte, a cultura, a política e a ação social, ele havia pregado a necessidade de se ocupar da cultura e do proletariado, nos Estados Unidos percebeu que lá, ao contrário, era necessário protestar contra a confusão muito fácil entre o humano e o divino. Nos Estados Unidos, onde o liberalismo teolóV Ibid., p. 17. 8 J . Bosc, “Paul Tillich” in Informations Catholiques Internationales, n. 253, 1“ de dezembro de 1965, p. 32. 9 W. L e i b r e c h t , “The Life and Mind of Paul Tillich” in Religion and Culture. Essays in Honour of Raul Tillich, Nova York, 1959, pp. 18-19.


gico continuava imperando, a religião era amiúde absorvida pela ética, pela ação social, pelo ativismo. Por isso, enquanto na Alemanha pro­ curara impelir à ação os pastores que renunciavam à vida ativa pela vida contemplativa, nos Estados Unidos ele exalta a vida contempla­ tiva de Maria mais do que a de Marta 10. Na teologia norte-americana, que era essencialmente expressão do naturalismo religioso, muitos conceitos teológicos fundamentais, como graça e pecado, se haviam perdido. Nessa nova situação, Tillich retomou a sua obra de renova­ ção da mensagem cristã, dando grande importância à parte apologética, procurando evidenciar o estado de alienação, desespero, crise e malo­ gro em que se debate o homem moderno, inclusive o norte-americano, apesar do seu bem-estar. Depois de um início difícil e penoso, o pensamento de Tillich começou a encontrar admiradores e seguidores. Depois da Segunda Guerra, eles cresceram tanto a ponto de fazer de Tillich o teólogo mais admirado e influente dos Estados Unidos u . Por isso, em 1955, a Universidade de Harvard ofereceu-lhe um lugar entre seus estu­ diosos (os Harvard’s University Professors) que trabalham nas “ fron­ teiras da ciência” (on the frontiers of knowledge). Tillich aceitou e, depois de mais de vinte anos de ensino no Union Seminary, assumiu a cátedra teológica mais ambicionada dos Estados Unidos. Nela, durante os últimos anos de sua vida, pôde pregar a sua mensagem teoló­ gica à fina flor dos universitários norte-americanos e do mundo. De­ pois de ter deixado Harvard por limites de idade, ainda ensinou pela última vez alguns meses em Chicago. Em 23 de setembro de 1962, recebeu o Prêmio da Paz das mãos do presidente da Associação dos Editores Alemães. Morreu em 22 de outubro de 1965 em Chicago, deixando sua mulher, Hannah, uma filha, Erduthe Farris, e um filho, René Stephen.

II. OBRAS A produção literária de Tillich é considerável: mais de quatro­ centos escritos. Do ponto de vista cronológico, divide-se em dois grupos: alemão e norte-americano. As obras mais importantes do período alemão são: Die Reli­ giose Lage der Gegenwart (Ullstein, Berlim, 1925) e Das Dàmonische. Ein Beitrag zur Sinndeutung der Geschichte (Mohr, Tübingen, 1926). São dois escritos curtos, mas altamente significativos. O pri­ 10 Cf. The New Being, Nova York, 1955, pp. 152-160. 11 O padre W e i g e l , o mais corajoso teólogo católico norte-americano, escreveu: “This man (Paul Tillich) is most significant for the theology of the contemporary west. It can be maintained without rashness that he is the most impressive figure in today’s Protestant theology, which is distinguished by many great names both in Europe and America” ( “ The Theological Significance of Paul Tillich” in Cross Current, 1956, p. 141).


meiro é uma análise penetrante da crise espiritual que golpeou a so­ ciedade no primeiro após-guerra, uma crise que, segundo o autor, não se deve tanto ao declínio da cultura ocidental quanto ao colapso da sociedade capitalista e de todos os seus ideais humanos e religiosos. Como remédio para esse mal, Tillich propõe o restabelecimento dum ideal no qual o elemento humano seja constantemente moderado pelo elemento religioso. A esse ideal Tillich dá o nome de “ realismo con­ fiante” {Belieffui Realism, Der Gläubige Realismus). O segundo é um ensaio sobre a filosofia da história, em que trata precipuamente do problema do mal. Dando um novo significado à concepção platô­ nica do mal como limitação do ser, Tillich faz dele um poder fatal­ mente presente na profundidade mesma do divino, nele radicado como sua possibilidade, mas dotado de suas próprias capacidades criativas e destrutivas. Nesses escritos, já estão presentes as constantes dos interesses especulativos do nosso autor: uma preocupação pelo concre­ to tal como se revela na situação presente, a busca de uma resposta aos problemas que angustiam o homem moderno e uma grande sensi­ bilidade para a história. A produção do período norte-americano é muito fecunda. Abar­ ca dois gêneros de escritos: alguns são dirigidos aos especialistas, ou­ tros ao grande público. Ao grande público destinou, entre outras, as seguintes obras: The Protestant Era (University Press, Chicago, 1 948); The Shaking of the Foundations (Scribner, Nova York, 1 948); The Courage to Be (Yale University Press, New Haven, 1952; tradução brasileira: A Coragem do Ser, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1 9 6 7 ); Love, Power and Justice (O xford University Press, Londres, 1 954); The New Being (Scri­ bner, Nova York, 1 9 55); Biblical Religion and the Search for Ulti­ mate Reality (University Press, Chicago, 1 955); Dynamics of Faith (Harper, Nova York, 1958); Morality and Beyond (Harper, Nova York, 1963); Christianity and the Encounter of World Religions (Columbia University Press, Londres, 1 963); The Eternal Now (Harper, Nova York, 1966); My Search for Absolutes (Simon & Schuster, Nova York, 1967). Nesses escritos, de caráter predominantemente de divulgação, Tillich procurou, com uma linguagem simples e imediata, tornar sua mensagem religiosa compreensível mesmo para o público pro­ fano, ou seja, aquele público que habitualmente se considera por fora das questões teológicas. Dentre essas obras, The Shaking of the Foundations e The New Being foram as que tiveram maior sucesso e exerceram a maior influência. Nelas foram buscar inspiração o bispo Robinson para o célebre livro Honest to God, e os teólogos da morte de Deus para as suas doutrinas. Trata-se de duas obras gêmeas: “ Os dois títulos, The Shaking of the Foundations & The New Being, mostram a relação existente entre os mais importantes problemas do primeiro com os do segundo. The New Being (O Novo Ser) é, por assim dizer, a res­


posta às questões levantadas em The Shaking of the Foundations (O Abalo das Fundações)” 12. A tese de The Shaking of the Foundations é que os símbolos, os conceitos e a linguagem com que a mensagem cristã é expressa hoje estão decididamente superados: o homem moderno não os compreende mais. Nem mesmo os símbolos mais importantes, como Deus, pecado, paraíso e inferno, dizem-lhe ainda alguma coisa e, ao invés de ajudá-lo a crer, tornaram-se para ele uma ulterior razão de incredulidade. Chegou, portanto, o momento de abandoná-los e subs­ tituí-los por símbolos novos, em conformidade com o novo modo de pensar. Para salvar o homem contemporâneo do esfacelamento reli­ gioso que ameaça arrastá-lo, segundo Tillich, é necessário colocar de lado não só os conceitos de paraíso e inferno, como fazem quase todos os pregadores, mas também a palavra “ D eus” , substituindo-a por ou­ tros termos: “ Se tal palavra não tem mais para vocês muito signifi­ cado, traduzam-na e falem da profundidade de sua vida, do funda­ mento de seu ser, daquilo que verdadeiramente lhes importa, daquilo que verdadeiramente levam a sério, sem reservas. Para fazê-lo, talvez vocês devam esquecer algumas das noções tradicionais de Deus, tal­ vez tenham que esquecer essa mesma palavra” 13. Em The Shaking of the Foundations, Tillich deu a partida à rea­ lização do seu grande programa de transmitização do cristianismo 14. Esse programa articula-se em duas partes: 1) demitização, em que se despe o kerygma das vestes expressivas tradicionais; 2 ) remitização, em que se lhe dá vestes novas e atuais. Em The Shaking of the Foun­ dations, o autor demitiza o conceito tradicional de Deus como ser supremo e o remitiza com o conceito de “ fundamento do ser” ( ground of Being). A tese de The New Being é que, se Cristo é apresentado como Novo Ser, a mensagem cristã voltará a atrair também o homem moder­ no. “ O Cristianismo é a mensagem da Nova Criação, o Novo Ser, a Nova Realidade, que se manifestou com a vinda de Jesus, que por essa razão e só por essa razão é chamado o Cristo. Com efeito, o Cristo, o Messias, o eleito e ungido, é aquele que traz o novo estado de coisas” 15. Entretanto, para que o Novo Ser possa readquirir a efi­ cácia que tinha quando se manifestou pela primeira vez, há dois milê­ nios, na Palestina, é preciso libertá-lo dos esquemas mentais em que foi fechado, das práticas supersticiosas de que foi circundado através dos séculos e restituir-lhe sua originalidade. Segundo Tillich, isso pode ser feito através do conceito de “ Novo Ser” ( New Being). Em Love, Power and Justice, Paul Tillich opera uma terceira transmitização: esta tem por objeto o Espírito Santo, para o qual o 12 The New Being, Prefácio. 15 The Shaking of the Foundations, p. 63. 14 A propósito disso, cf. B. M o n d i n , Paul Tillich Gristianesimo, Turim, 1967, sobretudo o último capítulo. 15 The New Being, p. 15.

e la Transmitizzazione dei


autor escolhe a expressão “Power of Love” (poder do am or). No Poder do Amor se resolvem todas as expressões humanas do amor: libido, eros, philia e agape. Para os especialistas em teologia, Paul Tillich elaborou a monu­ mental Systematic Theology, uma autêntica suma teológica, obra que custou-lhe quarenta anos de esforços: em 1925 já pensava nela. O primeiro volume foi publicado em 1951, o segundo em 1957 e o terceiro e último em 1963, todos publicados pela University of Chica­ go Press. O primeiro é dividido em duas partes, tratando respectiva­ mente da razão e da Revelação (Reason and Revelation) e do Ser e Deus ( Being and G od). O segundo trata da existência e de Cristo ( Existence and the Christ). O terceiro, também dividido em duas partes, estuda a vida e o Espírito ( Life and the Sprit) e a história e o Reino de Deus ( History and the Kingdom of G od ). Como se pode facilmente depreender dos títulos das várias partes, em toda a obra Tillich emprega o mesmo modelo, correspondente à concepção que ele tem da Revelação, entendida como resposta de Deus aos pro­ blemas fundamentais do homem. Com base nessa concepção, é lógico abordar os problemas teológicos particulares em dois momentos: no primeiro, são analisadas as questões colocadas pelo homem; no segun­ do, são expostas as respostas dadas pela Revelação. É isso o que Tillich faz em Systematic Theology. Também para especialistas em assuntos teológicos foram elabora­ dos os dois livros publicados postumamente: Perspectives on 19th and 20th Century Protestant Theology (H arper & Row, Nova York, 1967) e A History of Christian Thougth (idem, 1968). Contêm as lições de história da teologia que Tillich ministrou durante vários anos no Union Theological Seminary e na Harvard University. Antes de passar ao estudo do pensamento do nosso teólogo, é oportuno encararmos ligeiramente as suas fontes. Ao contar a vida de Paul Tillich, já tivemos oportunidade de nos referirmos a algumas: Schelling (para a doutrina da presença do Absoluto em toda coisa), Kierkegaard e Heidegger (para o existencialismo), Kãhler (para o ceticismo em relação ao Cristo histórico). Além dessas fontes, que poderíamos chamar as principais, Tillich deve importantes aspectos de seu sistema a Platão (participação e alienação), Kant (instância crítica e dicotomia entre fenômeno e número), Hegel (dialética, que de dialética dos opostos ele transforma em dialética dos correlativos), Freud ( psicanálise e “ psicologia do profundo ” ), Lutero ( doutrinas da sola gratia, simul justus et peccator), Bõhme (m isticism o). Além da influência dos grandes filósofos e teólogos do passado, Tillich tam­ bém se mostrou sensível à influência dos contemporâneos, sobretudo de Heidegger, Barth e Bultmann. Dos dois primeiros já se falou. Quanto a Bultmann, ele sofreu sua influência sobretudo no que se refere à transmitização. Um pensador que, como Tillich, serve-se tão amiúde e de bom grado das doutrinas de outros filósofos e teólogos, corre naturalmente


o risco de cair no ecletismo. Mas Tillich conseguiu salvar-se desse defeito fundindo e amalgamando solidamente num único todo as dou­ trinas que tomou emprestadas de outros autores. E isso lhe foi possí­ vel porque não se contentou em colocar juntas, mais ou menos artifi­ cialmente, as várias doutrinas e tendências dos filósofos e teólogos do passado e do presente, mas unificou todas elas através de um prin­ cípio novo, original, todo seu: o princípio da correlação, É nesse princípio que se apóia todo o seu sistema teológico.

III. PENSAM ENTO Paul Tillich é um pensador sistemático (aliás, em minha opinião, o mais sistemático deste século em teologia). Procurou nos dizer ordenadamente e por completo tudo aquilo que queria nos dizer. Por isso, não é difícil identificar os temas dominantes em seu pensa­ mento. Estes podem ser reduzidos a dois: um, metodológico; o outro, de conteúdo. O primeiro é constituído pelo princípio da correlação, o segundo pelos problemas do homem e as respostas de Deus. O se­ gundo tema, obviamente, tem um vasto alcance e abarca quase toda a teologia tradicional, bem como grande parte da filosofia. No en­ tanto, é possível reduzi-lo a três pontos principais, na medida em que três são os maiores problemas que angustiam o homem: o ser das coisas, a própria existência e a história. Deus forneceu sua resposta clarificadora e salvífica a tais problemas, apresentando-se como funda­ mento do ser, salvador do homem e guia da história. Mas a resposta divina só resolve os problemas do homem se este a faz sua, ou seja, somente se tem fé. Contudo, para que ele possa fazê-la sua, é preciso que ela lhe seja apresentada de maneira inteligível. Daí a instância de transmitizar a mensagem revelada para torná-la eloqüente para o ho­ mem do século X X . Toda a obra de Tillich é uma resposta a essa instância. Vista com um olhar panorâmico a vigorosa construção teológica do nosso autor, passemos agora a examinar suas partes principais, uma por uma. Comecemos naturalmente pelo princípio da correlação, o qual, em sua obra, constitui a porta de entrada, em cujo portal está inscrito o princípio arquitetônico que deu inspiração a todo o edifício. 1. O Princípio de Correlação O eixo em torno do qual gira toda a teologia de Paul Tillich é o princípio da correlação. Este afirma a necessidade de pensar qual­ quer realidade juntamente com outra realidade, na medida em que elas se encontram em relação de dependência recíproca. Essa relação de



mente, de baixo para cima (e vice-versa), do homem para Deus (e vice-versa). É com base nessa correlação que edifica todo o seu sistema teológico, o qual, como já vimos, se articula em cinco partes, justamente porque cinco são as ramificações fundamentais da corre­ lação vertical: razão-Revelação, ser-Deus, vida-Espírito, homem-Cristo, história-Reino de Deus. Passemo-las em revista uma por uma. 2. A correlação epistemológica Dentre as correlações verticais, a que se refere à esfera do co­ nhecimento parece a menos importante, na medida em que tem uma extensão menos vasta do que as outras. Mas para quem possui uma sensibilidade crítica como Tillich ela tem um valor fundamental, porque de sua correta compreensão depende o entendimento de todas as ou­ tras. Por isso, ela ocupa o primeiro lugar no sistema tillichiano. A correlação epistemológica é estudada em três momentos: pri­ meiro como relação entre razão e Revelação, depois como relação en­ tre razão e fé e, por fim, como relação entre filosofia e teologia. Segundo Tillich, a razão é uma força que permeia toda a reali­ dade. Como força das coisas, chama-a “ razão objetiva” , como força do homem chama-a “ razão subjetiva” : “ Desde os tempos de Parmênides, houve sempre a assunção comum de todos os filósofos de que o logos, a palavra que compreende e transforma o real, só pode fazer isso porque a própria realidade tem a característica do logos” . Assim, é legítimo falar de razão subjetiva e razão objetiva: “ A razão subjetiva é a estrutura racional da mente; a razão objetiva é a estrutura racio­ nal da realidade, que a mente está em condições de apreender e em virtude da qual ela pode dar forma ( shape) à própria realidade” 17. Como muitos outros filósofos antes dele — por exemplo: Platão, Pascal, Bergson — , Tillich distingue dois momentos no interior da ra­ zão subjetiva, um técnico e um “ participativo” . O momento técnico é aquele em que a razão chega à verdade pelo caminho da análise e da experimentação. O momento “ participativo” é aquele em que chega à verdade pelo caminho da intuição e da emoção. O processo cognoscitivo por controle reduz todo objeto a coisa, dele fazendo um elemento de evidência empírica; mas exatamente por isso não está em condições de colher toda a verdade na profundidade do Ser. Já o conhecimento “ participativo” chega até o Ser, mas exatamente porque priva do ca­ ráter experimental não oferece garantias de veracidade e deixa sempre aberta a possibilidade da dúvida 18. Para tirar a razãohumana das areias movediças da dúvida que ameaçam engolir todo o seu mundo cognoscitivo, Deus vem ao en­ contro do homem com a luz da Revelação. Esta, segundo o nosso au17 O.c., v. I, pp. 75-77. O.c., v. I, pp. 75-79, 1959, pp. 201-209.

e o artigo “ Participatíon and Knowledge” in Sociologica,


tor, representa o momento em que o sujeito humano é aferrado pelo poder do Ser (ou seja, de Deus) e imerso no milagre de sua automanifestação. O arrebatamento que se segue descobre o significado últi­ mo das coisas, isto é, aquele que não é deduzido de sua finitude e determinação posicionai, mas sim de sua radical correlação com Deus. Então, as coisas, fatos e acontecimentos tornam-se símbolos da reali­ dade divina: uma iluminação que alcança a realidade e o homem, ao qual revela o seu próprio fundamento ontológico e o de cada coisa em particular 19. Aquilo que se manifesta ao homem na Revelação não é estranho à razão, não pertence a um outro mundo, um mundo sobrenatural, mas sim a um mundo que é o seu próprio mundo em sua profundidade mais substancial. Com efeito, a Revelação outra coisa não é que a Profundidade da R azão20. A razão, portanto, é naturalmente aberta à Revelação, aliás, é correlata a ela, porque só a Revelação está em condições de dar uma resposta plenamente satisfatória às suas ques­ tões. Mas o encontro entre razão e Revelação não é automático, não ocorre mecanicamente, mas apenas quando estão presentes certas condições espirituais, aquelas condições que constituem a fé. Para Paul Tillich, a fé não é só um ato do intelecto ou da vontade através do qual aceita-se verdades comunicadas de cima, mas sim é um estado que alcança todo o homem: “ A fé é o estado de quem se empenha extremamente” 21. Esse estado é comum a todos os ho­ mens. Todos, com efeito, têm algo que os empenha de maneira su­ prema. Assim, a fé é uma disposição comum a todos os homens; mas não a fé cristã. Esta só pertence a quem escolheu Jesus Cristo como motivo do seu empenho supremo. A fé é essencialmente dom de Deus. Porém, contrariamente ao biblismo fideísta barthiano, que exclui da fé qualquer condicionamen­ to humano e dela faz umaobraexclusiva de Deus,Tillich afirma que ela não é possível sem aparticipação do homem. A inserção humana é evidente, antes de mais nada, no fato de que o sujeito da fé é e só pode ser um homem. Com efeito, para que o ato de fé se cumpra, é preciso haver um sujeito capaz de preocupações supremas. Tal sujeito não é a pedra, nem a planta, nem o animal. Só o homem tem a ca­ pacidade “ de transcender o fluxo das experiências relativas e transi­ tórias da vida cotidiana. As experiências, os sentimentos e os pensa­ mentos do homem são finitos e condicionados. Não só vão e vêm como também o seu conteúdo é de interesse finito e condicionado, a menos que seja elevado a valor incondicionado. Mas isso pressupõe a possibilidade geral de fazê-lo; pressupõe o elemento de infinidade no homem. O homem é capaz de compreender em um ato imediato, 19 O.c., v. I, pp. lOlss. 20 O.c., v. I, pp. 79-86. 21 “Faith is the Stade of Being Ultimately Concerned” in Dynamics of Faith, Nova York, 1957, p. 1.


pessoal e central o significado do último, do incondicionado, do su­ premo, do absoluto, do infinito. Somente isso faz da fé uma possi­ bilidade humana” 22. Isso, que poderemos chamar de predisposição ontológica, não basta; são necessárias também predisposições psicológicas, porque a fé não é algo que Deus impinge a qualquer custo, mesmo a quem não a quer ou não está preparado. A predisposição psicológica fundamental é que o homem tenha experimentado a inutilidade do seu ser, a incapacidade de dar um sig­ nificado à própria vida, a alienação de sua essência; é preciso que ele tenha consciência do estado de pecado em que se encontra. “ Somente se possuímos uma justa visão da situação humana da velha realidade do homem é que podemos compreender que em Cristo surgiu uma nova realidade” 23. É preciso reconhecer “ que a condição de toda a nossa vida é alienação dos outros e de nós mesmos, porque nos aliena­ mos do fundamento do nosso ser, porque nos alienamos da origem e do objetivo de nossa vida. Não sabemos mais de onde viemos e pa­ ra onde vamos. Estamos separados do mistério, da profundidade, da grandeza do nosso ser” 24. Mas quem está consciente do aspecto trá­ gico da situação humana não seria mais levado ao desespero do que à fé? Isso é mais que verdadeiro. Aliás, humanamente falando, ele é levado só ao desespero. Todavia também é verdade que esse é o terreno mais propício para receber a fé. Quem tem viva consciência do seu próprio estado de alienação tem também a alma aberta para a voz da Revelação, está disposto a recebê-la. De fato, superou aquele estado de cômoda auto-suficiência, de soberba, de hybris (como Tillich gosta de chamar), que é o inimigo número um da fé. A fé é a resposta de Deus à questão existencial. Enquanto essa questão não é colocada, Deus não responde. O que não significa que a resposta de Deus é causada pela pergunta humana. A pergunta é condição, não causa da resposta. A resposta é absolutamente gratui­ ta, porém só é dada a quem a procurou e está em condições de apre­ ciá-la. A resposta divina, como já se viu, constitui a Revelação 25. A Revelação, que é concedida por Deus a todos os homens de fé, constitui o objeto da reflexão teológica. Dois são, portanto, os ele­ mentos constitutivos da teologia: a mensagem revelada e a reflexão filosófica. Tillich os extrai do próprio termo “teologia”, que resulta da união dos termos gregos “ theos” e “logos” . O primeiro indica aquilo de que se ocupa o teólogo em sua reflexão, vale dizer, Deus na medida em que se revelou. O segundo exprime o esforço realizado pelo teólogo com a razão, a fim de penetrar nos mistérios da Revela­ ção divina. Os dois elementos são inseparáveis: não pode haver teo22 23 24 25

Dynamics of Faith, p. 9. The New Being, pp. 162-163. The Shaking of the Foundations, p. 160. Ibid., pp. 163ss.


logia sem mensagem revelada, mas tampouco sem reflexão teológica. Contudo, ao construir um sistema, pode-se dar mais relevo a um ou outro. Se prevalece o elemento querigmático, temos uma teologia de tipo barthiano. Já se predomina o elemento filosófico, temos uma teologia que Tillich ora chama “ apologética” , ora “ teologia especula­ tiva”, ora “ filosofia cristã da religião” , ora “ teologia filosófica” . E Tillich propôs-se a construir não uma teologia querigmática, antes uma teologia filosófica 2S. Além do theos e do logos, a teologia também é constituída por um terceiro elemento, o kairos, ou seja, o momento propício. Para que haja esse elemento, é preciso que o teólogo saiba escolher o mo­ mento justo para interpretar a mensagem cristã para os homens de sua época 27. A definição dos elementos da teologia já fixou substancialmente as suas funções principais, que são duas: conservar a mensagem cris­ tã e relacioná-la com a situação cultural presente. “ Um sistema teo­ lógico”, afirma Tillich no início da Systematic Theology, “ deve satis­ fazer duas exigências fundamentais: a afirmação da veracidade da mensagem cristã e a interpretação dessa verdade para cada nova geração. A teologia move-se constantemente entre esses dois pólos, a verdade eterna do seu fundamento e a situação temporal em que a verdade eterna deve ser recebida” 28. Porém, como já vimos, segundo Tillich é impossível que um sistema teológico possa satisfazer em igual medida a ambas as exigências. Razão pela qual ele se propôs sobretudo a assumir a segunda função, isto é, interpretar a verdade cristã para a sua geração, adaptando a mensagem bíblica à situação his­ tórica atu al29. O primeiro passo para o cumprimento dessa função é, obvia­ mente, precisar qual a situação cultural e filosófica do homem moder­ no, porque não se pode corresponder a uma situação sem conhecê-la. Segundo Tillich, a situação filosófica contemporânea é caracterizada pelo existencialismo: a autocompreensão que o homem do século X X tem de si é permeada de angústia, alienação e desespero 30. De que modo a teologia deve ir ao encontro dessa situação? Dizendo-lhe que não, condenando-a, como ensinou Karl Barth? Tillich tem muitas palavras de elogio para a obra do teólogo da Basiléia, mas condena firmemente c seu método de abordar a situação humana, o método da absoluta negação de tudo aquilo que pertence ao homem e à história. Segundo o nosso teólogo, tal método é inaceitável porque toda boa teologia deve manter um equilíbrio constante entre o não do juízo divino e o sim da graça divina. A teologia deve ir ao encon26 The Vrotestant Era, pp. 84-85; “ Relations of Metaphysics and Theology” in Review of Metaphysics, v. X , 1956, p. 58. 27 “Das Neue Sein ais Zentralbegriff einer Christlichen Theologie” in Eranos■Jahrbuch, X X II I (1955), pp. 251-252. 28 Systematic Theology, v. I, p. 3. 29 O.c., v. I, p. 7. 30 O.c., v. I, pp. 3-6, 99-100; v. II, pp. 19-28.


tro da situação humana não para negá-la, mas para dar-lhe uma res­ posta. Por isso, as relações entre teologia e filosofia não são de sepa­ ração nem de contradição, mas sim de correlação: perscrutando o kerygma, o teólogo responde aos problemas colocados pelo filósofo 31. Os problemas supremos que atormentam os filósofos (e todos os homens, na medida em que todos são mais ou menos explicita­ mente filósofos) são três: o ser, a existência e a história. Como já se disse, na teologia de Paul Tillich esses problemas encontram as se­ guintes respostas: Deus como Fundamento do ser, Cristo como Novo Ser, a Igreja como Reino de Deus. Passemos a examiná-las sucinta­ mente. 3. A Correlação Ser-Deus A questão mais grave que vem afligindo os filósofos de cada época é a questão do ser. Trata-se de uma questão inevitável. Filósofos como os neopositivistas e teólogos como os neo-ortodoxos (Barth) tentaram eludi-la inutilmente. Paul Tillich demonstra que ninguém po­ de subtrair-se à instância ontológica. Aos neopositivistas observa que “estudando a relação entre conhecimento e realidade, eles são obriga­ dos a fazer afirmações ontológicas da máxima importância” 32. Aos neo-ortodoxos, os quais afirmam que o ser é um conceito imaginado pelo homem, que não encontra nenhuma correlação na Revelação, Til­ lich replica que “ a teologia é o Logos da Revelação, é a palavra racio­ nal sobre aquilo que se manifesta na Revelação. Ora, a palavra racional é encontrada em qualquer teologia, mesmo na dos antimetafísicos” 33. Mas o que se entende por “ ser” ? Tillich sabe muito bem que os filósofos não estão de acordo nesse ponto. Por isso, faz questão de explicar ao leitor o seu conceito de ser. Nada tem a ver com o conceito estático de tipo “ parmenídio” ou aristotélico. O seu é um ser em que está presente um movimento dialético, que opera desde o seu interior, como “ unidade de potências criadoras e destrutivas” , provenientes do mais profundo do ser, como uma sua qualidade, um seu princípio negativo: “ O ser consta de si mesmo e do não-ser. Leva-o consigo, como aquilo que, no processo da vida divina, está eter­ namente presente e eternamente superado. O fundamento do real, com efeito, não é uma identidade morta, sem movimento nem devir, mas sim uma criatividade viva. Ele afirma-se criativamente a si mesmo atra­ vés da eterna conquista do seu não-ser” M. Mas de que modo o ser pode sustentar uma luta eterna com o não-ser sem ser aniquilado? A isso a filosofia não pode responder. Só 31 Sobre toda a questão das relações entre filosofia e teologia em Tillich, cf. B. Paul Tillich, e la Transmitizzazione dei Cristianesimo, c. IV, p p . 107-146. 32 “ Religion Biblique et Réalité Dernière” in Revue de Thêologie et de Philosophie, Lausanne, 1955, pp. 83-103. 33 Artigo citado no n. 27, p. 252. 34 The Courage to Be, pp. 34-35.

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o n d in ,


a teologia responde a essa interrogação; à luz da Revelação, ela nos assegura de que o ser pode resistir às agressões do não-ser porque se baseia em Deus: Deus é o fundamento do ser, o qual é por ele criado e conservado. Com o conceito “ fundamento do ser” , que o nosso autor consi­ dera mais expressivo do que qualquer outro conceito, considerando-o, por conseguinte, apto a mediar um discurso sobre Deus com os nos­ sos contemporâneos, Tillich não quer significar um ser supremo, uma causa primeira que esteja fora do mundo, mas sim o princípio vital subjacente a toda realidade. “ Em sua ordem, o divino é eterno e está presente em todo processo vital, como seu fundamento criativo e de­ terminante” 35. Deus não é estranho, não está fora do ser, mas forma o seu mais íntimo e profundo fundamento. Tillich refuta categorica­ mente a concepção sobrenaturalista, que coloca Deus fora do mundo. Em conseqüência, critica todas as tentativas do passado no sentido de provar a existência de Deus, pois procederiam dessa concepção 36. No entanto, ao mesmo tempo, rejeita também a concepção naturalis­ ta, que confunde Deus com as coisas, Deus com a natureza, Deus com o s e r 37. Deus não é a coisa, a natureza, o ser; antes está nas coisas, na natureza, no ser, como o seu último fundamento. Entre as coisas, a natureza e o ser, por um lado, e Deus, por outro, não há relação de identidade, mas sim de correlação. A oposição ao naturalismo eao sobrenaturalismo — além da negação dos caminhos tradicionais da existência de Deus— tem tam­ bém uma outra importantíssima conseqüência para a teologia de Paul Tillich: a negação que pode ser atribuída a Deus própria e literalmente pelos conceitos que nós utilizamos para as criaturas. Assim, por exem­ plo, nega que se possa atribuir a Deus o conceito de p essoa38. Se quisermos proteger Deus do antropomorfismo, é preciso chamá-lo própria e literalmente com nomes que só possam ser aplicados a Deus, como, por exemplo, fundamento do ser, poder do ser, poder da razão, infinito, etc. Os nomes que se aplicam às criaturas não são própria e literalmente aplicáveis a Deus, mas apenas simbolica­ mente. Como se vê, Tillich exclui decididamente o método da analo­ gia, que, ao contrário, afirma que alguns nomes são aplicáveis própria e literalmente tanto a Deus como às criaturas 39.

35 “Dimensionen, Schichten und die Einheit des Seins” in Gesammelte Werke, IV, p. 125. 36 Systematic Theology, vol. I, pp. 204-210. 3V O.e., v. I, pp. 64-65, 115-117, 231-232, 258-259; v. II, pp. 5-10. 38 O.e., v. I, pp. 243-245. 39 Sobre a doutrina tillichiana do simbolismo e suas relações com aanalogia, cf. B. M o n d i n , The Principle of Analogy in Protestant and Catholic Theology,Nijhoff, Haia, 2? ed., 1967.


4. A Correlação Homem-Cristo Fiel ao cânon do princípio da correlação, Tillich, depois de cons­ truir a “ teologia” como resposta ao problema do ser, elabora a “ cristologia” como resposta ao problema do homem. Antes de mais nada, ele se pergunta o que é o homem e quais são os seus problemas. Segundo Tillich, o homem é uma dualidade, mas não aquela dualidade psicofísica de que os filósofos e psicólogos estão habituados a falar, isto é, a composição de alma e corpo, que não é a mais impor­ tante e fundamental para compreender a condição humana. A duali­ dade mais profunda de que fala Tillich é a dualidade entre essência e existência. Não entende essa dualidade à maneira de são Tomás (dois princípios consubstanciais), nem à maneira de Heidegger (a essência fruto da existência), mas de um modo novo: a existência é o decai­ mento da essência. Para Tillich, esse decaimento consiste no Pecado Original, a Queda de que fala a Sagrada Escritura. Antes da Queda, segundo o nosso teólogo, o homem se encon­ trava no estado de “ inocência sonhadora” ( dreaming innocence, tràumende Unschuld), aquele que segundo a tradição cristã é o estado de natureza pura. “ A inocência indica a condição humana, antes da atualidade, antes da existência e da história” ; por isso, nela a cons­ ciência ainda não é determinada pelas condições de tempo e espaço. O homem caiu desse estado não tanto por um ato de vontade ou por um capricho, mas muito mais pela finitude do seu ser. Aliás, pa­ rece que para Tillich (como já o era para Kierkegaard) a Queda con­ siste essencialmente no desligamento das coisas do fundamento do Ser e na constituição de sua finitude; por essa razão, “ a passagem da essência à existência” é uma passagem à qual nenhum ente finito pode se furtar 40. A conseqüência primeira da alienação ontológica ocorrida na Queda é a alienação “ teológica”, ou seja, a ruptura do circuito vital que deveria unir o homem a Deus. O homem cede à tentação de ele­ var-se a centro de si mesmo e do seu mundo, transpondo o seu ser finito e precipitando-se na situação da hybris { soberba), da libido e da incredulidade. Nessa situação, desenvolvem-se no espírito do homem a angústia e o desespero 41. Só com suas próprias forças, o homem não pode sair desse es­ tado e por isso não pode retornar ao estado inicial: não pode sair da existência e recuperar a sua natureza essencial. Essa possibilidade só lhe é oferecida por Cristo. Segundo Tillich, Jesus é aquele homem em que as forças desagregadoras da existência, a soberba, a angústia, a libido e o desespe­ ro, foram vencidas. E foi precisamente por essa vitória que ele se tor­ nou o Cristo. Segundo o nosso teólogo, mais que de um Deus que se

40 -li

Systematic Theology, O.c., pp. 44-84.

v, II, pp. 36-44.


faz homem (como a teologia sobrenaturalista nos habituou a pensar), deve-se falar de um homem que se torna Deus, ou melhor, de um homem no qual Deus se torna visível, se manifesta. Tal manifestação de Deus em Cristo tem um poder salvífico universal: Cristo salva, regenera, justifica e santifica todos os homens 42. Isso, que constitui o núcleo essencial do kerygma cristão, perdeu grande parte de sua credibilidade porque não era expresso de maneira inteligível pelo homem moderno. Este tem uma mentalidade fortemente anti-sobrenaturalista, que se recusa a crer em seres divinos que descem do Céu para a terra. Para tornar Cristo novamente atual e inteligível, Tillich propõe que não mais se fale dele como “ Filho de D eus” , “ Verbo Encarnado” , “ Homem-Deus” , mas sim como Novo Ser. Esse conceito, segundo o nosso teólogo, é válido também para o homem do ano dois mil. “ Se alguém me pedisse para resumir a men­ sagem cristã para a nossa época em duas palavras, eu diria com são Paulo: é a mensagem de uma ‘nova criação’ . . . O cristianismo é a mensagem da Nova Criação, do Novo Ser (New Being), da Nova Realidade, que apareceu com o aparecimento de Jesus, que por essa razão e exatamente por essa razão é chamado o Cristo. Porque o Cristo, o Messias, o Eleito, o Ungido é aquele que traz o novo estado de coisas” 43. 5, A Correlação História-Reino de Deus A última parte da Systematic Theology é dedicada àquela pro­ blemática que os teólogos chamam habitualmente de “ eclesiologia ” (estudo da Igreja). Ela estuda a Igreja, que Tillich prefere chamar ora “ Comunidade Espiritual” , ora “ Reino de D eus” , em relação com a his­ tória, ou seja, como resposta aos problemas que atormentam a socie­ dade no seu caminho através dos séculos e que a sociedade é incapaz de resolver somente com suas forças. Antes de analisar a resposta divina, o autor examina em linhas gerais as várias interpretações da história dadas no curso dos sé­ culos. Tillich distingue um tipo de interpretação histórica e um tipo de interpretação a-histórica. No primeiro, pode-se incluir a concepção grega da história com sua sucessão circular, perenemente recorrente. No segundo, ressalta-se a concepção moderna, em que “ a história transformou-se numa série de acontecimentos do universo físico, in­ teressando ao homem, difíceis de ser recordados e estudados, mas privados de uma contribuição especial para a interpretação da exis­ tência como tal” 44.

42 O.c., pp. 97-180. Sobre a cristologia de Tillich, cf. G. H. T a v a r d , Paul Tillich and the Christian Message, Nova York, 1962. 43 The New Being, p. 15. Cf. também o ensaio Das Neue Sein ais Zentralbegriff einer Christlichen Theologie. 44 Systematic Theology, v. III, p. 352.


A história só adquiriu um vulto e um significado através da Revelação, através do símbolo do Reino de Deus. Para Tillich, esse símbolo é a fórmula resumida das respostas à ambigüidade da histó­ ria e aquela que, dentre as interpretações históricas, oferece uma solução mais adequada. Com efeito, o Reino de Deus é histórico por um lado e sobre-histórico por outro; enquanto histórico, participa da dinâmica da história; enquanto sobre-histórico, responde às suas ambigüidades 45. O Reino de Deus se concretiza não na Igreja, que é uma rea­ lidade sociológica e, portanto, está sujeita a todas as leis que de­ terminam a vida dos grupos sociais, com as suas ambigüidades, mas sim na Comunidade Espiritual ( spiritual Community). Tillich dá a seguinte definição dessa comunidade: “ É a comunidade do Novo Ser. Foi criada pelo Espírito divino tal como se manifesta no Novo Ser em Jesus enquanto Cristo” 46. A escolha da expressão “ comunidade espiritual” é assim justificada: “ O termo ‘comunidade espiritual’ é utilizado para caracterizar vivamente, no conceito de Igreja, aquele ele­ mento que no Novo Testamento é chamado ‘corpo de Cristo’ e na Reforma ‘Igreja invisível’ ou ‘espiritual’ ” 47. Mas Tillich sabe muito bem que pela expressão “ igreja invisível” ou “ espiritual” freqüen­ temente se entendeu uma realidade espiritual distinta e separada das igrejas visíveis, um conceito que ele não pode absolutamente compar­ tilhar porque está viciado pelo sobrenaturalismo. Por isso, apressa-se a precisar que “ não há nenhuma igreja invisível ao lado das igrejas históricas. . . A Comunidade Espiritual não existe como realidade (autônoma) ao lado das igrejas, mas é a sua essência espiritual, ope­ rando dentro delas com o seu poder, a sua estrutura e a sua luta con­ tra suas ambigüidades” 48. Ademais, a Comunidade Espiritual distin­ gue-se profundamente das Igrejas. De fato, enquanto estas participam das ambigüidades da vida em geral e da vida religiosa em particular, aquela é essencialmente inequívoca: “ é a vida inequívoca criada pela Presença divina” 49; “ é o Novo Ser, criado pela Presença Espiritual” 50, ou seja, pelo Espírito Santo. Porém, enquanto em Cristo o Novo Ser é completo, perfeito, total, na Comunidade Espiritual o Novo Ser é fragmentário51. À Comunidade Espiritual e, portanto, ao Reino de Deus não pertencem somente os cristãos, mas os homens de qualquer época, lugar, nação, raça e língua, desde que “ sejam aferrados pela Presença Espiritual e sejam claramente determinados por ela, ainda que fragmen-

v. III, pp. 356-393. Para uma boa exposição da doutrina a história, cf. E. S c a b i n i , II Pensiero di Paul Tillich, Milão, 1967, III, p. 155. III, p. 162. III, p. 163. III, p. 149. III, p. 150.

45 Systematic Theology,

tillichiana sobre pp. 168-222. 46 Ibid., v. 47 Ibid., v. 4« Ibid., v. 49 Ibid., v. 50 Ibid., v, 51 Ibid.


tariamente” 52. E, vice-versa, pode-se falar de uma efetivação concreta do Reino de Deus na história toda vez que se torna possível uma reunificação, ainda que fragmentária, de seres humanos, prevenindo-se a violência. “ Na medida em que os elementos centralizadores e os li­ bertadores se equilibram numa estrutura de poder político, o Reino de Deus na história conquista fragmentariamente as ambigüidades da repressão” 53.

IV. AVALIAÇÃO Essas são as grandes linhas da teologia de Paul Tillich. Trata-se de um quadro apenas esboçado. Muitos aspectos, entre eles alguns de grande importância, como as doutrinas sobre a Trindade, os sa­ cramentos, o simbolismo religioso, foram deixados de lado por exi­ gências de espaço. Todavia, as linhas que transmitimos parecem ser suficientes para dàr uma idéia da imponência e da originalidade da construção tillichiana. Procuraremos agora formular um juízo sobre o seu significado e o seu valor. Para julgar objetivamente a obra de Tillich, é preciso levar em conta duas coisas: a) Por um lado, ela é fruto de uma dupla reação: contra o sobrenaturalismo de Karl Barth, por um lado, e contra o na­ turalismo da teologia liberal, por outro. Contrariamente a essas duas concepções teológicas, que ele considera unilaterais, Tillich propõe uma visão que mantenha unidos, em justo equilíbrio, tanto o aspecto natural como o aspecto sobrenatural. Para chegar a isso, não recorre à concepção católica dos dois planos, natural e sobrenatural, mas sim à doutrina da correlação da atração dialética entre dois aspectos que se opõem, mas que ao mesmo tempo se penetram mutuamente, b ) Por outro lado, a obra tillichiana é fruto da exigência de “ transmitizar” a mensagem cristã. Tillich percebeu de maneira singular a urgência de tal exigência e procurou “ remitizar” o kerygma através de categorias ontológicas que ele considerava aptas a exprimi-lo de modo a um tempo adequado e inteligível. Correlação e “ ontologização”, portan­ to, são as duas características inconfundíveis da teologia de Tillich. Contra elas é que habitualmente se dirigiram as mais fortes críticas. Contra a correlação, objetou-se que ela compromete radicalmente a transcendência de Deus, a divindade de Cristo, a gratuidade da G ra­ ça, a sobrenaturalidade da fé, o princípio escatológico da história, em suma, mortifica o pólo superior, vinculando-o indissoluvelmente ao inferior. Com efeito, a correlação parece encadear Deus numa relação necessária com o mundo, com a criatura, com o homem, com a his­ 52 Ibid., v. I I I, p. 217.

53 Ibid., v. III, p. 385.


tória. Inclusive este autor expressou essa perplexidade em várias oca­ siões 34. Tillich levou em conta as críticas e procurou aperfeiçoar a formu­ lação do princípio, de modo a impedir o surgimento de qualquer alarm e55. Precisou que a correlação coloca certamente algo também em Deus, caso contrário não seria real, mas o faz porque foi livre­ mente querido pelo próprio Deus: a correlação não é uma necessida­ de para Deus, mas assim mesmo é uma realidade. Numa carta a este autor, respondendo às críticas que lhe fizera pelo uso do princípio da correlação na explicação da relação entre Deus e o homem, Tillich precisa que “ o infinito é uma relação necessária em qualquer coisa finita. Mas não há nenhuma interdependência do mundo e de Deus. Toda coisa real em relação a Deus vem de D eus” . Ainda mais ásperas são as críticas feitas a Tillich pelos estudio­ sos por sua “ transmitização” do cristianismo em termos ontológicos. Killen, Cochrane, Tavard, Gherardini e outros acusaram Tillich de ter “ ontologizado” o cristianismo56. Segundo Killen, “ a filosofia domina a teologia em suas obras e, conseqüentemente, no seu sistema a teo­ logia no verdadeiro sentido da palavra é reduzida a muito pouco” 57. Cochrane encontra em Tillich “ uma vasta confusão entre teologia e ontologia existencial” 58; “ o seu sistema é ontologia que assumiu um colorido de teologia” 59. Tavard faz a Tillich a crítica de ter “ ontologizado” sistematicamente todas as verdades do cristianismo: pe­ cado original, encarnação, redenção, etc., e conclui o seu severo exa­ me com este solene anátema: “ A sua teologia é herética. Não é bíblica. Não está em conformidade com as formulações tradicionais dos Con­ cílios. É incompatível com a teologia dos Padres e dos Doutores me­ dievais . . . ” 60 Segundo Gherardini, “ a constante correlação entre a fi­ losofia e a teologia não só descolora e desnatura essa temática (a cris­ tã ), arrancando-a de seu próprio ambiente e do humus da tradição, que só poderia alimentá-la, mas também chega ao ponto de deixar a im­ pressão fundada de que não se trata mais de teologia e que esta caiu completamente numa construção rigorosamente filosófica” 61. O que poderia dizer de todas essas críticas, que parecem demolir completamente a obra de Tillich? De minha parte, só estou disposto a compartilhar essas críticas apenas parcialmente. Em minha opinião, 54 Cf. M o n d i n , The Principie of Analogy in Protestant and Catbolic Theology, p. 132; “Paolo Tillich: Vita, Fonti dei suo Pensiero e Intuizione Fondamentale” in Divus Thomas, 1963, p. 234. 55 Systematic Theology, v. II, pp. 13-16. 56 A. K i l l e n , The Óntological Theology of Paul Tillich, Kampen, 1956; A. C . C o c h r a n e , The Existentialists and God, Filadélfia, 1956; G . T a v a r d , Paul Tillich and the Christian Message, Nova York, 1962; B. G h e r a r d i n i , “L’Ontologia Teologica di Paul Tillich” in La Seconda Riforma, v. II, pp. 282-365. 57 K i l l e n , o c p , 8, 5S C o c h r a n e , o c p. 7. .

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59 I d e m , ibid., p . 15. 60 T a v a r d , o . c . , p . 137. 61 G h e r a r d i n i , o . c . , p p . 360-361.


é justo censurar a Tillich não o fato, mas o modo da “ ontologização ” . Ter procurado precisar o aspecto ontológico dos mistérios cris­ tãos não só não constitui um demérito, como representa o maior mé­ rito de Tillich. Os mistérios, com efeito, não são fatos irracionais, completamente fora das leis da razão, acontecimentos estranhos, totalmente incompreensíveis, como ensinou a teologia nominalista. Contra o ensinamento dessa teologia, Tillich sustenta justamente que no mistério, mesmo tratando-se de algo que supera as leis da ciência, há porém um significado profundo que toca as raízes do ser. É esse profundo significado ontológico que revela a mais íntima natureza de Deus e do homem, aquilo que mais conta nos mistérios. O obje­ tivo constante e principal da obra de Tillich é descobrir o significado ontológico dos mistérios cristãos: da Trindade, da Criação, da Queda, da Encarnação, da Fé. Parece-me, entretanto, que o modo seguido por Tillich para ope­ rar a “ ontologização” do cristianismo não seja tão elogiável. Ele, aliás, é reprovável, porque baseia-se numa análise inadequada do conceito de ser; e, no ponto em que Tillich a deixou, ela conduz diretamente ao panteísmo 62. Ela, com efeito, se detém na dupla constatação de que a ) o ser é a raiz última de todas as coisas e b ) o ser não se identifica com nenhum ente particular. Ora, se a investigação do ser se exaure nisso, então não está absolutamente assegurada a absoluta transcen­ dência do ser. Suas relações com os entes ainda são as daquela subs­ tância de Spinoza com os modos. Quando se quer fugir dos perigos do panteísmo, não se pode deter-se na afirmação de que o ser é o fun­ damento, a raiz de todas as coisas; é preciso ir adiante, fazendo ver que ele é o fundamento das coisas sem se identificar com elas, que é raiz da realidade condicionada, mas não como causa material e sim como causa eficiente, final e exemplar, como mostraram com tanta precisão os teólogos da Idade Média. São Tomás também baseou a filosofia e a teologia no ser. Porém não se contentou em provar que o ser é a perfeição suprema, o nexo de todas as perfeições. Preocupou­ -se sobretudo em demonstrar que essa perfeição é também absoluta ( absoluta no sentido platônico), perfeição subsistente e não somente inerente nos entes. Como realidade subsistente, o ser gerou (criou) os entes, fazendo-os partícipes de sua perfeição63. Já Tillich, em sua investigação do ser, deteve-se na metade do caminho: na constatação de que o ser constitui a perfeição funda­ mental, que faz parte de todos os entes e todos os eventos e que os entes e eventos não são nada sem o ser. Deteve-se na constatação da inerência do ser nos entes. Não deu o salto para fora dos entes, não alcançou a transcendência do Ser. Por isso, em virtude da identifica62 A acusação de pantefsmn procede de vários autores. Cf., por exemplo, G . F., “ Pauí~TIlIich’s Existential Philosophy of Protestantism” in The Thomist, 1964, pp. 1-50; G h e r a r d i n i , o.c., pp. 297-298, 301, 312 e 355. 65 Sobre a filosofia do ser em são Tomás, cf. B. M o n d i n , La Filosofia delFEssere di S. Tommaso d’Aquino, Herder, Roma, 1964.

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ção de Deus com o ser como fundamento inerente dos entes, Tillich, em sua formulação das relações entre Deus e as criaturas, não conse­ guiu fugir ao panteísmo. Entretanto, que não me entendam mal. Não disse que Tillich é panteísta. A sua comovente fé em Cristo exclui essa hipótese no mais absoluto dos modos. O que eu disse foi que sua reflexão sobre o ser, que constitui a base filosófica de sua teolo­ gia, é inadequada e, por isso, incapaz de subtrair-se ao perigo do panteísmo.

Nota bibliográfica. — O s principais estudos são: J . L . A dams , Paul, Tillich’s Philoso­ phy of Culture, Science and Religion, H arper & Row, N ova York, 1965; K. H a m ilto n , The System and the Gospel, S.C.M . Press, Londres, 1963; B. M a r tin , The Existentia­ list Theology of Paul Tillich, Bookman Associates, N ova York, 1963; A. J . M c K elw ay , The Systematic Theology of Paul Tillich-, a Review and Analysis, K. Knox, Richmond, 1964, 5- ed.; K . N o erenberg , Analogia Imagtnis, Mohn, Giitersloh, 1966; J . S c h m it z , Vie Apologetische Theologie Paul Tillichs, Grünew ald, Mainz, 1966; G . H . T ho m as , Paul Tillich: an Appraisal, S .C .M . Press, Londres, 1963; Paul Tillich in Catholic Thougth, a cargo de O ’M eara e W eisser , University Press, D ubuque, 1964; The Theo­ logy of Paul Tillich, a cargo de K eg ley e B reta ll , Macmillan, N ova York, 1952; W. L. R owe , Religious Symbols and God. A Philosophical Study of Tillich’s Theology, Uni­ versity Press, Chicago, 1968; D . K else y , The Fabric of P. Tillich’s Theology, Y ale Uni­ versity Press, N ew Haven, 1967; U. R eetz , Das Sakramentale in der Theologie Paul Tillichs, Calwer Verlag, Stuttgart, 1974; J . C. P e t it , “ L a M éthode de Correlation de Paul Tillich” in Science et Esprit, 1974, pp. 145-159; J . C. P e t it , La Philosophie de la Religion de Paul Tillich, Fides, M ontreal, 1974; J . D u n p h y , Paul Tillich et le Sym­ bole Religieux, Delarge, Paris, 1977.

Em italiano, existem atualmente quatro estudos sobre o pensamento de Paul Tillich: o mais acentuadamente filosófico de E. S c a b i n i , II Pensiero di Paul Tillich, Vita e Pensiero, Milão, 1967; a minha introdução à sua teologia, Paul Tillich e la Transmitizzazione dei Cristianesimo, Borla, Turim, 1967; a bela síntese de B. G h e r a r d i n i , “L’Ontologia Teologica di Paul Tillich” in La Seconda Riforma, Morcelliana, Bréscia, 1966, v. II, pp. 282-365; e um lúcido estudo sobre a ambivalência do pensamento de Tillich, de N i n f a B o sco , Paul Tillich ira Filosofia e Teologia, Mursia, Milão, 1974.


REINHOLD NIEBUHR E A TEOLOGIA APOLOGÉTICA

Para o reconhecimento de Reinhold Niebuhr em termos teológi­ cos, basta escrever em sua carteira de identidade: “ norte-americano, dialético, apologista” . Niebuhr, com efeito, foi o primeiro grande teó­ logo produzido pelos Estados Unidos; no seu país, fez-se porta-voz da teologia dialética e se autodefine como um “ teólogo apologista” x. Para entrar em contato com seu pensamento, é necessário, por­ tanto, conhecer algo sobre a teologia norte-americana que o precedeu, sobre o tipo de teologia dialética que ele abraçou e sobre as razões que o induziram a fazer teologia apologética. No momento, nos detere­ mos brevemente no desenvolvimento da teologia norte-americana. Em seguida, teremos oportunidade de discorrer difusamente sobre os dois aspectos mais característicos da teologia de Niebuhr, a dialética e a apologética. Os Estados Unidos têm uma tradição teológica bastante pobre. Em geral, até a Segunda Guerra Mundial, seguiu as pegadas dos mo­ vimentos teológicos europeus. Inicialmente, ou seja, nos séculos X V II e X V III, seguiu a Ortodoxia (vale dizer, Lutero, Melanchthon e, so­ bretudo, Calvino), no século X I X o liberalismo e no século X X , de­ pois da Primeira Guerra, a Teologia Dialética. O expoente máximo da teologia norte-americana no período da Ortodoxia foi Jonathan Edwards (1703-1758). Sua teologia foi um repensamento do calvinismo norte-americano à luz do conceito protes­ tante da absoluta soberania de Deus. Com força e agudeza, Edwards combate tudo aquilo que pode de algum modo diminuir ou ofuscar tal soberania e não vacila em tirar as conseqüências que essa doutrina comporta, como a negação absoluta da liberdade da vontade e a dou­ trina da arbitrária e irrevogável eleição divina da salvação de uns e da condenação de outros. Sua obra mais potente e genial é Freedom of the Will (1 7 5 4 ), um dos textos clássicos da teologia protestante. Durante o período liberal, os Estados Unidos levaram às últi­ mas conseqüências os motivos racionalistas e imanentistas que deram nascimento à teologia liberal européia, dando assim origem ao movi­ mento chamado Social Gospel (Evangelho Social). Como formulação teológica, o Social Gospel reduz o cristianismo a um verdadeiro mes1 Cf. R. N i e b u h r , “ Intellectual Autobiography” em Reinhold Niebuhr, His Reli­ gious, Social and Political Thougíh, a cargo de C. W. Kegley e R. W. Bretall, Nova York, 1956, p. 3.


síanismo terrestre: o centro da pregação cristã é o anúncio do reino de Deus, que é um fenômeno terrestre, deste mundo; é um reino em que há trabalho, justiça, paz, liberdade e felicidade para todos. Se­ gundo os teólogos do Social Gospel, a substância da Revelação cristã é o destaque de instâncias éticas que condicionam a realização do rei­ no como sociedade temporal ordenada e pacífica. A evolução histórica do fermento cristão, segundo W alter Rauschenbusch (1861-1918), o principal teórico do movimento, já operara quase completamente a redenção da sociedade; o reino de Deus já estava quase totalmente realizado sobre a terra: faltava somente a cristianização da ordem econômica e por isso era necessário lutar por fim. Nos últimos anos do século X IX e nos primeiros anos do século X X , o Social Gospel conquistou um vasto séqüito de seguidores. As Igrejas começaram a formular “ credos sociais” e em 1908 o “ Federal Council of the Churches of Christ” , representando três quartos do protestantismo norte-americano, adotou o Credo Social. Não faltaram reações contra o Social G ospel; a mais enérgica foi a do Fundamentalismo, um chamado à interpretação literal da E s­ critura e à aceitação das seguintes verdades como dogmas basilares do cristianismo: o nascimento virginal de Cristo, a ressurreição física, a infalibilidade da Bíblia em cada particular, a redenção vicária, o imi­ nente retomo físico de Cristo. Mas foram todas reações ineficazes, até chegar nos Estados Unidos o eco da Teologia Dialética. Como sabemos, na Europa, ao fim da Primeira Guerra, num mo­ mento em que todas as visões otimistas em que o liberalismo teológi­ co acreditara caíram por terra, teve início a grande reação antiliberal da Teologia Dialética, chefiada por Barth e apoiada por Brunner e Tillich. Nos Estados Unidos, onde não se dera a atroz experiência da guerra, o terreno para a reação contra o liberalismo era menos propí­ cio do que na Europa. No entanto, por mérito de Reinhold Niebuhr, a teologia dialética abriu seu caminho, assinalando então o fim do Social Gospel.

I, VIDA Reinhold Niebuhr nasceu em Wrigth City, Missouri (E .U .A ), em 21 de funho de 1892. Seu pãI7~Gustav, era um emigrado alemão que exercia as funções de pastor numa paróquia de conterrâneos seus. Através do pai e da comunidade de emigrados em que cresceu, Reínhold assimilou as tradições e a cultura da Alemanha. O fato de que o pai era pastor da Igreja Luterana teve um peso determinante para a qualidade de sua futura vocação teológica. Foi por influência do pai que o jovem Niebuhr encaminhou-se para a vida pastoral. Para tanto, realizou seus estudos no “ Elmhurst College” e no “ Eden Theological


Seminary”, duas instituições acadêmicas pertencentes à Igreia Lutera­ na. DepoiTctê ter se diplomado, no . “ Eden-JSeminaiy^. foi.fazer seus estudos uniyersitarjos etn Yale. Dentre as mais importantes influências exercidas pelo pai sobre Reinhold, há uma que diz respeito diretamente à sua formação teo­ lógica, não podendo por isso ser esquecida: “ Ele (o pai), mesmo não compartilhando plenamente suas doutrinas, introduziu os filhos no pensamento de Harnack” 2. Em Yale, quem mais influiu sobre Reinhold Niebuhr foi o teó­ logo norte-americano Macintosh, que, como confessa Niebuhr, lhe “ escancarou o mundo do saber filosófico e teológico” 3. Depois de dois anos de estudo, conseguiu o título de M a s t e r ’s Degree em filosofia. Tendo chegado a esse ponto, interrompe seus estudos, por razões econômicas e porque “ a epistemologia me abor• » 4 recia \ Ordenado ministro do “ Evangelical Synod of North America”, uma Igreja de origem luterana, em 1915, torna-se pastor de uma igreja de Detroit, onde trabalhou ininterruptamente até 1928. A experiência pastoral foi de suma importância para a formação do pen­ samento de Níebuhr. Atesta-o ele mesmo: “ Ela determinou o meu desenvolvimento mais do que qualquer livro que pudesse ter lido” . Essa experiência “ fez-me reconsiderar o credo altamente moralista que aceitara como equivalente da fé cristã. . . Não foi a guerra lon­ gínqua, mas sim as realidades sociais de Detroit que minaram o meu otimismo juvenil” 5. Qual foi a perturbadora experiência vivida por Niebuhr em De­ troit, na sua paróquia? Para compreendê-lo, é preciso lembrar que, durante os seus treze anos de vida pastoral, a cidade de Detroit passou de meio milhão para um milhão e meio de habitantes. Essa violenta explosão demográfica foi causada por uma expansão industrial tão vigorosa quanto incon­ veniente, tendo por conseqüência todas as injustiças sociais que uma industrialização sem critérios comporta: salários de fome, falta de moradias, ausência das mais elementares condições higiênicas, analfa­ betismo, ódios, vinganças, criminalidade, banditismo, etc. Diante des­ sas injustiças, com as quais os seus deveres paroquiais colocavam-no diariamente em contato, Niebuhr percebeu que “ o ingênuo idealismo em que a fé, cristã se dissolvera era irrelevante nas crises da vida pessoal como também nas complexas questões sociais de uma cidade industrial” 6. Em sua experiência pastoral. Niebuhr aprendeu o primeiro e mais essencial elemento, de sua visão teológica: o pecado, Esse conceito 2 3 4 5 6

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. p. p. p. p.

3 4. 4. 5. 6.


fundamental do cristianismo tinha desaparecido da teologia durante o período liberal. Em contato com aquela tremenda realidade cotidia­ na, o jovem pastor percebeu que, ao contrário, “ o problema supremo da existência humana é o perigo do pecado e da morte no modo como esses dois perigos estão curiosamente em conexão entre si, já que nós caímos em pecado procurando enganar ou vencer a morte ou a nossa insignificância, de que a morte é o símbolo supremo. A fé cristã nos apresenta a esperança de que as nossas vidas fragmentá­ rias serão integradas a um nível mais elevado e amplo do que todos aqueles que podemos controlar ou compreender e que o perdão dos pecados será parte dessa integração, isto é, o perdão dos males em que caímos no esforço agitado de completar por nós mesmos as nossas vidas e dar-lhes um significado” 7. Os sofrimentos e incômodos em que viviam os operários de sua paróquia forneceram a Niebuhr a inspiração para as suas primeiras obras. Em 1927, iniciou suas atividades de escritor com um livre in­ titulado Does Civilization Need Religion? (A Civilização Necessita da R eligião?), No ano seguinte, publicou The Unethical Character of Modem Civilization (O Caráter Imoral da Civilização Moderna). Nessas obras, inspirando-se nos Reformadores, em santo Agos­ tinho, em são Paulo, no Evangelho e no Antigo Testamento, Niebuhr mostrou a grave contradição existente entre os princípios do libera­ lismo e as doutrinas da Sagrada Escritura, tornando-se o sustentáculo mais decidido do realismo bíblico contra a simplista fé no progresso que tomara conta de todos, Igreja e Universidade, governo e indústrias. Em 1928, Reinhold Niebuhr é nomeado Associate Professor de filosofia da religião no “ Union Theological Seminary” de Nova York. O ensino forçou-o a estudar. Então, dirigiu suas investigações para as fontes do cristianismo. E as fontes, para ele, eram não tanto Lutero e Calvino, como para Barth e Brunner, mas são Paulo e santo Agos­ tinho. “ O pensamento deste teólogo deveria dar respostas a muitas de minhas questões ainda não solucionadas, libertando-me finalmente da noção de que a fé cristã fosse de algum modo idêntica ao idealis­ mo moral do século passado” 8. Da cátedra (e também do púlpito, ao qual continuava a subir todos os domingos, atraindo um auditório sempre mais numeroso), Niebuhr continuou sua luta contra os santuários seculares das tradi­ ções do protestantismo liberal norte-americano, uma luta muito du­ ra, porque, como o próprio Niebuhr reconhece, “ os êxitos da socie­ dade liberal pareciam bastante consideráveis. Ela emancipara o indi­ víduo de algumas desigualdades sociais secundárias, abrira caminho para a livre iniciativa do homem comum. . ., estabelecera uma ordem política democrática e desbaratara algumas tiranias inveteradas. . . Dera a impressão de que o lema da revolução francesa, ‘liberdade, 7 lbid., 8 lbid.,

pp. 6-7. p. 9.


igualdade, fraternidade’, se tivesse tornado uma realidade. As con­ cepções sentimentais da natureza humana eram tão endêmicas na cultura liberal e os seus resultados democráticos eram tão grandes, que tornou-se habitual considerar místicas ilusões sobre a natureza humana como condições preliminares para o êxito democrático” 9. Não obstante os êxitos e preconceitos inveterados do protes­ tantismo liberal, Niebuhr ensinava, pregava e escrevia que o homem e a sociedade moHerna estão profundamente enfermol7~ e n ã o p o rque hãTã~ãIgõ^de particularmente perverso na época moderna, mas porque a tendência para o mal está inscrita na própria natureza do homem. Com efeito, ainda que ele seja suficientemente senhor de suas paixões, de maneira que não é obrigado a segui-las necessariamente, entretanto, de fato, ele as segue. “ O homem sabe que é livre, mas não livre de fazer o bem, como já observou Agostinho. O homem procura o lucro, se bem que goze da liberdade de atingir finalidades que estão fora do seu lucro. Este uso da liberdade por parte do homem é o que faz do aumento da capacidade humana um resultado tão discutível. Os novos progressos tecnológicos servem antes de mais nada ao interesse pri­ vado. É necessário um longo e penoso processo para colocá-los à disposição de uma comunidade mais ampla ou de um valor mais ele­ vado. A capacidade que o homem tem de imaginar um mundo mais amplo do que seus estreitos limites gera o imperialismo muito antes da igualdade através de uma planificação global e com a limitação deste ou daquele interesse privado. A verdade é que a natureza huma­ na inclina-se fortemente para a busca do seu próprio lucro; contudo, possui também um tal conhecimento de si que não lhe é possível ex­ plicar essa inclinação como um simples fato de natureza. Por outro lado, toda vez que aspira a um objetivo mais elevado, o homem confunde o seu interesse com o valor a que aspira” 10. A acolhida reservada à mensagem de Reinhold Niebuhr não foi nada entusiasta ou triunfal. De resto, como se poderia acolher com entusiasmo o pensamento de alguém que atacava sem piedade os seus contemporâneos, acusando-os de serem corruptores e traidores do Evan­ gelho? Ninguém gosta de ser chamado de traidor, muito menos o cristão, e menos ainda quando a acusação diz respeito à sua própria fé. Durante muito tempo, Niebuhr foi tratado como Kierkegaard, sendo acusado de inconoclasta e subversivo. Porém, quando os fatos inicialmente pareciam dar-lhe razão e, sobretudo, quando a teologia dialética começou a fazer ouvir seus ecos também nos Estados Unidos, ele começou a encontrar admiradores e seguidores. Pouco a pouco, con­ quistou um prestígio sempre maior, a ponto de ser considerado o maior teólogo produzido pelo Novo Continente.

9 Ibid., p. 12. 10 Ibid., p. 449.


A redescoberta do conceito de pecado e a conseqüente reação contra a teologia liberal automaticamente já haviam colocado Niebuhr na órbita da teologia dialética, antes ainda que ela chegasse aos E s­ tados Unidos. Mas seus encontros pessoais com Brunner primeiro e depois com Tillich impeliram-no ainda mais para o novo movimento. Em 1928, Niebuhr seguiu um curso ministrado por Brunner no “ Union Theological Seminary” sobre “ teologia da crise” . Em 1933, devido ao interesse do próprio Niebuhr, Paul Tillich deixou a Ale­ manha e se instalou no “ Union Theological Seminary” . Durante vários anos, Niebuhr foi um dos mais assíduos acompanhantes de Tillich, tan­ to no ambiente acadêmico como fora dele, bem como um dos mais hábeis divulgadores de suas doutrinas junto ao público norte-americano. Niebuhr, entretanto, não se contentou em ser intérprete de seus dois grandes colegas alemães; não recolheu passivamente os seus ensi­ namentos; em muitos pontos, ele os modificou e até mesmo os repeliu. Assim, por exemplo, refutou a colocação personalista de Brunner, por­ que viciada de subjetivismo e relativismo. De Tillich refutou a defini­ ção de Deus como o Ser mesmo ( Ipsum esse), porque parecia-lhe que ela comportava uma reclusão de Deus dentro de categorias filosófi­ cas. Depois do estimulante e frutífero diálogo com Brunner e Tillich, da crítica aos seus sistemas e de sua rica experiência pessoal, Reinhold Niebuhr desenvolveu um tipo de teologia dialética nova e original. A propósito disso, Brunner escreveu: “ Niebuhr extraiu algo de novo da teologia dialética, algo de genuinamente norte-americano, transplan­ tando seus conceitos do discurso teológico para o discurso da filo­ sofia da cultura e da crítica social e animando-os com seu espírito profético. Em suas mãos, os novos conceitos teológicos foram utili­ zados para iluminar a estrutura espiritual e social da civilização mo­ derna e evidenciar os seus defeitos e erros. Devido à sua extraor­ dinária habilidade em manipular as abstrações da história da cultura, ele consegue reportar fatos sociais, princípios culturais e tendências espirituais aos ensinamentos e interesses da fé cristã. Desse modo, ele esclareceu tanto a essência do mundo atual como a da fé cristã. Com ele, a teologia irrompeu no mundo; saiu do período de quaren­ tena e literatos, filósofos, sociólogos, historiadores e até mesmo homens políticos começaram a prestar-lhe atenção. A teologia tornou­ -se novamente uma das forças espirituais a serem levadas em conta” 11. O ambiente acadêmico e as novas possibilidades de pesquisa que o ensino lhe oferecia estimularam Niebuhr a desenvolver uma ativida­ de sempre mais intensa. Somente em 1932 publicou nada menos de cinco livros, entre os quais uma de suas obras mais significativas, Moral Man and Immoral Society. Tornou-se colaborador de numerosas 11 E. B r u n n e r , “ Some Remarks on R. Niebuhr’s Work as a Christian Thinker” in Reinbold Niebuhr, His Religious, Social and Political Thougth, p. 29.


revistas, entre as quais The Christian Century, The Spectator, The Ecumenical Review, e animador de revistas engajadas, como Radical Religion (que em seguida adotou o título de Christianity and Crisis) e New Dealer. A sua obra obteve ressonância internacional, Isso é confirmado pelo fato de que, em 1939, foi convidado a ministrar as Gifford Lec­ tures na Universidade de Edimburgo (Escócia). Dessas conferências nasceu a obra mais ampla e sistemática do nosso teólogo, The Nature and Destiny of Man. ■ Bastante ativo também no plano político e mantendo uma posi­ ção crítica em relação ao New Deal, ingressou no Partido Socialista Norte-americano, do qual saiu em 1940 para ingressar nas fileiras dos “ liberais” . Em 1960, deixou o ensino no “ Union Theological Semina­ ry” . Mas não deixou de escrever e pronunciar conferências, até poucas semanas antes de sua morte, que ocorreu em l 9 de junho de 1971.

II. OBRAS Da vasta produção teológica de N iebuhr12 emergem três obras maiores: Moral Man and Immoral Society (Scribner, Nova York, 1932), The Nature and Destiny of Man ( idem, 1941-1943) e Faith and History [idem, 1949). Em Moral Man and Immoral Society, nosso teólogo aborda o excitante problema da licitude da revolução. Recusa-se a pronunciar uma sentença inapelável contra ela. Segundo ele, o que é condenável sempre e em toda parte é a “ vontade m á” e não a violência. Daí apro­ ximar-se com simpatia do movimento operário e considerar com com­ preensão o marxismo por sua função de “ antídoto às hipocrisias bur­ guesas” e por seu empenho em favor dos fracos, sem por isso renun­ ciar a criticar com firmeza a absolutização mítica da classe operária, o fanatismo intolerante, o determinismo materialista e econômico. Em The Nature and Destiny of Man e em Faith and History, confronta as concepções clássicas e modernas da natureza e do des­ tino do homem e da história com a concepção bíblica. O próprio Niebuhr nos deixou o seguinte resumo da tese por ele desenvolvida nessas obras: “ Nelas, preocupei-me em provar que as versões moder­ nas da natureza e do destino do homem eram a um só tempo muito diversas e, no entanto, bastante semelhantes às interpretações encontra­ das no idealismo clássico e que a visão bíblica do homem era superior a ambas” 13. 12 Uma lista completa dos escritos de Niebuhr até 1955 pode ser encontrada em Reinhold Niebuhr, o.c., pp. 455-478. 13 N i e b u h r , “ Intellectual Autobiography”, p. 9.


Sobre The Nature and Destiny of Man, a categorizada revista Ethics disse que é “ a mais notável apologia cristã em língua inglesa de nossa época” e o New York Times afirmou: “ É um livro de im­ portância primordial para o pensamento contemporâneo” . Além dessas três obras fundamentais, podemos recordar: Does Civilization Need Religion?, Macmillan, Nova York, 1927; Leaves from the Notebook of a Tamed Cynic, Clark e Colby, Nova York, 1929; The Contributions of Religion to Social Work, Columbia Uni­ versity Press, Nova York, 1932; An Interpretation of Christian Ethics, Harper, Nova York, 1935; Beyond Tragedy: Essays on the Christian Interpretation of History, Scribner, Nova York, 1937; Christianity and Power Politics, idem, 1940; Reflections on the End of an Era, idem, 1934; Discerning the Signs of the Times: Sermons for Today and Tomorrow, idem, 1946; The Irony of American History, idem, 1952; Christian Realism and Political Problems, idem, 1953; The Self and the Dramas of History, idem, 1955; The Structure of Nations and Empires, idem, 1959.

III. PR IN C IPA IS CARACTERÍSTICAS DO PENSAM ENTO D E N IEBU H R Como já disse no início do capítulo, os aspectos que mais se ressaltam no pensamento de Reinhold Niebuhr são: a origem norte­ -americana, a dialética e a apologética. Sobre os primeiros dois as­ pectos, já falamos nas informações biográficas, do terceiro nos ocupa­ remos especificamente mais adiante. No momento, nos deteremos brevemente em três outras caracte­ rísticas que contribuem para um melhor entendimento da obra niebuhriana: seu caráter assistemático, o existencialismo e o equilíbrio. Antes de mais nada, o seu caráter assistemático. O próprio Niebuhr atesta que seu pensamento não tem forma sistemática. Em sua “ Intellectual Autobiography” , podemos ler, entre outras coisas: “ Não sou e não posso pretender ser um teólogo. Nunca fui um es­ pecialista em delicadas questões de teologia pura. Por diversas vezes fui desafiado pelas escolas mais rígidas dos teólogos europeus a provar que minhas preocupações eram teológicas, ao invés de práticas e ‘apologéticas’, mas sempre recusei-me a me defender, porque a dis­ tinção não me interessa” 14. Partindo da Palavra de Deus como fonte de luz e inspiração, Niebuhr visa compreender realisticamente, em todas as suas contradiçõês7~5~'1âcolTtgri^ indivíduo- e o acontecimento global da humanidade, mas sem se preocupar em construir uma “ dogmática ” em que, mesmo provisoriamente, os princípios essenciais, da fé sejam 14 Ibid.,

p.

3.


dispostos em ordem lógica e coerente. Ele adota e comprova esses princípios na trama da existência, sem ordená-los num sistema. A segunda característica é o existencialismo. Essa é uma marca que NiebuKf~têHT em comum cõirTtòdõs o s .teólogos dialéticos; po­ rém em nosso teólogo ela é ainda mais justificada, em virtude do sentido histórico de sua reflexão teológica. A forma assistemática do seu pensamento não deriva de uma aversão pelo sistema enquanto tal, mas sim de sua vontade dê colo­ car a fé em contato com a vida, com a existência e com tudo aquilo que a vida e a existência 3o homem moderno desenvolveram: psicolo­ gia, sociologia, história, política, ciência, etc. E Niebuhr consegue estabelecer entre eles um contato tão vivo que Paul Scherer pôde es­ crever: “ Graças a ele, professores e estudantes, doutores e homens pú­ blicos, artistas e escritores, que há muito tempo estavam desabituados de levar a sério aquilo que vinha do púlpito, começaram a se inte­ ressar e discutir teologia” . À terceira característica dei o nome de “ equilíbrio” . Com esse termo, cjuero me referir àquele esforço constante de Reinhold Niebuhr para manter-se numa posição intermediária entre todos os extremismos, entre o marxismo e o liberalismo em política, entre o naturalis­ mo e o idealismo em filosofia, entre o fundamentalismo e o racionalismo em teologia. Em suas obras encontramos muitos atestados explíci­ tos dessa busca de uma posição de equilíbrio. Assim, por exemplo, em Faith and History, podemos ler que o objetivo da obra é apre­ sentar uma solução intermediária entre duas versões contrastantes da fé cristã: “ Uma delas simplesmente revestiu a fé secularizada moderna de tradicionais frases cristãs ( racionalismo); a outra procurou provar a veracidade da fé cristã negando e desafiando o desenvolvimento da natureza e da história que a cultura moderna descobrira (fundamen­ talismo) ” 15. Tratemos agora da outra característica principal da teologia niebuhriana, aquela que de certa maneira constitui a sua diferença espe­ cífica, a apologética.

IV. A T EO LO G IA A PO LO G ÉTIC A Já vimos que Niebuhr se autodefine como um apologista. “ Mi­ nha vocação” — eie próprio testemunha — “ dirigiu méü interesse para a defesa e a justificação da fé cristã numa era secular, especial­ mente entre aqueles que Schleiermacher chama os ‘depreciadores in­ telectuais do cristianismo’ ” 16. 15 Faith and History (tradução italiana: Fede e Storia, Bolonha, 1966, p. 43). Todas as citações deste livro serão feitas com base na tradução italiana. 16 N i e b u h r , “ Intellectual Autobiography”, p, 3. Cf. também Fede e Storia, pp. 4, 46, 51. 4 - Os grandes teólogos... - Voi. 2


A apologética que Niebuhr propôs-se a fazer nasceu de exigências diversas daquelas em que se inspiraram as apologéticas de Tertuliano, Agostinho, Tomás, Roberto Belarmino, Pascal e Berkeley, que estão entre os apologistas mais ilustres do passado. Tertuliano tinha por adversários os perseguidores da Igreja; Agostinho e Roberto Belar­ mino, os heréticos; Tomás, os muçulmanos; Pascal e Berkeley, os libertinos, os materialistas e os sensualistas. Já os adversários de Nie­ buhr são os filósofos, os cientistas e, em geral, os homens de cultura do nosso século, os quais, em sua maioria, abrigam uma visão secularizada do mundo, uma visão que parece incompatível com o cristia­ nismo “ O secularismo moderno é resultado da renegação da fé tradi­ cional dos hebreus e dos cristãos em virtude daquilo que parece ser a evidência incontro ver tida da experiência. Essa fé considerava o mis­ tério de uma pessoa e de uma vontade como estando além dos fe­ nômenos observáveis do mundo. Mas a ciência demonstrou que esses fenômenos relacionam-se uns aos outros segundo seqüências de causali­ dade eficiente. Pareceu supérfluo interessar-se por um reino de mis­ tério diante dessa evidência, ainda mais que a religião cobrira-se de descrédito recusando-se a admitir os nexos causais que formam o objeto da ciência. Em conseqüência, apresentava uma visão obscuran­ tista dominada pelo capricho divino. A evidência contra a religião tra­ dicional pareceu ainda mais forte porque o homem moderno estava muito absorvido pelos assuntos concretos e pelas promessas da cultura técnica para poder perscrutar os mistérios da pessoa humana ou en­ tão os mistérios do sobrenatural. Por isso, vários tipos de ‘secularismo’, que consideravam o conjunto da realidade como auto-explicável e auto-realizável, pareceram ter uma convincente evidência a seu favor. As religiões tradicionais e históricas pareceram superadas” 17. 1. As apologéticas erradas, — Nessa situação, certamente pouco atraente, o que deve fazer o teólogo para resgatar o cristianismo e recuperar-lhe o crédito perdido? Segundo Niebuhr, todas as tentativas para salvar a religião suaviza n d o T irracionalidade de seu dogma fundamental, o da intervenção~de Deus na história, s ã o i n e f i c a z e s . Assim são as tentativas dos teólogos liberais, que reduziram a mensagem cristã a axiomas de mo­ ral e também as tentativas dos filósofos anglo-americanos, que redu­ ziram a religião a uma metafísica mística. Particularmente eficaz é a crítica de Niebuhr contra as tentativas dos filósofos. Estes partem do fato de que “ há uma dimensão de eter­ no no espírito humano, que se revela na capacidade do eu de trans­ cender não apenas os processos da natureza, mas também as opera­ ções de sua mente, colocando-se, por assim dizer, acima das estrutu­ ras e das coerências do mundo. Todas as vezes que homens tipica­ mente modernos tornam-se conscientes dessa dimensão e buscam uma 17

Ibid.,

p.

16.


interpretação da vida que faça justiça a essa dimensão, eles elaboram uma doutrina mística ao lado da doutrina racionalista. Temos em mente o já célebre livro de Bertrand Russel Mysticism and Logic, o livro de Santayana Platonism and Spiritual Life e, mais recentemente, a elaboração do misticismo clássico realizada por Aldous Huxley em The Perennial Philosophy e a evasão do naturalismo puro de Walter Stace em sua descoberta de um reino eterno em Time and Eternity. . . Com base na própria definição de misticismo, só a unidade indiferen­ ciada do divino é boa, ao passo que toda particularidade é má. O pecado do homem, com efeito, é absurdamente interpretado como um fato ontológico e toda experiência deve nos persuadir de que nossa consciência não é tranqüila, não porque sejamos ‘eus’, mas porque somos egoístas. Em suma, o homem é tão mal compreendido pelo misticismo quanto pelo naturalismo. É destruída a unidade de sua vida, em corpo, alma e espírito, e aniquilado o significado de sua existência na história” 18. 2. A verdadeira apologética — Segundo Niebuhr, são quatro as propriedãclês a a verdadeira apologética. Tîntes de mais nada, ela procura mostrar a validade do cristia­ nismo sem sacrificar nada do paradoxo cristão. Não esconde o para­ doxo cristão nem o red ü zap ro p o siçõ es abstratas, mas sim vive cotidianamente esse paradoxo. E é exatamente através da prática da fé, por meio da expressão visível do..encontro corn T^eusT que ela pro­ cura *tômaF~cHvër^~cH sïïam sm ô “ As conseqüências criativas de tal encõntro7"a humildade e a caridade do verdadeiro arrependimento, a ausência de orgulho e de pretensões devem ser as provas de que houve um encontro com o único Deus verdadeiro e não com um ídolo de nossa fantasia, inventado para sustentar alguns de nossos interesses, e tampouco com o vasto oceano do tudo e do nada, que condena a nossa individualidade e particularidade num juízo em que toda a nossa vida também é aniquilada. O encontro entre Deus e o homem deve ter lugar na fé e no amor e não na descoberta de algu­ ma essência comum da razão ou da natureza, subjacente aos indivíduos e aos particulares” 19. Depois dessa propriedade fundamental, que corresponde àquilo que Kierkegaard chama “ subjetividade na verdade” , vem a proprieda­ de específica da apologética teorética, que consiste em validar a visão cristã diante de qualquer outra visão. De que modo é possíveT eFetuir tal validação? Segundo Niebuhr, só há um caminho: “ na medida em que é possível provar que as explicações que se colocam comolílternativàT~~êIã~nãõ~^õnsêgüim~õcplicar todos os aspectos da existência hu­ mana e em~qüe'5s"pressupostòs basíIarês~Hã Té cristã, Inesmo transcendêndo a razão, permitem dar uma explicação da vida e da história em lbid., 19 lbid.,

pp. 17ss, p. 21.


que podem ser compreendidos todos os fatos e antinomias da histó­ ria” 20. “ A verdade do Evangelho não está sujeita a uma confirmação puramente racional, já que está além das contradições da existência humana: ela se opõe tanto à orgulhosa auto-segurança, que nega a existência dessas contradições, quanto ao desespero que emerge quan­ do essas contradições são claramente reconhecidas, correndo o risco de tirar da vida qualquer significado. Não obstante, é possível uma va­ lidação racional limitada da verdade do Evangelho. Ela consiste numa dupla avaliação, negativa e positiva, da relação existente entre a ver­ dade do Evangelho e outras formas de verdade e entre a bondade do amor perfeito e as formas históricas da virtude humana. Em :ptido negativo, o Evangelho pode e deve ser validado pelo exame d o$\ limites das formas históricas da sabedoria e da virtude. Positivamente, o Evangelho é validado quando a verdade da fé é colocada er com qualquer verdade conhecida pelas disciplinas cientí :as ficas, revelando-se em condições de coordenar essas verdàdes num sistema de mais profunda e vasta coerência” 21. A terceira característica da autêntica apologética q a consciência para idencrítica, que “ submete a visão cristã a um tificar os erros que estão misturados a ela. A quarta característica ^ a íncorp' uilo “ que há de Evangelho. Por verdadeiro nas outras visões’^ a verç ________ __o______ exemplo, “ não há nada de nçoirçpatíyep àntre a~cõncepção bíEIÍca de uma história dinâmica e a visãcrm oq^0® de um desenvolvimento his­ tórico quando se evita o erro moifettio que consiste em considerar o desenvolvimento históricd^çòmo tendo em si mesmo a sua própria explicação e em identífk Qcy\com a redenção. Se examinarmos acura­ damente as afiniaà.aés\è^ÍSTentes entre as duas concepções, veremos que algui elementos., “d a concepção moderna podem servir para corrigir erroxXqu evpenetraram nas formulações tradicionais da fé erigos do apologista. — Segundo Niebuhr, os maiores pequais esta exposto o apologista são três: obscurantismo, ido­ _e legalismo. “ Á”Té cristã” — afirma o nosso teólogo — “ ainda sofre as con­ seqüências do..esforço- obscurantista no sentido de preservar as suas v c iu a u c s n a cpui_a u a i_icni_ia u a iw m ia n a , u c s a n a iiu u as c v iu c u c ia o 111-

contestáveis adõtádãs- por cientistas honrados e honestos. Ainda é sen­ sível o peso do desprezo de Huxley contra a desonestidade dos pole­ mistas religiosos” 24. 20 Fede 150-151. 21 Ibid., 22 Ibid., 23 Ibid., 24

e Storia, p. 173; cf. também The Nature and Destiny of Man, v. I, pp.

pp. 191-192. Cf. também pp. 195, 206-208, 209-215. p. 249. pp. 249-250. N i e b u h r , “ Intellectual Autobiography”, p. 21.


Exige-se do apologista a máxima lealdade, abertura mental, ductibilidade e disponibilidade. Ele deve saber fazer suas as descobertas da filosofia, da ciência e da técnica. Nunca poderá esperar fazer valer a verdade cristã negando verdades que lhe sãn superiores em termos de evidência.. Além do perigo do obscurantismo, o apologista também está exposto ao perigo da idolatria. Ele pode ser tentado a utilizar seu conhecimento da verdade para “ reclamar uma aliança especial com Deus contra os inimigos da Igreja. Devemos reconhecer o significado de uma longa história de fanatismo religioso e devemos admitir que uma religião, que triunfou sobre a idolatria em termos de princípio, pode na prática tornar-se um instrumento de interesses particulares. Sem esse reconhecimento, a humildade de um autêntico cientista e o comedido bom senso de um homem de negócios, que sabe que seus objetivos estão em conflito com outros objetivos legítimos, valem mais do que a sabedoria dos cristãos” 25. O terceiro perigo é o legalismo. “ Em princípio, o Cristianismo é mais uma religião do espírito do que da lei: ‘firmes na liberdade de que Cristo nos fez livres’. São Paulo mostra que nenhuma observância de obrigações morais específicas pode servir de sucedâneo do encontro pessoal com Deus, no qual as pretensões e o orgulho do próprio eu são despedaçados e o egoísmo e o pecado eliminados. Mas, efe­ tivamente, os formalismos excessivos de que se revestiu o cristia­ nismo histórico estão em flagrante contraste com ‘o amor, a alegria e a paz’ que caracterizam uma conversão genuína e não suportam um confronto com a liberdade dos melhores idealistas seculares. Em suma, uma apologética cristã genuína deve estar pronta a levar o juízo de Deus, com~õ~mesmo rigor, tanto ao edifício da fé como ao mundo secular e pagão, assim corno os profetas de Israel eram tão severos com Israel como com a Babilônia ao pronunciarem o juízo de D eus” 26. 4. O método da apologética. — Niebuhr não considera válidos para 'a apologética os dois métodos tradicionais da controvérsia e do diálogo. Repele o método da controvérsia porque ele visa mais a humilhar o adversário do que a convencê-lo. E refuta também as duas formas típicas do diálogo: a dos teólogos liberais, que procura­ vam salvar a fé reduzindo-lhe as pretensões, e a dos filósofos humanis­ tas, que procuravam reduzir as distâncias elevando o homem. Ao invés desses métodos, aprova e faz seu o método dos teólo­ gos dialéticos, vale dizer, a dialética. Mas não.a entende à maneira de Barth, põrem, muito mais à maneira de Tillich e Brunner. Como estès, ele não se contenta em dem olir. não se limita a pmnnnriar um “ não" incondicional a tudo aquilo que é humano.


Niebuhr não compartilha a atitude de Barth, uma vez que a considera contrária aos fins da apologética, a qual, não obstante a crí­ tica, tem sempre em vista estabelecer um encontro com o outro inter­ locutor. O “ não” barthiano não pode favorecer o encontro com os literatos, os artistas, os cientistas. Com o “ não” barthiano “ é renega­ do qualquer intercâmbio entre a estultice do Evangelho e a sabedoria do mundo, entre a fé e a cultura. . . Nessa perspectiva, por exemplo, alguém não poderia empenhar-se num debate com os psicólogos sobre a questão de que nível da pessoa humana é esclarecido adequadamen­ te pela psiquiatria e que nível, ao contrário, enquanto sujeito e espí­ rito livre, foge às suas análises. E tampouco se poderia discutir com os sociólogos as possibilidades e os limites da justiça racional na socie­ dade humana” 27. Contra Barth, sustenta que o homem é pecador, mas não total­ mente. De outra forma, como poderia ele conhecer que é pecador? Da mesma maneira, Deus é transcendente, mas não totalmente outro. Caso contrário, como poderia o homem conhecer Deus ou, por outro lado, como poderia Deus revelar-se ao homem? Niebuhr censura Barth por falar de Deus e acreditar que quem o escuta compreende aquilo que ele diz. Mas, se não há nenhum ponto em comum entre o homem e Deus, é impossível qualquer discurso sensato a respeito de Deus. “ Ainda que Karl Barth proteste contra qualquer forma de raciocínio analógico quanto ao ‘Totalmente Outro’, no entanto serve-se da analo­ gia do conceito de personalidade quando define o caráter da vida di­ vina. Ela procura mascarar a sua lógica analógica invertendo-a. Afir­ ma que o conceito de personalidade humana é derivado do conceito de personalidade divina. . . Contudo, a lógica de Barth não pode elu­ dir o fato de que, por mais imperfeita que seja a personalidade huma­ na em confronto com a personalidade divina, ele recolheu o conceito de personalidade da vida humana e aplicou-o à vida divina. De que ou­ tra fonte, com efeito, poderia tê-lo deduzido?” 28 Niebuhr recusa-se a jogar fora as intuições válidas que o libera­ lismo trouxe à nossa cultura. Fiel ao princípio do equilíbrio, procurou preservar o melhor do barthianismo e do liberalismo. Por isso, sua teologia pode ser chamada barthiano-liberal.

V. O HOMEM , O PECADO, A GRAÇA Os dois grandes temas da apologética niebuhriana são o homem e a história, os quais são também os temas centrais da especulação fi­ losófica moderna. E foi justamente por isso que os levou em conta de forma especial. É a visão cristã do homem e da história que ele 27 N i e b u h r , 28 N i e b u h r ,

Christian Realism and Political Problems, Nova York, 1953, p . 182. The Nature and Destiny of Man, v. II, p p . 66-67, nota.


se propõe a justificar e validar, contra todas as outras visões do homem e da história desenvolvidas pelo pensamento antigo e moderno. Porém, no contexto da antropologia cristã e da teologia da histó­ ria, nosso teólogo introduz com habilidade também todos os outros dogmas do cristianismo: Deus, Cristo, pecado, graça, Revelação, Igre­ ja, sacramentos. Tratando do homem, não deixa de tratar também do pecado, a dura verdade que a teologia liberal esquecera e que, ao contrário, constitui um dos componentes essenciais da visão cristã do homem, assim como trata também da graça, que é o remédio do pecado. E é da apresentação de suas doutrinas sobre o homem, o pecado e a graça que partirá, logicamente, a nossa breve exposição do “ siste­ m a” de Reinhold Niebuhr. No início do capítulo quinto de Human Nature, Niebuhr nos oferece a seguinte síntese de sua interpretação da visão cristã do homem: “ A visão cristã distingue-se claramente de qualquer outra vi­ são pelo modo como interpreta e liga entre si tres aspectos da exis­ tência Humana : 1) ^Ressalta a altura da autotranscendência na estatura espiritual do homem com a doutrina da ‘imagem de D eus’. 2 ) Insiste na fraqueza, na dependência e nã fmítüHê do homem, bem como em sua imersão nas necessidades e contingências do mundo natural^ sem, entretanto, considerar essa finitudèTem si mesma comoTonte de mal no hõmem,~Em suá forma mais pura, a visão cristã do homem considera-o como unidade de semelhança divina e de natureza de criatura na qual ele permanece criatura mesmo nas dimensões espirituais mais excelsas de sua existência e pode revelar elementos da imagem de Deus mesmo nos aspectos mais baixos de sua vida natural. 3) Afirma que o mal no homem é uma conseqüência da inevitável, ainda que não necessádia, repugnância a reconhecer a sua dependência, a aceitar sua finitude e a admitir a sua insegurança, uma repugnância que o envolve no circulo vicioso que acentua aquela insegurança da qual procura fugir” 29. Resumindo, esse texto diz que três são os traços fundamentais da visão cristã do homem: o que é contraditóncTentre os princípios constitutivos do 'ser humano, a semelhança com Deus (a imago Dei) e o pecado. Quanto à contraditoriedade, ela é o aspecto que Niebuhr mais gosta de delinear, fazendo-o com tanta maestria que lembra Pascal. Veja-se, por exemplo, o primeiro capítulo de Human Nature, onde se pode ler, entre outras coisas:' “ O homem é um filho da natureza, su­ jeito às suas vicissitudes, oprimido por suas necessidades, impelido por seus impulsos, confinado dentro da brevidade dos anos que a natureza concede às suas formas orgânicas, deixando-lhes uma certa amplitude, mas nunca grande demais. Esse é o primeiro fato evidente. Porém há um outro ainda, menos evidente mas não menos verdadeiro, ou seja, » Ibid., v. I, p. 150.


que o homem é espírito, que está fora da natureza, da vida, de si mes­ mo, da razão e do mundo. Este segundo fato é apreciado por diversas filosofias num ou noutro de seus aspectos. Mas amiúde não é aprecia­ do em todo o seu alcance. . . Como é difícil tratar com eqüidade tanto a unicidade do homem como a sua afinidade com o mundo da natureza sotoposta é algo documentado pela tendência quase invariável das filosofias que descrevem e ressaltam as faculdades racionais do homem ou a sua capacidade de autotranscendência, esquecendo as suas relações com a natureza e identificando-as prematuramente e sem qua­ lificação com o divino e o eterno, bem como pelas filosofias natura­ listas que, ao contrário, obscurecem a unicidade do homem” 30. O equilíbrio entre os elementos contraditórios da natureza humana_ só épreservãH õ na visão cristã, que concebe o homem como “ existênaã~tmitá~^~cmdã~' em corpo e espírito ” 31. <rA segunda característica importante da visão cristã do homem é compreendido primeiramente a partir do ângulo de Deus, ao invesTdo ângulo ~3a unicidade, de suas faculdades racionais ou de suas relações com a natureza: ele é concebido como ‘imagem de Deus’ ” 32. Sabemos que na década de 30 eclodiu a famosa polêmica entre Barth e Brunner justamente em torno da questão da imago Dei. Brunner sustentava que a imago Dei constitui o “ ponto de contato” necessário com Deus e, conseqüentemente, não pôde ser aniquilado pelo pecado. Já Barth afirmava que não existe nenhum “ ponto de contato” além do estabelecido livremente pela graça de Deus e, uma vez que a imago Dei consiste na graça, ela é incompatível com o pecado. Tanto Brunner como Barth repeliam a clássica distinção entre imago e similitudo, ou seja, entre semelhança natural e sobrenatural com Deus. Niebuhr, como fazia habitualmente, coloca-se do lado de Brunner, mas desta vez só a meias: compartilhada com ele a tese de que a imago Dei não se perdeu com o pecado, contudo não compartilha sua crítica à distinção entre imago e similitudo. Antes de mais nada, num agudo estudo histórico do problema, em que analisa o conceito de imago Dei na Sagrada Escritura, nos Padres da Igreja, nos Escolásticos e nos Reformadores, sobretudo em santo Agostinho e Lutero, Niebuhr faz ver que o primeiro a negar a imago Dei, depois do pecado, foi Lutero, o qual, no entanto, só conseguiu fazê-lo à custa de notáveis incongruências. “Com efeito, ain­ da que Lutero insista em que ‘a imagem está de tal forma deteriorada e ofuscada pelo pecado’ e ‘tão leprosa e suja' que nos impede até mes­ mo de ‘ter um conceito dela’ na mente, ele procede, todavia, àbusca 30 Ibid., v. I, 31 Ibid., v. I, 32 Ibid., v, I,

pp. 3-4. p. 12; cf. também pp, 123-126, p. 13.


de uma compreensão e uma definição da imagem de Deus, em amplo contraste com a condição atual de pecado” 33. Depois, retoma a distinção entre imago e similitudo: “ Essa distin­ ção, quando limitada e salvaguardada propriamente, é útil e até neces/ • » 7,4 sana . Logo, conclui que há uma imago Dei natural, intocável, que constitui a natureza essencial do homem. Essa “ natureza essencial con­ tém dois elementos. . . Por um lado, pertencem à natureza essencial do homem todos os seus dotes e determinações naturais, os impulsos fí­ sicos e sociais, as diferenciações sexuais e racionais, numa palavra, o seu caráter enquanto criatura inserida na ordem natural. Por outro lado, sua natureza essencial abarca também a liberdade de espírito, a sua transcendência em relação aos processos naturais e, por fim, a sua autotranscendência ” 35. Niebuhr recoloca a essência da imago Dei na autotranscendência, que por seu turno tem o seu fundamento último na liberdade. Chama a liberdade de que o homem é dotado de “ liberdade radical” , na me­ dida em que é capaz de escolher não só entre várias coisas, mas tam­ bém a si mesmo 36. terceira característica fundamental da visão cristã do homem é què~ele" e'' pècaáõ^7~*7t~ãt^n£õnsl3iHçãcr'^3a estatura humana lmplicidiTno conceito de imagem de Deus’ encontra-se paradoxalmente jus­ taposta à baixa consideração da virtude humana no pensamento cristão. O homem é um pecador. O seu pecado é definido como uma rebelião contra Deus. A avaliação cristã do mal humano é tão séria assim, exatamente porque recoloca o mal no próprio centro da personalidade humana: na vontade. Esse mal não pode ser visto complacentemente como a conseqüência inevitável de sua finitude ou como o fruto de sua imersão nas contingências e necessidades da natureza. O pecado é ocasionado precisamente pelo fato de que o homem recusa-se a admi­ tir a sua natureza de criatura e a reconhecer-se como membro de umã unidade total de vida. Efe pretende ser mais do que é. E não lhe é possível, como no dualismo racionalista e místico, desfazer-se do pecado como resultado daquela parte que não constitui o seu verda­ deiro eu, mas daquela que se encontra envolvida na necessidade fí­ sica. No Cristianismo, não é o homem eterno que julga o homem finito, mas é o Deus eterno e santo que julga o homem pecador. E a redenção não está nas mãos do homem eterno, que deixa cair lenta­ mente as vestes do homem finito: o homem não é dividido interior­ mente de modo tal que o homem essencial possa ser extraído do não-essenciàl. O homem se contradiz exatamente no interior de sua es-

33 Ibid., v. I, p. 160. 34 Ibid., v. I, p. 270. 35 Ibid. 36 “ Intellectual Autobiography”, pp. 110-111.


sência. Esta é livre autodeterminação. O pecado consiste no uso er­ rado da liberdade e na destruição que daí deriva” 37. Já revelamos que um dos principais méritos de Niebuhr foi o de recuperar a doutrina do pecado, uma doutrina que o liberalismo teo­ lógico deixara decididamente de lado. Contudo, para garantir a retoma­ da dessa doutrina, verdadeiramente essencial para a visão cristã do homem, por vezes nosso teólogo exagerou, dando a impressão de que para ele o cristianismo consiste mais na revelação do pecado do homem do que na comunicação da graça de Deus. É um exagero que se explica facilmente se considerarmos as circunstâncias pouco favoráveis a uma especulação serena em que Niebuhr teve que tratar do assunto. Aliás, ele próprio reconheceu ter exagerado: “ A acusação que me foi dirigida, certa época, de exagerar a corrupção da natureza era fundada; foi preciso muito tempo para que eu desse igual atenção ao diagnós­ tico e à cura, ao pecado e à graça” 3S. Niebuhr explica o pecado original não como um pecado pessoal do primeiro homem, Adão, mas como uma inclinação perversa que está presente em qualquer ato humano individual. Não é uma cate­ goria bíblico-histórica, mas “ uma verdade dialética que leva em conta o fato de que são inevitáveis no homem o amor a si mesmo e a concentração sobre si próprio, ainda que isso não chegue à categoria de necessidade natural” 39. O pecado original esclarece a inevitabilida­ de do mal, mas não retira a responsabilidade do homem, que possui uma liberdade interior, ~um plano de transcendência sobre a sua ação, que se opõe à inevitabilidade do mal. O pecado original se revela no momento em que aflora na consciência do. homem o sentimento de culpa como conseqüência de uma ação má. Há ainda um outro componente de importância essencial na visão cristã T tõ^om êm irã~~pãçã.~EÍH. segundo^iehuh f~'téfn~~HõIs aspectos, “ a conquista do pecado no coração do homem, por um lado, e o poder misericordioso de Deus sobre o pecado, que nunca é inteiramente sub­ jugado no coração do homem, por outro lado ” 40. A graça lévã~ãõ crente uma nova fonte e ce n tro ae viHa, mai não suprime o pecado. Niebuhr procura apresentar uma confirmação fenomenológica des­ sa co-presença da graça e do pecado no homem. “ Corresponde à expe­ riência ” — diz ele — “ de que num sentido o convertido é justo e nou­ tro não” 41. Na experiência da graça, permanece um certo hiatus entre a obra iniciaTda graça e a sua realização. Inicialmente, a graça dá orlgêm a um novo eu, que tem Cristo por norma. Entretanto, na expe­ riência, o novo eu e a sua norma encontra-se em parcial tensão e descontinuidade. O convertido continua a reconhecer a sua imper­ feição, tanto no professar a verdade como no praticar a virtude. “ Esse 37 38 39 40 41

The Nature and Destiny of Man, v. I, p. 16, “ Intellectual Autobiograph}'”, p. 10. The Nature and Destiny of Man, v. I, p. 263. Ibid., v. II, p. 100. Ibid., v, II, p. 125.


é o paradoxo da graça aplicada à verdade. A verdade, tal como está contida na revelação cristã, inclui o reconhecimento de que não é pos­ sível ao homem conhecer plenamente a verdade nem evitar o erro de pretender consegui-lo” 42.

VI. CRISTO E A H IST Ó R IA O problema da natureza e do significado da história já há mais de um século encontra-se no centro da reflexão teológica e filo­ sófica. Na filosofia, são célebres as contribuições de Vico, Hegel, Comte, Croce, Collingwood, Toynbee, Heidegger. Na teologia, as contribuições de Daniélou, de Lubac, von Balthasar, Tillich, Cullmann. O problema da história ocupa o primeiro lugar no pensamento de Niebuhr, sendo tratado em quase todas as suas obras. Mas a obra èm que ele encontra uma solução conclusiva é Fé e História. Nesse ensaio, Niebuhr propõe-se a apresentar “ a interpretação cristã da his­ tória à luz de uma refutação, com base na exp en ên cia^ ãs- modernas visões da história, e a reexaminar a visão cristã do ponto dê vista da­ quilo que é verdadeiro na~3escober ta moderna do crescimento e do dês'enTOlvlir7êntõ~fT3~~Historia^r4T.

Como esclareceu o trecho agora citado, o método que Niebuhr pretende utilizar não é o método abstrato da especulação filosófica, mas sim o método concreto da análise da experiência t E desta ele extrai três conclusões : 1) a razão não pode compreender nem explicar a história; 2) nem mesmo as religiões não-cristãs estão em condições de fazê-lo; 3 ) a única explicação válida é a oferecicía pelo cristianismo. Ilustremos brevemente essas três proposições, que resumem toda a teologia niebuhriana da história. 1. A razão não pode resolver o problema da, história. — jQ , motivo~dêssãHm pò~sslbilidadíT é de ordem gnoseológica: deve-se à rela­ tividade dõ nosso conhecimento. “Na medida em que os homens, individual ou coletivamente, são implicados no fluxo temporal, são obrigados a considerar o fluxo dos eventos desde um ponto histórico particular. Um alto grau de imaginação, compreensão oü afastamento pode aprofundar ou alargar esse ponto, mas nenhum poder humano pode torná-lo plenamente adequado à interpretação histórica. Esse fato constitui um dos mais claros exemplos da ambigüidade da situação humana. A pretensão de que isso não seja verdadeiro é um aspecto do pecado original que infecta toda cultura humana e cuja essência con­ siste na recusa do homem a reconhecer a própria limitação” 44. 42 lbid., v. II, p. 217. 43 Fede e Storia, p. 43. 44 lbid., p. 148.


Do princípio da relatividade do conhecimento humano derivam duas importantes conseqüências que interessam diretamente ao nosso problema: a) a impossibilidade de uma filosofia da história; b ) a falsi­ dade de todas as soluções filosóficas do problema histórico. Quanto à impossibilidade de uma filosofia da história, Niebuhr afirma textualmente: “ Não é possível conceber qualquer ‘filosofia’ da história pelo fato de que uma filosofia reduziria as antinomias, as ambigüidades e a variedade de formas da história a um sistema muito simplista de inteligibilidade” 45. Quanto à falsidade de todas as soluções filosóficas do problema histórico, trata-se de uma das teses capitais que Niebuhr se propõe a demonstrar no ensaio Fé e História. O primeiro capítulo do en­ saio termina da seguinte maneira: “ A esperança de que tudo aquilo que é rebelde no comportamento humano possa ser reconduzido ao controle das finalidades mais vastas da ‘razão’ através das mesmas técnicas que permitiram ao homem dominar a natureza não é simples­ mente uma ilusão acidental, causada pelos fenomenais resultados das ciências naturais: é o erro fundamental do desconhecimento que o ho­ mem moderno tem a respeito de si mesmo ” 4Ó. Todas as filosofias da história, antigas e modernas, fizeram-se porta-vozes desse erro fundamental, que induz o homem a crer que o desenvolvimento his­ tórico seja um processo redentor que ele pode manipular livremente com sua razão. As duas visões da história, moderna e clássica, “ de­ monstram o desejo comum de tornar o processo temporal racionalmen­ te inteligível. . . No pensamento clássico, o processo temporal é tor­ nado inteligível através de sua relação com o mundo eterno; o pen­ samento moderno, porém, considera que ele tem a sua explicação em si mesmo. . . A visão moderna distingue-se da concepção clássica pelo fato de que está convencida de que o tempo e o mundo do mu­ tável não são mistérios que requeiram uma explicação referida a um mundo imutável, mas sim constituem a chave que abre o mistério da origem e do término da vida. Por outro lado, a visão moderna está profundamente ligada ao mundo clássico em virtude de sua concepção de um mundo racionalmente inteligível, do qual o mistério é banido. O mistério do Gênese e da criação é resolvido no clima de confiança geral introduzido pelas prestigiosas conquistas das ciências naturais: com base nessa confiança, a causalidade natural é vista como explica­ ção suficiente para qualquer fenômeno que se produza no processo temporal” 47. Mas tanto a visão histórica da filosofia clássica como a das filosofias modernas são falsas, porque, como já foi dito, reduzem as antinomias, as ambigüidades e a variedade de formas da história a um sistema muito simplista de inteligibilidade. Na história, há uma mis­ 45 Ibid., pp. 171-172. Cf. p. 148. 46 Ibid., p. 20. 47 Ibid., p. 57.


tura paradoxal de racionalidade e irracionalidade. Na experiência hu­ mana, não há apenas coerências, mas também forças obscuras que se opõem à racionalidade que procura controlá-las. Em conseqüência, em qualquer momento da história, cruzam-se racionalidade e misté­ rio; o mistério não inteligível, a irracionalidade, é tão importante quanto a racionalidade. A utopia liberal, que exagera a racionalidade, e o cinismo naturalista, que exagera a irracionalidade, são ambos in­ capazes de explicar a combinação estranhamente equívoca de malea­ bilidade e intransigência que se encontra na história e não conseguem explicar a grandeza e a miséria da condição humana. Para obter uma explicação satisfatória da história, é necessário, por issõ7 recorrer à religião, à Fé. <rEm definitivo, nem mesmo no quadro de uma cultura altamente evoluída, que dispõe de todos os recursos da ciência histórica moderna, é possível captar o sentido de uma história universal a não ser por meio da fé. . . Quanto mais se leva em conta o panorama completo da história, mais se torna evidente que o significado dado ao todo deriva de um ato de fé. A história po­ de ter um mínimo de unidade pelo íato de que todos os eventos que a compõem são baseados no fluir do tempo num único mundo, mas esse mínimo de unidade não fornece ao homem uma chave para com­ preender a ampla variedade de configurações culturais e políticas que distinguem a história do suceder-se de eventos naturais. Em sua tota­ lidade e em sua unidade, a história recebe um sentido de uma fé reli­ giosa, na medida em que o conceito de significado é extraído de pres­ supostos últimos e fundamentais relativos ao caráter do tempo e da eternidade, que não são fruto de uma análise detalhada dos eventos históricos” 48. 2. As religiões não-cristãs não resolvem 0 problema da história. — As r^ igIoes~"nFo.-cristãs. “ tanto tribais .çcmKL.impeaaiSwJ^-.CQnseguem êlevar-se a um..nível tal gue_ permita ..uma perspectiva de histórijTcIa humanidade em sua totalidade. Elas não conseguem nem mesmo reconhecer que o significado da vida é ameaçado pelo fato de que a liberdade do homem contém a possibilidade de colocar em questão e mesmo destruir a coerência interna da vida. As formas de espiritua­ lidade a-históricas atribuem o mal ao caos da natureza e buscam a emancipação do mal no reino do espírito puro ou da razão. As formas primitivas de espiritualidade históricas não levam em conta adequa­ damente o problema do mal, já que identificam o mal com o poder do inimigo ou do rival, e consideram o triunfo sobre o inimigo como o equivalente da redenção” 49. 3 .,5o 0 cristianismo dâ a solução adequada para 0 problema da história. — A validade dessa tese deriva de dois fatos: !_) o Cristia­ 48 Ibid., pp. 142, 149. 49 Ibid., p. 32.


nismo abarca a história inteira e não só a história de um povo em particular no seu sistema de compreemão~dã~7nstóría; 2 ) o Cristia­ nismo trata c^probiema do mal de .modo JEundamentâl e não „simples­ mente do ponto de vista daquilo que um simples indivíduo ou uma coletividade reconhecem como mal nas ações de rivais e inimigos na história 30. “ O Cristianismo inclui a história inteira no seu significado uni­ versal, já que é uma religião baseada na revelação que conhece por fé alguns eventos históricos em que se revelam a origem e o término transcendente do panorama inteiro da história. A fé cristã percebe muito bem a ameaça de esvaziamento de significado que penetra na história através da corrupção da liberdade do homem; mas nem por isso sucumbe à desesperada conclusão de que a história é simplesmente um caos de forças contrastantes. Reconheceu que o poder divino que, domina\ a história também possui uma fonte de misericórdia e amor que vence a rebelião do pecado humano, ainda que sem negar as distinções entre bem e mal que formam o conteúdo moral da história. As revelações de Deus na história, com efeito, são para a fé bíblica si­ nais de uma graça divina que não só põe a nu o caráter malvado do pecado humano, mas também o vence” 51. A tese de que só no cristianismo se encontra a solução adequada para o problema da história implica o reconhecimento de que “ a vida, a morte e a ressurreição de Cristo representam na história um*evento através do qual se abre uma espiral sobre o significado tõtãI~5ã~HIstoria ê~~no qual todas essas perguntas encontram uma resposta” 52. A '"aceitação 3e Cristo como centro explicativo da história é obra da fé e não da razão. Assim, não pode constituir a base de uma filosofia dá "KistÕrTã. Entretanto, é uma aceitação extremamente clarifi­ cadora para tudo aquilo que se refere à história. Por isso, acolhê-la é algo razoável. Portanto, na medida em que o evento cristão é “ um evento cuja profundidade e grandeza de revelação devem ser alcança­ das pela fé, isso não constitui a base de uma ‘filosofia da história’, à qual se poderia chegar analisando as seqüências, os ciclos, as estrutu­ ras e os esquemas da história. Porém, na medida em que a história torna-se plena de significado, sendo orientada para a revelação desse evento, o próprio evento é fonte de ‘sabedoria’ e de ‘vida’ ” 53. A zona sobre a qual o evento cristão irradia mais luz é a zona do mal: “ A interpretação da história do ponto de vista da revelação leva a uma compreensão completa da realidade do mal. O mal é uma força que está no interior da própria história e não a intromissão da necessidade da natureza no histórico. O drama da história apenas subordinadamente contém um conflito entre as forças do bem e do mal na história. Mas, em primeiro lugar, o drama consiste no fato de que 50 51 52 53

lbid., lbid., lbid., lbid.,

pp. 32-33. Cf. também pp. 131-132. p. 33. p. 38. pp. 38-39, Cf. pp. 132-133, 177, 191-215.


Deus se opõe aos homens, todos inclinados a desafiá-lo pelo fato de que tendem a fazer de sua vida o centro do significado da história. A esse desafio humano é colocado um limite externo pelo fato de que o poder de Deus, que se revela nas estruturas de tudo aquilo que existe, substancialmente leva à autodestruição as formas de vida que se constituem como fins em si mesmas, isolando-se de outras formas ou dominando outras formas. Contudo, por outro lado, não se pode negar que qualquer período histórico seja moralmente ambíguo devido à aparente impunidade do orgulhoso e do prepotente que explora o fraco e ao egocentrismo geral de todos os homens que desafiam a so­ berania de Deus. Essa rebelião do homem contra Deus só é vencida, em última instância, pelo poder divino, que contém em si o poder do amor divino. A ‘loucura da cruz’ como fonte de sabedoria absoluta em relação à vida consiste precisamente na revelação da profundidade da misericórdia divina no interior e acima da ‘ira’ de Deus: por meio des­ se amor, Deus toma o mal e o pecado do homem em si e sobre si. Cada vez que, através das ilusões e desilusões da vida, os homens che­ gam a um confronto com esse Deus, assim como é revelado em Cristo, descobrindo que o seu juizo sobre seu pecado não é menos grave do que pensavam, mas ainda mais severo, graças à descoberta do amor que provoca esse juízo, podem ser convertidos e renovados. Portanto, a história é um reino de infinitas possibilidades de renovação e renascimento. A cadeia do mal não é um fato histórico invencível” 54. Essas são as razões pelas quais, segundo Niebuhr, a visão cristã da história, ainda que se baseando na fé, é racionalmente mais plausí­ vel do que as outras visões. Por isso, nesse sentido, é possível e legí­ timo falar da racionalidade da teologia cristã da história: “ na medida em que é possível provar que as explicações que se colocam como alternativas a ela não conseguem explicar todos os aspectos da existên­ cia humana e que os pressupostos basilares da fé cristã, mesmo trans­ cendendo da razão, permitem dar uma explicação da vida e da história em que todos os fatos e antinomias da história podem ser compreendi­ d o s” 55. Entretanto, se por um lado nosso .teólogo preocupa-se em demons­ trar que a visão cristã é racional, por outro lado ele nunca se cansa dê insistir em que se trata de uma visão que só pode ser recebida na f f e no arrependimento : “ Cristo não pode ser reconhecido como re­ velação de Deus a não ser por meio da fé e do arrependimento” 56. 54 Ibid., pp. 39-40. 55 Ibid., p. 173. No capítulo intitulado “ A Validação da Visão Cristã da Vida e da História” (pp. 191-215), Niebuhr mostra que a racionalidade da visão cristã pode ser provada tanto negativa como positivamente: “ Em sentido negativo, o Evangelho pode e deve ser validado pelo exame dos limites das formas históricas da sabedoria e da virtude. Positivamente, o Evangelho é validado quando a verdade da fé é colocada em relação com qualquer verdade conhecida pelas disciplinas científicas e filosóficas e revela-se em condições de coordenar essas verdades, num sistema de mais profunda e vasta coerência” (p. 192). 56 Ibid., p. 186. Veja todo o capítulo IX.


A aceitação da validade do Evangelho cristão como resposta definitiva aos problemas da vida individual e da história do homem inteira “ é uma conquista da fé, já que se trata de um conhecimento da verdade além dos limites da razão. Uma tal fé deve basear-se no arrependimento, pois pressupõe um humilde reconhecimento da falsi­ dade de toda pretensão à perfeição em cada campo de atividade do homem, na sua virtude, no seu conhecimento e na sua capacidade de alcançar resultados. É um dom da graça porque nem a fé nem o arrependimento, necessários para o conhecimento do verdadeiro Deus, revelado na cruz e na ressurreição, podem ser alcançados através dos esforços do homem. O eu deve perder-se a si mesmo para reencon­ trar-se a si mesmo na fé e no arrependimento; mas não se encontra a si mesmo se não for aferrado por aquilo que o transcende” 57. Até aqui, vimos as razões da superioridade da visão cristã da história em relação a qualquer outra visão, a sua racionalidade e a sua “ sobrenaturalidade” (ou seja, a sua aceitação pela fé ). Para completar ITexposição, resta-nos agora ver em que, segundo Niebuhr, ela se diferencia intrinsecamente das visões filosóficas. Segundo ele, o ponto fundamental de distinção está no fato de que “ a fé cristã não considera o tempo e a história como tendo em si mesmos a sua explicação: aquilo que dá um sentido à história é o mistério da pro­ vidência e aquilo que dá um sentido ao tempo é o mistério da criação. Nesse reconhecimento não de uma simples inteligibilidade, mas de um mistério, no tempo e na história, é que a fé cristã se distingue tanto da cultura clássica como da moderna. Diferencia-se da cultura clássica na medida em que opera uma clara distinção entre história e tempo, considerando o tempo histórico como um movimento para um futuro pleno de significado e não como um fenômeno ligado simples­ mente aos ciclos do tempo natural. Nesse sentido, a fé cristã apresenta uma afinidade com o sentido moderno da história: com efeito, ela é o terreno em que cresceu a moderna consciência histórica. Mas se diferencia da cultura moderna (e apresenta algumas afinidades com a cultura clássica) .em sua convicção de que tanto o tempo como a his­ tória têm sua razão de ser além do tempo e da história, num princí­ pio de significado absoluto” 58. Concluímos nesse ponto a exposição da teologia de Niebuhr, embora bastante deficiente, dado que deixou de lado diversos temas importantes, como a fé, a revelação, a Trindade, a Igreja, os sacra­ mentos, os novíssimos. Mas considero ter sido útil concentrar nossa atenção sobretudo nas doutrinas do homem e da história, porque são os aspectos em que melhor se revela a natureza apologética do seu “ teologar” .

57 Ibid., p. 191. 58 Ibid., p. 52.


V II. AVALIAÇÃO Para avaliar a teologia de Brunner, recorremos à distinção entre forma e conteúdo. Com ela, pudemos estabelecer que a forma perso­ nalista da teologia brunneriana pode ser acolhida também pelo teólogo católico; já o conteúdo, em geral, deve ser repelido, na medida em que deriva rigorosamente do princípio protestante da sola gratia. Também para avaliar a teologia de Reinhold Niebuhr, considero útil recorrer à distinção entre forma e conteúdo. Examinemos antes de mais nada a forma. Recordando primeira­ mente que ela é essencialmente apologética. Niebuhr, porém, não foi o único neste século a dar à teologia um caráter apologético. Fizeram­ -no também Tillich, Garrigou-Lagrange, Teilhard de Chardin e outros. Mas enquanto estes serviram-se da apologética para estabelecer um contato maior, um encontro, entre fé e razão, entre cultura moderna e cristianismo, Niebuhr utiliza muito mais para ressaltar o afastamento, a distância entre a esfera da fé e a esfera da razão. A primeira preo­ cupação do teólogo norte-americano não é mostrar a racionalidade da visão cristã. Ao contrário, o seu ponto de partida é a irracionalidade, a irracionalidade do homem e da história, bem como a incapacidade da razão em resolvê-la ou eliminá-la. É assim que ele prova a neces­ sidade da fé e da visão cristã, da qual no fim fornece uma validação racional59. A apologética niebuhriana é antes de mais nada uma apologética “ crítica ” : Pretende desmascarar metódica e insistentemente as pre­ tensões claras ou mascaradas do homem moderno no sentido de al­ cançar a perfeição só com seus meios e construir um paraíso na terra, dentro do reino da história. Sua intenção primeira é refutar a tese do “ Evangelho Social” de que a história é por si mesma portadora de salvação, bem como a suposição do liberalismo teológico de que a na­ tureza humana é moralmente reta. Mas é também uma apologética “ construtiva” , na medida em que faz ver a validade da fé cristã, mostrando sua pertinência e cor­ respondência com aquelas que são as exigências mais íntimas e me­ nos satisfeitas do homem.

59 A diferença entre a apologética de Niebuhr e as outras apologéticas foi muito bem revelada por A. Richardson: “An apologist its the strict meaning of the word is

one who seeks to make sympathetic contact with the thougth of his age with a view to commending Christian truth to his contemporaries and defending it against hostile criticism. It is clear thath R. Niebuhr does not set out in the deliberate fashion of other apologists to do his. He is far too critical of the presuppositions of our age to be a conventional apologist. I f we are looking for an epithet by which to describe him, the word that comes to mind is not 'apologist’ but ‘prophet’. In an important sense a prophet’s function is exactly the opposite of an apologist’s-, instead of making sympathetic contact with the thougth of his age the prophet is compelled by an inner necessity to criticize and refect i t . . . " (A. R i c h a r d s o n , “ R . Niebuhr as Apologist” in Reinhold Niebuhr, his Religious, Social and 'Political Thougth, p. 216).


Hoje, a colocação apologética já caiu de moda. Um dos orgu­ lhos da teologia pós-conciliar é justamente ser dialógica, ao invés de apologética. Apesar disso, considero que o teólogo católico não pode deixar de ver com satisfação na apologética niebuhriana a razão plena­ mente empenhada na defesa da fé; com efeito, a defesa da fé faz parte da função ancilar que a teologia católica sempre atribuiu à razão, desde os tempos de Clemente de Alexandria, santo Agostinho e são Tomás de Aquino. No que se refere à eficácia da apologética de Reinhold Niebuhr, A. Richardson, um estudioso inteligente e bem informado a respeito do seu pensamento, escreveu: “ Por um lado, ela salvou inúmeros jovens da vacuidade e da desilusão da utopia liberal e, por outro lado, arrancou muitos outros da fanática idolatria do marxismo ou então do desespero cínico do niilismo” 60. Quanto ao conteúdo, de todas as teologias protestantes que con­ sideramos até agora neste livro, a de Niebuhr é certamente a mais próxima à teologia católica61. Vimos que, como todos os teólogos protestantes, ele tende a exagerar na visão cristã do homem o compo­ nente do pecado, além de professar o princípio protestante do simul peccator et iustus. Contudo, tanto pela interpretação que oferece des­ se princípio (uma interpretação que acredito possa encontrar também o consenso dos teólogos católicos) como, sobretudo, pela doutrina da imago Dei (que está substancialmente em conformidade com a dou­ trina da teologia católica), uma parte de sua teologia tem traços cla­ ramente católicos. Entretanto, há algo em sua visão do homem que o teólogo cató­ lico não pode compartilhar: a inevitabilidade do pecado. Segundo a Sagrada Escritura, o pecado não é conseqüência inevitável da finitude do homem, como afirma Niebuhr, mas sim o resultada de um mau uso da liberdade humana.

Ibid., p. 225.

61 Utilizando o critério de Barth, que acusou Brunner de catolicismo devido ao "Anknüpfungspunkt” , com maior razão ainda se deve acusar Niebuhr de catolicismo, já que sua doutrina sobre a imago Dei é bem mais explicitamente católica do que a doutrina do “ponto de contato” de Brunner. — O pensamento de Reinhold Niebuhr foi objeto de estudo sobre­ tudo, logicamente, de especialistas norte-americanos. Além da coletânea de ensaios in­ titulada Reinhold Niebuhr. His Religious, Social and Political Thougth, a cargo de C. W. K e g l e y e R. W. B r e t a l l , Macmillan, Nova York, 1956, merecem menção espe­ cial as seguintes obras: D . R. D a v is , Reinhold Niebuhr, Prophet from America, Clar­ ke, Nova York, 1948; E. J. C a r n e l l , lh e Theology of Reinhold Niebuhr, Eerdmans, Grand Rapids, 1960; G. H a r l a n d , The Thougth of R. Niebuhr, Oxford University Press, Nova York, 1966; H . H o f m a n n , The Theology of R. N., Scribner, Nova York. Em francês, temos dois excelentes ensaios: G. P. V i g n a u x , La Théologie de 1’Histoire chez R. Niebuhr, Delachaux & Niestlé, Neuchâtel, 1957; B . d e M a r g e r ie , R. Nie­ buhr, Théologien de la Communauté Mondiale, Desclée, Paris, 1969. Nota bibliográfica.


RUDOLF BULTMANN: DEMITIZAÇÃO DA REVELAÇÃO E TEOLOGIA EXISTENCIALISTA

No primeiro quartel deste século, registrou-se uma reviravolta decisiva na teologia protestante por obra da Escola Dialética. Ela subverteu os princípios da teologia liberal: liquidou o racionalismo, o imanentismo e o humanismo que estavam em sua base e substituiu-os pelo princípio da infinita diferença qualitativa que distancia Deus do homem e o homem de Deus. Como sabemos, os expoentes máximos da Escola Dialética são Barth, Brunner, Tillich, Niebuhr e Bultmann. Nos capítulos prece­ dentes, já tratamos dos quatro primeiros. No presente capítulo, ocupar-nos-emos de Bultmann e do seu pensamento tão genial, ainda que seriamente controvertido. Rudolf Bultmann sacudiu o mundo teológico (e não só ele) nada menos do que duas vezes durante o nosso século. A primeira vez foi quando de sua conversão à teologia dialética, introduzindo na exegese bíblica, então conduzida segundo os princípios da crítica histórica li­ beral, o método histórico-morfológico ( Formgeschichte). A segunda vez foi quando inventou a teoria da demitização. Por esses dois títulos, o liiétodo histórico-morfológico e a demitização, ele já era no passado e é ainda mais no presente uma das figuras mais significa­ tivas da teologia no século X X . Sua teologia, além do novo método hermenêutico e da demiti­ zação, caracteriza-se também pela utilização da filosofia existenciaJisia. Portanto, na apresentação essencialmente teológica do pensamen­ to de Rudolf Bultmann, devemos levar em consideração sobretudo es­ ses três aspectos: método, filosofia e demitização. É o que procurare­ mos fazer nas próximas páginas.

I. VID A Rudolf Karl Bultmann nasceu em Wiefelstede (O ldenburg), na Alemanha, em 20 de agosto de 1884. Filho mais velho de um minis­ tro protestante da Igreja Luterana, cresceu num ambiente profunda­ mente religioso. Cursou a escola primária em Rastede, para onde


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RUDOLF BULTMANN — DEM ITIZAÇ ÂO DA REVELAÇÃO.

seu pai fora transferido. Já o ginásio e o liceu ele freqüentou em Oldenburg. No liceu, além do estudo da religião, distinguiu-se tam­ bém pelo estudo do grego e da história da literatura alemã. Concluído o liceu, iniciou seus estudos teológicos na Universi­ dade de Tübingen, em 1903. No ano seguinte, passou para a Universi­ dade de Berlim e dois anos depois para a de Marburg. Foi aí que, em 1910, licenciou-se em teologia, com a tese Der Stil der Paulini­ schen Predigt und die Kynisch-stoische Diatribe (O Estilo da Pregação Paulina e a Diatribe Cínico-estóica), e dois anos mais tarde obteve a livre docência, com uma dissertação sobre a exegese de Teodoro de Mopsuéstia. Seus mestres foram homens de clara fama liberal e de orientação histórico-crítica. Ele mesmo deixou a lista daqueles em relação aos quais sente-se particularmente devedor: em Tübingen, o historiador da Igreja Karl Müller; em Berlim, o estudioso vétero-testamentário Hermann Gunkel e o grande historiador do dogma Adolf Harnack; em Marburg, dois estudiosos do Novo Testamento, Adolf Jülicher e Johannes Weiss, e o teólogo sistemático Wilhelm Hermann. Foi a conselho de Weiss que Bultmann se orientou para os estudos de exegese neotestamentária. Em 1912, começou sua brilhante carreira acadêmica, inicialmente na qualidade de livre docente de exegese neotestamentária na Univer­ sidade de Marburg, depois como encarregado na Universidade de Wroclaw (al.: Breslau). Em 1920, foi chamado a suceder o célebre biblista Wilhelm Bousset na Universidade de Giessen. Mas apenas um ano depois preferiu deixar essa universidade para retornar a Marburg, que ele sempre considerou a sua pátria acadêmica, a fim de assumir a cátedra de Novo Testamento e de História da Igreja Primitiva. Desde então, permaneceu sempre em Marburg, até 1951, ano em que se retirou do ensino. Nesse meio tempo, casara-se em 1920, tendo duas filhas de seu feliz matrimônio. Em 1921, publicou uma de suas obras mais significativas, a célebre Die Geschichte der Synoptischen Tradition (História da Tradi­ ção Sinótica), na qual introduzia no âmbito da pesquisa neotestamen­ tária o método histórico-morfológico (Formgeschichte) . Ao mesmo tempo, abandonava a orientação liberal na qual ti­ nha crescido e começava a trabalhar e participava da fundação da Teologia Dialética, notoriamente antiliberal e antimodernista, justifi­ cando sua atitude com esta nobre motivação: “ O objeto da teologia é Deus e a refutação da teologia liberal baseia-se no fato de que não se ocupa de Deus, mas do homem” . Na década de vinte, também ensinava em Marburg Martin Hei­ degger. Bultmann teve assíduos contatos com ele e assimilou com en­ tusiasmo sua filosofia existencialista. Via nela o único instrumento filosófico apto a exprimir a mensagem cristã de um modo inteligí­ vel para o homem moderno.


Em 1926, publicou um livreto intitulado Jesus, em que apre­ sentava a mensagem de Jesus em termos existencialistas. Contudo, tanto o uso da filosofia existencialista, como meio de expressão da mensagem cristã, como o emprego da Formgeschichte, com uma forte acentuação do elemento histórico-crítico, separaram pouco a pouco Bultmann de Barth e dos outros dialéticos. Em 1926 já se observara um sinal da ruptura inevitável, quando Bultmann ana­ lisou o Die Auferstehung der Toten (A Ressurreição dos M ortos) de Karl Barth. Em seu escrito, Bultmann censurava o teólogo da Ba­ siléia por não levar muito em conta a crítica histórica e filológica e, ademais, por desenvolver um conceito de fé demasiado sobrenaturalista, sem nenhuma relação com a consciência. Com efeito, Barth e Bultmann já se encontravam encaminhados em duas sendas diversas: uma levava à analogia da fé e à Die Kir­ chliche Dogmatik; a outra levava à demitização e ao Neues Testament und Mythologie. Em 1941, Bultmann publicou Neues Testament und Mythologie (Novo Testamento e M itologia), o célebre ensaio em que lançou o famoso programa de demitização do Novo Testamento. O seu escri­ to obteve ressonância mundial e exerceu uma influência positiva sobre toda a teologia depois da última Grande Guerra. Por isso, o ano de 1941 encontra-se entre os mais significativos da teologia no século X X . Bultmann sempre foi um homem integral. Como nunca separou o filósofo do teólogo nem o teólogo do exegeta, também nunca sepa­ rou a doutrina da vida. Quando, em 1935, o governo nazista proibiu que as faculdades de teologia se intrometessem nas controvérsias entre Estado e Igreja, Bultmann respondeu com uma carta em que dizia, entre outras coisas: “ Para um docente de teologia, é absolutamente impossível deixar de tomar posição sobre aquilo que interessa à Igre­ ja, se não quiser perder todo contato entre atividade literária e vida concreta, da qual a primeira retira a sua vitalidade” . O fato de ele recolher donativos junto com o sacristão, depois da homilia aos domingos também confirma como a especulação filo­ sófica nunca se separou da vida religiosa concreta em Bultmann. Durante a velhice, Bultmann foi atormentado por várias doenças, entre as quais a cegueira; morreu em 30 de julho de 1976.

II. OBRAS A produção literária de Bultmann não é tão vistosa como a de B arth ', mas todos os seus escritos são altamente significativos e levam a marca de um estudioso consciencioso, atento, agudo, profun1 A lista completa das publicações de Bultmann até 1949 pode ser encontrada em Festschrift Rudolf Bultmann, zum 65, Geburtstag, Stuttgart, 1949, pp. 241-251; tal lista é atualizada até 1? de agosto de 1954 pela Theologische Rundschau, 1954, pp. 3-20.


do e genial, dotado de uma bagagem crítica, filológica e também filosó­ fica incomum. Já tivemos oportunidade de recordar alguns títulos de suas obras: Der Stil der Paulinischen Predigt und die Kynisch-stoische Diatribe (Vandenhoek e Ruprecht, Göttingen, 1910), Die Geschichte der Sy­ noptischen Tradition {idem, 1921) e Jesus (Deutsche Bibliothek, Berlim, 1926), As outras obras são: Das Evangelium des Johannes (Vandenhoek e Ruprecht, Göttin­ gen, 1941). Nessa obra, Bultmann opera uma reviravolta decisiva no rumo da investigação histórico-morfológica, até então centrada exclusi­ vamente nos sinóticos e esquecida do quarto evangelho e da questão joanina. Em seu vigoroso comentário, por um lado reivindica a im­ portância do quarto evangelho para a compreensão da formação da pri­ mitiva fé cristã e, por outro, ressalta a considerável rede de influências helenísticas, gnósticas e “ mandéias” a que o autor de tal evangelho foi submetido. Theologie des Neuen Testaments, em três volumes (Mohr, Tü­ bingen, 1948, 1951, 1953). É uma espécie de summa de todo o pen­ samento bultmanniano. Das Urchristentum im Rahmen der Antiken Religionen (Arte­ mis, Zurique, 1949). O título da obra, O Cristianismo Primitivo no Quadro das Religiões Antigas, é eloqüente: reflete a exigência de es­ tudar o cristianismo em suas relações com o mundo, no seio do qual surgiu, como condição para captar o seu significado próprio e o seu caráter peculiar. “ Considerado como fenômeno histórico”, podemos ler no prefácio, “ o cristianismo tem sua origem no seio do judaísmo declinante, que, ele mesmo derivado da religião de Israel, como foi dada a conhecer pelos livros do Antigo Testamento, nutriu-se, por seu turno, de sua herança. Entretanto, o cristianismo primitivo é um fenômeno complexo. Seu crescimento e a forma por ele assumida fo­ ram sem demora fecundados e determinados pelas forças espirituais do helenismo pagão, que, por sua vez, conservava a herança da histó­ ria espiritual grega, mas também era estimulado e enriquecido pela contribuição das religiões do Oriente Próxim o. . . ” The Presence of Eternity: History and Eschatology (Harper, Nova York, 1957) e Jesus Christ and Mythology (Scribner, Nova York, 1958). Nesses dois livretos, o autor clarifica o seu pensamento sobre pontos de importância capital para a sua teologia, como a na­ tureza, a necessidade e os limites de demitização, a necessidade do emprego da filosofia existencialista na interpretação da mensagem cristã (o Kerygma), a história como parte estrutural mítica da Reve­ lação, a escatologia como decisão atual de cada crente, e assim por diante. Glauben und Verstehen, em quatro volumes (Mohr, Tübingen, 1948ss). É uma coletânea de ensaios antes publicados em revista ou outras publicações. Tem grande valor para quem quiser seguir a


gênese e a evolução do pensamento bultmanniano e para quem quiser penetrar no mundo espiritual íntimo do discutido teólogo de Marburg. Ensaios como Das Problem der Hermeneutik, Der Begriff der Offen­ barung im Neuen Testament e Die Escatologie des Johannes-Evange­ liums revelam melhor do que qualquer outra obra os contornos do verdadeiro Bultmann. São muitos os temas colocados e sucessivamente retomados, aprofundados e precisados. Mas três são aqueles aos quais o autor retorna mais freqüentemente: história e revelação, revelação e pregação, pregação e existência. Offenbarung und Heils geschehen (Lempp, Munique, 1941). In­ clui dois ensaios: Die Frage der Natürlichen Offenbarung e Neues Testament und Mythologie. Como já dissemos, o segundo contém o famoso programa de demitização do Novo Testamento. Die Drei Johannes Briefe (Mohr, Tübingen, 1969) e Der Zweite Brief an die Korinther (idem, 1976). Para uma bibliografia completa, a cargo de E; Dinkler, cf. Exegé­ tica, pp. 483-507.

III. A T EO LO G IA E SEUS INSTRUM ENTOS: A H IST Ó R IA , A H ERM EN ÊU TICA E A FILO SO FIA Bultmann assevera com insistência que uma das funções essen­ ciais da teologia de cada época é compreender o keryzma (a mensa­ gem revelada) e bem traduzi-lo, tornando-o a cada vez atual para quem o escuta. Essa função tornou-se tanto mais urgente em nossa época na medida em que a roupagem conceptual com que se vestiu no passado já se gastou; já não atinge mais, não atrai mais; pelo contrário, tornou-se motivo de escândalo. Essa roupagem pertence a uma men­ talidade superada, uma mentalidade ingênua, pré-científica, que acre­ ditava nos anjos e demônios, que colocava o paraíso no céu e o in­ ferno sob*e a terra. Essa mentalidade envolveu o kerygma numa visão cósmica que hoje constitui um forte obstáculo para a aceitação do próprio kerygma. É preciso, portanto, interpretá-lo e reexprimi-lo atra­ vés de categorias mentais que reflitam a autocompreensão que hoje o homem tem de si mesmo. Para fazê-lo, segundo, ikiltmann, o teólogo deve valer-se da história, da...hermenêutica e da filosofia. Ãs~~cfuas pri­ meiras o ajüHãrlcT a descobrir o núcleo central da mensagem cristã; a terceira lhe permitirá exprimi-lo de maneira eficaz e inteligível para o homem moderno. Examinemos atentamente o pensamento do nosso teólogo sobre esses três instrumentos do seu “ teologar” . Iniciemos pela história.


1. A História Como é sabido, o ponto de partida da Teologia Dialética^ foi o protesto contra a pretensão de a teglogia_.lihgraL chegar ao objeto da fé somente através da investigação histórica. Bultmann também em­ prestou seu nome ao novo movimento, porque não aprovava o histori­ cismo dos teólogos liberais. Entretanto, a crítica aos seus exageros nunca impediu o teólogo de Marburg de prestar a Harnack e seus co­ legas a devida homenagem de reconhecimento por ter introduzido o método da crítica histórica e ter defendido a tese incontestável de que o cristianismo e essencialmente um fenômeno histórico. Em 1950, para celebrar o cinqüentenário de O que é o Cristia­ nismo?, Bultmann organizou a republicação dessa célebre obra de Harnack. Na introdução, Bultmann afirma que a chamada interpreta­ ção liberal do cristianismo “ não é absolutamente um resíduo já gasto de outros tempos, que não se precisa mais levar a sério. Ao contrário, a concepção ‘liberal’, no mínimo, contém impulsos ativos, os quais, apesar de obscuros, ainda conservam a sua legitimidade e validade. . . Isso equivale a dizer que a obra de Harnack deve ser lida não como um simples documento histórico, mas como uma contribuição à discus­ são teológica hodierna. . . E, tendo em vista o perigo atual da nova ortodoxia e do retorno de um ‘denominacionismo’ rígido, é necessário que essa voz não se apague” . Contudo, precisa Bultmann, Harnack deve ser lido criticamente: “ A verdadeira lealdade nunca é repetição arcaizante, mas uma assimilação crítica que se apropria dos impulsos legítimos e os recobre de nova validade por meio de uma nova forma ” . Ora, a leitura crítica de Harnack, segundo o teólogo de Marburg, mos­ tra que sua obra é viciada por um defeito substancial. Com efeito, “ ainda que ele tenha se proposto descrever a essência do cristianismo principalmente na condição de historiador, de fato nunca conseguiu representar sua própria essência como fenômeno histórico” . Mas por que razão um mestre tão excelso de crítica histórica como Harnack não conseguiu captar a essência do cristianismo? Segundo Bultmann, isso ocorreu porque o autor de O que é o Cristianismo? partiu de uma concepção naturalista da história, a qual, sempre segundo Bultmann, é uma concepção errada. Na introdução ao Jesus, onde nos oferece um esboço de sua concepção da história, o autor explica antes de mais nada a razão de a concepção naturalista ser inadmissível. “ Se quisermos compreender a história""naquilo que ela tem de essencial, não se pode ‘observá-la’ como se observa o mundo que nos circunda, para dela extrair certas informações. São diversas as relações que o homem mantém com a história e a natureza. A diversidade diz respeito à possibilidade de compreender-se a si mesmo no seu próprio ser. Ora, quando ele se volta para a natureza a fim de observá-la, encontra só uma forma de ser que não é a sua. Entretanto, quando se volta para a história, não pode deixar de constatar que faz parte dela e que ele próprio está


envolvido no sistema de forças que determina o seu curso. . . Qual­ quer juízo sobre a história, de alguma maneira, diz também algo so­ bre nós. Assim, não pode haver um modo objetivo de observar a história como há para observar a natureza. Por esse mQiiyQ^-no&sa ex­ posição não pode ser outra coisa senão um diálogo permanente com _a historia, se não quiser limitar-se _a ser apenasjjrna coletânea de infori^ãcoeF sobfê lmportantes acontecimentos dõ passaçlo. . . Não se pode eíetuaTirrn vêfâãHéiro encontro com a história a não ser no diálogo. ... Somente quando percebemos que somos colocados em movimento por forças históricas, portanto sem fazermos o papel de observadores neutros, e quando estamos dispostos a dar atenção às exigências da história, é que podemos compreender verdadeiramente aquilo que acontece na história. . . A história não fala quando tapamos os ouvi­ dos para ela, isto é, quando pretendemos poder ficar neutros diante dela; mas, quando vamos a ela movidos por questões e pelo desejo de aprender alguma coisa, então a história fala” . O trecho que citamos não é apenas uma crítica à concepção na­ turalista, mas é também a tese principal da concepção bultmanniana da história, a tese segundo a qual, para ser compreendida, a história deve ser abordada com atitude e espírito existencial. Segundo Bult­ mann, a história não é um museu de documentos antigos que devesse sêFl/isrtádó dé mineira mais ou menos distraída, mas um conjunto de acontecimentos que interessam direta e pessoalmente a cada um de nós. E só quem os aborda com participação existencial pode compreendê-los. Essa abordagem existencial é o princípio primeiro da filosofia bultmanniana da história. Mas não é o único. Ainda há outros dois princípios. _Q primeiro diz que aquilo que interessa na história não são os personagens, mas as obras. Por exemplo, se quisermos com­ preender Platão, Dante, Lutero e Napoleão, não necessitamos nos deter em suas perso/ialidades. É preciso que nos identifiquemos neles; por­ que eles, certamente, não pensavam em suas personalidades, mas sim em suas obras. Por “ obra”, precisa Bultmann, não se entende o resul­ tado dos seus esforços, a soma dos efeitos históricos, porque eles não podiam adotar como objetivo de suas ações a soma de tais efeitos. “ Colocando-se em sua perspectiva,£a obra representa aquilo que eles verdadeiramente quiseram, aquilo pelo qTtaf~Trábalhar’a m. E é nessa perspectiva qüe eles se constituem em objeto da pesquisa histórica, desde que interrogar a história^ não consista em informar-se de modo £eutro sobre os acontecimentos objetivamente verificáveis e pertencenjtes ao passado, mas sim consista em se preocupar com a questão de sa­ ber como nós, envolvidos no movimento da história, podemos alcançar a compreensão da nossa existência, ou seja, como podemos ser ilumi­ nados sobre as possibilidades e necessidades da nossa vontade” 2. 2 Jêsus, Paris, 1968, pp. 31-32. A edição francesa que utilizo inclui também a tradução do ensaio Jesus Christ and Mythology, sob o título Mythologie et Démythologisation. No curso do presente estudo, as citações desse ensaio também serão tiradas da mesma tradução.


OguJXQ-Jjrincípio fundamental da filosofia bultmanniana da his­ tória glz r ê s p ê l t õ à ^dificuldade de alcançar resultados seguros através da investigação histórica. Do método histórico-crítico, Bultmann apren­ deu a lição de que são muito poucas as verdades indiscutíveis na história. A aplicação dos três princípios expostos à vida de Jesus e ao Novo Testamento dá~osTresultados que a seguir descrevemos. Do princípio da dificuldade de alcancar conclusões seguras através da investigação histórica_deriva que “ nós não podemos, por assim dizer, _saber mais nada da vida e da personalidade de Jesus, seja porque as fontes cristãs não se interessaram por isso, seja porque não existem ~'outras fontes sobre Jesu s” \ Mas essa situação, segundo Bultmann, não justifica nenhum ceticismo, por duas razões. Antes de mais nada, porque “ o fato de duvidar que Jesus tenha v erd ad eira-/ mente existido não tem nenhum fundamento e não merece nem mes­ mo ser refutado. É indiscutível que Jesus encontra-se na origem do mo­ vimento histórico de que a comunidade palestina primitiva representa o primeiro estágio tangível” 4. Em segundo lugar, porque a impossi­ bilidade de estabelecer em que medida a comunidade tenha sabido conservar fiel e objetivamente a imagem que tinha dele e de sua pre­ gação tepi... importância para...que_m_ se ocupa da_personalidade de Jesus, mas não para quem se interessa por sua obra 5. " Do princípio de que aquilo que conta na história não são os personagens, mas sim suas obras, resulta o propósito de Bultmann de eliminar do estudo de Cristo todas as expressões “ que o descrevem co­ mo umj*rande Homem^ um gênio, um Jieróí ” á. Jesus deve ser estudado com o mesmo critério com que se deve estudar todos os homens cé­ lebres, vale dizer, através de sua obra, recordando que em seu caso a atividade primordial consistiu em pregar; por isso, jjuem procura des­ cobrir “ aquilo que Jesus queria, deve antes de mais nada estudar o seu ensinamento" 7. Por fim, do princípio de que não devemos abordar a história com espírito naturalista, mas sim com espírito existencial, deriva a conseqüência de que o ensinamento de Jesus não deve ser tomado co­ mo uma ponte para chegar à sua personalidade nem como um siste­ ma de verdades gerais, um sistema de proposições que têm valor independentemente da situação concreta na qual se encontrava quem as pronunciou. Q^ensinamento de Jesus deve ser considerado como proveniente da situaçao concreta de um homem que viveu em deter­ minado tempo, como um ensinamento capaz de explicar a nossa exis­ tência situada no movimento, na insegurança e na decisão, e em con3 4 5 6 7

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. 35. p. 38. pp. 38-39. p. 34. p. 36.


dições de exprimir uma possibilidade de compreensão dessa nossa exis­ tência, uma tentativa para fazer brotar as possibilidades e exigências do nosso existir. “ Por isso, quando nos encontramos diante das pala­ vras de Jesus, não devemos..criticá-las partindo de um sistema filo­ sófico, em função de siia_va1idade racional; ao contrário, elas devem vir aõTíõsso encontro como questões sobre o nosso modo de conceber nossa própria existência; isso pressupõe, bem entendido, que nos preocupemos pelo problema do nosso existir” 8. Se nos aproximamos da Palavra de Jesus com essa disposição, ela nos revelará uma nova compreensão da nossa existência, uma compreensão radicalmente opos­ ta à que tínhamos anteriormente. O principal objetivo de Bultmann no admirável ensaio que é '' o seu Jesus reside em mostrar que a essência da mensagem de Cristo está na Revelação desse novo modo de compreender o nosso existir. O teólogo de Marburg identifica o anúncio da vinda do Reino de Deus e da salvação com o anúncio desse novo modo de existir, renúncia ao mundo e aceitação da vontade de Deus. “ As palavras de Jesus querem conduzir o homem a tomar consciência do caráter absoluto da exigên­ cia divina; elas mostram que não se pode seguir ao mesmo tempo a vontade de Deus e os próprios interesses, mas que se trata de um aut-aut” 9. A mesma tese é retomada em Jesus Christ and Mythology, onde podemos ler: “ A Palavra de Deus conclama o homem a renunciar ao seu egoísmo e à segurança ilusória que construiu para si. Conclama-o a voltar-se para Deus, que está além do mundo e do pensamento cien­ tífico. E o conclama ao mesmo tempo a reencontrar o seu verdadeiro eu. O eu do homem, com efeito, a sua vida interior e a sua existência / pessoal também estão além do mundo visível e do pensamento racio­ nal. A Palavra de Deus interpela o homem em sua existência pessoal e, assim, torna-o livre das preocupações e da angústia que o sufocam quando se esquece do além” 10. No ensaio O Cristianismo como Religião do Oriente e do Oci- S dente, Bultmann sustenta que o êxito do cristianismo deve-se à nova compreensão da existência humana pregada por Cristo. “ Se o cristianis­ mo — inicialmente uma religião oriental — torna-se também uma reli­ gião ocidental, aliás mundial, é um fenômeno cujas razões não deve­ riam ser buscadas no fato de que contém possibilidades fundamentais para a compreensão da existência humana, possibilidades que encon­ tramos imutáveis em toda parte e em toda época, tanto no Oriente como no Ocidente?” Bultmann responde que o cristianismo deu à ' existência humana um sentido que o mundo antigo jamais conhecera. Apresentou o homem “ como alguém que, tornado consciente do seu isolamento diante de Deus, enfrenta o mundo de uma maneira desco8 Ibid., p. 37. 9 Ibid., p. 97. Cf. todo o capítulo III, no qual Bultmann desenvolve a tese de que a essência da compreensão cristã da existência reside na obediência. 10 Ibid., p. 208.


nhecida para a antiguidade grega. . . Enfrenta-o como uma entidade fundamentalmente transcendente, radicalmente diversa de tudo aquilo que pertence ao mundo” . Essa transcendência é particularmente visí­ vel na doutrina cristã da dor. “ Através da dor se desenvolve no ho­ mem uma força interior pela qual se coloca fora do alcance da má sor­ te: a dor é para ele fonte de energia. A essência mais íntima do cristia­ nismo encontra-se aqui: Deus se revela no Crucificado, que, enquanto Ressuscitado, ele transformou em Senhor” u . Ao término da apresentação do pensamento de Bultmann sobre a história, temos a impressão de que ele incorre numa grave contra­ dição, quando, por um lado, sustenta que a Revelação cristã tem caráter histórico e, por outro, nega que haja nela algo que possa ser investigado mediante as técnicas do método histórico, Como se pode falar de acontecimento dotado de caráter histórico e, ao mesmo tem­ po, subtraí-lo à investigação histórica? Bultmann não ignorou essa dificuldade e procurou dissipá-la com a famosa distinção entre Historie e Geschichte. A Historie, que pode­ ríamos traduzir pelo termo “ crônica histórica ” , pertencem os fatos determinados no tempo, sujeitos à investigação e à constatação do método histórico; à Geschichte ( “ H istória” ) pertencem as realidades que, mesmo sem prescindir dos fatos historicamente documentados, es­ tão no tempo mas não são temporais, no sentido de que não têm uma data, nem se encontram subjacentes à constatação da investigação his­ tórica. Essas realidades não recaem sob o domínio da razão, mas só podem ser recebidas pela fé. À Geschichte e não à Historie, por exem­ plo, pertencem a criação e a redenção como acontecimentos que não podem ser objetivados. Já a crucifixão é ambivalente: indica certa­ mente o fato que pode ser datado, de crônica histórica, da morte de Jesus, mas também o acontecimento histórico ( geschichtlich) da li­ bertação do homem da escravidão do pecado e de sua reconciliação com Deus. Eis, portanto, a solução da dificuldade: não há nenhuma contra­ dição na afirmação de que a revelação cristã é histórica, mas não veri­ ficável historicamente. Com efeito, é histórica na medida em que per­ tence à Geschichte, mas não é verificável historicamente na medida em que não pertence à Historie. 2. A Hermenêutica Em estreita conexão com o problema histórico encontra-se o pro­ blema hermenêutico. Assim, relacionando-se com a correta compreen­ são do texto sagrado 12, que, como sabemos, relata um fenômeno his­ 11 “Das Christentum als Orientalische und als Abendländische Religion” em Glau­ ben und Verstehen, Tübingen, 1965, v. II, pp. 201ss. 12 Essa é a definição que Bultmann dá de hermenêutica. Cf. “ Das Problem der Hermeneutik” em Glauben und Verstehen, v. II, pp. 211ss; Jesus Christ and Mytholo­ gy, na edição citada, pp. 215ss.


tórico, esse problema não pode deixar de coincidir, em muitos aspec­ tos, com o problema histórico. Portanto, é compreensível que Bult­ mann, desenvolvendo o seu pensamento em torno da hermenêutica, retome muitos conceitos que já encontramos anteriormente, quando examinamos a sua concepção de história. O problema hermenêutico revela melhor do que qualquer outro os três grandes momentos do desenvolvimento do pensamento teoló­ gico de Bultmann. Efetivamente, ele está presente de maneira evi­ dente em todos os três momentos. No primeiro, o da passagern da teologia liberal para a teolopia dialética, temos a elaboração de um no­ vo método exegético, o método histórico-morfológico ( Formgeschichte). No segundo, o da passagem da teologia dialética para a teoIpgia existenciãTista,~encontramos o reconhecimento da necessidade de uma pré-compreensão ” do texto por parte do exegeta. No ter­ ceiro, o da demitização, temos uma nova e mais radical formulação das funções da hermenêutica. Em nossa exposição, por enquanto, consideraremos somente as duas primeiras fases. Só mais tarde trataremos da demitização. a) O método histórico-morfológico. — Na polêmica com a es­ cola liberal, Bultmann, juntamente com Dibelius, desenvolve o método histórico-morfológico (Formgeschichte). Esse método conserva alguns elementos do método histórico-crítico da teologia liberãI7 mas possui dõis ele"mentos novos, muito importantes: um diz respeito à natureza do objeto, o outro ao modo de abordá-lo. No método histórico-morfológico, o objeto da investigação não é mais o Cristo em si mesmo, mas o Cristo como aparecia para a co­ munidade primitiva. Para descobrir a representação que a comunidade primitiva tinha dele, o método histórico-morfológico analisa os Evan­ gelhos, separa os elementos que os compõem segundo os vários gê­ neros literários, depois reagrupa-os novamente e, de tal modo, obtém diversas representações de Cristo, ditadas pelas múltiplas exigências da comunidade primitiva (exigências catequéticas, polêmicas, apolo­ géticas, exorcistas, missionárias, etc.). Por fim, através da análise de tais representações, procura estabelecer qual era a tradição cristã pri­ mitiva. Para o_ correto uso do método histórico-morfológico, Bultmann ressalta a importância, por um lado, de fixar para cada elemento o seu Sitz im Leben, ou seja, “ o lugar de aparecimento e o ponto de inserção na comunidade” , e, por outro lado, de enquadrar cada ele­ mento no gênero literário apropriado 13. A exegese neotestamentária logo se assenhoreou do método histórico-morfológico, cujo uso fez com que realizasse notáveis progressos. Mas muitos exegetas empregavam-no do mesmo modo como a escola liberal utilizara o método crítico, vale dizer, com a presunção de obter 15 Die Geschichte der Synoptischen Tradition, p. 4.


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RUDOLF BULTMANN — DEMITIZAÇÀO DA REVELAÇÃO.

resultados “ objetivos” , ou seja, tradições e representações naturalistas e atemporais de Cristo. Logo que se converteu à filosofia existencialista de Heidegger, Bultmann Apressou-se em protestar m ntra essa utiliyaçqo da exegese históriccMBOífalDgica e de qualquer exegese em geral. Então, ele pro­ clamou que não é possível uma verdadeira compreensão do texto bí­ blico. como de resto de qualqnerjyxt.o. sem uma pré-compreensão exis­ tencial. b) A pré-compreensão existencial. — Antes de mais nada, decla­ ra Bultmann, não se pode considerar o texto como uma coleta de informações, nem como uma descrição de algo qualquer ( w as). Se os fatos narrados fossem considerados como comunicação de algo, eles não poderiam ter, em última análise, nenhuma pretensão; tampouco se poderia ter deles uma autêntica compreensão, mas apenas um saber ou um ter-como-verdadeiro. As coisas narradas seriam cadáveres e nós seríamos necroscópicos. Com efeito, não se pode extrair nenhuma re­ lação vital de testemunhos históricos do passado. Certamente perma­ nece vital o interesse da coisa em si mesma, mas ela só se torna vital através do aspecto por meio do qual se manifesta. “ T oda interpreta­ ção que tenciona compreender deve pressupor uma ' relação de vida pTefimínar- com a coisa "que se apresenta no texto ou indiretamente üâs_.palavras, porqucTtil relaçacT"serve de guia para a intencionalidade da pesquisa. Sem essa relação vital em que texto e intérprete são correlatos, não são possíveis nem o interrogar nem o compreender, aliás, não há nenhum motivo para uma pesquisa. Por isso é que se diz, isto sim, que tpda- interpretação deve basear-se necessariamente numa certa pré-compreensão (V orverstãndnis) do objeto em discussão ou em exame” 14. Além disso, prossegue Bultmann, é preciso interrogar o texto. Quem quer compreender deve ter uma disposIçfo Je pêsqu 1sa, de quem interroga, de quem está pronto para ouvir. O teólogo de Marburg cha­ ma esse conjunto de disposições de “ pré-compreensão” , como já ha­ viam feito os estóicos e Clemente de Alexandria. “ Se os textos não _são interrogados, permanecem, mud o s” 15. A essas disposiçoes gerais exigidas para a compreensão de qual­ quer texto, Bultmann acrescenta no caso da Bíblia também uma dis­ posição especial, relacionada com a existência de Deus. Com efeito, enquanto narração do agir divino, a Bíblia implica uma compreensão do significado fundamental da ação de Deus na medida em que ela difere da ação do homem e dos acontecimentos naturais. “ A pré-compreensão diz respeito ao problema de Deus que move a vida humana. '•Portanto, ela não significa que o exegeta deva conhecer todo o possí­ vel de Deus, mas sim que tenha consciência do fato de que parte Ho i-t Clauben und Verstehen, v. II, p. 227. 15 Ibid., p. 228.


problema existencial de Deus, independentemente da forma que tal problema pode assumir de cada vez na sua consciência, seja o proble­ ma da salvação, o da libertação da morte, o da segurança diante do destino caprichoso ou o da verdade deste mundo enigmático” 16. Por fim, conclui Bultmann, repetindo a propósito disso o que já dissera ao tratar da história, a pré-compreensão deve ter um caráter existencial. A interrogação fundamental deve ser dirigida a si mesmo, ao próprio eu. O texto trata de mím, é algo pessoal. A m ensagem 1^ me interpela em minha existência e me impele a escolher novamen­ te essa minha existência; solicita-me uma nova decisão. “ O ser humano ' é um poder-ser ( Sein-kònnen), que deve se realizar na autodecisão. Sem essa decisão, sem essa disponibilidade do homem a ser um ser humano, uma pessoa que assume a responsabilidade da própria exis­ tência, não se pode captar uma só palavra da Bíblia como palavra dirigida à própria existência pessoal” 17. Por outro lado, esse encontro existencial com a Palavra de Deus é de importância capital, porque de tal encontro depende a realização 'sobrenatural do próprio ser. A ple­ na realização do próprio ser só é possível através da aceitação da relação com essa Palavra. Sem o encontro com ela, uma escolha de si mesmo seria contraditória, porque então eu poderia escolher-me a mim mesmo, ou seja, poderia fundar minha existência em mim mesmo. Já quando, através do encontro com a Palavra de Deus, me é oferecida a possibilidade de decidir além de mim mesmo sobre mim mesmo, então eu fujo a esse absurdo. 3. A Filosofia A teologia é por definição intellectus fidei, inteligência da fé. A sua função primária é obter e conservar a inteligibilidade da Revelação. Para cumprir essa função, serve-se precipuamente da filosofia. Quando examinamos o pensamento de Bultmann sobre a histó­ ria e a hermenêutica, já vimos que para ele o teólogo não pode pres­ cindir da filosofia. Com efeito, tanto o historiador como o exegeta devem ter uma pré-compreensão do seu objeto. Ora, toda pré-com­ preensão implica uma filosofia. A dificuldade de que nessa concepção a exegese, a história e, conseqüentemente, também a teologia podem cair sob o controle da filosofia, Bultmann responde que na realidade assim é; “ mas é preciso perguntar-se de que modo isso deve ser entendido. Com efeito, é ilu­ sório pretender que uma exegese possa ser independente das represen­ tações mundanas. Todo intérprete, consciente ou inconscientemente, depende das representações que herdou de uma tradição; e toda tra16 Glauben und Verstehen, v. III, p. 149. 17 Jesus Christ and Mythology, p. 222. Aqui, como mais adiante, utilizo-me da tradução francesa incluída na edição de Jesus, organizada por Paul Ricoeur e publicada sob o título Mythologie et Démythologisation, Paris, 1968.


dição se subordina a uma filosofia, qualquer que seja. Assim, por exemplo, a exegese do século X I X era, quando muito, tributária da filosofia idealista, de suas idéias e de sua compreensão da existência humana. Muitos intérpretes são ainda hoje influenciados pelas represen­ tações idealistas. Disso deriva que nunca se deveria realizar cegamente um estudo histórico e exegético, sem levar em conta as concepções que o orientam. Isso significa, em outras palavras, colocar a questão da filosofia ‘justa’ ” 18. Bultmann passa então a demonstração de que, hoje, a filosofia “ju sta”, aquela que assegura uma pré-compreensão apta a entender o fenômeno histórico do cristianismo e os textos bíblicos, é o exis­ tencialismo. “ Aqui, devemos ver bem claro que nunca haverá uma fi­ losofia justa no sentido de um' sistema filosófico absolutamente perfeito, capaz de responder a todas as questões e resolver todos os enigmas da existência humana. A questão reside apenas em saber qual é a filosofia que hoje oferece as perspectivas e os conceitos mais apropriados para a compreensão da existência humana. Parece-me que, chegados a es­ se ponto, devemos aprender algo da filosofia da existência, porque a existência é o objeto primeiro sobre o qual essa escola filosófica volta sua atenção. . . A filosofia da existência pode oferecer representa­ ções apropriadas para a interpretação da Bíblia, porque esta se in­ teressa pela compreensão da existência” 19. Por conseguinte, a quinta-essência da mensagem bíblica consiste na revelação de uma nova com­ preensão da existência, entendida como submissão total e obediência a Deus. Mas não é possível compreender a mensagem bíblica sobre a existência se não se sabe nem mesmo o que significa existir. Numa palavra, é necessária uma pré-compreensão da existência. Por que a pré-compreensão a ser adotada na interpretação da Escritura deve ser exatamente a do existencialismo? Por que não pode ser a do idealismo ou do romantismo? Segundo Bultmann, a pré-compreensão idealista e a romântica não estão aptas porque não se limitam a fornecer esquemas gerais de compreensão, mas já os preenchem com seu conteúdo, razão pela qual terminam por controlar totalmente a interpretação da Escritura. Tanto o idealismo como o romantismo têm um conceito tal do homem que tornam impossível a livre decisão de viver em total obediência a Deus. Com efeito, o idealismo identifica o homem com Deus e nossa identi­ ficação não sobra nenhum lugar para a decisão humana; já o romantis­ mo, centrando tudo no homem, não deixa mais espaço para uma in­ tervenção extraordinária de Deus. O existencialismo, ao contrário, fornece ao teólogo só um esquema geral da autêntica existência, sem predeterminar sua atuação concreta em cada instante particular. Para provar que o existencialismo não oferece um modelo de existência concreta, Bultmann recorre ao exemplo da análise existencial Ibid., p. 220. 19 Ibid., pp. 220-221.


do amor. “ Seria um erro”, afirma ele, “ crer que a análise existencial do amor possa permitir-me compreender a maneira como devo amar neste lugar e neste momento. Essa análise limita-se a explicar-me que não posso compreender o amor a não ser amando. Nenhuma análise pode substituir-se ao meu dever de compreender o meu amor como um encontro que se realiza em minha existência pessoal” 20. E o mesmo em relação à existência: “ A análise filosófica não tem a pretenção de mostrar-me minha autocompreensão pessoal. A análise pura­ mente formal da existência não considera a relação entre o homem e Deus, uma vez que não leva em conta os acontecimentos concretos da vida pessoal, os encontros concretos que formam a existência pes­ soal. Se é verdade que a revelação de Deus não se cumpre senão nos / acontecimentos da vida, neste lugar e neste momento, e que a análise da existência limita-se à vida temporal do homem colhida na sucessão de lugar e tempo, então essa análise revela um domínio que só a fé está em condições de compreender, na medida em que constitui o domínio da relação entre o homem e D eu s. . . A filosofia da existência não leva em consideração a relação entre o homem e Deus: esse fato comporta o reconhecimento de que eu não posso falar de Deus como do meu Deus até que eu olhe para dentro de mim mesmo. A minha re­ lação pessoal com Deus só pode ser estabelecida por Deus, do Deus que opera e que me encontra em sua palavra” 21. Noutro trecho, Bultmann precisa que a diversidade entre filoso­ fia da existência e Escritura não deve ser colocada no plano do conhecimento, mas sim no plano da ação. Com efeito, assegura o teólo­ go de Marburg, no plano do conhecimento a filosofia não tem nada a apreender do Novo Testamento, porque já sabe aquilo que significa “ existência histórica” . Já no plano da ação a Escritura afasta-se da fi­ losofia. Esta considera que o homem é capaz de libertar-se sozinho da escravidão do homem velho e da morte, ao passo que a Escritura ensi­ na exatamente o contrário. Ela faz ver que o homem, mesmo sabendo aquilo que deve fazer, é incapaz de fazê-lo. Para ser libertado, o ho­ mem tem necessidade de uma intervenção especial, de um “ ato ” de Deus. Por isso, a boa nova do Novo Testamento não é uma doutrina sobre o autêntico ser do homem, mas “ o anúncio de um ato de reden­ ção realizado por Cristo” 22. Para compreender corretamente o pensamento de Bultmann sobre essa questão, é preciso notar que ele considera que a filosofia.-não está em condições .de descobrir o pecado. Por isso afirma que a filo­ sofia pode considerar como transponível o abismo que separa a vida inautêntica da vida autêntica. “ A auto-afirmação do homem cega-o para o fato do pecado e essa é a prova mais clara de que ele é um ser decaído. Portanto, de nada serve dizer-lhe que é um pecador. Respon20 Ibid., p. 222. 21 Ibid., pp. 222-223. 22 “Neues Testament und Mythologie” em Kerygma and Myth, a cargo de H. W. Bartsch, Nova York, 1954, p. 27; o grifo é meu. 5 - Os

grandes t e ó lo g o s ...

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derá que se trata de uma mitologia. Mas isso não quer dizer que está com a razão. O pecado deixa de ser mitologia quando o amor de D eusencontra o homem, como uma força que o abraça e sustenta também em sua condição de pecado e soberba. O amor de Deus trata o homem como se fosse diferente daquilo que é. Assim fazendo, liberta-o da condição em que se encontra” 23. Segundo Bultmann, o existencialismo presta-se admiravelmente .,■■■ à interpretação da Escritura, não só por sua pré-compreensão da exis­ tência humana em geral, mas também por sua concepção do homem em suas características específicas. Segundo o existencialismo, o homem distingue-se das outras criaturas porque, diversamente delas, não é al­ go finito, verificável, “ tangível”, mas sim uma mina de possibilidades, as quais fazem de sua vida uma vida de “ decisões” . E ele se perde quando, ao invés de manter-se continuamente alerta, vigilante em re­ lação às suas escolhas, deixa-se arrastar pelo hábito e se aprisionar pelo passado, pelo homem velho, por aquilo que já é, ao invés de tender para aquilo que pode e deve ser. Contudo, ao contrário, salva-se quan­ do vive em contínua tensão para as suas possibilidades. A existência X humana é uma luta perene entre vida inautêntica e vida autêntica. A plenitude e a completeza da vida só podem ser alcançadas quando se aceita e vive para a extrema possibilidade, a morte. Ora, segundo Bultmann, partindo dessa concepção do homem, o kerygma cristão é plenamente inteligível. Numa palavra, o esquema do ' kerygma enquadra-se perfeitamente com o esquema do existencialismo. Também o cristianismo fala de homem velho e de homem novo, de queda e redenção, de possibilidades e decisões. Por essa razão, deve-se considerar o existencialismo a filosofia “ justa”, que “ oferece as repre­ sentações apropriadas para a interpretação da Bíblia” . Há ainda uma última razão pela qual ele vê no existencialismo um instrumento indispensável para a teologia contemporânea: só o existencialismo oferece categorias adequadas para operar a demitização da mensagem cristã que ele considera ser hoje a tarefa máxima da teologia. Mais adiante, retomaremos esse tema. Em virtude de todos esses motivos, Bultmann conclui: “ P reten -' do ater-me ao existencialismo até que alguém me faça conhecer um método exegético melhor” 24. IV. A D EM ITIZAÇÃO Hoje, Bultmann é para todos o símbolo da demitização. Desde 1941, ano em que publicou o célebre ensaio Neues Testament und Mythologie, até hoje, os teólogos, exegetas e filósofos nunca mais fa­ laram de mito e demitização sem referir-se necessariamente a ele. 21 Ibid., p. 31. 24 Neues Testament und Mythologie, p. 39.


Essa parte do seu pensamento é bastante conhecida e, além dis­ so, é bastante acessível: para tomar conhecimento dela, basta ler as breves e estimulantes páginas de Neues Testament und Mythologie 25. Por isso, limitar-nos-emos aqui a uma rápida síntese dos pontos prin­ cipais. ' Seu ponto de partida é a distinção, na mensagem cristã, entre conteúdo "essencial e forma estrutural; o primeiro permanece neces­ sariamente imutável; já a segunda pode variar de geração para geração. A forma estruUiral pode ser tríplice: mítica, metafísica e científica. ^Entretanto, para ser compreensível, deve corresponder à mentalidade da geração à qual a mensagem é endereçada. Se a geração tem uma mentalidade mítica, a mensagem deve assumir uma forma mítica; se tem uma mentalidade metafísica, deve assumir uma forma metafísica; se tem uma mentalidade científica, deve assumir uma forma científica. Colocadas a distinção entre conteúdo e forma e a divisão da mentalidade em mítica, metafísica e científica, Bultmann estabelece que os cristãos dos primeiros séculos tinham uma mentaliHãde mítico- v ^metafísica e, portanto, -CGncIui que eles deram à mensagem de Cristo uma expressão mítica e metafísica. Entende por mito “ a descrição do transcendente sob vestes mun­ danas ,~dãs ~cõísãT~dív ínas como se se tratassem de coisas humanas” 26. São três os elementos típicos da descrição mítica: 1) poderes sobre­ naturais, 2) que operam neste mundo, 3) assumindo formas antropo­ mórficas. Todos os três se encontram nos escritos neotestamentários. Neles, por conseguinte, o. mundo é concebido como um edifício de três andares, com o andar superior ocupado pelo céu," o andar central pela terra e o andar inferior pelo in fern o /“ O céu seria a morada de Deus e dos seres celestes; o mundo subtérrâneo é o inferno, o lugar da pe­ na. A terra é, por sua vez, não só o teatro dos acontecimentos natu­ rais e cotidianos, da previdência e do trabalho, do cálculo ordenado e regulado, mas também o teatro da ação de poderes sobrenaturais, isto é, de Deus e dos seus anjos, de Satanás e dos seus demônios” 27. Segundo Bultmann, a principal característica da mentalidade me­ tafísica é a de objetivar — isto é, exteriorizar — os nossos estados mentais, reconhecendo-lhes um estado objetivo fora de nós. Uma vez objetivados, tais estados tomam o nome de anjos ou espíritos benéficos, 25 Bultmann nos ofereceu uma análise mais exauriente e crítica do tema da demitização no ensaio Jesus Christ and Mythology, Nova York, 1958. 26 Neues Testament und Mythologie, p. 10, nota 2. O mito sempre esteve no centro das preocupações de Bultmann. A referência ao mito é constante, ainda que nem sempre necessariamente explícita, em toda a sua obra. Mas em poucas ocasiões ele tenta elaborar uma definição clara do conceito de mito, Além da definição citada acima, também é digna de nota aquela que Bultmann dá em Jesus Christ and Mythology. “A mitologia exprime uma certa compreensão da existência humana, Para ela, o mundo e a vida humana encontram o seu fundamento e os seus limites num poder situado além daquilo que nós podemos prever e dominar. A mitologia fala desse poder de maneira ina­ dequada e insuficiente, na medida em que fala dele como se se tratasse de um poder mundano” (edição citada, p. 193). 27 Neues Testament und Mythologie, p. 15.


quando se trata de bons impulsos, ou então tomam o nome de demô­ nios, quando se trata de maus impulsos. Reconhecendo-lhes uma exis­ tência autônoma, se obtém, acima de nós, um céu povoado de uma hierarquia de anjos e seres sobrenaturais, sob o domínio onipotente de Deus, e sob nós um inferno repleto de espíritos malignos. “ Tais poderes se inserem nos acontecimentos naturais não menos do que no pensamento, na vontade e na ação do homem; por isso, o milagre não é uma coisa rara. O homem não é dono de si mesmo; os demô­ nios podem possuí-lo; Satanás pode sugerir-lhe maus pensamentos; as­ sim, Deus também pode infundir-lhe o seu próprio pensamento e a sua vontade, fazê-lo descobrir figuras celestes e ouvir a sua palavra de comando e conforto, dar-lhe o poder sobrenatural do seu espírito. A história, portanto, não segue um curso constante e regular, mas re­ cebe movimento e direção das forças sobrenaturais” 28. ■ Depois, Bultmann procede à aplicação da distinção entre forma mítico-metatísica e conteúdo salvífico aos Evangelhos, concluindo que o conteúdo salvífico consiste “ num juízo (de Deus) que nos declara livres dos poderes do mundo sob cujo domínio nós caímos” . Deus deu expressão visível a esse juízo na morte de Cristo, que, conseqüen­ temente, é o sinal visível da redenção da humanidade das potestades de que era escrava. Toda a essência do kerygma está aqui, segundo o teólogo de Marburg: no juízo de Deus que se renova a cada instante no simples fiel, que se salva submetendo-se humildemente a ele. !, Ao contrário, todo o embasamento histórico do Novo Testamento I faz parte da forma mítico-metafísica: isto é, o relato de que na pleni­ tude dos tempos foi enviado ao mundo o Filho de Deus, ou seja, uma essência divina preexistente ao seu fenômeno, a qual, dando início à escatologia com sua morte e ressurreição, cancelou o pecado e triun­ fou sobre os poderes demoníacos que dominaram o mundo até a sua vinda. Portanto,, a maior parte dos acontecimentos relacionados com a vida de Cristo, segundo ESuItmann, são fruto do colorido míticometafísico, especialmente os milagres, a morte vicária e a ressurreição 29. Uma vez estabelecido que a mensagem cristã foi expressa me­ diante categorias mítico-metafísicas, Bultmann se pergunta: “ A prega­ ção cristã pode pretender que o homem moderno reconheça como ver­ dadeira uma imagem mítica do m undo?” A resposta é obviamente ne­ gativa: “ Isso não tem sentido e é impossível. Não tem sentido: com efeito, a imagem mítica do mundo, enquanto tal, não é de modo al­ gum uma realidade especificamente cristã, mas sim a imagem do mundo formulada no passado e ainda não elaborada pelo pensamento científico. Impossível: porque não se pode fazer própria uma imagem do mundo simplesmente através de uma decisão da vontade, mas ela é dada ao homem juntamente com a situação histórica” 30. Ora, “ para 28 Ibid. 29 Jesus Christ and Mythology, p. 191. 30 Neues Testament und Mythologie, pp. 16-17.


" o homem moderno, a concepção mitológica do mundo, as representa­ ções da escatologia, do redentor e da redenção são ultrapassadas e superadas” 31. Por isso, é preciso demitizar. Demitizar significa “ procurar des­ !cobrir o significado mais profundo que está oculto sob as concepções I mitológicas. . . O seu objetivo não é eliminar os enunciados mitoló' gicos, mas sim interpretá-los” , servindo-se da autocompreensão que j o homem moderno tem de si mesmo 32. O resultado da demitização bultmanniana do Novo Testamento é bastante conhecido. Consiste na desccberta, feita já no Jesus e con­ firmada depois em todas as suas obras posteriores, de que “ o signifi­ cado mais profundo da pregação mitológica de Jesus é o seguinte: devemos estar abertos para o futuro de Deus, futuro que, para cada um de nós, é iminente; estar preparados para receber esse futuro, qüé pode sobrevir como um ladrao na noite, no momento em que niêrios o esperamos; estar prontos, porque esse futuro será o juí­ zo de todos os homens agarrados ao mundo, que não são livres nem abertos para o futuro de D eus” 33. Esse processo de demitização que pode nos parecer tão surpreen­ dente — segundo Bultmann — não é novo nem recente, mas já se encontrava nas Epístolas de são Paulo e no Evangelho de são João, que foram seus iniciadores. Assim, enquanto a pregação de Jesus “ era conservada e continuada pela comunidade primitiva sob forma mítica, já começava em boa hora o processo de demitização, parcial­ mente com Paulo e radicalmente com João. O passo decisivo foi da­ do quando Paulo declarou que a virada do mundo antigo para o mundo novo não estava situada no futuro, mas se produzira com a vinda de Jesus Cristo: ‘Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, envicu Deus o seu Filho’ (G1 4 ,4 ). É verdade que Paulo ainda espe­ rava o fim do mundo sob a forma de um drama cósmico, a parusia de Cristo sobre as nuvens do céu, a ressurreição dos mortos, o juízo final; porém, com a ressurreição de Cristo, o evento decisivo já teve lugar. . . Depois de Paulo, João demitizou a escatologia de ma­ neira radical. Para João, a vinda e a partida de Jesus constituem o acontecimento escatológico. . . Esses exemplos — parece-me — mos­ tram que a demitização teve início no Novo Testamento mesmo e que, conseqüentemente, hoje a nossa tarefa de demitizar é justificada” 34. Concluindo, “ demitizar quer dizer repelir a idéia de que a men­ sagem bíblica e eclesial esteja ligada a uma visão antiga e ultrapassa­ da do mundo. A tentativa de demitização parte desta idéia essencial: a pregação cristã, enquanto Palavra de Deus pregada em sua ordem e sob o seu nome, não apresenta uma doutrina que seria necessário aceitar seja com um ato de razão, seja às custas de um sacrificium 31 Jesus Christ and Mythology, p. 191. 32 lbid, p. 192. 33 lbid., pp. 201-202. ** lbid., pp. 202-203.


intellectus. A pregação cristã é um kerygma, ou seja, uma proclamação que não se dirige à razão especulativa, mas ao ouvinte tomado na sua ipseidade. É assim que Paulo se recomenda à consciência de cada homem diante de Deus (2Cor 4 ,2 ). A demitização quer evidenciar essa função da pregação como mensagem pessoal: fazendo isso, eliminará um falso escândalo e colocará à luz do dia o verdadeiro escândalo, a palavra da Cruz” 35.

V. AVALIAÇÃO A teologia genial e revolucionária de Rudolf Bultmann é ator­ mentada pelas exigências da fé e da razão que em seu pensamento se apresentam como irremediavelmente contrastantes. A fé quer o reconhecimento de algo que a razão não pode compreender; a razão, ao contrário, recusa-se a acolher tudo aquilo que não está em conformi­ dade com suas leis. Na dialética entre as exigências da fé e as exigências da razão, a primeira sai sistematicamente derrotada. Nós o vimos em todos os momentos mais significativos do seu pensamento, na demitização, na história e na hermenêutica. A demitização corresponde inegavelmente a uma das necessidades permanentes da fé, a de conservar pura a mensagem revelada e man­ ter intacta a sua inteligibilidade. Bultmann teve o mérito singular de ter revelado sua urgência num momento em que, por múltiplas razões, a mensagem original parece poluída por muitos elementos estranhos e parece ter perdido toda eficácia. O teólogo de Marburg realiza a demitização com critérios tais que, no fim de sua operação, muito pouca coisa resta da fé cristã: o evento salvífico resolve-se no apelo à decisão e a Revelação se reduz a uma pura onda sonora proveniente de uma estação transmissora totalmente desconhecida, ao passo que são eliminados do núcleo da mensagem tanto o embasamento histó­ rico como o componente sobrenatural. Mas será admissível uma demitização -tão radical assim? Parece-me que ela é incompatível com os testemunhos daqueles que foram os primeiros depositários, imediatos e diretos, do kerygma, os quais afirmam terem sido testemunhas oculares de realidades e acon­ tecimentos extraordinários e repelem energicamente a acusação de tê-los imaginado com a própria fantasia; que, aliás, dão mais impor­ tância aos acontecimentos extraordinários do que à sua decisão de fé, pois sem tais acontecimentos esta última seria completamente absurda: “ Se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria a nossa fé ” . São os acon­ tecimentos extraordinários que dão origem ao apelo e conduzem à decisão e a uma nova concepção da existência, e não o contrário. Por 35 Ibid.,

p. 205.


isso, não se pode demitizar o kerygma ao ponto de eliminar dele tudo aquilo que pertence ao embasamento histórico e sobrenatural. Pois também esse embasamento, como bem demonstrou Oscar Cullmann, pertence à essência do cristianismo 36. A operação de demitização bultmanniana baseia-se na tese de que todo o embasamento histórico e sobrenatural faça parte da forma e não do conteúdo da Revelação, na medida em que seria fruto da visão cien­ tífica e filosófica dos primeiros cristãos. Tal tese, porém, como já dis­ semos, está em aberto conflito com o claro testemunho dos autores sacros. A distinção entre Historie e Geschichte também corresponde a uma exigência da fé, porque a história da salvação não é constituída por fatos históricos imediatamente observáveis e sujeitos às técnicas da investigação histórica. Se assim fosse, a fé não seria mais fé, mas simples constatação empírica. A distinção, contudo, é aproveitada por Bultmann para escavar um tal abismo entre as duas que a razão não tem mais nenhum motivo para acolher a Geschichte, mas encontra muitas razões para negar sua existência, de maneira que a Geschichte torna-se um evento absurdo para a razão. Mas também aí Bultmann encontra-se em contradição com a Escritura. Esta, com efeito, não concebe a história sagrada como negação da história profana, mas como redenção e sublimação dela. Bultmann prestou um imenso serviço à exegese bíblica com a introdução do método da Formgeschichte. Mas também esse método é utilizado por ele de modo arbitrário: serve para que ele erga uma bar­ reira intransponível entre o Cristo da fé e o Cristo da história, deixan­ do-nos unicamente a possibilidade de tomar contato somente com o primeiro. Bultmann reconhece que o kerygma pressupõe o fato de que Jesus viveu e foi crucificado, mas nega que nós possamos conhecer o que quer que seja a respeito daquilo que ele efetivamente ensinou e realizou. O que ( d as) radica o kerygma na história e impede-lhe que se resolva em simples mito. Mas o aquilo ( w as) não tem importância e, portanto, não há motivo de preocupação se não pode ser recupe­ rado. O Novo Testamento, entretanto, não opera e não justifica essa separação. Ao contrário, em seu chamado à fé, ele pretende comunicar um conteúdo que deriva daquilo que aconteceu na história. A pregação cristã primitiva identifica o Cristo que proclama como Senhor e Sal­ vador com Jesus de Nazaré, o qual, como verdadeiro homem, viveu, ensinou, sofreu e morreu em completa obediência a Deus e entrega de si mesmo. Em sua vida, viu a manifestação do amor salvífico do pró­ prio Deus. Quando Paulo prega o perdão dos pecados através da fé em Cristo, pressupõe claramente que Deus realmente agiu no Jesus histórico para fazer conhecer o seu amor reconciliador. Portanto, a personalidade histórica de Jesus é a base indispensável da fé cristã. 36

O. C u l l m a n n , 11 Misterq delia Redenzione nella Storia, Bolonha, 1966.


Sem essa referência histórica e ontológica, o apelo do kerygma torna-se totalmente subjetivo. Bultmann, por conseguinte, tem razão quando insiste em que o kerygma expressa o significado que Jesus tinha para a comunidade primitiva. Mas está errado quando sustenta que tal significado é inteiramente independente do Cristo histórico. A doutrina bultmanniana sobre a pré-compreensão existencial mereceria longos comentários. Limitar-nos-emos, porém, a poucas ob­ servações de caráter geral. Afirmando, contra Barth e Cullmann, a necessidade de uma pré: -compreensão, Bultmann reconheceu justamente, junto com Brunner, Niebuhr, Tillich e os teólogos católicos, a exigência de parte da fé de encontrar no homem um ponto de junção para que este possa verda­ deiramente considerar-se crente. Ademais, ele viu muito bem quando observou que a pré-compreensão varia de época para época, de gera­ ção para geração e, portanto, sustentou legitimamente que, para preser­ var intacta a inteligibilidade do kerygma, deve-se expressá-lo através das categorias daquela pré-compreensão que é própria da geração à qual a mensagem é destinada. Por fim, pode-se estar de acordo com Bultmann também sobre a oportunidade de utilizar o existencialismo para a pré-compreensão do kerygma no século X X . Com efeito, a fé é um evento existencial. O Evangelho diz respeito ao homem, à existên­ cia humana. Do início ao fim, as Escrituras proclamam aquilo que Deus fez e faz pelos homens. O Deus da Bíblia é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, isto é, do simples indivíduo e não da espécie humana. Ademais, o Evangelho dirige-se a toda a pessoa e não apenas à parte racional, às faculdades intelectivas, e a resposta que ele exige de nossa parte é o confiante abandono de todo o nosso ser nas mãos de Deus e não apenas a aceitação intelectual de uma série de dogmas. Deus deve ser encontrado como pessoa e não como objeto. O verdadeiro crente não é um simples espectador, mas um ator que toma parte no evento salvífico. Tudo isso é expresso apropriadamente pelas categorias do existencialismo, dentre as quais Bultmann deu justo relevo à catego­ ria da decisão, que é aquela na qual o conteúdo da Revelação me­ lhor se estampa. Ela abarca efetivamente uma parte essencial do ke­ rygma, que propõe ao homem um novo modo de existir contrário ao modo de ser mundano e pede-lhe que se decida entre os dois. A ca­ tegoria da decisão ressalta bem o papel reservado ao homem na obra da salvação. Fazendo-a sua, o teólogo de Marburg afasta-se de Barth e, aliás, da teologia protestante, para a qual Cristo só redimiu então, de uma vez por todas, sem ulteriores ações; para nós, só restaria a me­ mória do evento. Vinculando a realização da redenção à minha decisão presente, Bultmann está mais próximo da posição católica e da posi­ ção paulina do adimpleo ea quae desunt Christ passionum (Cl 1,24). Dito isso a favor da pré-compreensão existencial, devemos res­ saltar prontamente que ela, por si só, não basta para servir de forma a toda a riqueza da mensagem cristã; porque, transcurando comple­ tamente o aspecto objetivo (tudo aquilo que pertence a Deus e a


Jesus Cristo em si mesmos; tudo aquilo que pertence ao passado e ao futuro e não diz respeito imediatamente ao presente), ela o mutila gravemente. Tem razão Wingren ao afirmar que Bultmann, comprimin­ do o kerygma dentro da pré-compreensão existencial, “ faz deliberada­ mente do homem moderno a norma. A norma da compreensão que o homem moderno tem de si mesmo decide aquilo que pode ser apreen­ dido do Novo Testamento” 37. Ainda uma vez, no conflito entre as exigências da fé e da razão, quem leva a melhor é a razão. Para Bultmann, a vitória da fé sobre a razão é apenas aparente; ela serve para libertar a fé de todas as superestruturas com que foi circundada para torná-la mais aceitável para a própria razão. Assim sendo, não se deve atribuir a demitização radical da fé a uma tendência racionalista que Bultmann teria herdado da escola liberal, mas muito mais a uma nova interpretação do princípio protes­ tante da sola fides. Essa fides, para ser verdadeiramente sola, não deve de modo algum se apoiar em expedientes que possam impres­ sionar e influenciar a razão. Por isso, para salvaguardar a “ solitude” da fé, o teólogo tem o dever de utilizar a razão para demolir todos os ar­ tifícios com os quais se procurou adoçar o escândalo da fé. Como se vê, Bultmann estabelece para a teologia tarefas to­ talmente diversas e opostas àquelas que sempre lhe estabeleceram a teo­ logia católica e, bastante freqüentemente, também a protestante. Para todos os teólogos católicos e para a maior parte dos protestantes, a função da ciência sacra é lançar pontes entre a fé e a razão. Já para Bultmann a sua função é cortar todas as pontes entre uma e outra. Assim, ainda que por caminho diferente, Bultmann chega às mesmas conclusões de Barth: ambos levam às últimas conseqüências o princípio fundamental do protestantismo, a sola fides.

37 G.

W in g r e n ,

Theology in

Conflict,

Londres, 1958, p.

46.

É imensa a literatura acerca do pensamento e da obra de Bult­ mann. Citarei apenas alguns dos melhores estudos.

Nota bibliográfica. —

São ótimos os trabalhos de G . M iegge , UEvangelo e il Mito nel Pensiero di R. B., Ed. Comunità, Milão, 1956; R. M ar lé , Bultmann e ITnterpretazione dei Nuovo Testa­ mento, Morcelliana, Bréscia, 1958; B. G h e r Ar d in i , “ Parola di D io e M ito” em La Seconda Riforma, idem, 1966, v. I I , pp. 366-510; a coletânea II Problema delia Demitizzazione, a cargo de E. C a st e l li , Istituto di Studi Filosofici, Roma, 1961; R. M ar lé , II Problema Teologico delVErmeneutica, Queriniana, Bréscia, 1968; I. M a n c in i , Novecento Teologico: Bonhoeffer, Bultmann, Barth, Vallecchi, Florença, 1977.

É fundamental a coletânea de escritos acerca do problemada demitizaçãoKerygma a cargo de H. W. B a r t s c h , compreendendo nada menos de cinco volumes e publicada a partir de 1948, com a seguinte sucessão: I, Ein Theologisches Gespràch, Reich-Heidrich, Hamburgo, 1948; II, Diskussionen und Stimmen des Inund Auslandes, idem, 1952; III, Das Gespràch mit der Philosophie, idem, 1954; IV, Die Oekumenische Diskussion, idem, 1954; V, Die Diskussion Innerhalb der Katholischen Theologie, idem, 1955. Outros estudos muito importantes: K. B a r t h , Rudolf Bultmann. Ein Versuch ihn zu Verstehen, Zollikon, Zurique, 1952; F. G o g a r t e n , Demythologizing and History, S.C .M . Press, Londres, 1955; C. W. K e g l e y , The Theology of R. B., Macmillan, Nova York, 1966; J . M a c Q u a r r i e , An Existentialist Theology: a Comparison of Heidegger and Bultmann, S.C.M. Press, Londres, 1955; I d e m , The Scope of Demythologizing: und Mythos,


Bultmann, idem, 1960; L. M a l e v e z , Le Message Chrétien et le Mythe, Desclée, Bruxe­ las, 1954; H . O t t , Geschichte und Heilsgeschichte in der Theologie Rudolf Bultmanns, Mohr, Tübingen, 1955; G. W i n g r e n , Theology in Conflict: Nygren-Barth-Bultmann, Oliver & Boyd, Edimburgo-Londres, 1958; A. M a l e t , La Pensée de R. Bultmann, Labor & Fides, Genebra, 1962; R. M a r l é , “Parler de Dieu selon R. Bultmann et G. Ebeling” em L'Analisi del Linguaggio Teologico, Istituto di Studi Filosofici, Roma, 1969, pp. 473-492; W. S c h m i t h a l s , Die Theologie R. Bultmanns, Mohr, Tübingen, 1967; D. S o l l e , Politische Theologie. Auseinandersetzing mit R. Bultmann, Kreuz-Verlag, Stuttgart, 1971; G. M. M a r t i n , Vom Unglauben zum Glauben. Zur Theologie der Entscheidung bei R. Bultmann, Theologischer Verlag, Zurique, 1976.


OSCAR CULLMANN E A TEOLOGIA BÍBLICA

r Oscar Cullmann é uma das figuras mais eminentes do protestaní tismo atual. Grande estudioso da Sagrada Escritura e dos problemas ) da história da Igreja primitiva e apaixonado pela causa ecumênica, ele \ ocupa um lugar de primeiríssimo plano entre os teólogos contempoi râneos por sua contribuição à constituição de uma nova forma de teov logia: a teologia bíblica. Esse novo tipo de teologia já tivera um mestre excepcional em Rudolf Bultmann, que edificou o seu sistema sobre dois princípios: a) exclusão da história da essência da Revelação; b ) interpretação da Revelação através de uma filosofia (no seu caso, o existencialismo). ■ Em polêmica com o teólogo de Marburg, Cullmann desenvolveu | uma teologia bíblica que é exatamente o oposto da teologia bultman; niana; com efeito, coloca em sua base justamente a negação dos dois (princípios cardeais da filosofia de Bultmann, ou seja: a) exclui a filosofia da interpretação da Revelação; b) inclui a história na essên\ cia da mensagem do Novo Testamento. Devido à inclusão da história entre os elementos essenciais da Revelação, Cullmann denominou justamente o seu sistema de “ teolo­ gia da história da salvação” , não se contentando de chamá-lo simplesV mente “ teologia bíblica” .

I. VIDA Oscar Cullmann nasceu em Strasbourg em 25 de fevereiro de 1902. Sua cidade natal encontrava-se então sob o domínio alemão há três décadas, mas continuava mantendo o seu caráter francês. A família Cullmann vivia na Alsácia setentrional, que é metade protestante e metade católica. Os pais de Oscar pertenciam à religião luterana e foi nela que educaram o filho. Cullmann recebeu sua primeira educação escolar em Strasbourg. Com apenas dezesseis anos de idade, leu os célebres Discursos sobre a Religião de Schleiermacher, assimilando as doutrinas do liberalismo teológico, que na época ainda continuava dominando a cena. Durante seus estudos teológicos, permaneceu sob a influência da teologia liberal até ler a obra-prima de Albert Schweitzer, A Busca


do Jesus Histórico. “ A leitura dessa obra”, confessa Cullrnarm, “ abriu­ -me os olhos, fazendo-me ver que o estudo histórico-exegético da Bí­ blia foi traído não só pela Ortodoxia, mas também, ainda mais gra­ vemente, em época recente, pelas correntes filosóficas em voga. Por isso, recebi o surgimento da Formgeschichte como uma libertação. Os estudiosos anteriores haviam tentado fazer distinções entre elementos essenciais e não-essenciais, genuínos e espúrios, recorrendo amiúde a critérios deduzidos de diversas filosofias. Ora, a arbitrariedade dessas tentativas foi colocada em evidência e a investigação foi endereçada para ‘as leis das formas’ ( Formgesetzen) e para ‘os motivos da fé’ ( Glaubensmotiven) que estão por trás da tradição” 1. Obtido o bacharelado em teologia, em 1924 torna-se instrutor de grego e latim na “ École de Batignolles” , em Paris. Ao mesmo tempo, prossegue seus estudos teológicos, em parte na Sorbonne, com Goguel, Lods e Guignebert, e em parte na “ École des Hautes-Études” , com Loisy. “ Aquele ano passado naquele centro de estudos tão alta­ mente estimulante foi o mais fecundo de todo o meu período de preparação” 2. Em 1926, retornou a Strasbourg para assumir a direção dos es­ tudos no seminário teológico daquela cidade, o célebre “ Thom asstift” . Durante esse período, começou suas pesquisas sobre as cartas pseudoclementinas; seus estudos se concluíram em 1930, com a publicação de um ensaio bastante importante. No mesmo ano, foi nomeado pro­ fessor de Novo Testamento no “ Thomasstift” . Em 1938, devido à reputação que obtivera como estudioso do Novo Testamento e da história da Igreja primitiva, foi convidado a su­ ceder E. Vischer na Universidade de Basiléia. Apesar de seu apego à cidade natal, Cullmann aceitou o convite, considerando a importância da cátedra que lhe era oferecida e as vantagens culturais que a cidade de Basiléia lhe oferecia. Mais tarde, assumiu três postos acadêmicos também em Paris: em 1949, a cátedra de História da Igreja Primitiva na “ École des Hau­ tes-Études” ; em 1950, a cátedra de Novo Testamento na “ Faculté Libre de Théologie Protestant” ; por fim, em 1953, a cátedra de Cris­ tianismo Primitivo da Faculdade de Filosofia da Sorbonne. Em seguida, leciona também no “ Seminário Valdese” , de Roma. Tanto em Paris co­ mo em Roma, trava contato com muitos estudiosos católicos, com os quais empreendeu um fecundo diálogo ecumênico. Sua atividade ecumê­ nica chegou ao ápice durante o Concílio Vaticano II, do qual participou na qualidade de observador. Sua contribuição ao Concílio foi das mais apreciadas. Tanto João X X II I como Paulo V I expressaram-lhe seu vivo reconhecimento. De sua parte, Cullmann dedicou o seu último livro, O Mistério da Redenção na História, ao Secretariado para a 1 O . C u llm a n n , p.

1961,

229.

2 Ibid.

“An Autobiographical Sketch” em Scottisb Journal of Religion,


Unidade dos Cristãos, “ em sinal de gratidão pelo convite para parti­ cipar, na qualidade de hóspede e observador, do Concílio Vaticano II, e como contribuição ao diálogo entre os cristãos das várias confissões, na fé e na esperança de que mesmo aquilo que nos divide contribua para o prosseguimento da história da salvação, ‘ondulante’ e cheia de desvios” . Desde 1941, Oscar Cullmann é diretor do “ Theologisches All­ gemeine” de Basiléia, onde anualmente são hospedados 25 estudantes de teologia provenientes do exterior. Exerce suas funções com o maior agrado e dedicação. Cullmann é considerado um excelente formador de mentes teológicas, sabendo dirigir as jovens mentes dos seus estu­ dantes para aqueles campos para os quais são mais dotadas. A estima, o respeito e o afeto de que goza Cullmann junto aos seus colegas são evidenciados pela publicação de um Freundesgabe, organizado por W. C. van Unnik, intitulado Neotestamentica et Pa­ trística 3, que reúne 29 ensaios de tema patrístico e neotestamentário compilados por estudiosos católicos e protestantes da Europa e dos Estados Unidos. O livro foi oferecido a Cullmann por motivo do seu sexagésimo aniversário. Cullmann faz parte da direção de várias revistas especializadas, dentre as quais recordamos: Journal of Ecclesiastical History, Kerygma und Dogma, Revue d ’Histoire et de Philosophie Religieuse e Theologische Zeitschrift.

II. OBRAS 4 A primeira publicação de Oscar Cullmann foi um artigo de 1925 intitulado “ Les Recentes Études sur la Formation de la Tradition Évangélique” (na Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuse, 1925, pp. 459-477; 564-579). A esse ensaio, com o qual penetrava imedia­ tamente em seu terreno preferido, seguiu-se um crescente número de artigos, monografias e livros sobre os mais variados temas de teologia neotestamentária, história da Igreja primitiva e liturgia. Os escritos que deram a Cullmann sua celebridade inicial per­ tencem ao campo litúrgico. Entre eles, os mais dignos de nota são: “ La Signification de la Sainte Cène dans le Christianisme Primitif” (na Revue d ’histoire et de Philosophie Religieuse, 1936, pp. 1-22); Urchristentum und Gottesdienst (Zwingli, Zurique, 1944); Die Tauflehre des Neuen Testaments, Erwachsenen- und Kindertaufe (A dou­ trina do Batismo no Novo Testamento — Batismo das Crianças e dos Adultos, Zwingli, Zurique, 1948). 3 Uma lista completa dos escritos de O. Cullmann até 1962 pode ser encontrada no livro Neotestamentica et Patrística, Eine Freudesgabe, Herr Professor Oscar Cullmann zu Seinen 60. Geburtstag Überreicht, Leiden, 1962, pp. X-XIX. -* Cf. a nota 3.


Ao campo dos estudos sobre a história da Igreja primitiva per­ tencem, entre outros: sua tese de doutorado, Le Problème Littêraire et Historique du Roman Pseudo-Clémentin (Alcan, Paris, 1930), que, como diz o subtítulo, é precipuamente um estudo sobre relações entre gnosticismo e cristianismo judaico; e o famosíssimo Petrus — Jünger, Apostei, Martyrer (Zwingli, Zurique, 1952). Ao campo da teologia neotestamentária pertencem quatro gran­ des obras-primas: Les Pretnières Confessions de Foi Chrétiennes (P.U.F., Paris, 1 943); Christus und die Zeit ( Evangelischer Verlag, Zurique, 1946; Die Christologie des Neuen Testaments (Mohr, Tübingen, 1957); Heil ais Geschichte. Heilsgeschichtliche Existenz im Neuen Testament ( idem, 1965). Os últimos três livros formam uma trilogia que tem por tema a essência do cristianismo. Já o primeiro represen­ ta uma confirmação da tese da trilogia, através da investigação das primeiras confissões cristãs. Em Les pretnièrs Confessions de Foi Chrétiennes, Cullmann estabelece que o primeiro Credo da Igreja era exclusivamente cristológico e que nele Cristo era representado como centro da história, tanto em relação ao passado ( Criação) como em relação ao futuro ( Fim do M undo). O tema de Christus und die Zeit é a busca do elemento central da mensagem cristã. O resultado de seu estudo é que o elemento cen­ tral é Jesus Cristo: nele está centrada e recapitulada toda a obra soteriológica. “ Irradiando-se desse centro, a luz ilumina o tempo ante­ rior à criação e a própria criação, remontando assim a um passado ainda mais remoto. A história completa da salvação, que constitui o desígnio de Deus, está virtualmente contida nesse único evento: todo o passado dessa história da salvação tende a essa intervenção, de­ le se origina todo o presente e ele representa na sua realização univer­ sal e permanente todo o futuro da redenção” . Em Die Christologie des Neuen Testaments, Cullmann examina os principais títulos dados a Jesus no Novo Testamento. E insiste na importância cristológica dos títulos de “ Profeta” e “ Sumo Sacerdote” . Examinando os títulos de “ Servo de D eus” e “ Filho do Homem”, aborda também o problema da “ autoconsciência” de Cristo. Através dos títulos de “ M essias” e “ Filho do Homem” , ilustra a obra futura de Cristo; através dos títulos de “ Senhor” e “ Salvador” , ilustra sua obra presente; através dos títulos de “ Logos” e “ Filho de D eus”, es­ clarece a sua preexistência. Vez por outra, localiza as fontes gregas dos nomes e examina criticamente cada texto bíblico em que o título apa­ rece. Em Heil ais Geschichte, sua atenção volta-se do centro, ou seja, de Cristo, para toda a história da salvação, para provar, contra Bultmann, que toda ela faz parte do núcleo essencial da mensagem cristã e não é de modo algum um elemento de superestrutura mística, como sustenta o teólogo de Marburg. Cullmann insiste em que a exis­ tência cristã e a história da salvação (Heilsgeschichte) são inseparáveis.


O chamado à fé e a nova autocompreensão sobrevêm porque ocorreram fatos históricos completamente fora do homem e estranhos a ele. A “ fé ” nada mais é do que a disposição a deixar que minha existência seja julgada e plasmada por tais fatos: é testemunho para a história da salvação. Tanto para a Igreja como para o mundo, a história da sal­ vação permanece como a “ norma” . Heil als Geschichte tem cerca de 350 páginas e passa em revista toda a discussão recente sobre os temas da escatologia, da apocalíptica, do mito e da história. Contém ademais capítulos sobre os Evangelhos, a Igreja primitiva, são Paulo e são João. A parte conclusiva, intitulada “ Mirada à História dos Dogmas e à Sistemática: a História da Salvação e a Época Pós-bíblica”, estuda as implicações teológicas e sistemáticas da doutrina da história da sal­ vação. Às relações de Jesus com os ambientes políticos e religiosos de sua época são dedicados os ensaios: Jesus und die Revolutionären Seiner Zeit, de 1970 (trad. bras.: Jesus e os Revolucionários de seu Tempo, Vozes, Petrópolis, 1972) e Der Johannische Kreis, de 1975. Nos dados biográficos, já falamos da ação desenvolvida por Cullmann no campo ecumênico. Mais ou menos diretamente, contri­ buiu com tcdos os seus escritos para a causa da união dos cristãos. Entretanto, no opúsculo Katholiken und Protestanten. Ein Vorschlag zur Verwirklichung Christlicher Solidarität (Reinhardt, Basiléia, 1968), propôs-se especialmente uma finalidade especificamente ecumênica. Nes­ sas páginas, pede o encontro entre os cristãos no terreno da caridade e os convida a restabelecerem a coleta para os pobres que existia na Igreja primitiva, uma coleta a ser feita indistintamente entre católicos e protestantes e para ser utilizada tanto em benefício de uns como de outros.

III. NATUREZA, O B JET O E M ÉTODO DA T EO LO G IA BÍBLIC A

1. Natureza, — Uma das principais causas do reflorescimento tanto da teologia católica como da protestante em nosso século foi o contato renovado com a Sagrada Escritura. Tal contato fez com que os teólogos entrevissem novas verdades, novas interpretações, novos pontos de vista. No entanto, partindo da Escritura, podem ser elaborados dois tipos de teologia, o dogmático e o bíblico. Ambos os tipos diferem­ -se como se verá a seguir. A teologia dogmática pressupõe como já adquirido o dado re­ velado; pressupõe que já se saiba em que ele consiste essencialmente; e se propõe a interpretar, aprofundar, ordenar e “ confrontar as verda­ des reveladas pela Bíblia com a problemática religiosa do momento pre­


sente e inclusive desenvolvê-las mediante métodos de pensamento filo­ sóficos” 5. Já a teologia bíblica procura estabelecer qual o efetivo ensina­ mento da Bíblia. Sua tarefa é “ constatar simplesmente aquilo que o Novo Testamento ensina, sem ter que resolver as dificuldades e as aporias encerradas na doutrina” 6. O seu objetivo é “ compreender a fé dos primeiros cristãos, o seu surgimento, o seu conteúdo, a sua codi­ ficação escrita” 7. O seu primeiro dever, “ antes de qualquer avaliação, de qualquer juízo, talvez, inclusive. . . antes da própria fé, é sim­ plesmente ouvir, em obediência, aquilo que os homens da Nova Aliança querem comunicar, ainda que possa parecer estranho” 8. Dos dois tipos de teologia, Cullmann, como de resto também Bultmann, só cultivou e sempre quis cultivar a teologia bíblica. Ele o afirma explicitamente tanto em Cristo e o Tempo como em O Misténo da Redenção na História. Em Cristo e o Tempo, fixa o objetivo de fazer “ uma redação da teologia neotestamentária e Jiãp dogmática ’ . Em sua busca, ele se propõe a “ descobrir o elemento ce n trafda men­ sagem cristã. . . A riqueza dessa mensagem nos obriga a perguntar-nos qual seja o elemento central, a partir do qual se possa explicar todos os outros. A tarefa precípua da ciência neotestamentária — e talvez de toda a teologia cristã — consiste em procurar dar uma resposta a es­ sa pergunta. Trata-se antes de mais nada de um problema de teologia histórica, mas sua solução reveste-se de enorme importância para a teologia dogmática” 10. Em O Mistério da Redenção na História, de­ clara querer continuar as pesquisas iniciadas em Cristo e o Tempo, a fim de precisar ainda mais o esquema da história da salvação e defini-lo em relação às correntes teológicas hoje dominantes 11. 2. Objeto. — No pensamento de Cullmann, houve um desenvol­ vimento na questão do objeto da teologia bíblica. Em Cristo e o Tem­ po, indica como seu objeto próprio a determinação do núcleo central da mensagem cristã, núcleo que, no fim das contas, resulta ser Jesus Cristo, tanto do ponto de vista histórico como do dogmático. Já em O Mistério da Redenção na História, atribui-lhe um objeto mais amplo: a teologia bíblica compreende toda a história da salvação. A razão desse desenvolvimento deve ser buscada no debate teo­ lógico que ocasionou as pesquisas do teólogo de Strasbourg. Toda a sua teologia, com efeito, é fruto de uma polêmica com três autores: Schweitzer, Dodd e Bultmann. Schweitzer, tinha afirmado que Jesus 5 Cbristus und die Zeit,

trad. italiana:

Cristo e il Tempo, II

Mulino, Bolonha,

1965, p. 29.

6 Ibid., p. 30. 7 Heil ais Ceschichte. Heilsgeschichtliche Existenz im Neuen Testament, trad. liana: II Mistero delia Redenzione nella Storia, II Mulino, Bolonha, 1966, p. 79. 8 Cristo e il Tempo, pp. 32-33. 9 Ibid., p. 31. 10 Ibid., p. 5. 11 II Mistero delia Redenzione nella Storia, p, 7.

ita­


somente pregou a chegada iminente do Reino de Deus, mas não efe­ tuou a sua realização (escatologia conseqüente), Dodd sustentava que, com sua vinda, Jesus efetivou imediata e totalmente o Reino de Deus (escatologia simultânea). Por fim, Bultmann asseverava que o aspecto histórico da escatologia, assim como o aspecto histórico de toda a Re­ velação, não pertence ao conteúdo mas à forma, ou seja, à sua pró­ pria superestrutura mística. Em Cristo e o Tempo, Cullmann mostra que Cristo é o centro da história, fazendo ver, contra Dodd e Schweitzer, que a Sagrada E s­ critura não fala de uma só escatologia, em relação à qual Jesus teria vivido primeiro (como sustentava Schweitzer) ou simultaneamente como afirmava D odd), mas sim de duas, uma incipiente (a que teve lugar com a primeira vinda de Cristo) e uma final (que terá lugar com sua segunda vinda). Portanto, Tesus encontra-se no centro da história da salvação, na medidã" em que se coloca noTlImites^ entre o período da promessa e o período da realização final. Em O Mistério da Redenção na História, sua pesquisa se amplia a toda a história da salvação. Nessa obra, prova a insustentabilidade da tese de Bultmann, demonstrando que toda a história da salvação faz parte da essência da Revelação. Mas o que se entende por “ história da salvação” ? “ Na falta de uma expressão melhor, chamamos história da sal­ vação ao divino suceder-se dos eventos” 12. O termo “ história” equivale substancialmente ao termo “ eco­ nomia” ; entretanto, Cullmann prefere o primeiro porque considera ser mais conhecido e compreensível do que o segundo. Mas é lícito chamar “ história” uma série de acontecimentos co­ mo os constituídos pela salvação, vale dizer, uma série de aconteci­ mentos em que, como diz Cullmann, não podemos nos inserir senão com base na decisão de fé? 13 Não se trata de concatenação completa­ mente diferente daquela que forma a história? O teólogo de Strasbourg reconhece a profunda diversidade que distingue os dois grupos de acontecimentos. Entretanto, existe entre eles uma tríplice analogia que justifica a transferência do termo de um grupo para outro. Os três pontos essenciais em que a analogia emerge são: “ 1) o fato de que se trata de uma série concatenada de acontecimentos, ainda que o princípio que regula tal concatenação não possa ser definido historicamente; 2 ) o fato de que, no âmbito do desígnio divino, sobra lugar para a contingência histórica, para a resis­ tência do homem, para o pecado, para conseqüentes ‘desvios’ misterio­ sos e que, portanto, a história da salvação inclui também a história da perdição; 3) o fato de que os simples eventos fundamentais, que constituem sua trama, pertencem à história” 14. 12 13 14 ram a

Ibid., p. 17. Ibid. Ibid., p. 98. Cullmann não deixa de ressaltar também as diferenças que sepa­ história profana da história da salvação. Assim, por exemplo, nos diz que


Portanto, o objeto da teologia bíblica, segundo a última formu­ lação do nosso teólogo, é a história da salvação. Essa definição assinala precisos limites, além dos quais a teolo­ gia bíblica não pode ir. O mais importante é que ela pode conhecer Deus somente através da história. O que significa que ela só pode conhecê-lo em seu aspecto dinâmico; não pode pretender penetrar até o aspecto do ente (do seu ser). Tal ambição só pode ser alimentada pela teologia dogmática, que não se detém nos fatos, mas também analisa a natureza das cau sas15. 3. Método. — O método da teologia bíblica não é o método especulativo da filosofia e da teologia dogmática, mas sim o método positivo próprio das ciências experimentais e da história. No entanto, nessa questão o pensamento de Cullmann deixa um pouco a desejar em matéria de clareza. Contenta-se em afirmar que não pretende fazer teologia filosófica (como Tillich, Teilhard de Char­ din, Rahner e Bultmann), porque não considera possível que se pos­ sa extrair uma verdadeira interpretação da mensagem cristã partindo de princípios filosóficos: “ O critério que permite descobrir aquilo que constitui a essência do cristianismo não poderá ser em caso algum um a priori filosófico. É surpreendente a constatação da ingênua irre­ flexão com que alguns teólogos aplicam muito amiúde ao Novo Tes­ tamento um critério de evidente origem extrínseca, escolhendo arbitra­ riamente este ou aquele elemento da mensagem cristã primitiva e con­ siderando-o central, embora na fé da comunidade primitiva, ainda que presente, não constitua em absoluto o centro, mas, ao contrário, é explicado por um outro elemento, por sua vez verdadeiramente cen­ tral” 16. Cullmann quer fazer uma teologia bíblica ou exegética que tenha por base um princípio, um critério, tirado do próprio conteúdo da Escritura. A exemplo de Congar, de Lubac, Barth e outros, ele con­ sidera que seja possível extrair da Revelação um princípio, uma nor­ ma suprema, a partir da qual se pode tirar luz e orientação para a interpretação de toda a mensagem cristã. A tarefa principal da teolo“ aquilo que distingue história e história da salvação, quanto à sua formação, é o papel que a revelação tem na história da salvação, tanto quanto se experimenta os aconteci­ mentos e fatos como quando se acolhe pela fé os relatos (o kerygma) ” (Ibid., pp. 204­ 205; cf. também p. 223 e Cristo e il Tempo, pp. 43-45). 15 “Nas raríssimas passagens em que um autor do Novo Testamento nos conduz ao umbral do Ser eterno de Deus e nos convida a olhar além da obra da salvação, isso ocorre apenas na perspectiva dessa obra, que constitui — apenas ela — o verda­ deiro objeto da revelação neotestamentária. Isso equivale a dizer que, quanto ao nosso tema, no Novo Testamento, inclusive aquilo que se refere a tudo o que precede, a ação de Deus segue e se encontra além do tempo, nunca sendo representada do ponto de vista do Ser de Deus, mas sempre e somente partindo da ação de Deus no tempo que nos foi revelada. Em outros termos, não há no Novo Testamento qualquer reflexão sobre o Ser eterno de Deus e a sua eternidade; e, como exegetas, se quisermos pensar no quadro pressuposto pelos autores do Novo Testamento, devemos nos esforçar por fazê-lo do modo mais afilosófico possível” (Cristo e il Tempo, p. 28). 16 Ibid., p. 5.


gia bíblica consiste nessa busca, como já vimos: “ A tarefa precípua da ciência neotestamentária — e talvez de toda a teologia cristã — con­ siste em procurar dar uma resposta a essa pergunta” 17. De toda maneira, dado que o objetivo da teologia bíblica não é construir um sistema com base nas verdades reveladas, mas simples­ mente descobrir quais são essas verdades, Cullmann tem razão em dizer que seu método é o método histórico-crítico, que, em se tratan­ do de textos literários, chama-se mais adequadamente “ método her­ menêutico ” . Porém há muitos tipos de métodos hermenêuticos: há o da esco­ la liberal, que trata os textos bíblicos na mesma medida de qualquer outro texto; há o método bultmanniano, que exige uma leitura existen­ cial da Sagrada Escritura; há o método barthiano do Rõmerbrief, que se aproxima dialeticamente da Bíblia; há o método tillichiano da cor­ relação entre pergunta da razão e resposta da Revelação, e há ainda ou­ tros métodos. Cullmann tem razão em afirmar que “ nunca, até agora, os estudiosos do Novo Testamento falaram e escreveram tanto sobre a hermenêutica como o fazem hoje” 18. Que espécie de método hermenêutico o teólogo bíblico deve utilizar? Cullmann observa justamente que essa é uma questão muito importante, porque “ se a essência da fé neotestamentária é identificada de modo inteiramente diverso deste ou daquele teólogo, isso deve-se, em última análise, a uma hermenêutica diversa” 19. Isso explica porque o nosso teólogo sempre prestou particular atenção à questão do método. Começou a se ocupar dessa questão desde os seus primeiros escritos 20. No seu primeiro artigo, intitulado “ Les Récentes Êtudes sur la Formation de la Tradition Évangélique” 21, Cullmann critica o método histórico-crítico da escola liberal e denuncia os seus graves limites: trata-se de um método — afirma ele — inuti­ lizado pelo racionalismo, incapaz de captar aquilo que há de mais ge­ nuíno na Escritura. Em seu lugar, ele recomenda o método histórico-morfológico ( Formgeschichte). Mas este também, para ser eficaz, deve ser sustentado pela fé, já que não se pode compreender aquilo que a comunidade primitiva quis dizer se não nos colocamos em seu lugar, se não olhamos as coisas com os mesmos olhos. “ O estudioso que quer examinar a história da tradição deve encontrar o Cristo Kyrios no Evangelho antes de empreender o seu estudo. Objetivamen­ te, deve ser tomado, através da tradição evangélica, pelo espírito de Cristo, do mesmo modo como foram conquistados os primeiros cris­ tãos no momento em que deram início a essa tradição. Somente então

n íbid. 1® II Mistero delia Redenzione nella Storia, p. 80. Cf. também a nota 3. 19 Ibid., p. 91. 20 Sobre o desenvolvimento do pensamento de Cullmann em termos de método, cf. J . F r i s q u e , Oscar Cullmann, Tournai, 1960, pp. 16-63. 21 Revue d ’Histoire et de Philosophie Religieuse, 1925, pp. 459-477; 564-579.


estará em condições de situá-la novamente na vida religiosa da Igreja primitiva” 22. Em seguida, através do debate com Barth e Bultmann, Cullmann precisou ainda mais o seu método, dando-lhe o nome de método histórico-soteriológico ( Heilsgeschichtliche M etode). Este baseia-se no princípio de que, na revelação cristã, os aspectos histórico e soteriológico são inseparáveis, na medida em que não se trata nem de uma história qualquer, carente de força salvífica, nem de um ato salvífico carente de caráter histórico, mas sim de uma história-da-salvação. Por isso, quem lê os textos sacros com esse método mantém seu olhar constantemente apontado para ambas as direções, a histórica e a soteriológica. Enquanto histórico, o método histórico-soteriológico vale-se de todos os subsídios da ciência histórica: a filologia, a arqueologia, a crítica. “ Quem subestima a necessidade e o papel da exegese filológica e histórica dá provas de ter uma falsa concepção teológica do caráter da revelação bíblica. Com efeito, a própria existência da afirmação central da Bíblia diz respeito à história. No Antigo e Novo Testa­ mentos, a revelação bíblica é uma revelação de Deus na história: a história do povo de Israel, que encontra a sua realização na Encarna­ ção de Jesus de Nazaré e o seu desenvolvimento na história da comu­ nidade primitiva” 23. A quem gostaria de desqualificar a investigação histórica porque “ a fé não pode depender de tão incertos resultados científicos”, Cullmann replica que “ essa é uma banalidade que ninguém poderá contestar seriamente. É algo pacífico que pode e deve haver um encontro com a Bíblia, no plano da fé, prescindindo de qualquer exegese científica. Uma análise do kerygma que prescinda consciente­ mente da análise do acontecimento histórico pode levar unicamente a resultados cuja ‘segurança’, em última análise, seja da mesma forma infundada. Não obstante isso, devemos fazer exegese científica, como de resto devemos fazer teologia científica, inclusive no interesse da fé, já que aquela pode ser um meio para promover esta: sabemos que, malgrado os desvios do passado e do presente, ela não é apenas um obstáculo, mas também um auxílio” 24. Enquanto soteriológico, o método histórico-soteriológico deriva o princípio de organização dos acontecimentos históricos da revelação e não da história profana. Em seu componente soteriológico, ele é pois teológico: “ Para reconhecer a linha que conduz de Israel a Cristo e de Cristo à Igreja, não basta sermos historiadores, mas também é preciso sermos teólogos” 25. A regra suprema que Cullmann fixa para o método histórico-soteriológico é de aproximar-se ao texto sagrado livre de qualquer pres­ 22 23 Bible” 24 25

Ibid., p. 573. “ La Necessite et la Fonction de 1’Éxegèse Philologique et Historique de la em Verbum Caro, 1949, p. 3. II Mistero delia Redenzione tiella Storia, pp. 122-123. Cf. também pp. 450-451. “La Nécessité et la Fonction de 1’Éxegèse P h ilolog iq u e...”, p. 9.


suposto, de toda pré-compreensão, de todos os preconceitos, disposto “ a ouvir apenas em primeiro lugar, sem considerar-me ‘interpelado’ em minha existência” 26. Como se vê, Cullmann repele categoricamente a tese bultmanniana da pré-compreensão existencial como instru­ mento necessário da hermenêutica. E com o mesmo vigor repele também o princípio em que se baseia a referida pré-compreensão, vale dizer, a negação da distinção entre sujeito e objeto. “ A fé como a concebe são Paulo (e todos os autores neotestamentários) ” , escreve Cullmann, “ é uma fé tal que, prescindindo de qualquer sistema con­ ceptual, essa distinção é parte integrante dela, absolutamente essen­ cial” 27. E acrescenta imediatamente, para permanecer coerente com a sua definição do método histórico-soteriológico: “ Naturalmente, a apro­ priação mediante a fé é ineliminável: juntamente com a relativa inter­ pretação revelada aos profetas e aos apóstolos, o evento divino dirige­ -me um chamado ao qual devo responder com minha decisão, o que Bultmann ressalta justamente. Nesse caso, todavia, ‘decisão’ não sig­ nifica um vago empenho pelo totaliter aliter, por aquilo que ‘não está à disposição’, mas sim empenho a inserir minha existência naque­ le evento concreto que me foi revelado naquela sucessão de eventos” 28. Dessa regra suprema do método histórico-soteriológico derivam duas importantes conseqüências hermenêuticas: “ Por um lado, é ne­ cessária a análise neutra dos acontecimentos e a correta reprodução das interpretações que outros lhes deram e que nos foram transmiti­ das; por outro lado, para captar mais a fundo aquela interpretação de fé, é necessário o ato de fé pessoal, pelo qual eu me insiro na­ quele processo histórico aqui e agora, como em sua época fizeram aquelas primeiras testemunhas. Isso significa que em princípio é líci­ to,e inclusive necessário, levar em conta ambas as exigências feitas pela exegese: o esforço para deixar de lado a personalidade do exege­ ta e a sua implicação no objeto de sua exegese” 29. Concluímos assim a exposição dos princípios estruturais da teo­ logia bíblíca de Cullmann. Passemos agora a considerar o seu conteúdo. Este se articula em quatro pontos principais: 1) 2) 3) 4) tória da

A história da salvação pertence à essência da mensagem cristã. Formação da história da salvação. Cristo, centro da história da salvação. A Igreja apostólica e a Igreja pós-apostólica pertencem à his­ salvação de maneiras diversas.

Passemos a examiná-los um a um.

26 27 28 29

II Mistero delia Redenzione nella Storia, p. 83. Ibid., p. 84. Ibid., pp. 85-86. Ibid., p. 86. Cf. também pp. 88-89.


IV. A H IST Ó R IA DA SALVAÇÃO PERTEN CE À ESSÊN C IA DA M ENSAGEM CRISTÃ Esta é a tese mais importante e original da teologia cullmanniana, especificando-a ainda melhor do que a famosa tese de que Cristo é o centro da história. Esta última, com efeito, mesmo tendo sido pro­ posta de maneira original, não apresenta substancialmente nada de novo. Já a tese de que a história da salvação constitui a essência do cristianismo não conhece precedentes. Portanto, a grandeza de Oscar Cullmann está ligada a essa tese mais do que a qualquer outra. E ele tem consciência disso, como se pode concluir do fato de que dirigiu os seus maiores esforços para a demonstração dessa tese. Já em Cristo e o Tempo e, depois, mais ainda em O Mistério da Redenção na História, o seu objetivo é provar a validade dessa tese 30. Como já observamos anteriormente, a teologia de Cullmann é resultado de uma discussão com os três maiores estudiosos de teologia neotestamentária do nosso século, Schweitzer, Dodd e Bultmann. A tese de que a história da salvação constitui a essência da mensagem cristã é fruto do seu debate com Bultmann. Este, como sabemos, sus­ tenta que o componente histórico da Revelação é estranho à sua es­ sência, fazendo parte de sua superestrutura mística e tendo sido acrescentado por Lucas e os Atos para preencher a espera do advento do Reino de Deus. Cullmann sempre repeliu com a maior decisão a tese de Bultmann, impugnando-a com os mais variados argumentos e defendendo a tese oposta, isto é, a de que a história faz parte do núcleo essencial da Revelação. Em defesa de sua tese, apresenta um argumento de caráter por assim dizer ontológico (relativo à natureza mesma da Revelação) e, depois, uma série de argumentos históricos. O argumento de caráter ontológico pode sersintetizado do se­ guinte modo: não se pode excluir da essência da Revelação o seu funda­ mento; todavia, o fundamento da Revelação está nos eventos históri­ cos; assim, esses eventos fazem parte da essência da Revelação. A Revelação — explica Cullmann — é resultado de dois fatores: o primeiro é o evento histórico; o segundo é a sua interpretação. Am­ bos são indispensáveis e, por isso, essenciais. Contudo, se existe uma prioridade entre os dois, ela cabe ao evento, porque este prevalece so­ bre a interpretação num duplo sentido. “ Por um lado, é o aconteci­ mento que determina primeiramente a interpretação, constituindo o kerygma-, tal interpretação não é simplesmente um adjunto com rela­ to Dentre os numerosos textos em que Cullmann manifesta o propósito de defen­ der a tese de que a história faz parte da essência da Revelação, pode-se consultar os seguintes: em Cristo e il Tempo, pp. 14, 16, 20-22, 23-24, 26-27, 55 e toda a Primeira Parte; em II Mistero delia Redenzione nella Storia, pp. 17-20, 23-28, 233-235, 242, 253-254.


ção ao acontecimento. Isso é confirmado pelo fato de, no quadro da época bíblica, serem sempre novos acontecimentos que determinam pouco a pouco reinterpretações que corrigem e precisam interpretações anteriores; em outros termos, no desenvolvimento todo da história bíblica da salvação, é evidente a predominância do acontecimento. Por outro lado, todas as interpretações e reinterpretações têm por objeto acontecimentos nos quais pode-se discernir a ação de Deus: sua função interpretativa se exerce em evidenciar o nexo existente entre os acontecimentos particulares, como resulta do confronto sem­ — ------- j - ----------- ---- ------------------- interpretações J - J ~- — teriormente a eventos do passado” 31. Os- argumentos históricos podem ser reduzidos a um só, es; Jesus, os Apóstolos, são Paulo, são João e toda a Igreja dos primai dois séculos atribuem valor soteriológico não só à pregação mas também aos acontecimentos de sua vida da Antes de mais nada, Jesus. Ele se considera jg história da salvação não só naquilo que diz, ma ilo que or decisivo, faz: “ O próprio Jesus considerou-se não só o com a sua mas também o decisivo mediador, que a'4la^salvação como morte” 32. O próprio Jesus se inseriu n; que o inseriu nela, o seu executor; não foi a comunidade mitiva, torna-se certeza como sustenta Bultmann. Na o vido, mas de que, antes de aquilo que os apóstolos tinha: Pentecostes, no máximo havia lo'o significado 33. Em segundo lugar, ps^a Os cs. “ A fé que eles adquiriram em seguida à revelação da (ÍMsisoa era fé na revelação que Jesus fez de si mesmo, isto é ,0 ^ jò O &ttp/de que Jesus tivera plena consciência de que sua função .na histó^tia da redenção não era apenas a de anunciar, mas também -á’ dè^iiniprir de modo definitivo, através de sua própria obra, o nkhcMsjk D eus” 34. “ A fé dos Apóstolos na revelação é, por­ tanto pntpeiro lugar, fé no novo evento divino e em sua interpretaç^ò\spjeriológica. . . É aliás característico da fé neotestamentária, aquela requerida dos leitores, que ela se refira aos aconteci, que justamente não dependem deles, nem mesmo de sua fé, 31 II Mistero delia Redenzione nella Storia, pp. 183-184. Cullmann reafirma fre­ qüentemente o conceito de que sem fatos não há revelação. Eis algumas passagens significativas»: c auauiuiaiuciiic jjussivci iazei auaua^au ua historia 4uíuiuu a«analisa a formação do kerygma, já que, no âmbito da Bíblia, não é uma entidade em si mesma, mas se desenvolve em relação a novos acontecimentos, que em sua maior parte são acolhidos — eles mesmos — no kerygma” (Ibid., p. 121). “A revelação con­ siste tanto no fato em si como na interpretação que lhe é dada. .. Não só a interpre­ tação, mas também o próprio acontecimento é considerado revelação dum plano divino de salvação {Ibid., p. 128). No caso de Jesus, “ele mesmo é o autor do evento re­ dentor e da revelação respectiva. O amálgama entre evento redentor e revelação sobre tal evento é perfeito nesse momento culminante: Jesus cria a salvação com a sua obra e a cria anunciando o significado de suas obras, que irradia sobre todo o seu ensina­ mento” (Ibid., p. 136). Cf. também pp. 124-125, 136-137, 148 e 153. 32 II Mistero delia Redenzione nella Storia, p. 144. 33 Ibid., p. 147. 34 Ibid., p. 146.


mas que, ao contrário, se verificaram extra nos: pro nobis, porém extra nos. Mesmo no caminho subordinado da fé a redenção não pode tornar-se autoredenção ” 35. Em terceiro lugar, são Paulo. Este não é absolutamente o inicia­ dor da “ desestoricização” da Revelação, como afirma Bultmann. Ao contrário, “ em Paulo aparece com particular clareza que o apóstolo, na obediência da fé, insere-se na história da salvação no ponto decisivo em que se encontra. Toda a sua teologia é exposição do desígnio di­ vino de redenção, como lhe foi revelado por Cristo com base em um apokalypsis (G1 l,1 2 ss). Juntamente com essa revelação, e nela, foi­ -lhe confiada uma tarefa particular: anunciar aos pagãos o Evangelho de Cristo, . . Toda a pregação de Rm 9-11 sobre Israel e os pagãos, em perspectiva histórico-soteriológica, está em estreita conexão com a vo­ cação de Paulo para apóstolo dos gentios. Aí tem suas raízes o entre­ laçamento tão estreito entre a vida e a teologia que constatamos em Paulo. Tudo aquilo que ele relata de si mesmo não nasce de um inte­ resse autobiográfico, porém se reveste de eminente caráter teológico. Pelo fato de que lhe é feita uma nova revelação da história da salva­ ção, sente-se chamado a expô-la” y°. Em quarto lugar, são João. Este não é, em absoluto, juntamente com Paulo, o iniciador de “ demitização ” do cristianismo, como sus­ tenta Bultmann. Cullmann reconhece que o elemento da decisão tem grande importância nos escritos joaninos; contesta, entretanto, que tal decisão não possa ter lugar num quadro histórico-soteriológico e mostra que foi justamente João quem deu “ uma claríssima base his­ tórico-soteriológica à situação da decisão” 37. Com efeito, nenhum outro autor neotestamentário evidenciou tão bem como o autor do quarto evangelho a posição central que Jesus ocupa ao longo da tra­ jetória da história da salvação 38. Por fim, a Igreja dos primeiros dois séculos. Na luta contra Marcião e contra o gnosticismo e na assimilação do Antigo Testamen­ to, ela demonstrou claramente conceber a salvação não como um even­ to salvífico “ instantâneo” , mas como uma história. “ É algo de excep­ cional alcance que a acolhida do Antigo Testamento no Novo signifi­ que que a fé cristã é fé numa ação divina pela salvação, que consiste numa série de eventos, os quais, por escolha de Deus, se verificam num quadro histórico. Com efeito, isso significa que a fé crista, como a judaica, diferencia-se de todas as antigas religiões do mundo cir­ cundante exatamente por essa orientação histórico-soteriológica’’ 39. “ A luta de morte que os cristãos do século II travaram contra Marcião e contra o gnosticismo, uma luta que foi em primeiro lugar luta pelo

35 Ibid., 36 Ibid., 37 Ibid., 3® Ibid., 39 Ibid.,

p. 157. p. 155. Cf. o capítulo I I I da IV Parte, pp. 337-363. p. 366. pp. 367-379. p. 25.


Antigo Testamento, relacionava-se com a preservação ou o abandono da visão do Evangelho como história da salvação” 40. Concluindo, tanto a natureza da Revelação como a história de como ela foi concebida por seus autores principais fazem da tempora­ lidade um dos seus ingredientes essenciais e não um componente de sua superestrutura mística, como quer Bultmann. Em algumas páginas profundas e sugestivas, Cullmann faz ver que as relações entre história e mito são exatamente o oposto de como as apresentou o teólogo de Marburg: não foi o mito que “ desestoricizou” a mensagem bíblica, mas, ao contrário, foi o conteúdo histórico de tal mensagem que “ historicizou ” os mitos utilizados na pré-história e na história final. “ O Antigo Testamento ‘historicizou’ os mitos, inserindo-os intimamente na história de Israel, e o Novo Testamento foi ainda mais além, subordinando ainda mais rigorosamente todos os mitos a um único evento histórico, a morte de Jesus e os aconteci­ mentos imediatamente sucessivos em conexão com ela. Os mitos são colocados a serviço da exposição históricc-soteriológica, em cujo cen­ tro encontra-se um evento historicamente controlável” 41.

V. O D ESEN V O LV IM EN TO DA H IST O R IA DA SALVAÇÃO Segundo Cullmann, a história da salvação se desenvolve, se am­ plia e se constitui em seu conjunto tctal de acordo com um módulo fixo, que se repete regularmente em cada novo evento salvífico. Esse módulo é o seguinte: 1) o novo acontecimento é acolhido, com a respectiva nova Revelação, no kerygma antigo; 2 ) desse ponto de vista, o antigo kerygma é reinterpretado; 3) o /o s portadores da Re­ velação também são, eles próprios, com a função que exercem, acolhi­ dos no kerygma 42. Por exemplo, num simples acontecimento da histó­ ria política ou então de sua existência pessoal, o profeta recebe a Revelação de um desígnio divino relativa a esse acontecimento. Para que esse desígnio divino se torne visível, ele coloca esse acontecimento em relação com acontecimentos passados e com revelações passadas sobre esses acontecimentos, que lhe são fornecidos pela tradição; e o faz seja numa obra histórica profética, seja numa fórmula litúrgica de confissão de fé 43. Portanto, no módulo que se repete no desenvolvimento da his­ tória da salvação, distinguem-se três elementos: 1) o simples aconte­ cimento de que o portador da revelação deve ser testemunha ocular e que também pode ser vivido pelos não-crentes, os quais, porém, nele 40 41 cf. pp. ' 42 43

íbid. Ibid., p. 187. Sobre as várias funções dos mitos no seio da mensagem bíblica, 189-196, páginas muito belas. Ibid., pp. 116, 129, 157 e 166. Ibid., p. 115.


não podem ver qualquer Revelação; 2 ) a Revelação de um plano divino, que é feita ao portador da Revelação no e através do aconte­ cimento: desígnio no qual ele próprio se insere, por meio da fé; 3) o relacionamento com outras revelações feitas a outros portadores an­ teriores, relativas à história da salvação, e que agora são reinterpretadas. Do suceder-se regular desse módulo surge “ um tipo de cadeia de conhecimentos e exposições histórico-soteriológicos, na qual um no­ vo acontecimento e a nova revelação respectiva são progressivamente inseridos na revelação precedente, dando-lhe ao mesmo tempo uma nova perspectiva. A visão de conjunto assim formada tornar-se-á por seu turno objeto de uma reinterpretação sucessiva, habitualmente oca­ sionada por um novo acontecimento e pela nova revelação respec­ tiva” 44. Com esse módulo, Cullmann consegue oferecer uma explicação plausível de alguns momentos críticos da história da salvação, como, por exemplo, o momento da espera da chegada iminente do Reino de Deus por parte de Jesus, de são Paulo e de toda a comunidade pri­ mitiva. Segundoo teólogo de Strasbourg, tal expectativa existiu efe­ tivamente e é inútil fazer acrobacias exegéticas para escondê-la. Mas não foi a demora da parusia que fez com que a comunidade primitiva excogitasse a extensão do tempo intermediário entre a ressurreição de Jesus e seu retorno, como quer Schweitzer. Ao contrário, a aceitação dum prolongamento do tempo foi determinada, num progressivo de­ senvolvimento quase orgânico, por novos elementos histórico-soteriológicos, como, por exemplo, as manifestações do Espírito, cujos ele­ mentos provocaram uma reinterpretação do tempo de espera. Cullmann encontra a confirmação da exatidão dessa interpretação no fato de que “ a tradição evangélica, num período em que já se constatava que ‘o esposo demora’, transmitiu sem hesitações as palavras de Jesus rela­ tivas à espera do final próximo. Esse fato confirma precisamente que a comunidade primitiva, sem qualquer crise verdadeira, sem criar um tormentoso problema teológico, como ocorrera com os rabinos, rela­ cionou o kerygma de Jesus com o kerygma reinterpretado à luz das manifestações do Espírito e nesse kerygma o tempo intermediário en­ controu um prolongamento natural como tempo do Espírito, da missão, da comunidade. As palavras relativas à espera do fim próximo não fo­ ram sufocadas à luz do novo kerygma; ao contrário, foram conservadas, provavelmente no seu teor original, mas só que no contexto da reinter­ pretação” 45.

44 Ibid., p. 117. 45 Ibid., p. 166, Com esse módulo, Cullmann resolve também o problema do cânon. Cf. o.c., p. 406.


V I. JESU S, CENTRO DA H IST Ó R IA DA SALVAÇÃO Essa é a tese defendida por Cullmann em Cristo e o Tempo e depois retomada e aperfeiçoada em O Mistério da Redenção na Histó­ ria. A tese é tão famosa que podemos nos poupar o trabalho de fazer uma exposição detalhada. Bastarão algumas poucas palavras. O que significa a afirmação de que Cristo é o centro da histó­ ria? Centro em relação a quê? Para Cullmann, ela tem um duplo significado. Antes de mais nada, tal afirmação diz que Cristo constitui o ponto mais importante, aquele ponto que dá valor e significado a to­ dos os outros pontos da trajetória da história da salvação. Todas as épocas que constituem a história da salvação são orientadas para a cruz e a ressurreição de Cristo. Toda a história da salvação, que constitui o desígnio de Deus, está virtualmente contida nesse único evento: todo o passado da história da salvação tende para essa inter­ venção, dela brota todo o presente e representa, na sua realização universal e permanente, todo o futuro da redenção. Cada época da história da salvação refere-se imediatamente a esse centro. A história da salvação não se orienta para um “ além” da história, mas sim para esse evento que é o evento soteriológico por excelência. Cada uma das simples épocas encontra no nexo que a liga a essa intervenção central o seu próprio significado e o seu próprio fim particular: o passado, na medida em que mostra com particular clareza que todo o desen­ volvimento histórico-soteriológico move-se seguindo a linha da eleição; o presente, na medida em que, diferentemente do passado, já brota da etapa decisiva que se verificou e, por outro lado, exatamente por isso, tende para a sua realização; o futuro, na medida em que descreve em sua extensão universal e permanente a redenção que se concretizou e revelou, como objetivo de todo o desenvolvimento histórico-soterioló­ gico, concentrada num único ponto da linha temporal que pode ser datado exatamente: a intervenção que determina a orientação de todo o processo ( a cruz e a ressurreição). Em segundo lugar, a afirmação de que Cristo é o centro significa que ele não é o fim da história, como ensinaram Schweitzer, Dodd e outros. Significa que com ele nem todo o percurso da história se exauriu, mas sim que ainda nos resta uma parte do trajeto a percorrer. O centro tem caráter final, conclusivo ( efapax), mas não é o fim: é o início da vitória, mas não a sua conclusão. Entre o início e a conclusão há um intervalo, que corresponde ao tempo presente, ao nosso tempo. O seu significado soteriológico é a espera da realização final. Para ilustrar esse duplo significado do centro, Cullmann recorre a duas imagens muito expressivas. O primeiro significado é ilustrado através da imagem da linha, uma linha que inicia com a base mais ampla possível e depois se restringe constantemente, até alcançar o Centro, do qual recomeça a


se ampliar: a Criação, a humanidade, Israel, o resto, o Uno, os Apóstolos, a Igreja, a humanidade. A explicação da restrição e da dilatação que se verificam ao longo da linha deve ser buscada no prin­ cípio da eleição e da substituição. Esse princípio determina todo o desenvolvimento da história da salvação. “ Como a sorte de toda a criação depende do comportamento do homem, num primeiro momento será a história de um só povo que determinará a salvação de todos os homens. No seio da humanidade pecadora, Deus elegeu uma coletivi­ dade, o povo de Israel, para a salvação do mundo. A história da sal­ vação continua a desenrolar-se ulteriormente segundo o mesmo prin­ cípio de eleição e de substituição, de maneira que se chega a uma redução progressiva. Já que o povo de Israel em sua totalidade não efetiva a missão que lhe foi confiada, inicialmente é um ‘resto’ que se substitui ao povo inteiro: é desse ‘resto’ que os profetas falam. E esse ‘resto’ diminui ainda mais, até reduzir-se a um só homem, o único que pode assumir a missão do povo de Israel. . . Esse ser único entra na história na pessoa de Jesus de Nazaré, que realiza tanto a missão de sofrido servo de Yahweh como a missão de Filho do homem, de que fala Daniel, cumprindo com sua morte vicária a obra para a qual Deus elegera Israel. Assim, a história da salvação experimenta, até Jesus Cristo, uma redução progressiva: a humanidade — o povo de Israel — o resto de Israel — o Ünico, o Cristo. Até esse ponto, a pluralidade tende para a unidade, para Jesus Cristo, que se torna Salvador da humanidade, aliás de toda a criação, exatamente enquanto Messias de Israel. A história da salvação chegou aqui ao seu centro. Entretanto, sabemos que ela não terminou, mas continua. A partir desse ponto, produz-se uma profunda mudança no próprio princípio do movimento que estamos examinando. O princípio permanece o da eleição e substituição, mas não é mais aplicado no sentido duma redução progressiva. Ao contrário, a partir do centro alcançado na res­ surreição de Cristo, o desenvolvimento sucessivo não ocorre mais no sentido da pluralidade para a unidade, mas, inversamente, passando progressivamente da unidade para a pluralidade, de tal maneira que a pluralidade é que tem de representar o Único” 46. O segundo significado — isto é, de que Cristo é o centro por­ que com ele teve início a vitória, mas não a sua conclusão — é ilus­ trado através da imagem da batalha decisiva. “ A batalha decisiva de uma guerra” , escreve Cullmann, “ pode ter lugar numa fase relativa­ mente inicial dela e no entanto as hostilidades ainda podem perdurar durante longo tempo. Ainda que a importância decisiva daquela batalha talvez não seja reconhecida por todos, nem por isso não significa já a vitória. Mas a guerra ainda tem de ser prosseguida por um tempo indeterminado, até o Victory Day *. Exatamente é esta a situação em que se sabe encontrar o Novo Testamento depois da nova divisão 46 Cristo e il Tempo, pp. 144-145. * Em inglês no original. (N. do T .)


do tempo: a revelação consiste exatamente em anunciar que o aconte­ cimento que se cumpriu na cruz, seguido pela ressurreição, representa a batalha decisiva já vencida. É nessa certeza da fé, que implica tam­ bém, como conseqüência, o desfrutamento dos resultados daquela vitó­ ria, que consiste a participação da fé na soberania de Deus sobre o tempo” 47.

V II. VALOR SO TER IO LÓ G ICO DA IG R E JA APO STÓ LICA E PÓS-APOSTÓLICA A Igreja abrange a fase da história da salvação que vai da bata­ lha decisiva à vitória final. Trata-se de uma fase essencialmente inter­ mediária: “ Intermediária porque o acontecimento decisivo já teve lugar, más a sua realização final ainda está por acontecer. O s milagres dos anos 1-70 continuam a se produzir, mas, no entanto, nem o abso­ luto do tempo central nem o absoluto do tempo final se realizaram: é um tempo essencialmente intermediário. A Igreja participa desse caráter intermediário. Ela é certamente o corpo de Cristo, corpo de ressurreição, mas é composto por nós, homens pecadores, ainda peca­ dores; não é simplesmente o corpo da ressurreição. Permanece ainda, ao mesmo tempo, um corpo terrestre, que não só pode ser crucificado, mas que também participa das imperfeições do corpo terrestre. Isso significa que o tempo da Igreja prolonga o tempo central, mas não é mais o tempo central: prolonga o tempo de Cristo encarnado, mas não é mais o tempo de Cristo encarnado e dos apóstolos, suas testemu­ nhas oculares. A Igreja é construída scbre o fundamento dos apóstolos e continuará a ser construída sobre esse fundamento enquanto existir, mas não pode mais produzir apóstolos no tempo presente” 48. Nesse ponto, Cullmann introduz uma das teses que lhe são mais caras e que se encontra também entre as mais características do seu pensamento, a tese da diferença qualitativa entre Igreja apostólica e Igreja pós-apostólica. Segundo o teólogo de Strasbourg, a Igreja apos­ tólica pertence ainda ao momento construtivo (ou da fundação) da história da salvação, tendo, portanto, um valor soteriológico profun­ damente diverso do da Igreja pós-apostólica, que, ao contrário, per­ tence ao momento de sua ampliação. Neste último momento, a histó­ ria da salvação tem apenas um desenvolvimento quantitativo; no pri­ meiro momento, ela sofre ainda um desenvolvimento qualitativo. A diferença qualitativa entre Igreja apostólica e Igreja pós-apos­ tólica manifesta-se sobretudo na Tradição. A Tradição da Igreja apos­ tólica se constitui sob a assistência extraordinária do Espírito Santo 47 Ibid., p. 109. 48 “Écriture et Tradition” em Catholiques et Protestants. Confrontations Théologi­ ques, a cargo de D, J. Callahan, H. A. Oberman e D, J. O ’Hanlon, Paris, 1963, pp. 20.


e tem valor normativo para qualquer outra tradição futura. Já a tra­ dição pós-apostólica é de origem eclesiástica e não tem valor normativo para as tradições sucessivas. “ Com efeito, por definição, o apostolado é uma função única que não pode ser prolongada. Segundo os Atos 1,22, o apóstolo é teste­ munha única, porque direta, da ressurreição. Ademais, ele recebeu uma ordem direta por parte de Cristo encarnado ou ressuscitado. A exemplo do schaliach hebreu, ele é ‘como aquele que o enviou’. Ele não pode transmitir a outros a sua missão absolutamente única. De­ pois de tê-la cumprido, deve restituí-la àquele que lha confiou: Cristo. Eis porque somente os apóstolos desenvolvem exatamente as mesmas funções de Cristo no Novo Testamento. . . Eis porque o Novo Testa­ mento usa para os apóstolos as mesmas imagens utilizadas para Jesus: ‘pedra’ e as imagens correspondentes de ‘fundamento’ e ‘colunas’. Tais imagens nunca servem para designar o bispo. A função de bispo, que se transmite, é essencialmente diversa da função do apóstolo, que não pode ser transmitida. Os apóstolos instituem os bispos, mas não podem legar-lhes as suas próprias funções, que não podem ser renovadas. Os bispos sucedem os apóstolos, porém num plano completamente dife­ rente. Sucedem-nos, mas não enquanto apóstolos e sim enquanto bis­ pos, função também importante para a Igreja, porém claramente dis­ tinta. Os apóstolos não instituíram outros apóstolos, mas bispos. O que significa que o apostolado não pertence ao tempo da Igreja, mas ao tempo da encarnação de Cristo. O apostolado consiste em prestar testemunho de Cristo. É certo que a Igreja também dá testemunho de Cristo. Ela não pode mais prestar, contudo, aquele testemunho di­ reto que caracteriza o testemunho dos apóstolos. O seu testemunho é um testemunho derivado, já que não repousa mais na revelação dire­ ta, que foi privilégio do apóstolo-testemunha ocular ” 49. Assim, a Igreja apostólica constitui a norma da Igreja pós-apostólica. Mas aqui surge um problema: de que maneira a Igreja pós-apostólica pode manter-se fiel à tradição apostólica e, portanto, ao kerygma original? Já vimos que Cullmann nega que isso possa se efetuar através de uma assistência extraordinária do Espírito Santo. Ademais, exclui também que isso possa ocorrer mediante o órgão do magistério eclesiástico, como ensina a Igreja católica, porque tal magis­ tério, segundo Cullmann, não pode gozar do privilégio da infalibilida­ de: “ Nenhum magistério infalível — seja ele personificado por um papa ou se exprima num concílio ou na colaboração de ambos — pode ser comparado, nem mesmo como interpretação da Bíblia, ao teste­ munho ocular, que jamais poderá ser repetido, dado pelos apóstolos a respeito dos eventos cristológicos essenciais, a morte e a ressurreição de Jesus, testemunho ocular que somente na Bíblia acha-se englobado no testemunho geral” 30. W Ibid., pp. 20-21. 50 11 Mistero delia Redenzione nella Storia,

p. 414. Cf. também pp. 421-422.


Segundo Cullmann, o único instrumento com o qual a Igreja pós-apostólica pode certificar-se de sua fidelidade à tradição apostólica e ao kerygma original é a palavra dos apóstolos. “ O apóstolo não pode ter sucessores que exerçam o papel de reveladores em seu lugar, mas sim deve continuar ele mesmo a cumprir essa função na Igreja presente: na Igreja, não através da Igreja, mas através da própria pala­ vra, dià tou lógou (Jo 17,20), ou seja, através dos seus escritos. É bem verdade que a palavra oral e escrita dos apóstolos não é idêntica à revelação objetiva, à própria palavra divina, já que a língua huma­ na — falada e escrita — participa da nossa fraqueza e, conseqüente­ mente, não pode ser um veículo adequado para a palavra pronunciada pelo Deus onipotente. Mas é somente através desse instrumento que Deus pode dirigir-se a nós; e ele escolheu os apóstolos para que a boa nova nos fosse transmitida através do seu testemunho. Para que outros elementos humanos nãc se infiltrem nesse testemunho, o apos­ tolado tem precisamente esse caráter de unicidade que, para nós, só pode ser salvaguardado através dos escritos dos apóstolos. Estes, por um lado, conservam a unicidade de sua missão e, por outro lado, garantem a ação direta dos apóstolos sobre nós, homens do sécu­ lo X X ” 51.

V III. O PRIM ADO D E PEDRO No contexto da tese sobre a diferente posição soteriológica ocupa­ da pela Igreja apostólica e pela Igreja pós-apostólica, é facilmente inteligível a solução cullmanniana a propósito do problema do prima­ do de Pedro. Esse tema, como todos sabemos, foi magistralmente tratado na obra Petrus — Jünger, Apostel, Märtyrer-. Das Historische und das Theologische Petrusproblem. O ensaio é dividido em duas partes. A primeira trata da questão histórica de Pedro como discípulo, apóstolo e mártir; a segunda examina as questões exegéticas e teológicas rela­ cionadas com a história de Pedro. A única fonte à disposição da Igreja para o conhecimento de Pedro são os Evangelhos; o material apócrifo não possui nenhum valor histórico para tal fim. O exame dos Evangelhos revela clara­ mente que Pedro ocupa uma posição privilegiada entre os discípulos de Jesus. Devido a essa posição, ele se torna o chefe da missão cris­ tã entre os judeus, enquanto Paulo assume a direção da missão entre os gentios. Cullmann considera que é errado argumentar que, pelo fato de terem havido divergências entre Pedro e Paulo quanto à prá­ tica cristã, suas teologias eram diferentes. Ao contrário, Pedro encon­ tra-se mais próximo da posição de Paulo do que os outros apóstolos. 51 “Êcriture et Tradition”, p. 23.


Dado que o Novo Testamento não fala do martírio de Pedro, é preciso recorrer a fontes extrabíblicas para ter conhecimento do fato. Num longo capítulo, Cullmann passa em revista todos os dados extrabíblicos, literários, litúrgicos e arqueológicos, concluindo que a Pri­ meira Epístola de Clemente e a Epístola de Inácio de Antioquia aos Romanos tornam muito provável a visita de Pedro a Roma e o seu martírio naquela cidade. Cullmann, porém, não se mostra disposto a dar crédito às conclusões sobre as escavações realizadas recente­ mente em Roma, segundo as quais a tumba do apóstolo se encon­ traria sob a basílica vaticana. A segunda parte do livro aborda a questão teológica do primado de Pedro. Cullmann examina antes de mais nada o texto de Mateus 16,17ss. Como conclusão duma ampla e acurada investigação, afirma que a historicidade da confissão de Pedro não pode ser colocada em dúvida. E assim passa a precisar o seu significado. Segundo o teólogo, o texto significa que Jesus prometeu a Pedro que ele seria o funda­ mento do povo de Deus nesta terra e, através dele, do Reino de Deus. Pedro deveria assumir a direção da atividade apostólica e da organi­ zação do povo de Deus. Mas essa posição singular — segundo Cull­ mann — cessa com a morte de Pedro: “ Aquilo que é dito de Pedro como Pedra refere-se apenas a ele, o apóstolo histórico” . Trata-se de uma promessa de primado no interior da Igreja primitiva, uma pro­ messa única e que não pode ser repetida, para não ser transmitida a nenhum bispo. De resto, acrescenta o nosso estudioso, se tal primado tivesse sido hereditário, ele teria devido passar ao sucessor de Pedro em Jerusalém e não ao bispo de Roma, porque Pedro era chefe da Igreja de Jerusalém e não da de Roma. Por isso, conclui Cullmann, as pretensões de primado da Igreja católica romana não encontram nenhuma justificação no Novo Testa­ mento, mas se baseiam exclusivamente numa tradição particular.

IX . AVALIAÇÃO Deve-se reconhecer não poucos méritos à obra teológica de Oscar Cullmann. Como sabemos, ela é em grande parte fruto do debate que Cullmann manteve em duas frentes, os teólogos liberais, de um lado, e a escola bultmanniana, de outro. Ora, através desse debate o teólogo de Strasbourg fez com que a teologia bíblica desse alguns passos de considerável importância. Antes de mais nada, com o conceito de “ história da salvação” ele restituiu à Bíblia a unidade essencial que lhe fora negada pelos teólogos liberais, que a tinham reduzido a uma coletânea de idéias re­ ligiosas dos hebreus e dos cristãos. Ainda contra os liberais, que ti­ nham exagerado a helenização do cristianismo primitivo, evidenciou o caráter fortemente hebraico do Novo Testamento.


No debate com Bultmann, em nossa opinião, Cullmann conseguiu provar definitivamente três coisas: — que, para compreender os autores sagrados, é preciso colo­ car-se em seu lugar e ver as coisas como eles as viam, servindo-se de sua epistemologia, ou seja, a epistemologia realista ou “ objetiva” ; — que o componente histórico da Revelação faz parte de sua essência e não da superestrutura mística; — que o kerygma “ historicizou ” os mitos do início e do fim e não ao contrário. Mas na teologia de Cullmann há também diversos pontos discutí­ veis. Eis alguns deles. Cullmann afirma várias vezes que a teologia cristã primitiva é na realidade quase exclusivamente cristologia. Ora, essa afirmação não nos parece exata. No Novo Testamento há muitas passagens (Jo 1,17; Rm 1,7; 8,31-39; ICor 15,28 e outras) que evidenciam a prio­ ridade da pessoa do Pai no pensamento cristão primitivo 52. Por con­ seguinte, é mais justo dizer que a Igreja primitiva possuía também uma teologia, ou seja, uma doutrina de Deus, à qual, porém, dava um forte colorido cristológico. Esse esclarecimento n ão . afeta a tese principal de Cullmann, contudo a coloca a salvo de possíveis incompreensões. Uma outra afirmação bastante discutível é aquela de que a teo­ logia bíblica não pode descobrir nada do ser e da pessoa de Deus e de Cristo, mas deve-se deter no considerar apenas a sua ação. Ora, essa afirmação não se justifica com nenhuma das duas argumentações adotadas pelo teólogo de Strasbourg, nem com aquela de que os au­ tores sacros são hebreus e portanto raciocinam com uma mentalidade ametafísica, nem com a de que a teologia bíblica deve limitar-se aos fatos. Com efeito, se a segunda argumentação fosse válida, Cullmann se exporia à acusação de “ acriticidade”, “ ingenuidade” è positivismo histórico que ele nunca demonstrou lhe agradar53. Quanto à primeira argumentação, parece baseada numa “ hebraicização ” exagerada do Novo Testamento. Certo, é bem verdade que nem João nem Paulo eram filósofos, mas eles falavam grego e tinham familiaridade com a cultura grega, portanto sendo lógico se esperar que, utilizando termos como logos, physis e morfè, estivessem a par de sua conotação meta­ física. Quanto à objeção de “ acriticidade” e “ ingenuidade”, Cullmann refutou-a em Cristo e o Tempo, em O Mistério da Redenção na H is­ tória e em outros escritos. Entretanto, parece-me que nunca conseguiu dar uma resposta satisfatória. Ele continua a asseverar que, para se fazer uma boa exegese, é preciso estar livre de qualquer pré-com52 A propósito disso, cf. o ótimo estudo de E. F a s c h e r , “ Christologie oder Theo­ logie?” em Theologische Literaturzeitung, 1962, pp. 881-910. 55 A um de seus colegas, que certa vez lhe fez essa acusação, Cullmann respondeu: “Não nos interessa nenhuma espécie de positivismo. Interessa-nos apenas a Escritura e seu significado. Para tanto, não é preciso nenhuma etiqueta filosófica” . 6 - O s grandes t e ó lo g o s ...

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preensão filosófica. Mas depois, na prática, é evidente que ele opera segundo categorias e procedimentos filosóficos bem precisos: a sua epistemologia é a realista ou “ objetiva” ; a sua lógica é a aristotélica; a sua metafísica é a da ação. Assim sendo, não teria sido melhor en­ frentar a dificuldade de peito aberto, reconhecendo que, para inter­ pretar a mensagem do Novo Testamento, ele adota as mesmas cate­ gorias filosóficas dos autores sacros? Outra tese bastante discutível é a do diferente valor soteriológico da Igreja apostólica e da Igreja pós-apostólica. Nessa tese há certamente uma parcela de verdade. É verdade, efetivamente, que a fase apostólica tem para a Igreja um valor normativo superior ao de qualquer outra fase. Porém, colocando entre as duas uma diversi­ dade qualitativa essencial, Cullmann não acaba exigindo de nós aquele “ salto” que ele censura a Kierkegaard? 54 E não estará Cullmann em contradição consigo mesmo quando, por um lado, reconhece à Igreja do século II o poder de estabelecer irrevogavelmente, portanto infa­ livelmente, o cânon dos escritos sacros e, por outro lado, recusa-se a reconhecer no Magistério eclesiástico o carisma da infalibilidade? Além disso, há uma tese que em minha opinião é absolutamente insustentável: a de que os escritos apostólicos bastam por si sós para nos colocar em contato com Cristo. Cullmann diz textualmente que eles “ garantem a ação direta dos apóstolos sobre nós” 55. Mas, se isso é verdade, para onde vão a tradição, o magistério, a exegese e a teo­ logia? Não estaremos aqui novamente diante do biblicismo mais exa­ gerado? Por fim, há a tese sobre o primado pessoal de Pedro, que não pode passar inobservada. No que se refere a essa tese, este autor tem uma forte suspeita de que ela seja mais uma conseqüência da lógica interna do sistema (isto é, a conseqüência do princípio do diferente valor soteriológico da Igreja apostólica e da Igreja pós-apostólica) do que resultado da evidência histórica. Se assim não fosse, como se ex­ plicaria a facilidade com que Cullmann passa por cima da tradição favorável ao primado de que é depositária a Igreja de Roma? Se é essa Igreja que detém o primado, não seria absurdo pretender encon­ trar alhures documentos mais autorizados? Há, portanto, limites bastante evidentes na teologia de Culmann. Todavia, seus méritos são tais e tantos, que ela pôde exercer um extraordinário fascínio e obter amplo consenso inclusive no campo católico. O seu valor foi abertamente reconhecido inclusive pelo Con­ cílio Vaticano II e por Paulo V I, que fizeram suas as categorias cullmannianas da história da salvação.

54 Cristo e il Tempo, p. 201. 55 “Écriture et Tradition”, p. 23.


Nota bibliográfica. — Os melhores estudos sobre Cullmann são os seguintes; J . F r i s q u e , Oscar Cullmann. Une Théologie de l'Histoire du Salut, Castermann, Tournai, 1960; E. F a s c h e r , “ Christologie oder Theologie?” em Theologische Literaturzeitung, 1962, pp. 881-910; C. J o u r n e t , Primauté de Pierre dans la Perspective Protestante et dans la Perspective Catholique, Alsatia, Paris, 1953; K. F r o e l i c h , “Oscar Cullmann: a Portrait” em journal of Ecumenical Studies, 1964, pp. 22-41; D. H. W a l l a c e , “ Oscar Cullmann” em Creative Minds in Contemporary Theology, Eerdmans, Grand Rapids (Michigan), 1966, pp. 163-202; A . A m b r o s i a n o , L ’Eucaristia nell’Esegest di Oscar Cullmann, D ’Auria, Nápoles, 1956, e L. B i n i , h'intervento di Oscar Cullmann nella Discussione Bultmanniana, Universidade Gregoriana, Roma, 1961; cf. também a bela introdução d e B. U l i a n i c h à edição italiana de Cristo e il Tempo, II Mulino, Bolonha, 1965.


DiETRICH BONHOEFFER E O CRISTOCENTRISMO A-RELIGIOSO

Entre os grandes teólogos protestantes contemporâneos, Dietrich Bonhoeffer ainda é o menos conhecido entre nós. Mesmo nos outros países, ele foi ignorado durante muitos anos. Porém, de alguns anos para cá, Bonhoeffer é o centro do debate teológico no mundo anglo­ -saxão. Em 1964, um amigo meu que leciona teologia na Universidade de Harvard escreveu-me dizendo que Bonhoeffer estava ultrapassando Barth, Bultmann e Tillich nos Estados Unidos. Hoje, Dietrich Bonhoeffer já é universalmente considerado como um dos principais precursores e promotores do movimento do “ Ateís­ mo Cristão” ou, como também é chamado, da “ Teologia da Morte de Deus ” . Foi o bispo Robinson, com seu famoso e não menos discutido Honest to God, quem lançou o nome de Bonhoeffer entre os anglo-saxões, como de resto também na Europa. Nessa obra, ele o apre­ senta como o teólogo da secularização, do cristianismo adulto, do cris­ tianismo a-religioso. Os traços ressaltados por Robinson são indubitavelmente os mais originais do pensamento de Bonhoeffer, mas não o abrangem totalmente; pelo contrário, deixam de fora uma parcela considerável que não pode ser negligenciada, sob pena de mortificá-lo e desfigurá-lo gravemente, como ocorreu com todos aqueles que se utilizaram de Honest to God para se aproximarem de Bonhoeffer. Nas páginas que se seguem, nossa primeira preocupação será a de oferecer ao leitor uma exposição o mais possível completa e sis­ temática do pensamento do nosso teólogo. Em segundo lugar, procura­ remos fazer ver que não há nenhuma ruptura, mas sim um desenvol­ vimento lógico, ainda que imprevisto e sensacional, entre o primeiro e o último Bonhoeffer. No título deste capítulo, denominamos a teologia de Bonhoeffer “ cristocentrismo a-religioso” . Dos dois termos, o primeiro indica o gênero e o segundo a diferença específica, ou, ainda melhor, o pri­ meiro indica o conteúdo e o segundo a forma, O conteúdo do pensamento de Bonhoeffer é Cristo. Ele é um defensor convicto de um cristocentrismo apaixonado, exigente, absolu­ to, completo. Para nenhum outro teólogo moderno Cristo é uma reali­


dade tão viva, próxima, real e transformadora como para ele. Baseia em Cristo toda a realidade e toda a espiritualidade. E desenvolve a doutrina da Igreja particularmente no que se refere a Cristo. A forma do cristocentrismo de Bonhoeffer, ademais, é a-religiosa, Nosso teólogo é uma testemunha comovida da ineficácia da mensagem cristã sobre o homem moderno. Ele considera que tal ineficácia não se deve ao conteúdo, mas à forma: ao modo como a mensagem é apre­ sentada, através das categorias religiosas. Estas são ininteligíveis e absurdas para o homem moderno, que se tornou a-religioso. Por isso, Bonhoeffer propõe que se liberte a mensagem bíblica e particularmen­ te o seu núcleo cristocêntrico de tais categorias, reexprimindo-os em termos a-religiosos, que são os únicos que o homem do nosso século pode compreender e aceitar. Concluindo este preâmbulo, podemos dizer que Bonhoeffer ocu­ pa justamente um lugar de proeminência entre os teólogos protes­ tantes contemporâneos por dois motivos: a) por ter enfrentado siste­ maticamente o problema eclesiológico em termos cristocêntricos; b) por ter contribuído de forma determinante para a discussão do proble­ ma da reexpressão do cristianismo e para o desencadeamento da secularização e da teologia radical, com sua tese do cristianismo a-religioso.

I. VIDA Dietrich Bonhoeffer nasceu em Wroclaw (al.: Breslau), em 4 de fevereiro de 1906, de uma família da alta burguesia. Seu pai era um grande médico psiquiatra e neurologista. Sua mãe, Paula von Hase, era filha de um capelão da corte imperial e neta de um célebre histo­ riador da Igreja. Por nascimento e educação, Dietrich tornou-se um grande aris­ tocrata. Durante toda a vida levou consigo as características de sua classe de modo completamente natural. Sempre e em toda parte fez-se admirar por sua nobreza de espírito e conduta. Bonhoeffer passou a maior parte da juventude em Berlim, com seus sete irmãos e irmãs, dedicando-se ao estudo, à música e ao es­ porte. Bem dotado em todos esses campos, como estudante distinguia­ -se por uma extraordinária capacidade de concentração. Com dezesseis anos, decide tornar-se pastor e, no outono de 1923, ingressa na Universidade de Tübingen para iniciar seus estudos teoló­ gicos, seguindo os cursos de A. Schlatter, V. Heitmüller e K. Heim. No ano seguinte, retornou a Berlim e prosseguiu seus estudos sob a direção de A. Harnack, A. Deissmann, H. Leitzmann e E, Sellin. Harnack ficou tão impressionado com o seu talento que quis fazer dele um historiador da Igreja. Mas os interesses do jovem Bonhoeffer já estão dirigidos para outros rumos, ou seja, para a teologia dogmática.


Nos anos seguintes, eJe segue com assiduidade os cursos dos dois ex­ poentes máximos do renascimento da teologia luterana, KarI Holl e Reinhold Seeberg. Em 1927, é laureado em teologia dogmática, com a dissertação Sanctorum Communio: eine Dogmatische Untersucbung zur Soziolo­ gie der Kirche, um ensaio que Karl Barth considerou como “ um mi­ lagre teológico” e que Ernst Wolf considerou como “ provavelmente, a abordagem mais aguda e profunda da questão da estrutura real da Igreja” . Quanto à orientação geral do seu pensamento, nessa obra ele já se mostra muito mais inclinado para Barth e a teologia da Palavra de Deus do que para Harnack e a teologia liberal. Depois de laureado, Bonhoeffer inicia imediatamente o ministério pastoral, uma atividade que nunca separará da atividade teológica. Como sua primeira função, lhe é confiada uma paróquia alemã de Barcelona. Em 1929, retorna a Berlim, para se habilitar ao ensino. Para tanto, escreve o ensaio Akt und Sein: Transzendentalphilosophie und Ontologie in der Systematischen Theologie (A to e Ser: Filosofia Transcendental e Ontologia no Seio da Teologia Sistemática). O en­ saio é aprovado, possibilitando ao autor, além do título de habilitação, também um lugar de docente de teologia sistemática na Universidade de Berlim. Contudo, antes de assumir a função, seus superiores ecle­ siásticos enviaram-no para um ano de estudos suplementares no “ Union Theological Seminary” de Nova York. Sua estada nos Estados Unidos teve efeitos benéficos tanto so­ bre o pensamento de Bonhoeffer como sobre a teologia norte-ameri­ cana, A esta o nosso teólogo transmite os últimos desenvolvimentos da Teologia Dialética. Por seu turno, entra em contato com um mundo cultural, político e social novo, mas também com um tipo de cristia­ nismo totalmente diferente do conhecido por ele na Europa. Na América passa pela experiência de um “ protestantismo sem Reforma” , como escreveria em seguida. Mais tarde, examinando essas experiências diversas, ele declararia: “ As divergências confessionais existentes en­ tre as diferentes Igrejas protestantes queparticipam do trabalho ecumênico são mais importantes do que as que existiam entre o protestantismo em suas origens e o catolicismo” . A estada norte-americana assinala também o início da atividade ecumênica de Bonhoeffer, uma atividade a que ele se dedicará com paixão e êxito pelo resto de sua vida. Retornando a Berlim em 1931, o nosso teólogo começa a ensi­ nar na universidade, exercendo uma profunda influência espiritual e intelectual sobre os estudantes. Antes do início do ano acadêmico, po­ rém, fora a Bonn, para um encontro com Karl Barth. Este lhe causara uma grande impressão, como podemos observar em carta que escreveu a um amigo: “ Nenhuma omissão em meu passado teológico causa-me maior amargura do que o fato de não ter ido mais cedo ouvir Karl Barth” .


Em Berlim, além do ensino, exerce também o ministério pasto­ ral — e de maneira extraordinária. Seus sermões têm sempre auditó­ rios lotados. Aceita também o encargo de ensinar catecismo e preparar para a Crisma um grupo de adolescentes do bairro popular de Wedd­ ing, empresa já tentada sem êxito por outros pastores. Bonhoeffer, porém, alcança um grande sucesso: conquista a simpatia dos jovens e de suas famílias, às quais vai fazer visitas. Através dessas visitas, nosso jovem teólogo obtém um conhecimento direto da trágica situação social da Alemanha daquela época. Em agosto de 1932, participa da International Youth Conferen­ ce, em Gland, na Suíça, onde fala sobre um tema explosivo: “ A Igre­ ja está morta” {die Kirch ist t o t ) . Em 1933, Adolf Hitler sobe ao poder, fato que tem uma impor­ tância decisiva para a sorte política e religiosa da Alemanha e para a vida de Dietrich Bonhoeffer. A Igreja evangélica oficial dos “ cristãos alemães” logo faz sua a ideologia nacional-socialista, incluindo em seus estatutos o famoso parágrafo relativo aos arianos ( Arierparagraph), através do qual proíbe a ordenação de pastores de erigem hebraica. Bonhoeffer demonstra desde o início a sua discordância das teorias hitlerianas. Em fevereiro de 1933, numa palestra radiofônica, critica a aspiração do povo de encontrar um Vührer, que se arris­ ca a tornar-se um Verführer, um sedutor. Ele protesta energicamente contra o Arierparagraph, solicitando a convocação de um “ concílio evangélico” para “ decidir sobre a unidade ou a divisão da Igreja” . O concílio não é convocado, mas ao seu lado colocam-se Hans Ásmussen, Otho Dibelius, Karl Barth, Martin N iemoeller, que juntos fundam a “ Igreja Confessante” . Desse momento em""diante, seu interesse pela teologia especulativa decai, enquanto suas atividades e reflexões se concentram sempre mais sobre a vida, as necessidades e os problemas da Igreja perseguida. Em outubro de 1933, no início do novo ano acadêmico, para furtar-se aos perigos aos quais o ensino o expõe, Bonhoeffer deixa a cátedra de Berlim e assume a direção de duas paróquias alemãs de Londres, onde permanece por dois anos, ocupando seu tempo no ministério pastoral, no estudo e na atividade ecumênica. Aproveita sua estada inglesa também para conhecer algumas experiências de vida comunitária efetuadas pelo anglicanismo. Em 1935, surge-lhe a idéia de ir à índia para aprender com Ghandi o método da não-violência; mas deve renunciar ao projeto por­ que naquele mesmo ano a “ Igreja Confessante” chamou-o de volta à pátria para confiar-lhe a direção de um seminário na Pomerânia, para a formação dos pastores que não queriam ingressar nos quadros da Igreja oficial. Durante um ano, leciona também na Universidade de Berlim. Entretanto, em 1936, tem que se retirar, porque o governo cassa-lhe o título de livre-docente. Dessa maneira, ele pode passar todo o seu tempo em Finkenwalde com seus alunos, juntamente com


os quais leva uma verdadeira vida conventual, com oração comum, correção fraterna, pobreza freqüentemente experimentada, estudo in­ tenso. A Imitação de Cristo, em latim, é o seu texto preferido de meditação. Fruto desse período de grande fervor são duas obras de espi­ ritualidade: Nachfolge (Im itação) e Gemeinsames Leben (Vida Co­ munitária), a primeira publicada em 1937 e a segunda em 1938. Em 1937, o seminário de Finkenwalde é fechado por ordem de Himmler. E os estudantes são novamente reunidos por Bonhoeffer em duas localidades diferentes, Kõslin e Gross-Schlõnwitz, mas por pouco tempo, porque nosso teólogo é logo proibido de ensinar e de publicar livros. Em 1939, Bonhoeffer cede às pressões dos seus amigos norte­ -americanos e aceita realizar uma turnê como conferencista nos Estados Unidos. Mas logo que desembarcou naquele país recebeu de casa uma carta em que era informado de que a guerra seria desencadeada segu­ ramente em setembro. Então, decide retornar imediatamente à sua pátria. A Niebuhr, que tinha conseguido a permissão para que viajasse aos Estados Unidos, apresenta suas desculpas nos seguintes termos: “ Sentado no jardim do seminário ( ‘Union Theological Seminary’ ), { tive tempo de pensar e orar no que se refere à minha situação e à da minha nação, obtendo algumas luzes sobre o vontade de Deus. Cheguei à conclusão de que fiz um erro em vir para os Estados Uni­ dos. Neste período difícil da história da minha pátria, devo viver junto com meu povo. Não terei o direito de participar da reconstru­ ção da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não tiver com­ partilhado com meu povo as provas deste período. Os cristãos ale­ mães terão que enfrentar a terrível alternativa de desejarem a derro­ ta de sua pátria para a salvação da civilização cristã ou de desejarem a vitória de sua pátria e, conseqüentemente, a destruição de nossa civilização. Eu sei a escolha que devo fazer; porém não posso fazê-la e manter-me ao mesmo tempo em segurança” V; Bonhoeffer volta para a Alemanha pouco antes da eclosão da guerra. Durante longo tempo se mantivera em posições quase-pacifistas, mas depois chegou à conclusão de que o pacifismo era uma escapatória ilegítima. Por isso, desde o início das hostilidades, ingres­ sa na Resistência, porque está convencido de que é necessário opor-se ao regime diabólico de Hitler com a ação política direta: f ‘ Não só é meu dever ocupar-me das vítimas deixadas no chão por um louco que dirige desvairadamente um carro por uma estrada abarrotada, mas também fazer de tudo para impedi-lo de dirigir” / Seu cunhado, Hans von Dohnanyi, coloca-o a par do plano de derrubada do regime elaborado pelo General Beck e pelo Almirante Canaris. Ele dá uma válida contribuição à execução do plano. Com 1 Citação de R. N i e b u h r , “The Death of a Martyr” em Christianity and Crisis, v. V.. n. 2, p. 6.


a ajuda de cúmplices influentes, Bonhoeffer, que tinha sido proibido de ir a Berlim e falar publicamente em qualquer parte da Alemanha, con­ segue várias vezes permissão para viajar ao exterior; dessa maneira, pôde colocar-se em contato com os aliados e submeter-lhes os planos da resistência interna alemã. Sua atividade no seio da resistência política e militar, todavia, não o impede de continuar a exercer na sua Igreja um ministério auten­ ticamente espiritual, especialmente por escrito, e prosseguir as suas meditações teológicas, que nesse período têm por objeto, naturalmente, as relações entre a Igreja e o Estado, a Igreja e o mundo, o cristão e seus deveres civis e religiosos. Assim, ele inicia a redação de sua obra mais comprometida, Ethik, que ficará incompleta. Em 5 de abril de 1943, é preso em Berlim, na casa de seus pais. Poucas horas antes, fora preso também Hans von Dohnanyi. Bo­ nhoeffer é trancafiado na seção militar da prisão de Tegel, nas proxi­ midades de Berlim. Durante dezoito meses viveu naquele cárcere. Mesmo lá dentro, porém, ele continua a desenvolver uma atividade muito intensa. Ocupa parte do seu tempo dando assistência aos seus companheiros de prisão, levantando o seu moral, comentando a Bí­ blia para eles, ministrando-ihes os serviços divinos aos domingos; a outra parte do tempo é dedicada à correspondência. Com a cumplici­ dade de seus guardiães, pode escrever muitas cartas aos seus familia­ res, à noiva Maria von Wedemeyer e, sobretudo, ao amigo Bethge. E s­ sa correspondência, juntamente com alguns outros escritos, constituiu o conteúdo do livro publicado por aquele seu amigo sob o título Widerstand und Ergebung (Resistência e Submissão). No início de fevereiro de 1945, Bonhoeffer é transferido da prisão berlinense para o campo de concentração de Buchenwald, onde tem por companheiros de cela algumas das mais altas personalidades po­ líticas e militares da Alemanha e alguns dos mais ilustres prisioneiros de guerra. Um deles, Payne Best, do serviço secreto aliado, nos dei­ xou preciosas informações sobre o fim do nosso teólogo: “ Num domingo, 8 de abril” , escreve Best, “ o pastor Bonhoeffer pronunciou­ -nos um breve sermão, falando de modo que tocou o coração de to­ dos e encontrando as palavras adequadas para exprimir o espírito de nossa condição e os pensamentos e propósitos que ela determinara em nós. Nem bem ele concluiu a última oração quando a porta foi escancarada; entraram dois homens à paisana e de aspecto malvado, dizendo: ‘Prisioneiro Bonhoeffer, prepare-se para vir conosco’. Aque­ las palavras — 'venha conosco’ — já tinham assumido para nós um único significado: a forca. Despedimo-nos. Ele se retirou dizendo: ‘Is­ to é o fim’. Depois, acrescentou prontamente: ‘Para mim, é o início da vida’. No dia seguinte, 9 de abril, foi enforcado. Estava com 39 anos” .


Em virtude das circunstâncias, a produção teológica de Dietrich Bonhoeffer não pôde assumir proporções muito vistosas, não podendo absolutamente competir em quantidade com a produção de um Barth ou um Rahner. Ela se reduz a uma dezena de ensaios, a alguns artigos e conferências e à sua correspondência, que foram reunidos em quatro volumes: Gesammelte Schrijten (Kaiser, Munique, 1958ss). Dos seus escritos, os mais importantes são os seguintes: Sanctorum Communio (Trowitzsch, Berlim, 1930). É um tra­ tado de eclesiologia. Nele, o autor se propõe a elaborar uma doutrina da Igreja partindo do ponto de vista da “ filosofia religiosa e social” . Mas Bonhoeffer não quer deduzir o dogma da sociologia, porque “ a Igreja baseia-se na revelação do Ccração de D eus” ; mas pretende de­ senvolver sua lógica interna em direção ao aspecto sociológico. Uma parte do livro é dedicada à exposição dos conceitos fundamentais que guiam o estudo da sociologia da Igreja, como “ ser pessoal”, “ relação eu-tu”, “ comunidade social” , “ espírito objetivo” , etc. Porém o tema que domina toda a exposição é a identidade da Igreja com Cristo. Ela, declara Bonhoeffer, “ é o Cristo existindo como comunidade” , “ é o próprio Cristo presente” . Akt und Sein: Transzendentalphilosophie und Ontologie in der Systematischen Theologie (Mohn, Giittersloh, 1931). Concebido como continuação de Sanctorum Communio, esse ensaio pretende mostrar que o maior problema teológico do nosso tempo, o de interpretar e exprimir adequadamente a Revelação, só pode ser resolvido na justa compreensão da realidade da Igreja. Segundo o nosso teólogo, tal problema não pode ser resolvido nem pela filosofia transcendental do ato nem pela filosofia do ser ou ontologia. “ Os conceitos obtidos por meio da interpretação ‘atualista’ e ontológica da Revelação não permitem traduzir a totalidade dessa mesma Revelação. Esta deve ser considerada na concreção da idéia da Igreja, ou seja, numa cate­ goria sociológica, em que a interpretação atualista e a interpretação ontológica se encontrem e sejam reconduzidas à unidade. Do ponto de vista teológico, a dialética do ato e do ser manifesta-se aqui como dialética da fé e da comunidade cristã: como a fé e a comunidade, o ato e o ser também não podem ser pensados senão juntos, comple­ tando-se mutuamente” . Akt und Sein apresenta-se, portanto, como um ensaio que visa “ fazer coincidir, no interior de um ‘pensamento eclesial’, as preocupações do verdadeiro transcendentalismo e da verda­ deira ontologia” . Nachfolge (Kaiser, Munique, 1939). Esta obra assinala uma re­ viravolta decisiva na produção - teológica de Dietrich Bonhoeffer. En­ quanto nas obras precedentes ele aborda temas de teologia dogmática com todas as técnicas e percepções do teólogo experimentado, com Sachfolge suas preocupações passam da esfera da teologia sistemática


para a esfera da teologia ascética e moral. Nachfolge não responde mais às exigências especulativas, mas sim às exigências da vida espi­ ritual. É um tratado de elevadíssima espiritualidade que o autor es­ creveu aos aspirantes ao ministério pastoral do seminário clandestino de Finkenwalde. É um tratado sobre a imitação (Nachfolge) de Cristo não menos belo, vivo, exigente e fascinante do que a obra clássica Imitação àe Cristo de Thomas a Kempis. Como o autor medieval, Bonhoeffer se inspira num amor sem reservas a Jesus Cristo e no desejo de tudo submeter a ele. O livro divide-se em quatro partes, que tratam respectivamente: 1) da graça e da imitação; 2) do Ser­ mão da Montanha; 3) dos mensageiros; 4) da Igreja de Jesus Cristo e da vida de imitação. O nível do tratado permanece sempre eleva­ díssimo, do início ao fim; mas há dois momentos mais elevados que os outros: a primeira parte, quando trata da distinção entre “ graça custosa” e “ graça barata”, e a última parte, quando apresenta a Igre­ ja como Corpo de Cristo. Muitos são os temas abordados, mas o mo­ tivo de inspiração permanece sempre o mesmo: a imagem e a palavra viva de Jesus Cristo. Segundo Bonhoeffer, a vida cristã no segui­ mento de Jesus será sempre traída quando se quiser reconduzi-la a uma doutrina, mesmo que seja a da sola gratia. A Palavra de Jesus é menos doutrina do que “ recriação” duma existência. Ethik (Kaiser, Munique, 1949). Obra incompleta, por cuja re­ dação Bonhoeffer esperou pacientemente durante os seus últimos anos, quando fora reduzido ao silêncio. A publicação foi organizada por seu amigo E. Bethge. Ethik tem por tema a ética cristã. Esta, segundo nos­ so teólogo, tem por fundamento não o conhecimento do bem e do mal, um conhecimento que o homem só adquiriu rebelando-se contra Deus, mas sim o conhecimento da vontade de Deus assim como foi revelada por Jesus Cristo. O seu princípio supremo é estabelecer em nós a conformidade com Jesus Cristo e, já que este “ toma forma na Igre­ ja, o ponto de partida duma ética cristã é o Corpo de Cristo, a forma de Cristo sob a forma da Igreja” . Em conseqüência, “ o princípio da ética cristã não é a realidade do próprio eu, nem realidade do mundo e nem mesmo a realidade das normas e dos valores, mas sim a rea­ lidade de Deus na Revelação em Jesus Cristo” . Por isso, “ o problema da ética cristã consiste em fazer que a realidade da Revelação de Deus em Jesus Cristo se realize nas Criaturas” . Essa ética absoluta­ mente cristocêntrica veta qualquer dualismo de pensamento. Com efeito, não há “ senão uma realidade, a realidade de Deus que se torna manifesta em Jesus Cristo e está presente na realidade deste mundo” . Bonhoeffer ressalta a impossibilidade de uma formulação estática das relações entre graça e natureza: é necessário ver uma e outra no interior da esfera única da realização do Cristo. Insiste com freqüência nessa obra em dois temas que o apaixonam de modo singular: o tema das relações entre a Igreja (ou o cristão) e o mundo e o tema das relações entre a Igreja (ou o cristão) e o Estado. Mais adiante, trataremos do seu pensamento a propósito disso.


Widerstand und Ergebung: Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft (Kaiser, Munique, 1951). É o famoso epistolário que deu tanta celebridade a Bonhoeffer. Nessas cartas, escritas na prisão de Berlim, ele falou ao amigo Bethge sobre as questões que assaltavam a sua mente de pastor e teólogo naquele ambiente. Na prisão, estava em contato com pessoas bem diferentes dos seus estudantes do semi­ nário de Finkenwalde, gente do mundo, cientistas, literatos, artistas, militares, homens sem fé, que ridicularizavam o Evangelho e a reli­ gião cristã. Essa gente colocou para Bonhoeffer o problema da comu­ nicação da mensagem cristã em sua crueza mais despiedada. Sua fé não se abalou absolutamente, porém se convenceu de que não se pode mais defendê-la com os argumentos tradicionais. Não se pode mais basear o cristianismo nos instintos religiosos. Ao contrário, para falar de Cristo hoje é preciso partir das categorias a-religiosas que re­ fletem a autocompreensão que o homem moderno tem de si mesmo. Para esse homem a-religioso, o Evangelho deve ser expresso em toda a sua pureza, como salvação de todo o homem (não só da alma) e de toda a realidade. A Igreja deve apresentar-se despida de todos os paludamentos com que se vestiu no passado; deve se apresentar como portadora de salvação e não como uma sociedade privilegiada. Ela não deve lutar pela sua existência, mas apenas pela existência e pela salvação do mundo. Essas profundas intuições, indubitavelmente importantes e significativas, mas formuladas de maneira fragmentária e desarticulada, constituem o núcleo teológico de Widerstand und Ergebung. Assim pode ser feito o resumo das principais obras de Dietrich Bonhoeffer. Seus outros livros têm os seguintes títulos: Schõpfung und Fali: Theologische Auslegung von Genesis 1-3 (Kaiser, Muni­ que, 1933); Gemeinsames Leben. Theologische Existenz Heute (idem, 1 9 39); Das Gebetbuch der Bibel: Eine Einführung in die Psalmen (M BK, Salzflen, 1 940); Versuchung (Kaiser, Munique, 1 953); Wer ist und wer war Jesus Christus? Seine Geschichte und sein Geheimnis (Furche, Hamburgo, 1962). O último escrito contém o curso de cristologia ministrado por Bonhoeffer em Berlim, em 1933, e recons­ truído com base nas notas dos estudantes.

III. NATUREZA E FUNÇÕES DA T E O L O G IA 2 O tema da natureza e das funções da teologia nunca foi tratado ex professo por Bonhoeffer, ou seja, sob esse título. No entanto, po­ de-se dizer que esse é o centro de toda a sua reflexão teológica. A esse terreno, com efeito, pertence tudo o que ele diz sobre a questão 2 Na apresentação do pensamento de Dietrich Bonhoeffer, seria mais cômodo e menos arriscado seguir a ordem cronológica de suas idéias, como fazem habitualmente


da interpretação da Revelação em Akt und Sein e sobre a necessidade de secularizar a mensagem cristã em Widerstand und Ergebung. Dessas obras e de outros escritos menores, é possível extrair uma teoria pre­ cisa e substanciosa, tanto sobre a natureza como sobre as funções da ciência teológica. Vejamos antes de mais nada o pensamento de Bonhoeffer sobre a natureza da teologia. Em Akt und Sein, Bonhoeffer distingue três tipos de conheci­ mento crente, querigmático e teológico. O conhecimento crente é o conhecimento de quem se reconhece sobrepujado pela pessoa de Cristo e perdoado por ele mediante a audi­ ção de sua Palavra. Na fé, que é um dom de Deus, o homem conhece Cristo como uma pessoa que está diante de si, cognoscível, mas livre e completamente fora do seu eu. Através da pessoa de Cristo, também o próximo sai do mundo das coisas e ingressa na esfera social das pes­ soas. Contudo, dado que esse conhecimento é conseqüência dum ato de fé, ele só tem valor no interior da comunidade dos fiéis. Cristo é apenas “ naquele que crê” ; entretanto, é Senhor “ daquele que crê” . Enquanto sujeição concreta a Cristo, a fé é um actus directus que não é suscetível de análise. Para a análise, resta-nos apenas a pa­ lavra passada pregada por Cristo, reduzida a proposição geral, em que Palavra e pessoa foram deixadas de lado. Essa é a situação do co­ nhecimento querigmático e teológico. O conhecimento querigmático é o conhecimento do pregador enquanto tal; em virtude de sua função, ele deve “ conhecer” aquilo que prega: o Cristo crucificado. Pelo poder que lhe é conferido pelo próprio Cristo através da congregação dos fiéis, o pregador tem plena autoridade para proclamar o Evangelho a quem o escuta e para per­ doar-lhe os pecados com a palavra e os sacramentos. Não pode haver qualquer dúvida a esse respeito, porque o sujeito da pregação é o próprio Cristo. O pregador, todavia, deve se contentar com as pala­ vras, as proposições, as recordações do evento divino; ele não pode apresentar a palavra viva e criadora de Cristo. À pregação, porém, enquanto função da congregação, está conexa a promessa de que, quando o pregador pronuncia as “ palavras” e as “ proposições” reta­ mente ( recte docetur), o Cristo vivo presta testemunho de si mesmo nelas. Mas como pode o pregador falar “ retamente” ? Esse é o pro­ blema do conhecimento teológico. os estudiosos, ao invés da ordem lógica. De resto, se colocamos um abismo entre o primeiro e o último Bonhoeffer, a ordem cronológica será a única possível. Mas nós entendemos que os conceitos do epistolário já estão presentes em Nachfolge, Ethik e outros escritos, ainda que de forma menos paradoxal. Em Widerstand und Ergebung, o próprio Bonhoeffer nega explicitamente ter voltado atrás e mudado tudo: “ Certamente eu aprendi muitas coisas, mas não creio ter-me modificado muito (p. 174 da edição alemã, Munique, 1955). Por isso é que não hesitamos em seguir a ordem lógica tam­ bém no caso de Bonhoeffer, procurando dar ao seu pensamento uma ordem sistemática que o autor não pôde conseguir devido às infaustas circunstâncias que todos conhe­ cemos.


O conhecimento teológico é o conhecimento eclesial que tem por objeto o evento que foi preservado na memória da comunidade cris­ tã, na Bíblia, na pregação, nos sacramentos, na oração. “ A teologia”, declara Bonhoeffer, “ é uma função da Igreja; porque não há Igreja sem pregação, nem pregação sem memória; ora, a teologia é a me­ mória da Igreja. Enquanto tal, ela ajuda a Igreja a compreender os pressupostos de uma pregação cristã, ou, em outros termos, serve à formação dos dogmas” 3. O caráter eclesial do saber teológico é evidenciado por Bonhoeffer também em sua aula inaugural na Universidade de Berlim em 1930, sobre o tema “ A questão do homem na filosofia e na teologia con­ temporâneas” . Naquela ocasião, entre outras coisas, disse: “ Somente como pensamento da Igreja é que o pensamento teológico se mantém em definitivo como o único pensamento que não racionaliza a reali­ dade através das categorias do possível. Dessa maneira, não somente cada simples problema teológico é remetido à realidade da Igreja, co­ mo também o pensamento teológico se reconhece no conjunto apenas como pensamento que se desenvolve na Igreja” 4. A razão principal que distingue a teologia das ciências profanas — afirma ainda Bonhoeffer em Akt und Sein — é a obediência: a obediência que ela deve à Igreja. O saber teológico deve reconhe­ cer os seus limites e submeter-se humildemente ao juízo da comuni­ dade cristã, a qual sabe que a Palavra, objeto da teologia, ultrapassa continuamente os limites da ciência teológica5. Essa obediência, porém, não é motivo de humilhação para a teologia, porque não lhe é imposta por uma autoridade humana, mas pelo objeto do seu estudo, o próprio Cristo. Aliás, só a obediência a Cristo torna possível o progresso do saber teológico, como prova a história. Com efeito, foi a obediência da razão à fé que causou o maravilhoso desenvolvimento da teologia antiga. “ A Igreja antiga” , escreve Bonhoeffer, “ refletiu por diversos séculos sobre a questão de Cristo. A propósito disso, ela ligou a razão à obediência a Jesus Cris­ to e, em fórmulas duras, plenas de contrastes, prestou um testemunho vivo do mistério de sua pessoa. Ela não cedeu às ilusões modernas segundo as quais esse mistério só poderia ser objeto do sentimento e de experiências íntimas, porque conhecia bem a depravação e o caráter introvertido de toda experiência íntima e de qualquer sentimento humano. Certo, ela nem mesmo pensou que esse mistério poderia ser excogitado logicamente; contudo, sem medo dos paradoxos conceptuais, atestou com precisão e glorificou o mistério como mistério para qualquer pensamento natural. A cristologia da Igreja antiga consti­ tuiu-se verdadeiramente diante do berço de Belém, e em seu vulto re­ luz o esplendor do Natal. Ela fascina ainda hoje o coração de quem 3 Akt und Sein, Mumque, 1956, p. 109. -* Gesammelte Schriften, v. II I, p. 84. 5 Akt und Sein, pp. 109ss.


aprende a conhecê-la. Os duros conceitos daquele tempo são como as pedras das quais se retira as centelhas para acender o fogo ” 6. Essa doutrina sobre a obediência que a teologia deve à Palavra de Deus é extremamente importante para uma correta compreensão do pensamento de Bonhoeffer. Mostra o quanto ele está longe das con­ cepções racionalistas da teologia liberal e bultmanniana. É preciso tê­ -la sempre presente, sobretudo quando se falar das doutrinas de Bonhoeffer sobre o cristianismo a-religioso e sobre a secularização, para não confundi-las com as teses do racionalismo passado e presente. A função da teologia, definida genericamente, numa passagem citada há pouco, como “ estudo dos pressupostos da pregação cristã” 1, é precisada em Akt und Sein e em Widerstand und Ergebung como estudo da interpretação da Revelação. O seu primeiro dever é esco­ lher o instrumento apto para fornecer uma correta interpretação da Palavra de Deus. Que instrumento é esse? Em Akt und Sein, Bonhoeffer considera que o instrumento de que a teologia deve servir-se para interpretar a mensagem cristã é a filosofia; mas não qualquer filosofia e sim só aquela que não mortifica a Revelação, que não a priva de sua liberdade e de sua transcendên­ cia, que não a sufoca. Em sua dissertação para se habilitar ao ensino, o jovem teólogo de Wroclaw examina aquelas que ele considera as principais filosofias de sua época, a filosofia transcendental do ato (ou seja, a filosofia de Kant e dos idealistas) e a filosofia do ser ou ontologia (ou seja, a filosofia de Husserl, Scheler, Heidegger e Przyw ara), demonstrando que nem uma nem outra satisfazem tal critério, porque nem a filosofia do ato nem a do ser reconhecem o princípio da infinita diferença qualitativa, que é a base em que se funda a liberda­ de e a transcendência da Revelação. A finitude do homem é evidente­ mente desprezada pelo idealismo e também pela filosofia kantiana. Por outro lado, sempre segundo Bonhoeffer, a doutrina da analogia, com a qual a filosofia do ser procura distinguir as criaturas do Criador, não basta para garantir a infinidade divina e muito menos para expri­ mir o conceito cristão da transcendência de Deus, que não somente “ é ”, mas “ é ” o Justo, “ é ” o Santo, “ é ” Amor. Em lugar da filosofia transcendental e da ontologia, nosso teólogo propõe como instrumento adequado para a interpretação da Revelação uma filosofia baseada em categorias sociológicas e pessoais. Segundo ele, essa filosofia tem duas vantagens sobre as anteriores: a) não concebe a Revelação nem como um dado do passado que absolutamente não diz respeito ao crente em sua existência atual nem como um ato continuamente livre, puro, não objetivo, que aferra de vez em quando a existência individual, mas sim considera que a Revelação consiste num encontro de pessoas ins­ tituído pela pessoa de Cristo, razão pela qual, em sua nova existência, 6 Gesammelte Schrijten, v. III, p. 383. 7 Akt und Sein, p. 109.


o simples indivíduo encontra-se sempre relacionado a uma comuni­ dade; b) na dialética da fé e da comunidade cristã, preserva os ele­ mentos positivos da dialética do ato e do ser: “ no interior de um ‘pensamento eclesiaP, ela faz coincidirem as preocupações tanto do verdadeiro transcendentalismo como da verdadeira ontologia” 8. Como se vê, em Akt und Sein já existe em nosso teólogo a preocupação com a correta compreensão e comunicação da mensagem cristã; mas ela não ultrapassa o nível tradicional da linguagem filosó­ fica apropriada. De toda maneira, não deixa de ser interessante a con­ vicção de Bonhoeffer sobre a inadequação tanto da linguagem idealista como da clássica, bem como sua proposta de substituí-las pela lingua­ gem mais moderna da filosofia personalista. Em Widerstand und Ergebung, o famoso epistolário escrito du­ rante o período de sua prisão, quinze anos depois de Akt und Sein, a problemática de Bonhoeffer ainda permanece a mesma: como inter­ pretar e exprimir adequadamente a Revelação de forma a torná-la compreensível para o homem moderno. Agora, porém, aborda o tema de maneira mais radical, além de tratá-lo num nível mais profundo. A prisão, colocando-o em contato com a ciência, a literatura, a arte, a política e, sobretudo, com a incredulidade e o ateísmo, revelou a Bonhoeffer a insuficiência do remédio imaginado em Akt und Sein. Não basta substituir as categorias filosóficas dos séculos passados pelas categorias do nosso século para tornar inteligível a mensagem cristã, assim como também não basta rever suas vestes mitológicas, como quer Bultmann. É preciso uma revisão mais radical: é necessá­ rio mudar toda a linguagem religiosa em que ela foi expressa origi­ nalmente. Com efeito, “ não são apenas os conceitos mitológicos, como os milagres, a ascensão, etc. (que não são separáveis, em princípio, dos conceitos de Deus, fé, etc.), que se apresentam de forma proble­ mática, mas também os conceitos ‘religiosos’ em si mesmos. Não se po­ de separar, como imagina Bultmann, Deus e os milagres: é preciso ser capaz de interpretar abertamente tanto um como os outros em sentido ‘não-religioso’ ” 9. Essa é uma exigência inelutável do homem moderno. Até agora, a Igreja pregou o Evangelho baseando-se na experiência religiosa dos homens, no fato de que cada homem, no mais profundo de si mesmo, sente a necessidade de uma forma qualquer de religio­ sidade, a necessidade de um Deus ao qual se dar, um Deus que pos­ sa servir para explicar o mundo. Mas o homem moderno “ aprendeu a enfrentar qualquer problema, inclusive importante, sem recorrer à hipótese da existência e da intervenção de Deus. Nas questões rela­ tivas à ciência, à arte e até mesmo à ética, esse já é um dado de fato indiscutível que quase ninguém mais pensa dever combater. Porém nos últimos cem anos, aproximadamente, começou a ocorrer o mesmo, de modo sempre mais claro, também no que se refere às 8 Ibid., p. 12. 9 Letters and Papers from Prison, Londres, 1953, p. 183.


questões religiosas: já é evidente que tudo pode seguir adiante inclu­ sive sem ‘Deus’ e não pior do que antes. Como no campo da ciência, também no campo das coisas humanas em geral aquilo que nós cha­ mamos ‘Deus’ está sempre mais confinado fora da vida, sempre per­ dendo mais terreno. Os historiadores católicos e protestantes estão de acordo em afirmar que exatamente nesse processo secular é que se identifica a razão do afastamento geral de Deus, de Cristo; quanto mais estes, para se oporem àquela tendência^ falam de Deus e de Cristo, tanto mais os outros são levados a se definirem como anticristãos. Chegado já à consciência de si e das leis que governam a vida, o mundo demonstra uma tal segurança de si que quase nos mete medo. Erros de direção e insucessos não o fazem desviar do caminho que es­ tá seguindo, sendo até aceitos com coragem e indiferença, como parte da condição humana; até mesmo um acontecimento como a guerra atual não constitui exceção. A apologética cristã opôs-se das mais variadas formas a essa segurança de si: procurou-se mostrar ao mun­ do, já chegado à maioridade, que ele não pode viver sem a tutela de ‘Deus’. Cedeu-se em relação a todos os problemas ‘seculares’, mas ainda restam as chamadas ‘questões últimas’ a morte, a culpa — , às quais somente ‘Deus’ deveria poder dar uma resposta, e são essas questões que tornam necessários Deus, a Igreja, o sacerdote” 10. Até mesmo essas questões, todavia, já não são mais monopólio da Igreja; elas caíram sob o domínio da psicanálise, da medicina e da sociologia. Por isso, conclui Bonhoeffer, se a Igreja quiser manter intacto o valor e a inteligibilidade do Evangelho, deve apressar-se a descartar corajosamente toda premissa religiosa, como são Paulo teve a cora­ gem de repelir a circuncisão como condição para a difusão da boa nova, aceitando “ o alcance da maioridade por parte do mundo” como um fato querido por Deus. “ O único modo de sermos honestos é reconhecer que devemos viver no mundo etsi deus non daretur, como se Deus não existisse” 11. Nesse ponto, Bonhoeffer se pergunta: “ Como podemos ser cristãos em sentido leigo e a-religioso, sermos a ekklesia, isto é, os ‘chamados’, sem nos considerarmos como particularmente favoritos, no plano religioso, mas sim como gente que pertence ao mundo em tu­ d o ? ” 12 A resposta pode ser encontrada em Notas para um Livro, cujo último capítulo deveria conter este preâmbulo: “ A Igreja só é verda­ deiramente ela mesma quando existe para a humanidade. Para reco­ meçar tudo do início, ela deveria dar todos os seus bens aos pobres. O clero deveria viver somente dos donativos espontâneos dos seus fiéis ou dedicar-se, dentro do possível, a algumas atividades seculares; a Igreja deveria participar da vida social dos homens, não para do­ miná-los, mas para ajudá-los e servi-los. Ela deve poder dizer a todos 10 Ibid., pp. 215ss, 11 Ibid., p. 241. 12 Ibid., p. 180.


os homens, qualquer que seja a sua ocupação, o que significa viver em Cristo, existir para os outros” 13. Essa resposta é, pelo menos, surpreendente. Portanto, a questão que o autor se colocara era: “ Como tornar inteligível o cristianismo no plano da expressão conceptual? ” Tratava-se, pois, de uma ques­ tão de ordem teológica, à qual Bonhoeffer deveria ter dado uma res­ posta da mesma ordem. Mas sua resposta, ao contrário, pertence à ordem ascética. Ele diz, com efeito: o único modo de tornar o cris­ tianismo inteligível hoje é o bom exemplo; com a nossa vida podemos fazer com que os outros intuam o conteúdo da nossa fé. E, no entanto, parece que essa permanece a única resposta pos­ sível, uma vez que se negou valor à interpretação filosófica ou reli­ giosa da Revelação 14. Por outro lado, tal solução não é nova no pensamento de Bo­ nhoeffer: ela já se encontra esboçada em Nachfolge ( “ Imitação” , um título muito expressivo), ainda que em termos menos paradoxais. Portanto, o significado que Bonhoeffer pretender dar à sua “ secularização ” da teologia é bem diferente daquela que a maioria dos seus intérpretes quer lhe atribuir: não é o de fazê-la adotar uma linguagem secular, mas sim o de fazê-la ceder seu lugar ao teste­ munho. Como diz justamente Marlé, “ o caminho buscado para uma interpretação ‘não religiosa’ da tradição bíblica, como parece impor-se a Bonhoeffer no contexto de um ‘mundo tornado adulto’, não pode equivaler, em seu pensamento, a um naturalismo vulgar, a um hu­ manismo sem fundamento ou a uma filantropia sem mistério. Longe de conduzir à dissolução do objeto próprio da fé, ele deve conduzir à valorização, evitando ao máximo deixar-se degradar ou perverter, da realidade transcendente à qual essa fé está totalmente ligada e da qual não pode deixar de se nutrir” 15.

IV. D ISTIN Ç Ã O E RELAÇÕ ES EN TRE ORDEM NATURAL E SOBRENATURAL Na seção anterior, estudando o pensamento de Bonhoeffer sobre o problema da comunicabilidade da Revelação, descobrimos a sua concepção das relações entre Cristo (a Igreja e a teologia) e o mun­ do (o homem) em nível semântico e gnoseológico. 13 Ib id ., p. 261. 14 Parece, todavia, que Bonhoeffer não era dessa opinião. Numa carta ao seu ami­ go Bethge, podemos ler: “Não cabe a nós prever o dia — mas ele virá — em que os homens serão novamente chamados a formularem a Palavra de Deus de maneira tal que o mundo será transformado e renovado. Tratar-se-á de uma linguagem nova, talvez completamente não-religiosa, mas será uma linguagem de redenção e libertação, como a linguagem de Jesu s” ( W iderstand und Ergebung, p. 207). 15 R. M a r l é , Dietricb Bonhoeffer, Témoin de Jésus-Christ parmi ses Frères, Tournai, 1967, pp. 145-146.


Ora, com o problema das relações entre ordem natural e sobre­ natural, passamos a considerar a sua concepção em nível ontológico. E, segundo Bonhoeffer, nos perguntamos em que relações se encon­ tram Igreja e mundo, graça e natureza, sagrado e profano, ordem natural e sobrenatural, em si mesmos, em sua realidade profunda. Devemos esclarecer, antes de mais nada, que, para formular essa questão capital da teologia, Dietrich Bonhoeffer não se utiliza do par tradicional “ natural-sobrenatural”, “ sagrado-profano” , “ cristão-secular” , etc., mas do novo par, “ último-penúltimo ” . Prefere este par aos tradicionais, porque não insinua, como aqueles, a idéia de que a rea­ lidade seja dividida em dois compartimentos ou esferas, idéia que ele critica vivamente, na medida em que “ cria a possibilidade de existir numa só dessas esferas — de haver, por exemplo, uma existência espiritual que não participe absolutamente da existência secular, ou uma existência secular que reclame autonomia para si e possa exercer esse direito de autonomia em relação à esfera espiritual” lá. Mas o que devemos entender por “ penúltimo” ? “ O penúltimo” , diz Bonhoeffer, “ é tudo aquilo que precede o último, tudo aquilo que precede a justificação unicamente através da graça, tudo aquilo que em nossa consideração conduz à realidade última, uma vez que a realidade última tenha sido encontrada” 17. E como se relaciona com o “ último” ? Essa questão, segundo nosso teólogo, pode ser resolvida de diversos modos, dois dos quais são seguramente errados. Trata-se das soluções que ele chama “ radi­ cal” e “ de compromisso” e que identifica respectivamente com a luterana (a primeira) e a católica (a segunda). A solução radical “ só leva em conta o último, ao passo que o penúltimo é completamente anulado. Nessa concepção, último e pe­ núltimo são contrários que se excluem mutuamente. Cristo é o ini­ migo de todo penúltimo e qualquer realidade penúltima é inimiga de Cristo. Cristo é o sinal de que o mundo está maduro para a des­ truição. Não há distinções. Cada coisa deve ser submetida a juízo. Há só duas categorias: por Cristo e contra ele. ‘Quem não está a meu favor está contra mim’ (M t 12,30). Tudo aquilo que é penúltimo na conduta humana é negação e pecado” 18. A solução de compromisso, ao contrário, atribui ao penúltimo uma consistência própria, “ uma certa autonomia, sem que seja amea­ çado òu colocado em perigo pelo último. O mundo ainda continua a existir; o fim ainda não está às portas; ainda há coisas penúltimas a fazer, no cumprimento da responsabilidade em relação ao mundo que Deus criou. Deve-se considerar os homens assim como eles são. O úl­ timo permanece absolutamente no extremo oposto da realidade coti­

16 Etbik, idetn, p. 269. 17 Ibid., p. 142. 18 Ibid., p. 135,


diana; com efeito, é uma eterna justificação para as coisas assim como elas são” 19. Ambas as soluções, conforme Bonhoeffer, são inaceitáveis. “ Num caso, o penúltimo é destruído pelo último; no outro, o último é ex­ cluído do domínio do penúltimo. Num caso, o último não admite o penúltimo; no outro, o penúltimo não admite o últim o” 20. Há, porém, uma terceira solução que coincide substancialmente com a solução barthiana da analogia fidei e que Bonhoeffer faz sua: é a solução que reconhece ao penúltimo (ao mundo, ao homem, às realidades terrestres, à ordem temporal) uma consistência que tem seu fundamento e sua justificação apenas no último. “ Uma coisa só se torna penúltima através do último, ou seja, no momento em que perdeu a sua validade. Portanto, o penúltimo não determina o úl­ timo, mas sim o último que determina o penúltimo” 21. De fato, “ não existem duas realidades, mas uma só realidade, que é a reali­ dade de Deus, a qual em Cristo manifestou-se à realidade deste mun­ do. A realidade de Cristo abrange também a realidade do mundo. O mundo por si só, independentemente da Revelação de Deus em Cristo, não tem realidade nenhuma. Quem procura ser ‘cristão’ sem ver e re­ conhecer o mundo em Cristo nega a Revelação de Deus em Jesus Cristo. Não há, portanto, duas esferas, mas uma só, a da realização de Cristo, em que se encontram unidas a realidade de Deus e a do mundo. Por conseguinte, o tema das duas esferas, que sempre foi um fator tão dominante na história da Igreja, é estranho ao Novo Testamento. Este interessa-se somente pelo modo como a realidade de Cristo torna-se realidade no mundo presente, que ela já tomou, agar­ rou e ocupou” 22. Sendo assim, prossegue o nosso teólogo, é errado conceber o homem como uma pré-condição da justificação através da graça. “ Ao contrário, somente com base no último é que podemos conhecer o que significa ser homem e determinar e reconstruir a hu­ manidade através da justificação” 23. Ele acrescenta, todavia, que a relação é tal que a humanidade precede a justificação e isso ocorre porque, em relação ao último, é necessário que ela venha antes. “ Por essa razão, o último não priva o penúltimo de sua liberdade, mas é sempre a liberdade do último que valida a do penúltimo. E assim, com todas as reservas necessárias, agora é possível falar da humani­ dade, por exemplo, como o penúltimo da justificação mediante a fé. Somente o homem pode ser justificado, precisamente porque só aque­ le que é justificado torna-se ‘homem’. Disso deriva algo de impor­ tância crucial: o penúltimo deve ser preservado por amor ao último. Toda destruição arbitrária do penúltimo danifica gravemente o último 24 . -

19 20 21 22 23 24

Ibid. Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.

p. p. p. p.

136. 142. 210. 142.


Nesse ponto, Bonhoeffer encontra uma forma de resgatar o con­ ceito de “ natural” , cuja perda, afirma ele, causou um prejuízo muito grande à teologia protestante. “ N atural”, sustenta nosso teólogo, não significa nem o reino de corrupção em que o homem se afun­ dou depois do pecado, nem aquele núcleo de realidade incorrupta que, segundo a teologia católica, constitui a essência da natureza humana. A primeira noção está ligada à concepção “ radical” das relações entre ordem natural e sobrenatural; já a segunda noção está ligada à concepção “ de compromisso” . “ Natural é aquilo que, depois da Queda, dirige-se para a vinda de Cristo. Ao passo que inatural é aquilo que, depois da Queda, cerra as portas à vinda de Cristo” 25. “ A vida natural é a forma de vida preservada por Deus no mundo decaído e dirigida para a justificação, a redenção e a renovação por obra de Cristo” 26. Este conceito é necessário “ porque, se não fosse mais possível realizar nenhuma distinção relativa na criação decaída, se escancararia a porta a toda sorte de arbítrio e desordem — e a vida natural, com as suas ordens e as decisões concretas, não estaria mais sujeita à responsabilidade de D eus” 27. Entretanto, “ a vida natural não deve ser entendida simplesmente como uma preliminar da vida em Cristo. Somente do próprio Cristo é que ela recebe a sua validade. O próprio Cristo entrou na vida natural e somente através da encar­ nação de Cristo é que a vida natural torna-se o penúltimo que se dirige para o último. Somente através da encarnação de Cristo é que nós temos o direito de chamar os outros à vida natural e vivê-la por nossa parte” 28.

V. CRISTO CEN TRISM O E IM ITAÇÃO Já se viu anteriormente que o cristocentrismo constitui um dos traços característicos do pensamento de Dietrich Bonhoeffer. Daí resulta que tudo em Bonhoeffer tem caráter cristocêntrico: a eclesioIogia, a ética, a ascética, a política, as relações entre natureza e graça, entre a Igreja e o mundo, entre ordem natural e sobrenatural, etc. Agora procuraremos delinear a trama fundamental da doutrina cristocêntrica de nosso teólogo. Comecemos pela citação de dois trechos de Bonhoeffer em que a tese cristocêntrica é expressa de maneira solene e inequívoca: “ Jesus Cristo é o centro, é a força da Bíblia, da igreja, da teolo­ gia e também da humanidade, da razão, da justiça e da cultura. Tudo deve retornar a ele e só sob a sua proteção pode viver ” 29 ( primeiro 25 Ib id ., 26 Ib id ., 27 Ibid., 28 Ib id ., 29 Ib id .,

p. 153. p. 154. pp. 152-153. p. 154. p. 60.


texto). O segundo texto afirma de maneira ainda mais absoluta: “ A realidade é o homem real, o Deus encarnado. É do homem real, cujo nome é Jesus Cristo, que toda a realidade “ fenomênica” extrai o seu último fundamento e anulação, a sua justificação e contradição, a sua afirmação e negação. Tentar compreender a realidade sem o homem real significa viver uma abstração da qual o homem responsável nun­ ca deve ser vítima; significaria perder o contato com a realidade viva; significaria vacilar eternamente entre os extremos da servidão e da revolta em relação à realidade ‘fenomênica’ ” 30. Mas como se justifica a tese do cristocentrismo em Bonhoeffer? No plano conceptual, a justificação é dada pela doutrina das re­ lações entre último e penúltimo, a qual, como sabemos, afirma que toda a consistência do penúltimo deriva do último. Ora, segundo Bonhoeffer, o último é Cristo. Ele é, portanto, o fundamento de toda coisa 31. Não é possível, porém, especificar concretamente a natureza das relações entre último e penúltimo sem conhecer a realidade efetiva do último. É preciso, pois, perguntar quem é Cristo. É a cristologia quem responde a essa interrogação. No curso de cristologia que ministrou em Berlim em 1933, Bonhoeffer decla­ rou que a função dessa parte da teologia não é ocupar-se do " W ie" ( “ como é possível” ) ou do “D ass" ( “ que existiu” ), como afirmam a escola liberal e Bultmann, mas sim do "W er” ( “ quem é ” ): “ A sua função é analisar a estrutura ontológica do Quem, evitando tanto o perigo do Como (W ie) como o perigo do Que (D a s s )” 32. Em segundo lugar, “ devido à sua natureza, a questão cristológica deve ser orientada para o Cristo único, em sua totalidade. Esse Cristo inteiro é o Cristo histórico, que não deve, de modo algum, ser separado de sua obra. Ele é interrogado e responde como alguém que se identifica com a sua obra. Mas o objeto da cristologia é a es­ trutura ontológica pessoal do Cristo histórico inteiro” 33. Considerar o Cristo histórico inteiro significa considerá-lo em todas as três fases de sua existência: encarnação, paixão e ressurrei­ ção. E é necessário considerá-lo em sua totalidade para descobrir quais são as suas relações efetivas, enquanto realidade última, com to­ da a outra realidade. Ora, considerando o Cristo total, “ descobrimos na encarnação o amor de Deus por sua criação; na crucifixão, o juízo de Deus sobre a carne; na ressurreição, a vontade de Deus sobre o mundo. Não há erro mais grave do que separar esses três elementos, porque cada um deles abrange tudo. É absolutamente equivocado elaborar se­ paradamente uma teologia da encarnação, uma teologia da cruz e uma 30 31 32 p. 17. 33

Ibid., pp. 242-243. Ibid., pp. 133ss. Wer ist und wer mar Jesus Christus? Seine Geschichte und sein Geheimnis, Ibid., p. 26.


teologia da ressurreição, umas em contraste com as outras, devido a uma absolutização errônea de cada uma das três partes” 34. Mediante um rápido exame das três fases da vida de Cristo, Bonhoeffer especifica o seu significado para o “ penúltimo” . A encar­ nação registra a entrada de Deus na realidade criada. Mas essa entra­ da ‘‘ não significa simplesmente a aceitação do mundo e do caráter hu­ mano assim como eles são. Jesus é o homem ‘sem pecado’ (H b 4 ,1 5 ), esse é o fato decisivo. Jesus, todavia, viveu em extrema pobreza entre os homens, sem casar-se e morrendo como um criminoso. Portanto, a humanidade de Jesus já implica uma dupla condenação do homem, a condenação absoluta do pecado e a condenação relativa da ordem estabelecida pelo homem. Mas mesmo sob o peso dessa condenação, Jesus é realmente homem e é seu querer que nós sejamos homens. Ele não torna a realidade humana independente e tampouco a destrói, porém permite-lhe permanecer ccmo aquilo que está antes do último, como um penúltimo que exige ser considerado seriamente ao seu modo e ao mesmo tempo não ser considerado seriamente um penúlti­ mo que se tornou o revestimento externo do último” 35. A crucifixão significa que Deus pronuncia a sua condenação final sobre a criação decaída. A rejeição da parte de Deus sobre a cruz de Jesus Cristo implica a rejeição de toda a raça humana, sem exceção. A cruz de Jesus é a sentença de morte pronunciada sobre o mundo. Ora, o homem não pode se vangloriar de sua humanidade, nem o mundo de seus ordenamentos divinos. A glória dos homens alcançou o seu ponto terminal diante do Crucificado, dilacerado, en­ sangüentado e cuspido. Mas a crucifixão de Jesus não significa sim­ plesmente o aniquilamento do mundo criado; porém, sob o signo da morte — a cruz — , os homens agora poderão continuar vivendo, para sua condenação se desprezam a cruz, para sua salvação se prestam honras a ela. O último tornou-se efetivo sobre a cruz, como juízo sobre tudo aquilo que é penúltimo, mas ao mesmo tempo como misericórdia para com o penúltimo que se inclina diante do juízo do último” 36. A ressurreição “ significa que Deus, com seu amor e sua onipo­ tência, põe fim à morte e chama à vida uma nova criação. . . Jesus ressurgiu como homem e assim fazendo deu aos homens o dom da ressurreição. Por isso o homem permanece homem, ainda que seja um homem novo, renascido, que não mais se assemelha ao velho homem. Até atravessar a fronteira da morte, ainda que tenha ressurgido com Cristo, ele permanece no mundo do penúltimo, o mundo em que Jesus entrou e no qual foi erguida a cruz. Assim, enquanto a terra continuar existindo, nem mesmo a ressurreição destrói o penúltimo,

34 Etbik, p. 139. 35 Ibid., pp. 139-140. 36 Ibid., p. 140


mas a vida eterna — a nova vida — entra com força sempre maior na vida terrena e conquista espaço para si nessa vida” 37. Para resumir todas as funções que Cristo, como último, exerce em relação ao penúltimo, Bonhoeffer utiliza o termo “Stellvertretung” (substituição, representação, “ vicariedade” ), um termo usado também na teologia tradicional, mas ao qual o nosso teólogo dá uma inten­ sidade semântica nova. Para ele, a “ ação vicária” constitui a essência da vida de Jesus: “ Ele não era um indivíduo que desejava alcançar sua própria perfeição, mas vivia como aquele que tomou a si e levou dentro de si o eu de todos os homens. Toda a sua vida, sua ação e sua morte foram “ vicariedade” . Nele realizou-se aquilo que devem ser a vida, a ação e o sofrimento dos homens. . . E, uma vez que Cristo é vida, qualquer vida é determinada por ele a ser ‘vicariedade’ ” 38. Precisando ainda mais o conceito, Bonhoeffer diz que a esta “ ação vicária” consiste “ na doação total da própria vida pelos outros” . Ela se exerce antes de mais nada em relação aos homens, porém não só a eles, as coisas também são seu objeto e, com sua obra, Jesus endereçou novamente o mundo das coisas e dos valores para o homem, como fora estabelecido na Criação; desse modo, restituiu-lhes aquela autêntica profanidade que lhes é própria 39. Chegando a esse ponto, não seria ocioso observar que no princí­ pio da “ vicariedade” é que se baseia o desenvolvimento da doutrina de Bonhoeffer sobre a secularização; assim esta tem em nosso teó­ logo uma base cristológica muito mais sólida do que a filantropia de Jesus sobre a qual se fundam habitualmente os “ teólogos da morte de D eus” , valendo-se arbitrariamente da autoridade de Bonhoeffer. Uma vez conhecido quem é Cristo para nosso teólogo, é fácil estabelecer as normas éticas eascéticas que devem regular a vida cristã, normas de excelso nível que nada têm a ver com o secularismo vulgar e o humanismo complacente com que as confundiram mui­ tos divulgadores apressados do pensamento bonhoefferiano. Infeliz­ mente, temos muito pouco espaço à nossa disposição para fazer uma exposição adequada dessas normas. Por isso, nos permitimos convidar o leitor a tomar conhecimento delas diretamente, sobretudo através da leitura daquela admirável obra-prima que é Nachfolge. O ponto de partida é o fato de que o cristão faz parte do próprio Cristo, aliás, é o próprio Cristo, através do seu Corpo místico que é a Igre ja40. Deduz desse fato a conseqüência de que o cristão deve reproduzir em si a imagem de C risto41. Ele deve imitar Cristo, deve se con­ formar a e le 42. Imitar Cristo “ significa aderir só a ele, imediatamente” 37 3S 39 40 41 42

Ibid., pp. 140-141. Ibid., p. 239. Ibid., pp. 239-240. Nachfolge, pp. 207-220. Ibid., pp. 247-254. Ethik, pp. 85-91.


e totalmente43. Imitá-lo totalmente significa reproduzi-lo em todas as fases de sua vida, na encarnação, na crucifixão e na ressurreição 44. Na vida presente, entretanto, o discípulo deve exprimir sobretudo a encarnação e a crucifixão, porque Jesus foi encarnado e crucificado ao máximo sobre a terra. Como Cristo encarnado, o cristão não deve ser um monge, um se­ gregado, um estranho em relação ao mundo, mas sim viver no mundo, penetrar no mundo, acolher toda a realidade mundana 45. Como Cristo crucificado, o cristão é sobretudo o homem do sofri­ mento, da cruz, do martírio 4á, É certo que o cristão possui a graça, mas esta não o exime do sacrifício e das boas ações 47, porque a graça de Cristo é uma “ graça que custa” e não uma graça “ barata” 48. Enfim, como seu Modelo, o cristão deve exercer uma função “ vicária” em relação aos outros homens e ao m undo49.

VI. A IG R E JA E A SECULARIZAÇÃO Nas páginas precedentes, fizemos freqüentes referências ao tema da secularização. Com efeito, já foram enunciadas todas as razões teológicas nas quais Bonhoeffer baseia essa doutrina tão famosa e controvertida. Vimos que para ele a secularização é uma conseqüência lógica do princípio que regula as relações entre último e penúltimo, e que é uma função da “ vicariedade ” . Indicamos também algumas conseqüências da secularização: a) o dever da teologia de reexprimir em termos seculares a mensagem cristã; b ) os empenhos que a se­ cularização requer do cristão. Passemos agora a considerar os motivos históricos que, segundo nosso teólogo, conduziram à secularização. E depois veremos o seu alcance no que se refere à vida da Igreja em nossa época. Num capítulo de Ethik, traça uma vigorosa síntese da questão da secularização. Segundo ele, tanto nos países católicos como nos protestantes, sua origem remonta aos tempos da Reforma. “ Esta é ce­ lebrada como a emancipação do homem na consciência, na razão e na cultura e como a justificação do secular enquanto tal. A fé bíblica dos Reformadores em Deus afastou-o do mundo. Preparou-se de tal forma o terreno para o florescimento das ciências matemáticas e experimen­ tais que, ao passo que os cientistas dos séculos X V I e X V II ainda eram

43 Nachfolge, p. 96. 44 Ethik, pp. 139-142; Nachfolge, pp. 281-282. 45 Ethik, pp. 208-212. 46 Nachfolge, pp. 61ss, 213ss, 280. 47 Ibid., p. 272. 48 A propósito disso, cf. o maravilhoso capítulo sobre a distinção entre “graça que custa” e “graça barata”, ibid., pp. 13-27. 49 Ethik, pp. 218ss.


crentes, quando a fé em Deus decaiu, restou apenas um mundo racio­ nalizado e mecanizado ” 50 “ A razão emancipada conquistou o domínio do mundo, o que levou ao triunfo da ciência técnica. . . Um dos re­ sultados da emancipação da razão foi a descoberta dos Direitos do Homem. Descobriu-se o seu fundamento no direito inato que todo homem tem à liberdade, na igualdade de todos os homens perante a lei, no vínculo fraterno que une todos aqueles que possuem traços humanos. Em virtude de um direito eterno que está implícito em sua natureza, o homem desvinculou-se de qualquer coerção repressiva, da tutela da Igreja e do Estado e da opressão sócio-econômica. Recla­ mou para si o direito à dignidade humana, ao livre desenvolvimento cultural e ao reconhecimento de suas próprias conquistas. Passou a ver no vizinho um irmão ou um inimigo dos direitos do homem. Despotismo centralizador e absolutista, tirania intelectual e social, preconceito e privilégio de classe, pretensões de domínio por parte da Igreja — tudo isso foi derrocado pelo golpe desse assalto. Em conseqüência, desenvolveram-se o humanismo e o idealismo ale­ mão” 31 e mais tarde o ateísmo. “ A unidade que a Revolução Fran­ cesa levou à Europa é, assim, a impiedade ocidental, completamente diversa do ateísmo de alguns pensadores gregos, indianos, chineses e ocidentais. Não é a negação teórica da existência de Deus. M,as é também uma religião de hostilidade a Deus. Aí está a caracterís­ tica do ateísmo ocidental. Ele não pode desfazer-se do seu passado. Não pode ser essencialmente senão uma religião. Por isso é que o olho humano é tão desesperadamente ímpio. A impiedade ocidental se estende da religião do Bolchevismo à religião das Igrejas cristãs. Particularmente na Alemanha e nas nações anglo-saxônicas, trata-se de uma impiedade marcadamente cristã. Sob a forma de todos os cristianismos possíveis, sejam nacionalistas ou socialistas, racionalistas ou místicos, ela se rebela contra o Deus da‘ Bíblia, contra Cristo. O seu Deus é o novo Homem, nas feições do Bolchevismo ou do Cristianismo” 52. Portanto, prossegue Bonhoeffer, seria um erro grosseiro identificar o ateísmo com a aversão à Igreja: o ateís­ mo é um traço essencial do homem moderno, que, depois das con­ quistas da ciência e da técnica, não pode mais ser um homem “ reli­ gioso” 53. Nas questões relativas à ciência, à arte, à ética e até mesmo à vida do espírito, o homem moderno “ aprendeu a enfrentar qualquer problema, mesmo os importantes, sem recorrer à hipótese da existência e da intervenção de D eus” 54. Já se tornou adulto e não necessita mais dele.

30 Ibid., p. 102. 51 Ibid., pp. 103-104. 52 Ibid., pp. 108-109. 53 Ibid., pp. 109ss. 34 Leiters and Papers

from Prison,

p. 215.


Nessa nova situação, contudo, de que modo se deve conceber as relações entre a Igreja e o mundo e em que bases deve-se colocar hoje a pregação do Evangelho? No que se refere à primeira questão, vimos que Bonhoeffer repele energicamente a teoria das duas esferas, que atribui à Igreja e ao mundo duas zonas separadas da realidade, como também vimos que ele propõe uma sua solução ao problema com a doutrina do último e do penúltimo, na qual o último desenvolve uma “ ação vicá­ ria” em relação ao penúltimo. Sendo assim, as realidades terrestres são necessariamente ligadas à Igreja e a ela subordinadas, sem que isso cause nenhum prejuízo à sua consistência e autonomia. Pelo contrário, dado que a Igreja exerce em relação a elas uma função “ vicária” , é ela que deve sacrificar parte de suas prerrogativas: deve renunciar à sua forma divina e assumir uma forma totalmente huma­ na e mundana, como fez Jesus 55. Por isso é que a Igreja se encon­ tra totalmente encerrada no mundo. Não há um espaço especial re­ servado para ela fora do mundo; ela não possui uma morada privile­ giada extramundana; não há uma esfera isolada da realidade que per­ tença somente a ela. Igreja e mundo constituem uma unidade indis­ solúvel. Mesmo permanecendo essencialmente distinta, a Igreja encon­ tra-se tão submersa no mundo que não há possibilidade de que algum de seus elementos fique de fora 3á. Do princípio da função “ vicária” , Bonhoeffer extrai a conse­ qüência de que a Igreja não deve buscar a si mesma, não deve se preocupar com sua própria consolidação nem com sua própria defesa, mas sim deve se dedicar totalmente ao mundo. Não deve salvar a si mesma, mas ao mundo 57. Quanto à segunda questão, isto é, como colocar hoje a pregação do Evangelho, que é a questão que mais contribuiu para tornar famo­ so o nosso teólogo, a resposta que ele lhe dá é que já se tornou absurdo colocar a pregação sob uma base religiosa, como se fazia no passado. Essa colocação já não se sustenta mais, porque na experiência do homem do século X X não há mais solicitações de ordem religiosa a invocar em favor do Evangelho. É certo que a experiência ainda coloca o homem diante de problemas difíceis, porém ele não perde as esperanças de resolvê-los com seus próprios meios, sem recorrer a um Ser superior 58. Por isso, se quiser conservar a eficácia de sua pregação da men­ sagem cristã, a Igreja não deve mais propô-la em termos religiosos, mas sim deve apresentá-la em sua mais pura essência. 55 Etbik, pp. 215ss. Ibid., pp. 208ss, 376ss (nessas páginas, Bonhoeffer apresenta um detalhado pro­ jeto de solução), A questão das relações entre Igreja e mundo é um tema ao qual retorna freqüentemente também em Nachfolge, particularmente nas pp, 147-150, 199ss e 224-229. 37 Ethik, pp. 238ss; Nachfolge, pp. 216ss. Cf. também a conferência intitulada Dein Reich Komme, reimpressa em Hamburgo em 1957. 5* Letters and Papers from Prison, pp. 215ss.

56


Mas em que consiste, para Bonhoeffer, a pregação do Evangelho em sua “ pura essência” ? Na seção sobre a natureza e as funções da teologia, vimos que provavelmente ela consiste no testemunho, em fazer ver ao mundo o que significa sermos cristãos, isto é, seguidores de Cristo. Alguns poderão considerar discutível essa interpretação59. Não lhes tiramos a razão, porque é uma solução que silencia tanto a teolo­ gia como a pregação e que reduz o anúncio do Evangelho apenas ao bom exemplo. No entanto, o que aqui me compete, mais do que resol­ ver essa questão, é retificar a interpretação que se dá amiúde à doutri­ na de Bonhoeffer sobre a secularização. Muitos viram nela uma anu­ lação das afirmações mais essenciais da fé a respeito da transcen­ dência de Deus e uma aceitação conformada do naturalismo, do huma­ nismo e do “ secularismo ” . Ora, essa interpretação não encontra nenhuma confirmação nos es­ critos de Bonhoeffer. Pelo contrário, o que encontramos em todas as suas obras é uma condenação, que não poderia ter sido mais severa, de qualquer humanismo e secularismo. Em Nachfolge, podemos ler: “ Que o Cristão permaneça no mun­ do, mas não pela bondade da criação ou por sua responsabilidade em relação ao curso do mundo, mas por amor ao Corpo de Cristo encarnado e por amor à Igreja. Que permaneça no mundo para empenhar-se no ataque frontal contra ele e que viva a vida de sua vocação secular para mostrar-se ainda mais como um estrangeiro neste mundo” 60. “ Por causa de sua santificação por meio do mistério do Espírito Santo, a Igreja está sempre em guerra para não perder o seu mistério; ela combate contra o mundo para impedir que ele se tor­ ne a Igreja e para impedir que a Igreja se torne o mundo. . . A sepa­ ração entre a Igreja e o mundo é a cruzada que a Igreja combate em defesa do santuário de Deus nesta terra” 61. Em Ethik, Bonhoeffer afirma que “ o caminho de Jesus Cristo e, conseqüentemente, também o caminho do pensamento cristão não vão do mundo a Deus, mas sim de Deus ao mundo. O que significa que a essência do Evangelho não está na solução dos problemas huma­ nos e que a solução dos problemas humanos não constitui a função 59 Há de fato alguns textos que parecem sugerir uma solução diversa. De qualquer maneira, Bonhoeffer propõe um novo tipo de pregação, que se baseia muito mais sobre as virtudes, a força e as capacidades do homem do que sobre a sua fraqueza, sua insu­ ficiência, seus limites, sua dor e sua morte. “Gostaria de falar de Deus não à periferia da vida, mas ao seu centro, não na fraqueza, mas na força, e por isso não no sofri­ mento e na morte do homem, mas na sua vida e prosperidade. Na periferia, parece-me ser melhor ficar quieto e deixar os problemas como eles são. . . A Igreja não está lá onde as capacidades humanas decaem, na periferia, mas sim no centro do povoado” (Ibid., p. 124). E mais adiante diz ainda que é preciso encontrar Deus naquilo que fazemos e não naquilo que não conseguimos fazer, nos problemas que resolvemos e não naqueles que ainda temos que resolver; “ devemos encontrá-lo no centro da vida, na vida e não só na morte, na saúde e no vigor e não só na enfermidade, na atividade e não só no pecado” (Ibid., p. 143). 60 Nachfolge, p. 238. 61 Ibid., p. 255.


essencial da Igreja. Obviamente, daí não se segue que a Igreja não tenha nenhuma função nesse terreno. Mas só podemos compreender qual é a sua verdadeira função quando encontramos o ponto de par­ tida justo. A palavra da Igreja ao mundo não pode ser outra coisa que a palavra de Deus ao mundo. Essa palavra é Jesus Cristo e a sal­ vação em seu nome. É em Jesus Cristo que se define a relação de Deus com o mundo. Nós não conhecemos nenhuma relação de Deus com o mundo senão através de Jesus Cristo. Por sua vez, com efeito, a Igre­ ja também não tem com o mundo outra relação senão através de Jesus Cristo. . . A palavra da Igreja ao mundo é a palavra da Encarnação de Deus, do amor de Deus pelo mundo no envio do seu Filho e do Juízo de Deus sobre a incredulidade. A palavra da Igreja é chamado à conversão, é chamado à fé no amor de Deus em Cristo, é chamado à preparação da segunda vinda de Cristo e ao futuro reino de Deus, É, portanto, a palavra de redenção para toda a humanidade” 62. Por fim, em Widerstand und Ergebung, Bonhoeffer demonstra a diferença entre os crentes e não-crentes no fato de que os primei­ ros colocam-se entre aqueles que participam dos sofrimentos de Deus. Eles estão entre aqueles que respondem afirmativamente ao pedido de Jesus no Getsêmani de vigiar por uma hora. Quanto à Igreja, assevera que “ ela deve poder dizer a todos os homens, qualquer que seja a sua ocupação, o que significa viver em Cristo, existir pelos outros. . . Deve falar da moderação, da pureza, da confiança, da lealdade, da firmeza, da paciência, da disciplina, da humildade, da mo­ déstia, Não deve subestimar a importância do bom exemplo, que tem sua origem na humanidade de Jesus Cristo e que é tão importante no ensinamento de são Paulo. Não são as argumentações abstratas, mas sim o exemplo concreto, que dão ênfase e força à sua palavra” 63. Concluindo, a secularização nunca é entendida por Bonhoeffer como uma rendição complacente às concepções “ secularistas ” e atéias do homem moderno; não é um artifício para liquidar a Igreja e a teo­ logia em favor do homem e do mundo, mas sim uma nova metodolo­ gia para tornar inteligível e eficaz a comunicação do Evangelho em nosso século. V II. AVALIAÇÃO Sobre a secularização, que é a questão crucial da teologia de Bonhoeffer, aquela em que seu pensamento pode ser mais facilmente deformado, já exprimimos uma interpretação em que está implícito um juízo substancialmente positivo. Segundo nossa interpretação, Bonhoeffer propõe o abandono das técnicas tradicionais de pregação e da teologia que, em seu enten­ « Ethik,

63

pp. 378-379.

Letters and Papers jrom Prison,

pp. 261ss.


der, não dizem mais nada e, mais, até ofendem a mentalidade moder­ na, uma mentalidade secular, isto é, “ não-religiosa ” . Essas técnicas são as que baseiam o anúncio do Evangelho na religião. Para Bonhoeffer, o abandono da “ religião” significa duas coi­ sas: a) a recusa a identificar o cristianismo com a religião, como tinham feito os teólogos liberais; b) a renúncia a apelar para a fra­ queza, para a contingência e para os limites do homem, a fim de fazê-lo aceitar o evangelho. Isso não significa em absoluto a aceitação de um horizontalismo vulgar e não significa o abandono da religião enquanto tal. Seu ataque à religião não visa a sua supressão, mas sim a sua restauração. Ele não quer mais uma “ religião tapa-buracos” , mas sim uma religião integral, que atinja todo o homem em todas as suas manifestações. O Deus da “ religião” que ele repudia não é o Deus da Bíblia, o Deus do Antigo e do Novo Testamentos, mas sim o Deus dos filósofos e dos teístas, aquele que ele chama o Deus da “ metafísica” , o grande arquiteto do universo; é o Deus que faze­ mos intervir quando não sabemos mais a quem nos dirigir, o Deus que é chamado para consertar as insuficiências e os defeitos do homem. Já a expressão do cristianismo em linguagem secular, para nosso teólogo, significa anunciar o Evangelho ressaltando aquilo que pode­ mos chamar de “ solicitações religiosas positivas” inseridas no homem e no mundo, vale dizer, a beleza e a ordem do mundo, a perfeição, a virtude, o valor, a força do homem: “ Gostaria de falar de Deus não na fraqueza, mas na força, não a propósito da morte e do mal, mas do bem e da vida que há no homem. . . ” Se essa nossa interpretação é correta, a tese bonhoefferiana da secularização conta em ampla escala com o nosso consentimento. Pode-se estar de acordo com Bonhoeffer afirmando que, na apre­ sentação atual do Evangelho, é oportuno acentuar aspectos da reli­ giosidade diversos daqueles que se acentuava no passado. Hoje talvez não convenha mais apelar para “ solicitações religiosas negativas” , ou seja, baseadas na contingência e na fraqueza do homem, porque o homem moderno não está mais convencido de sua contingência e de sua fraqueza, mas sim persuadido de estar em condições de resol­ ver sozinho seus problemas; os apelos religiosos baseados na contin­ gência podem parecer ao homem moderno golpes baixos, sofismas ba­ seados na ignorância. Para o homem “ que se tornou adulto” , prova­ velmente a metodologia mais adequada, como afirma Bonhoeffer, seja aquela que se baseia nas “ solicitações religiosas positivas” . Utilizando a terminologia de são Tomás, poderíamos dizer que hoje o Quinto Ca­ minho (baseado na ordem e na perfeição das coisas) é preferível aos primeiros três (que se baseiam na contingência). Essa convicção foi compartilhada também pelo Concílio Vaticano II, que, da mensagem cristã, evidenciou justamente a jubilosa aceita­ ção das realidades terrestres e a ativa participação no desenvolvimento do mundo.


Resolvida a questão da secularização, passemos agora brevemen­ te em revista os outros aspectos positivos e negativos do pensamento do teólogo de Wroclaw. Entre os inúmeros aspectos positivos, recordamos a doutrina so­ bre as relações entre natureza e graça, para as quais o nosso teólogo encontrou uma fórmula feliz no par “ último-penúltimo ” . A dou­ trina bonhoefferiana supera ao mesmo tempo tanto o verticalismo barthiano, que só tem lugar para o último e nada concede ao penúltimo, como o horizontalismo da teologia liberal, que só tutela os direitos do penúltimo, sacrificando os do último. Nessa questão, sem sabê-lo, Bonhoeffer coloca-se quase integralmente na posição católica, à qual são Tomás deu expressão através da terminologia da causalidade prin­ cipal (ou primária ou última) e da causalidade secundária (ou pe­ núltima ). Restituindo ao penúltimo sua consistência e validade, Bonhoeffer recuperou um conceito importantíssimo que a teologia protestante perdera desde o início, o conceito de “ natural” , indispensável tanto para a teologia da graça como para a teologia das realidades terrestres. Outros pontos nos quais o teólogo católico sente-se como se estivesse em sua própria casa são: a visão cristocêntrica, a doutrina do Cristo total (encarnado, morto e ressuscitado), o relevo dado ao aspecto histórico na pessoa de Cristo, a generosa imitação de Cristo até a cruz, a graça que custa, as boas ações, a participação na re­ denção, a função vicária, a assunção de toda a realidade em Cristo, a identificação da Igreja e do cristão com os problemas do mundo, a solicitude da Igreja para com a salvação do mundo. No pensamento de Bonhoeffer, porém, há alguns aspectos sobre os quais não é possível deixar de fazer algumas reservas. As mais graves dizem respeito às questões não solucionadas. Por exemplo, que significado tem a escatologia numa interpretação secular, não-religiosa, da fé cristã? Que lugar ocupa o problema do mal? Em que consiste o mal? Como se deve conceber a luta entre a Igreja e o mundo? Há, por fim, uma tese inaceitável, à qual, de resto, nem mesmo Bonhoeffer pôde se ater: a tese da redução da pregação e da teologia ao simples testemunho. Estamos de acordo com a suprema impor­ tância do testemunho. Sem ele, são estéreis toda pregação e toda teologia. Porém o testemunho por si só não basta; aliás, é absoluta­ mente impossível. De fato, também é necessário saber aquilo que se deve praticar; e, para sabê-lo, é preciso aprendê-lo; e, para aprendê-lo, é preciso uma formulação. Assim, mesmo na era secular, a teologia continua sendo um instrumento indispensável do Evangelho.

Nota bibliográfica. — Temos, antes de mais nada, os cinco volumes de ensaios coligidos sob o título D ie M ündige Welt-, Dem Andenken Dietrich Bonhoeffers, Keiser, Muni­

que, 1955-1966. Há também muitos outros estudos, dentre os quais destacamos: J. D. Westminster, Filadélfia, 1960; I d e m , Preface to Bo-

G o d se y , The Theology of D. B.,


S.C.M. Press, Londres, 1963; G . E b e lin g , “ D ie ‘Nicht-religiöse Interpretation Biblischer Begriffe’ ” em Zeit­ schrift für Theologie und Kirche, 1955, pp. 296-360; K. S c h u lz e , “ H aupt Linien der Bonhoeffer-Interpretation” em Evangelische Theologie, pp. 681-700; T. C. O den, “A New Look at Bonhoeffer” em Dialog, 1966, pp. 98-111; R. M a r lé , “Un Témoin de l’Église Evangélique: Dietrich Bonhoeffer” em Recherches de Science Religieuse, 1965, pp. 44-76; A. D um as, Une Théologie de la Realité: D. Bonhoeffer, Labor et Fides, Genebra, 1968 (recensão na Ecumenical Review, 1969, pp. 175-176); J. A. P h i l l ip s , Christ for us in the Theology of D. B., H arper & Row, N ova Y ork, 1967; M. Bosanq u e t, Vie et Mort de D, B., Casterman, Tournai, 1970; J. W eissb ach , Christologie und Ethik in D. Bonhoeffer, Kaiser, Munique, 1970; G . H o u rd in , Bonhoeffer. Une Église pour Demain, Cerf, Paris, 1971; E . F e il, Die Theologie Dietrich Bonhoeffers, Kaiser, Munique, 1971; P . A. T u r c o t t e , Réconciliation et Libération. Théologie de la Commu­ nauté chez D. Bonhoeffer, Montreal, 1972; T . R. P e te r s , Die Präsenz des Politischen in der Theologie D. Bonhoeffers, Kaiser, Munique, 1976; I. M a n c in i, Bonhoeffer, Vallecchi, Florença, 1969; R. M a r lé , D. B., Testimonio di Cristo tra i suoi Fratelli, Morcelliana, Bréscia, 1968; W. D . Z im m erm an n , H o Conosciuto D. B., Queriniana, Bréscia, 1970; G . T o u r n , Bonhoeffer e la Chiesa sotto il Nazismo, Claudiana, Turim, 1965; Dossier Bonhoeffer, organizado por R. G i b e lli n i , Queriniana, Brescia, 1971; U. P e r o n e , Storia e Ontologia. Saggi sulla Teologia di Bonhoeffer, Studium, Roma, 1976, nhoeffer, idem, 1965; M. M a rty , The Place of Bonboeffer,

7 - O s grandes te ó lo g o s ...

- Vol. 2


JÜRGEN MOLTMANN E AS TEOLOGIAS DA CRUZ E DA ESPERANÇA

Jürgen Moltmann talvez seja a figura mais representativa da teologia protestante contemporânea, depois do desaparecimento dos grandes líderes de escolas: Barth, Cullmann, Tillich e Bonhoeffer. Seus livros são traduzidos em muitas línguas, fazendo rapidamente a volta ao mundo. A Moltmann pertence a paternidade de dois movimentos teo­ lógicos que foram e continuam sendo amplamente seguidos: a teolo­ gia da esperança e a teologia da cruz. Sensível às exigências culturais de nossa época, mas sempre obediente antes de mais nada às exigên­ cias da Palavra, ele procurou fazer a mensagem de Cristo passar pela faixa de onda primeiro das expectativas utópicas e depois das exigên­ cias críticas e contestadoras do homem contemporâneo.

I. VIDA

Jürgen Moltmann nasceu em 18 de abril de 1926 em Hamburgo. Com dezessete anos, foi convocado pelo exército alemão. Mas sua carreira militar, como ele mesmo confessa, “ foi breve e sem glória” : depois de apenas seis meses, foi feito prisioneiro pelos ingleses e levado ao campo de concentração de Northon-Camp, na Inglaterra. Naquele campo, entre os prisioneiros, estavam também alguns pro­ fessores de teologia, que se dispunham a ministrar lições aos seus companheiros de desventura. Foi lá que Moltmann iniciou seus estu­ dos teológicos, Em 1948, voltou à Alemanha, prosseguindo seus estu­ dos em Gõttingen, até 1952, ano em que os concluiu. Foram seus professores O. Weber, H . J. Iwand e E. Wolf. De 1953 a 1958, desenvolveu atividades pastorais em Bremen, na qualidade de pastor e assistente dos estudantes. Conseguida a livre docência em História dos Dogmas e Teologia Sistemática em 1957, ensinou na “ Kirchliche Hochschule” de Wuppertal de 1958 a 1963, ano em que foi chamado como professor da cátedra de Teologia Sis­ temática da Universidade de Bonn. Desde 1957 é professor de Teo­ logia Sistemática na Universidade de Tübingen e em 1967-1968 foi


também visiting professor na “ Due University” (Estados Unidos). É casado e tem quatro filhos.

II. OBRAS É muito vasta a produção teológica de Jürgen Moltmann. Citare­ mos aqui apenas os títulos de suas obras mais importantes: Predestination und Perseveranz. Geschichte und Bedeutung der Reformierten Lehre “De Perseverantia Sanctorum”, Neukirchener Ver­ lag, Neukirchen, 1961. Nessa obra, ele estuda a história da doutrina da perseverança de Agostinho-Calvino até Schleiermacher e, através da reconstrução histórica, evidência uma tese que ficará como um pon­ to firme e central do seu pensamento: a tese segundo a qual a doutri­ na tradicional da perseverança foi telecomandada, por um lado, pelo esquecimento da escatologia e, por outro, por uma concepção grega, ou, mais precisamente, “ parmenídia” da divindade. Theologie der Hoffnung, 9- edição, Kaiser Verlag, Munique, 1973 (1- edição, 1964). Trata-se da famosa obra em que Moltmann, propõe uma nova interpretação da mensagem cristã em termos escatológicos. Respondendo a vários estímulos provenientes da filosofia (a filosofia da esperança de E. Bloch), da exegese bíblica (que tinha redescoberto a dimensão escatológica da Palavra de Deus) e da situa­ ção sócio-política (o boom econômico da década de sessenta), Molt­ mann deixou de lado as várias interpretações existencialistas que Bult­ mann, Tillich, Barth e Brunner haviam dado do cristianismo e propôs uma interpretação em que os aspectos sociais, políticos e escatológicos adquirem grande relevo. Perspecktiven der Theologie, Kaiser, Munique, 1968: é uma co­ letânea de ensaios de teologia. Umkehr zur Zukunft, Siebenstern Taschenbuch, Munique, 1970: neste livro, são retomados de forma mais simples e com o objetivo de divulgação os temas centrais da teologia da esperança, insistindo no conceito de que a esperança cristã é uma esperança criativa: “ Nós não somos só os intérpretes do futuro, mas já os colaboradores do futu­ ro, cuja força, na esperança como na realização, é D eus” . E, mais adiante: “ Depois da ética humanista da esperança em voga no século X I X e o seu declínio graças às catástrofes do século X X , muitos de­ senvolveram uma ética da fé na Europa e nos Estados Unidos. Isso era justo, mas parece-me que hoje nós devemos desenvolver uma nova ética da esperança que nasce da fé. E, com Metz, chamo-a teologia política para fazer compreender que a ética não é um apêndice da dogmática e, portanto, não é só uma conseqüência da fé, mas que a própria fé tem um contexto messiânico, no qual adquire todo o seu significado, e que a própria teologia está sempre numa dimensão po­ lítica que a torna relevante” .


Die Erste Freigelassenen der Schöpfung, Kaiser, Munique, 1971. Em diálogo com Harvey Cox, Moltmann desenvolve alguns temas da teologia “ do jogo”, evidenciando os aspectos lúdicos da história da salvação. Mensch, Kaiser, Munique, 1971. É um breve ensaio de antro­ pologia, tanto filosófica como teológica. Der Gekreuzte Gott, Kaiser, Munique, 1972. Corrigindo os as­ pectos excessivamente otimistas de sua teologia da esperança à luz da mensagem da cruz, Moltmann desenvolve uma figura mais equi­ librada da pessoa de Cristo e de sua mensagem. Agora, porém, a cruz parece obscurecer a mensagem escatológica da ressurreição. Kirche in der Kraft des Geistes. Ein Beitrag zur Messianischen Ekklesiologie, Kaiser, Munique, 1975. Na intenção do autor, esse livro constitui uma trilogia com Theologie der Hoffnung e Der Ge­ kreuzte Gott. As três obras têm por tema as três festividades máximas do cristianismo, Páscoa, Sexta-feira Santa e Pentecostes, que, como diz o próprio Moltmann, “ estão relacionadas entre si mais ou menos como essas três festividades estão relacionadas entre elas” . O tema es­ pecífico de Kirche in der Kraft des Geistes são as propriedades, as funções e os ministérios da Igreja l.

III. C R ISTO LO G IA Para o cristão e, portanto, também para o teólogo, Cristo é Judo. Assim, também para Moltmann, o eixo central da reflexão teológica é constituído pela figura de Cristo. E ele trata sobretudo de Cristo nos primeiros dois ensaios de sua trilogia, Theologie der Hoffnung e Der Gekreuzte Gott. De fato, em nenhum desses escri­ tos ele desenvolve uma cristologia sistemática. Mas propõe uma leitura geral da mensagem cristã a partir dos dois ministérios principais da vida de Cristo, a crucifixão e a ressurreição. E mais: o segundo ensaio não foi programado juntamente com o primeiro, mas sim con­ cedido num segundo momento, depois que Moltmann se deu conta dos limites, das carências e dos mal-entendidos do primeiro, ou seja, das interpretações aberrantes a que ele dera lugar. A gênese da in­ terpretação “ estaurológica ” e suas relações com a interpretação esca­ tológica foram explicadas pelo próprio Moltmann numa entrevista à televisão italiana da seguinte maneira: “ Em 1967 e 1968, fiquei um ano nos Estados Unidos e pude verificar como a teologia da espe­ rança era considerada um suporte do otimismo norte-americano, ao passo que não era certo esse seu significado. Assim, prometi aos meus amigos que se algum dia voltasse aos Estados Unidos falaria somente 1 Para uma bibliografia completa, cf. R. G i b e l l i n i , La Teologia di J. Moltmann, Queriniana, Bréscia, 1975.


da cruz e não da esperança. Foi disso que nasceu a teologia da cruz. Não é uma mudança. Eu entendo as relações deste modo: a teologia da esperança baseia-se na ressurreição de Cristo crucificado, vale di­ zer, na esperança cristã; a cruz, que é parte de todo o nosso sofri­ mento, dos nossos desprazeres e das nossas frustrações, mostra como é profunda essa esperança. Assim, em Der Gekreuzte Gott, limitei­ -me a esclarecer um outro aspecto: não a ressurreição do Cristo cruci­ ficado, mas a crucifixão do Ressuscitado. E foi isso o que me levou à teologia da cruz ou do sofrimento, a qual, por sua vez, levou-me a uma teologia da trindade” . Em Theologie der Hoffnung, interpretando a figura de Cristo em termos escatológicos, Moltmann considera não só conseguir dialo­ gar com o homem do nosso tempo, que é um homem animado de enormes esperanças, mas também corrigir uma grave distorção que a Igreja antiga realizou em relação à figura de Cristo e à sua mensagem, quando as interpretou à íuz da filosofia grega, uma filosofia que possuia uma concepção naturalista e “ epifânica” do divino e não uma concepção histórica e escatológica. Ora, na opinião de Moltmann, somente um quadro escatológico, que é o que condiz com a esperança, corresponde justamente à história de Cristo e à sua mensagem. Utili­ zando a filosofia grega, a teologia cristã leu todos os mistérios de Cristo em termos “ epifânicos” . E eis como, segundo nosso teólogo, essa leitura influiu sobre a interpretação dos mistérios da vida de Cristo: “ A ressurreição de Jesus foi entendida como elevação e entro­ nização, sendo colocada em relação com a encarnação. Com efeito, a humilhação da cruz pode ser entendida como realização da encarnação, por meio da qual ele coloca tudo sob o seu domínio, mas dessa forma a cruz é reduzida a um estágio intermediário do seu caminho para o domínio celeste. A cruz então não é mais a marca permanente do seu domínio sobre o mundo até o eskaton conclusivo. ( . . . ) Desse modo, a história perde a sua orientação escatológica. Não é mais o campo em que os homens sofrem e alimentam esperanças na espera do futuro de Cristo para o mundo, mas sim o campo em que se revela o domínio celeste de Cristo através da Igreja e dos sacramentos. No lugar do escatológico ‘ainda não’ ( noch nicht) entra o cultual ‘so­ mente agora’ ( nur noch), e isso torna-se o traço característico da his­ tória post Chris tum" 2. Enquanto a cristologia tradicional está voltada sobretudo para o passado, a cristologia de J. Moltmann está essencialmente orientada para o futuro: ela fala de Jesus e do seu futuro. “ O modo em que a teologia cristã fala de Cristo não pode ser o do Logos grego, nem o das proposições baseadas na experiência, mas somente o das pala­ vras de esperança e das promessas de futuro. Todos os predicados dizem não só que Cristo foi e é no presente, mas também implicam uma afirmação sobre quem ele será e o que se deve esperar dele. To­ 2 J. M o l t m a n n , Theologie der Hoffnung, Munique, 1964, pp. 162-163.


dos dizem: ‘Ele é a nossa esperança’ (cf. Cl 1,27). Anunciando ao mundo o futuro de Cristo com tais promessas, aqueles predicados orientam a fé em Cristo para a esperança no seu futuro ainda por che­ gar” 3. O futuro de Cristo, precisa Moltmann, é um futuro absoluta­ mente surpreendente, qualitativamente “ outro” em relação aos pressu­ postos que a história produz. Colocado em confronto com aquilo que podemos experimentar agora, ele traz algo de radicalmente novo. Não obstante, não está completamente separado da realidade que experi­ mentamos e que vivemos atualmente, porque, como futuro “ virtual”, ele influi sobre o presente, despertando esperanças e suscitando resis­ tências. O futuro de Cristo, portanto, não pode ser uma simples “ re­ velação” do que ele já é atualmente e daquilo que foi no passado, co­ mo afirmava Barth. “ A esperança cristã espera do futuro de Cristo não só a revelação, mas também o cumprimento final ( . . . ) . Não uma mera repetição e não apenas revelação da história, mas algo que até agora ainda não ocorreu por meio de Cristo. A espera cristã não se volta a nenhum outro a não ser para o Cristo que veio, mas espera dele algo de novo, algo que ainda não aconteceu: espera que se cum­ pra em todos a justiça de Deus que foi prometida por meio de sua ressurreição, espera que se cumpra a senhoria daquele que foi cruci­ ficado, estendendo-se a todas as coisas e prometida em sua glorifica­ ção” 4. Em Der Gekreuzte Gott, sem renunciar à perspectiva escatológica, Jürgen Moltmann efetua uma importante integração, que enrique­ ce notavelmente a sua cristologia, dando grande relevo, além do mis­ tério da ressurreição, também ao mistério da cruz. Essa integração era indispensável, porque a ressurreição não diz respeito a um homem qualquer, mas sim àquele homem que morreu na cruz, Jesus de Nazaré. “ A sua ressurreição caracteriza o Crucificado como Cristo e o seu padecimento e morte como evento de salvação para nós e para muitos. A ressurreição não esvazia a cruz ( ICor 11,17), mas a preenche de escatologia e significado” 5. Com efeito, não é possível dissociar a cruz da ressurreição. O Cristo crucificado não é “ meio Cristo” , ao passo que o Cristo ressuscitado seria a outra metade. “ Trata-se, ao contrá­ rio, de uma mesma pessoa, de uma única história. O Cristo ressus­ citado ê o Jesus histórico e crucificado e vice-versa” 6. Nesse ponto, Moltmann está perfeitamente de acordo com aquele que foi o ensinamento da Igreja de todos os tempos. Já para a Igreja primitiva, não apenas a história da vida e da morte, das pregações e milagres de Jesus eram constituintes de sua realidade, mas também e com igual importância o novum inesperado e indedutível da sua res­ surreição por Deus. “ As recordações que o cristianismo primitivo 3 4 5 6

Ibid., p. 11. Ibid., p. 233. J , M o ltm a n n ,

Ibid., p. 186.

o .c .,

p. 211.


tinham de Jesus eram desde o início caracterizadas pela experiência de sua ressurreição por obra de Deus. Somente por esse motivo é que se recordava de suas palavras e da sua história, interessava-se por ele. E mesmo em nossos dias não existe nenhum outro motivo que justifique o interesse pela pessoa e a história de Jesus de Nazaré, que já passaram do tempo. Se fosse considerado somente como pessoa his­ tórica, ele já estaria esquecido desde há muito, porque a mensagem que anunciou já foi contradita por sua morte na cruz” 7. “ Toda inter­ pretação do sentido de sua morte que não tenha como premissa a sua ressurreição dos mortos é um dado sem esperança, porque incapaz de comunicar aquele novum da vida e da salvação que se prefigurou na sua ressurreição. Cristo morreu não somente na qualidade de vítima de expiação que teria consentido em restabelecer a justiça e recon­ duzir ao seu estado original a criação decaída com o pecado original. Ele morreu ‘por nós’, para nos tornar, ‘mortos’, partícipes de sua nova vida de ressurreição e do seu futuro de vida eterna. Sua ressurreição contém o significado de uma morte na cruz ‘por nós’, porque o Ressuscitado outro não é que o Crucificado. A sua ressurreição dos mortos deve ser compreendida em sua morte ‘por muitos’ ” 8. Nesse ponto, Moltmann ressalta um aspecto muito importante: assim como a cruz e a ressurreição não podem ser separados na pes­ soa de Cristo, da mesma forma elas não podem ser dissociadas em nossa vida. Para ressuscitar com Cristo, devemos participar de sua paixão e de sua crucifixão. Também aqui Moltmann evoca novamente o ensi­ namento da Igreja primitiva. Na Epístola aos colossenses (2 ,6 ss), são Paulo escreve: “ Assim como recebestes a Cristo Jesus como o Se­ nhor, assim nele andai, arraigados nele, sobre ele edificados e apoia­ dos na fé ( . . . ) . Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem, mas pelo desvestimento da vossa natureza carnal: essa é a circuncisão de Cristo. Fostes sepultados com ele no batismo, no qual também com ele ressuscitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos” .

IV. E C L E SIO L O G IA

Kirche in der Kraft des Geistes é a obra mais sistemática de Moltmann. Nela, o autor estuda a Igreja em sua natureza, suas fun­ ções, seus ministérios e suas relações com o mundo e com o Reino de Deus. O ensaio está articulado em sete partes. Na primeira, define a natureza e as funções da eclesiologia, a qual deve ser um entrela­ çamento de quatro dimensões: cristológica, missionária, ecumênica e

' s

lb id ., p. 187. Ibtd., p. 216.


política. “ Hoje, em todos os seus simples aspectos, uma eclesiologia deverá levar em conta pelo menos estas quatro dimensões: a Igreja de Cristo, a Igreja missionária, a Igreja ecumênica e a Igreja política” 9. Moltmann permanece fiel a essas quatro perspectivas ao longo de toda a sua análise, conseguindo ressaltar em todos os temas os aspectos cristológico, missionário, ecumênico e político. Desse modo, Kirche in der Kraft des Geistes apresenta-se como uma prolongada sinfonia, na qual os témas cristológico, missionário, ecumênico e político se entrelaçam e se perseguem continuamente. Mas quais são os objetivos a que Moltmann se propõe nesse ensaio? Os objetivos emergem bastante claramente no curso da análi­ se, sendo enunciados explicitamente também no breve prefácio. Ade­ mais, Moltmann reafirmou-os por ocasião da apresentação à imprensa da tradução italiana da obra. Disse aos jornalistas que, para a maior parte dos fiéis, a Igreja ainda é um supermercado onde se vai para fazer compras relacionadas com a vida religiosa. Ele, porém, quer promover “ uma comunidade eclesial do povo no povo” , uma comuni­ dade na qual o fiel vive continuamente e não apenas ocasionalmente, uma comunidade de fé, esperança e fraternidade que se torna fer­ mento de vida para todo o mundo. Enquanto a eclesiologia do passado, segundo Moltmann, foi ela­ borada sobretudo à luz da tradição e, portanto, dentro de um hori­ zonte estreito, ele se propõe a elaborar uma eclesiologia à luz da vocação da Igreja, que é uma vocação universal. Quer apresentar uma Igreja aberta para todos, mas sobretudo para aqueles que, carregando a pesada madeira da cruz, já se encontram no seguimento de Cristo. No que se refere à difícil questão das relações entre Igreja e Reino de D eus, nosso teólogo-propõe uma solução intermediária en­ tre a solução dos teólogos católicos) que propõem uma identificação imediata das duas realidades, e a solução da maior parte dos teólo­ gos protestantes, que consideram o momento histórico da Igreja como uma passagem ( transitus) para o momento escatológico do Reino de Deus. Com toda uma série de ótimos argumentos, Moltmann mostra que nenhuma dessas propostas é satisfatória: em seu lugar, apresenta uma solução que considero possa ser bem vista também pelos teólo­ gos católicos. Sua tese é que a Igreja é a antecipação, o sinal do Reino de Deus. “ Por reino de Deus, nós entendemos o cumprimento escatológico da senhoria histórico-libertadora de Deus ( . . . ) . Seria unilateral ver a senhoria de Deus somente no seu reino perfeito, co­ mo também geraria muitos equívocos uma equiparação entre reino de Deus e o domínio que Deus exerce atualmente. Em seu reino, Deus reina de modo incontrastado, universal e em toda a clareza” 10. “ Não é possível separá-los metafisicamente, como um aquém e um além, 9 La Chiesa nella Forza dello Spirito, Queriniana, Bréscia, 1976, p. 35. Todas as demais citações desse livro são da tradução italiana. >o Ibid., p. 255.


como algo intramundano e algo externo a este mundo. E também não podem ser reconduzidos pontualmente, no ‘instante escatológico’, à identidade paradoxal. Com sua missão e ressurreição, Jesus trouxe o reino de Deus para a história. O reino, esse futuro escatológico, é uma força que determina o próprio presente” 11. “ A Igreja, na força do Espírito, ainda não é o reino de Deus, mas é certamente a sua anteci­ pação na história. O cristianismo ainda não é a nova humanidade, mas é sem dúvida a sua vanguarda na luta de resistência contra toda clau­ sura de morte, em sua dedicação e representação pelo futuro do ho­ mem. A precariedade messiânica que acompanha a comunidade de Cristo leva a Igreja a se autotranscender além dos limites que a sa­ ciedade e a história lhe impõe ( . . . ) ; a Igreja de Jesus Cristo é povo do reino de D eus” u . Como realidade histórica, a Igreja possui um passado, sente e um futuro. Esclarecendo suas relações com o Reino esMoltmann lançou luz sobre o momento futuro da Igi j )da Igretam por esclarecer o seu passado e o seu presente. Ao ^ o fundaja pertence antes de mais nada a história de &ús \^v£ríW |ade, porque dor da Igreja, mas também pertence a his ' ‘ S. íaN,tfinítária de Deus a Igreja representa o momento principal da' sa história de Deus com o mundo: “ Ela se encontra no ca: interior dos movimencom o mundo e se revela como um e D eus” 13. Já ao presente tos da missão, da reunião e da^expe ( enci ' pirito divino, que, exatamente da Igreja pertence a história s de salvação e nos ministérios, com sua presença vivificante no: constitui a comunidade dos pecadores justificados, daqueles que são libertados por C r is t p ^ ü ^ Jíakem a experiência da salvação evivem dando graças a Dlmsrrvv'— Estu ai \<y o mhdamento da Igreja na pessoa de Cristo, Molt­ mann deseiwMvç em síntese toda a cristologia ( uma cristologia na qual o <j^ÓliçQ\êncontrará egregiamente expressos todos os pontos fundatik" ispâe sua fé no Filho de Deus feito homem) e nela molda myitá/precisão a eclesiologia. Assim, gerada por Cristo, sendo toarão de sua presença no mundo, a Igreja é, como o seu fun­ , uma realidade profética régia, sacerdotal, “ estaurológica”, “ eleuíca”, “ doxológica” , “ pneumática” , “ escatológica”, etc. Se fosse re­ sumir o pensamento de Moltmann, teria que me alongar muito. Por limitar-me-ei „ algumas observações s— —nensões --------lógica e escatológica da Igreja. Fazendo sua a tese de Tromp, von Balthasar e outros teólogos católicos, Moltmann situa a origem da Igreja no crucifixo: Enquan­ to comunidade de Cristo, a Igreja é entendida como Igreja que tem sua origem na cruz, vive sob o signo da cruz e se solidariza com 11 Ibid., p. 258,

12 Ibid., p. 262. 13 Ibid., p. 93.


aqueles que vivem à sombra da cruz” 14. D a origem “ estaurológica” da Igreja, Moltmann deriva claras indicações para a doutrina das rela­ ções da Igreja com o mundo, especialmente com o mundo político e econômico. “ Uma Igreja que, em sua totalidade, nasceu das chagas de Cristo tornar-se-á também, em sua totalidade e com toda a sua exis­ tência e modo de vida, um fermento de destruição da idolatria polí­ tica. Ela tenderá a ‘dessacralizar’ o poder político e a democratizar esse poder político. Como fermento crítico e destrutivo do fetichismo econômico, ela difundirá um novo tipo de relações, marcadas pela liberdade na solidariedade” 15. Baseando-se na dimensão escatológica de Jesus Cristo, que já de­ monstrara com felicidade em Teologia da Esperança, Moltmann mostra que a Igreja não deve ser entendida simplesmente como prolonga­ mento e continuação de Cristo, mas também como antecipação da pessoa escatológica de Cristo 15. Na quarta parte de A Igreja na Força do Espírito, o autor en­ frenta a espinhosa questão da possibilidade de salva_ção forajda Igreja. Ele distingue o horizonte total da salvação do horizonte eclesial. O segundo abrange aqueles que abraçam a fé em Jesus, ao passo que o primeiro abrange Israel, os seguidores das religiões não-cristãs e o mundo inteiro. “ Cristo veio e se sacrificou para reconciliar o mundo inteiro. Ninguém fica excluído. Portanto, nem mesmo a Igreja está fora da salvação que Cristo leva a todos os homens” 17. A Igreja, po­ rém, possui a sua vocação específica: “ a reconciliação dos pagãos com Deus. Ela consiste na missão da esperança no mundo, para que o mundo se converta ao futuro de Deus e com tal conversão se torne livre” 18. Quanto ao delicado problema da função soteriológica das religiões ' não-cristãs, o discurso de Moltmann é bastante sibilino: mas é claro no que diz sobre as relações que a Igreja deve manter com aquelas religiões: as relações devem se inspirar num diálogo franco e num confronto aberto. Mediante o diálogo, a Igreja visa obter “ uma vivi­ ficação carismática dos diversos dons, energias e possibilidades reli­ giosas para o reino de Deus e a libertação dos homens” 19 e para tanto procura “ preparar o tempo messiânico para os povos e traçar a estra­ da que conduz à redenção” , sem nada sacrificar daquilo que as outras religiões e culturas têm de bom, verdadeiro e belo. Na quinta parte, Moltmann desenvolve o aspecto sacramental: a Palasra deJDeus, o batismo, a Ceia e a oração, com base na doutri­ na do Espírito Santo, ou seja, como parte da pneumatologia. Por isso, Moltmann vê os sacramentos no movimento e na presença do Espírito 14 15 16 17 1* 19

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. 124. p. 129. pp. 109ss. p. 209. p. 202. p. 220.


Santo e não ao contrário. As teses mais interessantes e também mais discutíveis dessa parte são as referentes ao batismo. Moltmann é um defensor decidido da renovação da praxe batismal. Não pretende que essa renovação se faça do dia para a noite, de modo drástico e dita­ torial, como nas reformas litúrgicas de outras igrejas, mas na medida em que uma inteligente e acurada ação pastoral tenha predisposto o ambiente para tal. De toda maneira, em sua opinião, o batismo das crianças já passou de época, sendo chegado o momento de introduzir um batismo vocacional. Para quem o recebe e para os membros da comunidade, o batismo deve significar, além da graça, também a von­ tade de viver na libertação de Cristo e de colocar-se a serviço da reconciliação e da libertação do mundo inteiro 20. A sexta parte, dedicada ao estudo dos ministérios e das funções da Igreja, também é elaborada num contexto pneumatológico; os mi­ nistérios e as funções são situados no interior do movimento do E s­ pírito : “ Os ministérios são do Espírito ” 21. Do ponto de vista lingüístico, Moltmann prefere substituir as expressões “ ministérios” ou “ serviços” pela expressão “ funções” . Entretanto, de fato, também se utiliza, sem qualquer escrúpulo, da terminologia tradicional. Permanecendo fiel a uma tese típica do protestantismo, Molt­ mann afirma que “ todos os membros da comunidade messiânica re­ ceberam os dons do Espírito e são, portanto, titulares do ministé­ rio” 22. Mas depois é forçado a reconhecer a necessidade de que, na comunidade, algumas pessoas sejam chamadas a assumir ministérios especiais. Ele considera essenciais para a comunidade quatro manda­ tos ou ministérios: “ 1 ) 0 mandato de anunciar o Evangelho. 2 ) O mandato de batizar e celebrar a ceia do Senhor. 3) O mandato de presidir as assembléias comunitárias. 4 ) O mandato de exercer uma atividade diaconal. O kerygma, a koinoma e a diakonia são essenciais para a comunidade. Assim, a comunidade necessita de pregadores, presbíteros e diáconos” 23. A designação para o exercício dessas fun­ ções especiais é efetuada pela comunidade, mas não é a comunidade que confere aos escolhidos o poder carismático: este vem de Cristo, por meio do Espírito Santo. Moltmann é um crítico severo do fun­ damento simplesmente democrático da dimensão estrutural da Igre­ ja: “ um fundamento democrático do ministério, qualquer que seja o modo de entendê-lo, espelharia indubitavelmente a realidade de um povo, mas não a realidade do povo de Deus. Pressuporia uma espécie de panteísmo do Espírito, conferindo a cada um ‘as mesmas coisas’, mas não ‘aquilo que cabe a cada um’ ” 24. Na parte conclusiva da obra, o autor estuda as quatro caracte­ rísticas essenciais da Igreja, una, santa, católica e apostólica, ressal-

20

Ibid., pp. 316ss. 21 Ib id ., p. 377. 22 Ib id ., p. 387. 23 Ibid., p. 398. 24 Ibid., p. 396.


tando bem o seu fundamento cristológico e “ pneumático” . A Igreja não é una, santa, católica e apostólica por si mesma, mas em relação a Jesus Cristo e mediante a força do Espírito Santo. “ A profissão de fé na Igreja ‘una, santa, católica e apostólica’ é a confissão da senhoria unificadora, santificante, universal e mandante de Cristo. Trata-se, portanto, de proposições de fé. A unidade da Igreja não é em primeiro lugar a unidade de seus membros, mas sim a unidade de Cristo, que age sobre eles em todos os tempos e em todos os lugares ( . . . ) . A santidade da Igreja não é em primeiro lugar a santidade de seus membros ou das cerimônias cultuais, mas sim a santidade daquele Cristo que age sobre os pecadores” 25. Moltmann usa a mesma argumentação em relação à catolicidade e à apostolicidade. Porém faz ver que as características da Igreja não são apenas proposições de fé, mas também proposições de esperança: “ A uni­ dade do povo de Deus e a unidade do gênero humano são promessas proféticas ( . . . ) . A Igreja é santa na medida em que é ‘a comunida­ de dos últimos tempos’ ( . . . ) . O apostolado da Igreja e os apósto­ los também estão indissoluvelmente ligados ao início da era messiâ­ nica. Por fim, a Igreja é católica na medida em que participa da catolicidade do reino futuro ” 26. Nosso teólogo conclui sua estimulante análise das características da Igreja fazendo ver que, além de proposições de fé e de espe­ rança, elas também são proposições de ação: induzem a Igreja a agir — e agir de maneira unificadora, santificante, evangelizadora, pela libertação do mundo. “ Tendo essas propriedades, a Igreja tem uma essência que lhe é dada, prometida e confiada. É com a fé, a esperança e a ação que se delineia no mundo a figura que a Igreja assume na unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade ( . . . ) . Mediante a fé, a esperança e a ação, a Igreja vive na una, san­ ta, católica e apostólica senhoria de Cristo” 27. Desse modo, determinando o significado das características da Igreja, Moltmann também resolve o problema da localização da Igreja. Onde se encontra a Igreja? Afirma justamente que “ a verdadeira Igreja está lá onde Cristo está presente” 28. Mas o que é que nos manifesta a presença de Cristo? Os indícios mais seguros nos são fornecidos pelas características da Igreja, porque, como vimos, é Cristo quem unifica, santifica e envia a Igreja e quem a constitui sacramento de reconciliação para todos. O objetivo que Jürgen Moltmann se propõe em A Igreja na Força do Espírito não é só o de atualizar a eclesiologia, elaborando-a em termos escatológicos, como quer a teologia da esperança, mas também e sobretudo o de renovar a própria Igreja. Segundo ele, a história da humanidade está registrando uma reviravolta decisiva: 25 26 27 28

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.

p. p. p. p.

436. 437. 438. 166.


acabou a época dos nacionalismos e isolamentos e, conseqüentemente, também das estruturas políticas estatais. Já estamos nos encaminhando para uma comunidade mundial, com estruturas políticas democráticas e supranacionais, de tipo “ colegiado” . Assim, se quiser encaminhar junto com os tempos que correm, a Igreja também deve atualizar suas estruturas. Moltmann propõe que se transforme a Igreja de clerical, ministerial e institucional em Igreja carismática. “ A Igreja dos ministros que exercem seus serviços para os leigos deverá transformar-se numa comunidade carismática em que cada indivíduo toma consciência do seu próprio ministério e compreender o seu próprio carisma. Em tal caso, o povo se tornará ‘sujeito’ na Igreja e deixará de ser ‘objeto’ de assistência religiosa” 29. O governo desejado por Cristo ( “ cristocracia” ) “ se exaure no ordena­ mento de uma comunidade carismática baseada na fraternidade” 30. Essa é a substância das propostas de reforma da Igreja feitas por Moltmann. Como devemos interpretá-la e avaliá-la? Observemos antes de mais nada que Moltmann não foi o primeiro a propor que se confira à Igreja uma estrutura carismática ao invés de ministerial. Antes dele, essa proposta já fora feita por quase todos os mais co­ nhecidos teólogos protestantes de nossa época (de Barth a Brunner, de Bultmann a TÜliçh, de Robinson a C o x ) e também por alguns teólogos católicos, como Kiing e M cJ& ien, os quais, no diálogo com os evangélicos, acabaram por esposar as suas posições. Com efeito, a concepção carismática da Igreja foi justamente a concepção que os fundadores do protestantismo contrapuseram desde o início à con­ cepção católica. Ademais, a concepção carismática deriva logicamente da compreensão que Lutero e Calvino tinham da salvação, entendida como um ato realizado direta, exclusiva e imediatamente por Cristo v em nós, sem nenhum intermediário humano. Em tal concepção, as estruturas não podem exercer nenhuma função propriamente sacramen­ tal, mas apenas ocasional e simbólica. Assim, Moltmann não chega à proposta de uma renovação da Igreja em sentido carismático por razões de atualização, como quer fazer crer aos seus leitores, mas muito mais por razões de fidelidade à ortodoxia protestante. E, com efeito, o leitor preparado de A Igreja na Força do Espírito não terá muito trabalho para identificar o tom neo-ortodoxo e neobarthiano da obra. Todavia, como vimos, a tese da estrutura carismática da Igreja, exige uma igualdade..substancial de todos Qs_ seus membros, não im­ pede Moltmann de reconhecer na Igreja a existência de algumas es­ truturas ministeriais, como os presbíteros, os diáconos e os pregadores. Mas ele vai ainda mais adiante. Quanto ao problema de capital im­ portância do governo da Igreja, Moltmann reconhece que, para garantir a unidade da Igreja, é preciso também um ministério repre29 Ibid., p. 318. 30 Ibid., p, 383.


sentativo da unidade e que isso só pode realizar-se de duas maneiras: com o ministério do tipo de Pedro ou com o ministério “ colegiado” . Na Igreja, pois, há também uma estrutura ministerial hierárquica, que culmina na forma monárquica ou então na forma republicana. Moltmann deixa a questão suspensa nesse ponto e não se preocupa em verificar se a questão já não foi resolvida historicamente desde o início pelo fundador da Igreja, como atestam claramente os Evange­ lhos e como uma tradição bimilenar confirma constantemente. Infe­ lizmente, porém, é preciso ressaltar que a tradição não conta muito na eclesiologia de Moltmann. Assim, deve-se constatar que é ao preço de uma notável formulação antinômica que Moltmann defende a tese de que todos os membros da igreja são iguais porque todos estão de posse dos dons do Espírito Santo. Há mais ainda: a pretensão de dissociar a Igreja carismática da Igreja ministerial, além de antinômica e anti-histórica, é também uma pretensão decididamente utópica. Baseia-se, naquela concepção indivi­ dualista do homem e do cristão que é cara aos iluministas, uma con­ cepção que nos considera absolutamente auto-suficientes, tanto na ordem da natureza como na ordem da graça: cada qual basta-se a si mesmo em tudo, sem depender da sociedade, da comunidade. Mas isso não é verdadeiro, nem na ordem da natureza nem na ordem da graça. Na ordem da natureza, nenhum indivíduo é plenamente auto-suficiente. Ainda que potencialmente se possa considerá-lo capaz de realizar qualquer atividade (sapateiro, carpinteiro, médico, advogado, enge­ nheiro, etc.), na verdade depois cada qual tem que se especializar em alguma atividade, dependendo dos seus semelhantes no que se refere às outras especializações. Assim é que se formam as várias estruturas sociais. O mesmo ocorre na ordem da graça. Nesse ponto, a dou­ trina de são Paulo sobre os carismas é muito explícita: ninguém possui ao mesmo tempo todos os carismas; o Espírito concede um ca­ risma a alguns, outro carisma a outros e todos juntos formam aquele corpo orgânico que é a Igreja. Com efeito, não existe nenhuma incompatibilidade entre estrutura ministerial e estrutura carismática, mas sim, como mostraram lucida­ mente Congar, Chenu, Guardini, de Lubac e tantos outros teólogos, o componente ministerial é tão essencial à Igreja quanto o compo­ nente carismático, porque o primeiro é a condição necessária e essen­ cial para o exercício do segundo. É certo, portanto, que o Espírito divino pode agir, e de fato age também fora e independentemente das estruturas ministeriais; todavia, normalmente, na Igreja, ele ex­ plica a sua ação através de estruturas desse gênero. Registradas tais observações no que se refere à tese fundamental da eclesiologia de Moltmann, passemos agora ao exame de alguns pontos em particular. Em alguns pontos, o leitor católico encontrará tantas coisas admiráveis que lerá e meditará com gosto. Já ressalta­ mos alguns desses pontos ao longo da nossa exposição, como, por


exemplo, o fundamento cristológico e trinitário da Igreja e a identi­ ficação das várias dimensões da Igreja ( “estaurológica”, “ pneumática”, missionária, ecumênica, etc.). Notamos também com simpatia a reinterpretação que Moltmann apresenta do clássico princípio protestante do simul justus et peccator, que não é mais entendido segundo a figura conceptual da identidade paradoxal (que é a do protestantismo clássico), mas segundo a figura de uma transformação incipiente mas não concluída, como ensina tam­ bém a teologia católica31. “ A libertação ccnduz a uma vida livre. A justificação conduz à criação nova. O articulus stantis et cadentis ecclesiae, se corretamente compreendido, permite captar também o sentido encerrado nos outros artigos referentes ao Espírito Santo e à sua criação: ressurreição dos mortos, vida eterna, reino de Deus, glorificação de Deus mediante o cumprimento último da criação ( . . . ) . Se não estiver em condições de fazê-lo, isso quer dizer que não terá sido compreendido de modo correto” 32. Consideramos mais do que oportuna a afirmação insistente de Moltmann sobre a prioridade da fé em relação à práxis, como também em relação a todas as ciências, tanto experimentais como humanas, e a todas as ideologias. O fundamento de tudo aquilo que se refere à Igreja não é a sociologia, nem a política, nem a economia, nem a cultura, mas sim Jesus Cristo. A vida da Igreja e do cristão deve ser inteiramente regulada por Cristo e, portanto, pela fé e pela experiência vital que a fé em Cristo suscita no crente. “ Antes de participar, me­ diante uma nova práxis de vida, da senhoria libertadora de Cristo, os homens deverão antes de mais nada experimentar em si mesmos essa libertação que lhes provém do domínio de Cristo e nela crer. Antes ainda do problema prático coloca-se o problema da experiência e antes das questões ligadas à nova obediência coloca-se a questão da fé ” 33. Um outro desenvolvimento positivo do pensamento de Molt­ mann é no que se refere à ação política da Igreja. Enquanto em Teo­ logia da Esperança o autor reduz a contribuição política da Igreja a uma simples função crítica, já agora, em A Igreja na Força do E s­ pírito, atribui à Igreja também uma função positiva: com a sua reserva escatológica, ela está em condições de fornecer uma orien­ tação vital para a ação do cristão também nas esferas da política, da economia e da cultura 34. Além desses aspectos positivos, há também em Moltmann muitos pontos aos quais o leitor católico deverá opor sérias reservas. Citarei apenas alguns. Antes de mais nada,a proposta de renovação da doutrina da Trindade. Certamente, a doutrina da Trindade é funda­ 31 32 33 34

Ibid., Ibid., Ib id ., Ibid.,

pp. 42-62. p. 60. p. 146. pp. 227ss.


mental para o cristianismo; aliás, é a doutrina que mais o caracte­ riza em relação a todas as outras religiões. Por isso, Moltmann faz muito bem em resgatá-la do esquecimento com que os teólogos de hoje tendem a envolvê-la. Ademais, certamente há algo de verdadeiro em sua denúncia contra certas formulações do dogma trinitário pro­ postas por teólogos do passado, sob a influência da linguagem da metafísica aristotélica, ignorando a linguagem da filosofia personalista, absolutamente indispensável para um mistério pessoal como o mistério trinitário. Mas Moltmann cai no erro oposto, tentando formular o mistério trinitário em termos exclusivamente históricos e humanos. O recurso à metafísica é inevitável quando se quer salvaguardar o ca­ ráter transcendental do Deus uno e trino e quando se quer fugir aos perigòs do ^antropomorfismo e do imanentismo. No entanto, é preciso reconhecer que em A Igreja na Força do Espírito o autor propõe uma reformulação da doutrina trinitária em termos muito mais cau­ telosos do que fizera em O Deus Crucificado. Algumas afirmações re­ lativas à mutabilidade de Deus parecem-me legítimas — como, por exemplo, quando se trata do envolvimento de Deus em nossa história, graças à encarnação do Filho, ou então quando Moltmann diz que, assumindo a natureza humana, Deus “ faz uma experiência nova” e que esta tem repercussões na esfera intratrinitária de Deus 35. No... que se refere ao sacramento da ceia, Moltmann^ nega que exista um ministério especial para a sua administração. Isso faz par­ te de sua concepção carismática, .antiinstitucional e antiministerial da Igreja de que já nos ocupamos. Considero não ser necessário apro­ fundar o tema nesta oportunidade. Mas está claro que a tese de nosso teólogo já é suspeita desde o início, independentemente de qualquer análise da Sagrada Escritura e da Tradição, porque é a conseqüência lógica da perspectiva escolhida pelo autor. Além do batismo e da ceia, Moltmann, como bom protestante, não se ocupa de modo algum com os outros sacramentos. Na verdade, há só uma referência, muito discutível, à confissão. Considera-a um rito que tortura a consciência do cristão, enchendo-a de angústia, sendo portanto absurda a exigência de que seja feita antes da ceia, a qual, ao contrário, é uma celebração cheia de júbilo 36. Mas é evi­ dente que essas afirmações Ba se iam-s e i ^ m a incompreensão total do sacramento da confissão que, como o batismo, é um sacramento de libertação: liberta a alma do pecado e também da angústia, resti­ tuindo-lhe a graça e também o júbilo e a serenidade. Quem tem esperiência de confessionário sabe muito bem como a confissão dos pe­ cados pessoais propicia júbilo e serenidade ao pecador 37. Antes de concluir, quero expor ainda ao leitor uma outra per­ plexidade que me assaltou ao ler A Igreja na Força do Espírito e 35 36 37 S

Os

Ibid., Ibid., Ibid.,

p . 91. p . 322. p . 322.

grandes te ó lo g o s ,.,

- Vol. 2


outras obras de Jürgen Moltmann. Nos seus escritos, ele atribui grande importância à fé e à esperança. Todo o entrelaçamento de sua trama teológica move-se entre dois elementos essenciais: a fé no Cristo Res­ suscitado e a esperança no Reino de Deus. No entanto, a cari­ tas, o amor, que é o único que permanece sempre das três virtudes teologais, não encontra em seus escritos uma colocação adequada e um exame conveniente. É verdade que Moltmann não a ignora, tra­ tando-a sobretudo em termos de amizade e fraternidade. Fazemos vo­ tos, porém, de que, em suas obras futuras, ele dê maior relevo a esse aspecto e que, ao analisar a Trindade, Jesus Cristo, o Espírito Santo, a Igreja e o Cristianismo, não se coloque somente na perspectiva da fé e da esperança, mas também na perspectiva da caridade, porque tudo no cristianismo é caridade, amor: Deus, a Trindade, Jesus Cristo, o Espírito Santo, a Igreja, a vida cristã no tempo presente e na eter­ nidade.

Nota bibliográfica. — Moltmann é um autor muito estudado e discutido. Entre os inú­ meros ensaios dedicados às suas obras e ao seu pensamento, podemos assinalar os se­ guintes: Diskussion über die “Theologie der Hoffnung", Kaiser, Munique, 1967 (com escritos de J. M. d e P ong , H . F r ies , C. H in z , G . S auter e H . B e r k h o f ); J . P ie ­ per , “ Herkunftslose Zukunft und H offnung ohne G ru n d ” em Hochland, 1966-1967, pp. 57 5-582; F. P. F io renza , “D ialedcal Theology and H o p e ” em The Heythrop Jour­ nal, 1968, pp. 143-163, 384-399; 1969, pp. 26-42; G . O ’Co l l in s , Man and bis New Hopes, Herder, Nova York, 1969; H . B oelaers , “ L a ‘Teologia della Speranza’ di J. M oltm ann” em Studia Moralia, 1969, pp. 262-305; C. C anton e , “ D io al Futuro” em Salesianum, 1973, pp. 401-440; G . B o rto laso -R . M a r lé , Speranza Atea o Speranza Cristiana?, Apes, Roma, s /d ; B. M ondin , I Teologi della Speranza, Borla, Turim, 1970 (2 ? edição, 1974; tradução portuguesa: Esperança Marxista e Esperança Crista, Telos, Porto, 1972); H . A r ts , Moltmann et Tillich: Les Fondements de 1’Espérance Chrétien­ ne, Duculot, Gem bloux, 1973; M. R. T r ip o le , “ Ecclesialogical Developments in Moltmann’s Theology of H o p e ” em Theological Studies, 1973, pp. 19-35; J. E . V e r c r u y s s e , “ Der Gekreuzigte G ott. Zu Jürgen Moltmanns Gleichnamigen Buch” em Gregorianum, 1974, pp. 369-378: R. G ib e li.in i, La Teologia di ]. Moltmann, Queriniäna, Bréscia, 1975 (com rica bibliografia).


INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA TEOLOGIA ORTODOXA

Os estudiosos não estão de acordo sobre a divisão da história da teologia ortodoxa. Segundo Jugie, não existem na teologia oriental escolas teológicas e sistemas que possam oferecer um “fundamentum divisionis” l. Segundo outros estudiosos, ao contrário, há razões de tempo, lugar e outros gêneros que justificam sua divisão em dois ou mais períodos. Também somos dessa opinião, parecendo-nos justo dividir toda a história bimilenar da teologia oriental em sete grandes períodos: 1) período patrístico; 2) era de Justiniano; 3) período de Fócio e Cerulário; 4) período de Gregório Palamas; 5) período da Diáspora depois da ocupação turca; 6) Escola de Kiev; 7) re­ nascimento moderno.

I. PERÍO D O PA TRÍSTIC O (SÉC U LO S I-V I) O primeiro período da teologia oriental coincide com o da teo­ logia ocidental: é o período patrístico. Nessa época, as Igrejas do Oriente e do Ocidente ainda estão unidas, dando origem a um patri­ mônio teológico único, para cuja formação contribuem tanto os Padres latinos (Tertuliano, Cipriano, Agostinho, Hilário, Ambrósio, etc.) como os gregos (Orígenes, Clemente, Basílio, Gregório Nazianzeno e de Nissa, João Crisóstomo, etc.). Durante essa primeira fase da história da ciência sagrada, as principais características da reflexão teológica são as mesmas tanto no Oriente como no Ocidente. Ela tem caráter bíblico (inspira-se diretamente nos textos sacros), apofático (coloca preferencialmente a ênfase na incognoscibilidade e na inefabilidade de Deus e dos seus mistérios), assistemático (estuda os problemas que são impostos pe­ las circunstâncias, não se preocupando em abordá-los ordenadamente em seu conjunto) e platônico (adota como instrumento conceptual a filosofia de Platão, aplicando à divisão entre mundo natural e mundo sobrenatural a ruptura que Platão coloca entre mundo sensível e mun­ do inteligível). 1 M . J u g i e , Theologia Dogmático Christianorum Orientalium ab Ecclesia Catholica Dtssidentium, Paris, 1926-1935, v. II, p. 18, nota.


Essas características permanecem constantes em toda a história da teologia oriental e com o tempo tendem a se acentuar em favor do misticismo e do intuicionismo. Já na teologia latina, depois da época patrística, essas características se eclipsam pouco a pouco, cedendo lugar a características contrárias: menor contato com a fonte bíblica, preocupação catafática e sistemática, aristotelismo como instrumento conceptual. Daí ter ocorrido um progressivo afastamento entre as teologias oriental e ocidental durante a Idade Média e a Época Mo­ derna, um afastamento destinado a se aprofundar em virtude do cisma, até estender-se não só à forma, mas também ao conteúdo da reflexão teológica. “ Os primeiros cinco séculos constituem a idade de ouro dos grandes Mestres, Padres e Doutores da Igreja, que transmitem às futuras gerações a herança da Paradosis, já formada em suas grandes linhas” 2. Os nomes inesquecíveis daqueles que mais contribuíram pa­ rá a formação da teologia oriental são: Justino, Clemente, Orígenes, Atanásio, Cirilo, Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Nestório, o Pseudo-Dionísio.

II. A ERA DE JU ST IN IA N O (SÉC U LO S V I-V III)

Na era de Justiniano (527-565), os teólogos empenham-se na luta contra dois excessos: o monofisismo e o nestorianismo, A figura mais ilustre desse período é João Damasceno ( t 7 4 9 ), que supera a controvérsia através da explicitação dos conceitos de na­ tureza e hipóstase. Sua principal obra é o De Fide Orthodoxa, uma grandiosa síntese da tradição. Ela “ encerra a era patrística e abre a época das cadeias enciclopédicas, em que a criação é substituída pelas citações e pelas justificações baseadas no consensus patrum” 3. Outro teólogo de primeira grandeza foi Máximo, o Confessor ( f 6 3 8 ), que em suas viagens e seus contatos em Jerusalém e Roma, sobretudo com o papa Martinho I, combateu tanto o monofisismo como o monotelismo. O seu Florilegium revela visivelmente a influên­ cia do Pseudo-Dionísio e da filosofia neoplatônica, na qual são Máximo vê “ o meio técnico mais apropriado para exprimir a ortodoxia” 4. Durante a época justiniana foi que nasceu a famosa contro­ vérsia do Filioque. Falando da processão do Espírito Santo, o III Concílio de Nicéia (7 8 7 ) utilizara a fórmula “ex patre per filium ". Essa fórmula não foi recebida favoravelmente pelos teólogos ociden­ tais (por exemplo: Alcuíno) que nela viam ambigüidade e o perigo de que o Espírito Santo fosse considerado uma criatura. Daí a áspera 2 P. E v d o k im o v , UOrtodossia, Bolonha, 1965, p. 17. 3 Ibid., p. 31. 4 Ibid., p. 19.


e longa disputa, que, como é sabido, foi uma das principais causas da separação entre as Igrejas de Constantinopla e de Roma.

III. PERÍO D O D E FÓCIO E CERULÁRIO (SÉC U LO S IX -X III) Fócio é geralmente recordado por sua participação no cisma do Oriente. Mas freqüentemente são ignorados os seus méritos no campo teológico, muito embora tenha sido o maior cultor da ciência sagrada em seu tempo. O elemento que mais distingue a sua especulação teológica é o lugar absolutamente novo que nela ocupa a filosofia aristotélica. Ele utiliza a lógica do Estagirita com grande habilidade para defender a validade do “per Filium ". Geralmente, interpreta a Sagrada E s­ critura em sentido histórico e literal. Tem grande estima pelos Padres da Igreja (menos os latinos e João Damasceno), vendo neles os au­ tênticos intérpretes do Evangelho. Antes da separação da Igreja la­ tina (8 6 7 ), “ não ensinou nada em contrário à fé da Igreja de Roma, mesmo ressaltando algumas diferenças nos usos litúrgicos e discipli­ nares. Então, Fócio admitia claramente o primado de Pedro” 5. A ruptura com Roma foi de breve duração, devendo-se mais a razões disciplinares do que dogmáticas. No século X , a cena teológica é dominada pela figura de são Simeão, chamado o “ Novo Teólogo” . Segundo Vladimir Lossky, ele merece amplamente tal título, porque foi ele quem impôs um novo rumo à teologia bizantina. Com efeito, ela, que antes tinha uma orien­ tação essencialmente “ cristológica” , passa a assumir uma orientação predominantemente “ pneumatológica” : “ Os problemas relativos ao E s­ pírito Santo e à graça são agora o núcleo central em torno do qual gravita o pensamento teológico” 6. Nesse meio tempo, tornavam-se sempre mais tênues as rela­ ções de Constantinopla com Roma, em virtude das péssimas condições políticas em que se encontrava o Ocidente naquela época por causa das invasões dos húngaros, normandos e árabes. Por isso, quando Miguel Cerulário anatematiza o papa de Roma, em 1054, mais do que criar uma situação nova, ele está apenas selando o estado de fa­ to de uma separação que já perdurava há alguns séculos. O exemplo de Bizâncio foi depois seguido pouco a pouco por todas as igrejas de rito bizantino. Como Fócio, Cerulário também foi um dos maiores teólogos de seu tempo, tendo contribuído com seus escritos para escavar um fosso ainda mais profundo com a Igreja latina. Em duas cartas, Epis tuia ad 5 V. M a l a n c z u k , “Byzantine Theology, I ( t o 1500)” e m New Catbolic Encyclo­ pedia, v. II, p. 1019. 6 V. L o s s k y , La Teologia Mistica delia Chiesa d’Oriente, Bolonha, 1967, p. 385.


Petrum Antiochenum e Epistula Leonis Achridensis, bem como nos Panóplia, acusa os latinos de se terem afastado da tradição apostólica nos seguintes pontos: os ázimos, o jejum do sábado, a abstinência, o rito do batismo, o culto das imagens, o filioque e o primado romano. Outro grande teólogo desse período foi Miguel Psellos ( f 1078), poeta, historiador e filósofo, além de teólogo. Como ttÓc í o , utiliza tanto a filosofia platônica como a aristotélica. Entre as suas doutrinas, as mais dignas de nota são: a processão “ ex patre tantum”, uma certa substância material nos anjos, a santidade da Mãe de Deus no mo­ mento de sua concepção, a sua função medianeira. Psellos teve inúmeros discípulos de valor, entre os quais João ítalo ( f 1084) e Teofilato, prelado da Bulgária ( f 1108). No século X I I I, a teologia bizantina se polarizou em torno do Con­ cílio de Lião (1 2 7 4 ), que se propunha a restabelecer a união entre Constantinopla e Roma. Mas os esforços daqueles que procuravam dissipar as razões do conflito não tiveram êxito. Os resultados posi­ tivos do Concílio não foram bem acolhidos pelos monges e pelo povo e o cisma continuou.

IV. O PERÍO D O DE G R EG Ó R IO PALAMAS (SÉC U LO S X IV -X V )

Por volta do fim da Idade Média, a teologia ortodoxa é do­ minada pela figura de Gregório Palamas ( f 1359). Escritor muito fecundo e original, Palamas efetuou uma síntese do pensamento patrístico na teologia da Glória de Deus. Suas teses mais características são três: a) o homem nao pode conhecer a essência de Deus transcen­ dente; b) porém, pode conhecer suas ações, suas operações, seus atri­ butos; c) por isso, em Deus deve haver uma distinção real entre essência incognoscível e atributos cognoscíveis. Em 1351, a doutrina palamita foi canonizada pelo Sínodo de Constantinopla como a expressão mais autêntica da fé ortodoxa. Gregório Palamas teve numerosos discípulos, entre os quais Nilo Cabasilas ( f 1363), sucessor de seu mestre na cadeira de Tessalônica e autor, entre outras coisas, de Regula Theologica, De Causis Dissentionum in Ecclesia e De Papae Império, e Filóteo Coccinus (+ 1376), primeiro abade do monte Àthos e mais tarde patriarca de Constanti­ nopla, autor de um Encomium sobre Gregório Palamas. Mas Palamas também teve muitos adversários. Os mais dignos de nota são: Nicéforo Gregoras ( f 1360), que escreveu Onze Ora­ ções contra Gregório Palamas, e Prócoro Cydones ( f 1368), cujo nome está ligado sobretudo às traduções em grego de santo Agostinho e são Tomás. Do Aquinense, ele traduziu parte da Summa Tbeologiae e toda a Summa Contra Gentes.


Durante esse período, nasceu a controvérsia em torno da Epiclese (a oração que se dirige ao Pai depois da consagração, para que ele mande o Espírito Santo para transformar os dons divinos do pão e do vinho no corpo e no sangue do Salvador). A historiografia recente pôde estabelecer que a fórmula “ea transmutans” foi introduzida na liturgia ortodoxa somente no século XV . De qualquer modo, a Epiclese torna-se um novo motivo de discórdia com os latinos. Com efeito, enquanto estes afirmavam que a consagração ocorre no mo­ mento em que se repete as palavras de Cristo “ este é o meu corpo” e “ este é o meu sangue”, os ortodoxos sustentavam que, além dessas palavras, é preciso também a Epiclese, ou então que a Epiclese basta por si só. V. A T EO LO G IA DA D IÁSPO RA (SÉC U LO S X V I-X V II)

Em 1453, quando os turcos ocuparam Constantinopla, a teolo­ gia ortodoxa recebeu um golpe mortal: as escolas teológicas foram fechadas, muitas bibliotecas foram destruídas, muitos teólogos foram exilados. Foi então que se constituiu a teologia ortodoxa da Diáspora. Essa teologia é marcada pelos sinais do ambiente em que se desenvolve: denota influência do catolicismo quando se desenvolve em países católicos e mostra influência do protestantismo quando se desenvolve em países protestantes. No início, obviamente, é mais forte a influência católica (dado que os protestantes nasceriam so­ mente no século X V I ), mas depois a influência protestante também ad­ quire um considerável peso. Dentre os teólogos influenciados pelo catolicismo, podemos recordar Melésio Pigas, um cretense que realizou seus estudos na Uni­ versidade de Pavia. Em 1590, foi nomeado patriarca de Alexandria. A formação católica não o impediu de protestar energicamente quan­ do, em 1595, os ucranianos subscreveram a reunião com Roma. En­ tão, escreveu um ensaio intitulado Sobre o Primado do Papa, em que conclamava os ucranianos a desfazerem o acordo com Roma. Em seu escrito, Pigas repete sem grande originalidade os argumentos tradicio­ nais dos ortodoxos contra o primado romano e contra os pretensos erros dos latinos. Seguindo o exemplo de Pigas, um outro teólogo, Máximo de Peloponeso, elaborou um Enchiridion Contra o Cisma dos Papistas. Entre os teólogos mais sensíveis à influência protestante, pode­ mos recordar Cirilo Lucaris ( f 1638), fervoroso promotor do calvinjsinQ na Grécia. Em 1629, publicou em Genebra o seu Orientalis Ecclesiae Confessionetn Christianae Fidei, uma obra profundamente impregnada de calvinismo. O Sínodo de Constantinopla de 1638 con­ denou as suas doutrinas.


Os desvios “ catolicizantes” e “ protestantizantes” não tardaram em provocar a reação de diversos teólogos, que, preocupados em sal­ vaguardar a integridade da fé ortodoxa, marcaram seus escritos por uma forma fortemente polêmica. Entre os polemistas ortodoxos, podemos ressaltar Melésio Syrigos ( f 1667), cuja maior obra é intitulada Confutação Ortodoxa dos Capítulos e das Questões da Confissão de Cirilo Lukaris, e Dositeu, patriarca de Jerusalém ( f 1707), autor do Enchiridion Contra os Erros de Calvino.

VI. A ESCO LA D E K IE V (SÉC U LO S X V II-X V III) Enquanto a teologia da Diáspora se apagava lenta e fatalmente, o primeiro lugar no mundo da cultura ortodoxa passava para a Rússia, único país da Ortodoxia que conseguira furtar-se ao domínio turco. No século X V II, a Rússia torna-se o centro de gravidade da orto­ doxia, sobretudo graças à escola de Kiev. Esta fora fundada por Pedro Moghila ( f 1647), que a estru­ turara pelo modelo das universidades dos jesuítas: língua latina e método escolástico. O seu texto oficial, A Confissão Ortodoxa da Fé, era calcado no esquema do catecismo de Pedro Canísio. E mesmo na liturgia freqüentemente eram imitadas as práticas católicas7. A obra-prima de Moghila, A Confissão Ortodoxa da Fé, muito embora refletisse uma clara romanização da ortodoxia, gozou de ele­ vadíssimo prestígio durante uns dois séculos. Sobre ela o patriarca de Moscou, Adriano ( f 1700), escreveu: “ O reverendíssimo metropolita Pedro, dito Moghila, homem de grande inteligência e vasta eru­ dição, elaborou esse livro inspirado por Deus. . . Tudo aquilo que corresponde ao juízo desse livro é indubitavelmente ortodoxo. Já aquilo que não concorda com ele, mas está em conflito, não faz parte da doutrina da nossa Igreja e, portanto, não merece ser escutado” 8. Durante todo o século X V III, A Confissão foi classificada entre os Livros Simbólicos da Igreja Ortodoxa, sendo-lhe atribuída a mesma autoridade dos decretos dos primeiros concílios. A escola de Kiev produziu numerosos teólogos, entre os quais Lasar Baranovich ( t 1693) e Antônio Radivilovski (+ 1688).

7 G. Florovsky julgou muito severamente a orientação da escola de Kiev, acusando­ -a de “compromisso”, de “ cripto-catolicismo romano”, de “barroquismo teológico“ . Cf. F l o r o v s k y , “ Westliche Einflüsse in der Russischen Theologie” em Procès-Verbaux du 1er Congrès de Théologie Orthodoxe à Athènes, 29 nov.-6 dez. 1936, Atenas, 1939, pp. 214-215; Puti Russkovo Bogoslovija (em russo), Paris, 1937, pp. 4ss. 8 Citação de J. C h r y s o s t o m u s , “ Die Theologie der Russisch-orthodoxen Kirche em Vorabend der Revolution von 1917”em Una Sancta, 1968, p. 100.


V II. O REN ASCIM ENTO M ODERNO (SÉC U LO S X IX -X X ) Nos séculos X I X e X X , a teologia ortodoxa se renova sobretudo em duas nações, Grécia e Rússia. Neste último país, nem mesmo a revolução bolchevique, com todas as suas dolorosas conseqüências para a Igreja, conseguiu impedir o grande florescimento teológico em curso no início do nosso século, ainda que tenha obrigado quase todos os mais insignes cultores da ciência sagrada a buscarem refúgio no exterior, pois eles reconstituíram em Paris e Nova York dois centros de teologia ortodoxa dotados de uma prodigiosa vitalidade. Podemos dividir a história contemporânea da teologia ortodoxa em três partes: russa, grega e da Diáspora. Vamos examiná-las uma por uma, começando pela russa. 1. O renascimento russo. — No início do século X IX , o epicentro da teologia ortodoxa desloca-se de Kiev para Moscou. A faculdade de teologia da capital começa a ascender durante o patriarcado de Filarete Drozdov ( f 1867). As principais causas do renascimento foram duas: um maior contato com as fontes bíblicas e patrísticas (em 1812, foi fundada a Sociedade Bíblica Russa) e a introdução da língua russa em lugar do latim. Com o desaparecimento do latim, decai também a influência escolástica. Os maiores artífices da renovação antes da Revolução Russa foram quatro: o metropolita Macário, Khomiakov, Svetlov e Soloviev. O metropolita Macário (o seu nome de nascimento era Mikhail Petrovic Bulgakov) é o autor de uma famosa História da Igreja Russa em doze volumes e de uma Teologia Dogmática Ortodoxa, sendo que esta última chegou a ser premiada pela Academia de Ciências de Moscou. Ela é considerada por N. Glubokovski, um historiador da teo­ logia russa, como “ uma grandiosa tentativa de classificação científica do material teológico acumulado no passado” 9. A obra foi adotada não só como manual para a formação de padres ortodoxos na Rússia, mas' também como critério de ortodoxia. Com efeito, as posições de Macá­ rio correspondiam exatamente às do Santo Sínodo de Moscou no rígido conservadorismo, na interpretação literal da Escritura, no tom apo­ logético e numa forte intolerância para com as outras confissões. Por esse motivo, além da escassa originalidade da obra, os teólogos russos deste século julgam-na bem menos favoravelmente do que seus colegas do século passado 10

9 N. G l u b o k o v s k i , Russische Theologische 'Wissenschaft in Ihrer Geschichtlichen Entwicklung und Ihren Heutigen Zustand, Varsóvia, 1928, p. 4. 10 G . F l o r o v s k y mostra-se severo em relação a Macário na obra Os Caminhos da teologia Russa (em russo). Cf. pp. 222ss. 9 • Os grandes teólogos... • Vol. 2


Enquanto o metropolita Macário é o expoente máximo da teolo­ gia “ oficial”, Alexis Khomiakov ( f 1860) é o teólogo mais represen­ tativo do movimento eslavófilo. Esse movimento nasceu como reação contra a ocidentalização da intelectualidade. Para combater esta oci­ dentalização os “ eslavófilos ” recorriam ao velho mito do messianismo russo e ao pan-eslavismo religioso, cujas raízes haviam penetrado na consciência nacional desde os tempos dos grandes tzares do século X V I. Teórico e teólogo do “ eslavofilismo ” , Khomiakov afirma que a antropologia, a sociologia e a teologia orientais estão separadas do “ racionalismo cristão” do Ocidente por uma oposição radical. Con­ tra o caráter jurídico dos latinos, exalta a Sobornost’ eslava. A nova eclesiologia de que ele é fundador baseia-se toda na idéia da comuni­ dade unânime de todos os fiéis, isto é, a Sobornost’, Em sua opinião, é nela que residem a unidade e a infalibilidade da Igreja. Conse­ qüentemente, não pode haver nenhuma diferença essencial entre Igreja docente e Igreja discente, entre hierarquia e povo: toda decisão da hierarquia, para tornar-se autorizada e infalível, deve ser aceita por todo o povo. Assim, segundo Khomiakov, viria a realizar-se na Igreja Ortodoxa aquela perfeita harmonia entre liberdade e união que não seria possível no catolicismo nem no protestantismo; no primeiro, porque a união suprime a liberdade; no segundo, porque a liberdade suprime a união. No século passado, essas teorias de Khomiakov foram duramente criticadas e condenadas pela hierarquia ortodoxa e seu autor foi asperamente censurado, A publicação de suas obras só foi autorizada vinte anos depois de sua morte. Hoje, porém, a teolo­ gia de Khomiakov é muito difundida entre os teólogos ortodoxos, Pavel I. Svetlov ( f 1942) foi quem mais contribuiu para consolidar e difundir as doutrinas de Khomiakov. Suas obras mais im­ portantes são: A Doutrina Crista Apresentada em Forma Apologética e A Idéia do Reino de Deus no seu Significado Relativo à Concepção Cristã do Mundo. Ele ' assume uma posição conciliatória nos pontos controversos entre ortodoxos e latinos, como por exemplo na questão da processão do Espírito, em que ele não encontra nenhuma diferença substancial entre as doutrinas grega e latina, e na questão da Imacula­ da Conceição. Svetlov critica particularmente os teólogos ortodoxos que consideram que as confissões não-ortodoxas não pertencem à Igreja de Cristo. Contra essa tese, afirma que “ as Igrejas Oriental e Ocidental não são dois corpos completamente separados um do ou­ tro e mutuamente estranhos, mas simplesmente partes do único e verdadeiro Corpo de Cristo: a Igreja universal; ambas as comunidades cristãs estão da mesma forma unidas a Cristo através da sucessão apostólica, da verdadeira fé e dos sacramentos. Portanto, em conse­ qüência da aparente divisão, a Igreja universal parece subsistir em dois corpos, enquanto que de fato é uma só. O obstáculo à sua reu­ nião é constituído pela idéia errada, profundamente radicada em am­ bas as partes da cristandade, de que depois da divisão só uma parte se identifique com o todo, com a Igreja universal. . . As diferenças


entre as duas Igrejas não são de substância, mas foram aumentadas pela inimizade e pela polêmica; freqüentemente, são apenas aparen­ tes” 11, Soloviev ( f 1900), além de grande filósofo, foi um dos mais válidos representantes do renascimento teológico ortodoxo. Sua obra mais importante são as Lições sobre a Divino-humanidade, um profun­ do ensaio cristológico no qual a Encarnação é concebida como um evento que tem lugar no próprio coração do ser, sendo o seu evento interior, e depois, por extensão, se amplia a tudo o que é humano, colocando a história sob o signo da “ cristificação ” universal. De tal modo, o Cristo-Deus-Homem se cumpre no Cristo-Deus-Humanidade. Em harmonia com esse “ teandrismo”, Soloviev elaborou uma “ sofiologia” que, através das malhas do idealismo alemão e de um misticismo por vezes equívoco, tenta reler as afirmações da Bíblia e de Orígenes sobre a Sabedoria, que ele vê sair da Trindade para criar o mundo, divinizá-lo e reintegrá-lo em sua fonte. Florensky e Bulgakov retoma­ riam depois por sua conta os elementos essenciais dessa teoria, esfor­ çando-se por libertá-la dos seus elementos cabalísticos e gnósticos. 2. Teologia ortodoxa da segunda diáspora. — A Revolução Bolchevique eclodiu no momento em que a teologia russa estava para atingir o ápice, por obra de Bulgakov, Florovsky, Lossky, Berdiaev, Zernov e outros. O triunfo do comunismo obrigou todos esses jovens a abandonarem a Rússia, passando a residir em nações ocidentais, na Tchecoslováquia, França, Inglaterra e Estados Unidos. Mas sua dis­ persão não marcou o fim da teologia ortodoxa russa. Superando enor­ mes dificuldades, eles se reorganizaram e, em Paris e Nova York, fundaram dois centros de estudos teológicos, o Instituto de São Sérgio e o Seminário de São Vladimir, que não tardaram a conquistar fama internacional. Ao instituto de Paris ligaram seus nomes Bulgakov, Lossky, Afanassieff, Florensky e Evdokimov. Ao seminário de Nova York emprestaram o prestígio de sua obra Florovsky, Schmemann e Meyendorff. Berdiaev e Zernov, porém, permaneceram isolados, desenvolven­ do suas atividades fora daquelas instituições. Mais adiante, em três capítulos diferentes, trataremos ampla­ mente dos três expoentes máximos da teologia russa da Diáspora, Lossky, Bulgakov e Florovsky. Aqui, nos limitaremos a examinar bre­ vemente as outras duas maiores figuras, Berdiaev e Zernov. Nikolai Berdiaev ( f 1948) é o mais célebre dos convertidos rus­ sos deste século: passou do positivismo e do ateísmo da intelectuali­ dade à fé ortodoxa dos seus pais. Com sua forte personalidade e com suas obras originais, contribuiu mais do que qualquer outro para o conhecimento do pensamento religioso russo além das fronteiras de sua pátria e em ambientes habitualmente fechados à religião. Durante 11 Citação em J.

C h ry s o s to m u s ,

o.c.,

pp. 105-106.


o exílio, tomou parte ativa na vida da Igreja Ortodoxa. Participou tam­ bém das conferências do Movimento Ecumênico, mas fazendo questão de frisar que não era representante oficial de sua Igreja, porque queria conservar o direito de julgar e criticar a ação dos seus chefes desde o ponto de vista de um pensador independente. Quanto ao seu pensamento, uma das características que o distinguem é a desconfiança em relação à razão, tanto em filosofia como em teologia. Segundo Berdiaev, a razão despreza o aspecto misterioso da vida e do universo. “ O mistério”, afirma ele, “ permanece sempre, sendo inclusive acen­ tuado pelo conhecimento. Este, com efeito, só resolve os falsos mis­ térios, criados pela ignorância. Mas existem outros mistérios que se nos apresentam quando alcançamos o fundo do conhecimento. Deus é um mistério e o conhecimento de Deus é comunicado no mistério (teologia “ apofática” ). A teologia racional é uma falsa teologia, porque nega os mistérios que envolvem D eus” 12. Nikolai Zernov (nascido em 1898) deixou a Rússia logo depois da Revolução. Inicialmente, se estabeleceu na Iugoslávia, onde foi lau­ reado em teologia em 1925. Depois passou para a Universidade de Oxford, onde, depois de se ter doutorado em filosofia, foi nomeado professor de cultura ortodoxa em 1947. Escreveu muitas obras de caráter histórico e eclesiológico, com as quais contribuiu bastante para o conhecimento da teologia russa no mundo anglo-saxão. Entre as suas obras em inglês, podemos recordar: The Cburch of the Eastern Christians (Londres, 1 942); The Russians and their Church ( idem, 1 945); The Reintegration of the Church {idem, 1952) e Easterns Christendom {idem, 1962). 3. O renascimento grego. — O ponto de partida do renascimento da teologia ortodoxa na Grécia foi a fundação da Universidade de Atenas, poucos anos depois da expulsão dos turcos. A Faculdade de Teologia ocupava o lugar de honra entre as quatro faculdades com que teve início a nova universidade. Num primeiro momento, a principal função da faculdade foi a formação do clero e dos mestres de reli­ gião no novo Estado. Em seguida, contudo, passou-se a cuidar sempre mais da pesquisa científica. Essa orientação favoreceu consideravel­ mente o despertar da ciência teológica. Já no século X I X surgiram alguns autores de valor, como Constantino Kontogonis e Nicola Damalas. Este último é autor de um livro, Princípios Científicos e Ecle­ siásticos da Teologia Ortodoxa, que ainda hoje goza de grande fama. Mas foi sobretudo neste século que a Grécia produziu uma série respeitável de grandes teólogos. O primeiro de todos foi Christos Antroutsos ( f 1935), do qual Bratsiotis escreveu: “ Em minha opi­ nião pessoal e interpretando também a opinião de todos os cientistas imparciais, posso assegurar que nossa escola teológica ainda não 12 N. B e r d ia e v , Autocoscienza, Esperimento di Autobiografia Filosofica, 1949, p. 99.

Paris,


viu um teólogo tão capaz e genial e nunca ouviu um mestre tão metó­ dico e atraente como ele” 13. Suas inúmeras obras teológicas e a qua­ lidade de suas monografias, estudos e discursos científicos constituem a demonstração mais eloqüente da fecundidade de seu gênio. No Simbolismo do Ponto de Vista Ortodoxo, uma de suas obras mais ori­ ginais, através de um penetrante estudo da Sagrada Escritura e dos Padres, ele procura identificar e descrever as diferenças entre as principais Igrejas e precisar o pensamento da Igreja Ortodoxa. Outros teólogos importantes são Amilcas Alivizatos, Panaghiotis Bratsiotis, Panaghiotis Trembelas, João Karmiris e Nikos Nissiotis. Amilcas Alivizatos, além de teólogo, é também um personagem bem conhecido tanto na Grécia como no resto da Europa. Ocupou nu­ merosos e variados cargos nos governos do seu país. Teve um papel determinante na preparação da Carta Constitucional de 1923. Partici­ pou ativamente de muitas assembléias ecumênicas. Suas maiores obras são: A Continuidade Ininterrupta da Igreja Ortodoxa Grega com a Igreja Indivisa (1 9 3 4 ); Posição Contemporânea da Teologia Ortodoxa (1 9 3 1 ); O Culto na Igreja Ortodoxa (1 9 5 2 ). Quanto ao pensamento, “ Alivizatos é o descendente espiritual da tradição patrística liberal dos tempos em que florescia o cristianismo helénico, da Ortodoxia e do espírito ecumênico da Igreja antiga” 14. Panaghiotis Bratsiotis é eminente sobretudo como exegeta. De 1929 a 1960, ocupou a cátedra de Introdução e Interpretação do Antigo Testamento. Suas principais obras são: O Judaísmo Palestino na Palestina (1 9 2 0 ); João Batista como Profeta (1 9 2 1 ); Estudos sobre os L X X (1 9 2 6 ); Introdução ao Antigo Testamento (1 9 3 7 ); Comentário a Isaías (1 9 5 6 ). Panaghiotis Trembelas, talento multiforme e fecundo não ne­ gligenciou nenhum campo do saber teológico, da apologética à teo­ logia fundamental, da exegese à liturgia, da moral à dogmática. Neste último campo, sua principal obra é A Dogmática da Igreja Católica Ortodoxa, em três volumes, publicados entre 1959 e 1961. Nela, o autor se propõe a dar a conhecer o espírito dos Santos Padres; na realidade, entre suas qualidades, a sua dogmática tem a qualidade de ser verdadeiramente patrística. Um mérito de Trembelas foi ter renovado a exposição da teologia dogmática grega, aprofundada de há muito pelos trabalhos de Androutsos, os quais, porém, já se encontra­ vam um pouco ultrapassados. João Karmiris é um teólogo que se formou no Ocidente, nas universidades de Berlim e Bonn, tendo começado a conquistar fama nos ambientes internacionais com a tradução neo-helênica da Summa Theologiae de são Tomás de Aquino. São bastante numerosas suas publicações no campo histórico-dogmático. A sua obra-prima é A 15 Citado por P. D u m o n t , “ La Teologia Greca Odierna” em Oriente Cristiono, 1966, n. 1, pp. 36-37. 14 G. K o n i d a r i s , citado por P. D u m o n t , “ La Teologia Greca Odierna” em Oriente Cristiano, 1967, n. 4, p. 20.


Tradição Histórica e Simbólica da Igreja Católica Ortodoxa, em dois volumes, publicados respectivamente em 1952 e 1953. Seus estudos “ esclareceram a posição da Igreja Ortodoxa diante das várias tenta­ tivas dos Reformadores e fortaleceram o zelo e a altivez dos ortodo­ x o s” 15. Nikos A. Nissiotis (nascido em Atenas em 1925) está exer­ cendo considerável influência especialmente nos ambientes ecumêni­ cos. Atualmente, exerce o cargo de diretor do Instituto Ecumênico de Bossey (Suíça). Sua atividade teológica inspira-se constantemente nas exigências de sua função: o estudo dos problemas ecumênicos mais importantes do momento. Durante e depois do Concílio Vaticano II, granjeou apreço por suas penetrantes análises dos documentos con­ ciliares desde o ponto de vista ortodoxo. Sua principal obra intitula-se O Problema da Fé em Kierkegaard e no Existencialismo Moderno. E assim concluímos nossa visão panorâmica da história da teo­ logia oriental. Breve síntese que, no entanto, não nos impediu de constatar como essa história é rica e variada. É bem verdade que ela teve momentos de pausa e declínio, como qualquer outra história, mas também teve longos períodos de grande esplendor, principalmente o período patrístico e neopatrístico e, depois, o período moderno e contemporâneo. Neste século, a teologia ortodoxa registrou um reflorescimento semelhante ao das teologias irmãs, a católica e a protestante. Seus Bulgakov, Berdiaev, Florovsky e Lossky não são menores do que os nossos Rahner, Congar, Guardini, de Lubac e Chenu. Esse é um fato bastante prometedor para o futuro da Cristan­ dade. Faz brotar a esperança de que, por meio do diálogo entre os grandes teólogos e mediante o confronto de suas posições, as Igrejas Católica, Protestante e Ortodoxa possam reencontrar a unidade na fé.

15 I d e m , ibidem, n. 4, p . 53.


SERGHIEl BULGAKOV E A “SOFIOLOGIA”

Serghiei Bulgakov, no consenso unânime dos estudiosos, é o maior teólogo ortodoxo dos tempos modernos; para alguns, aliás, ele é inclusive o maior teólogo de nossa época em sentido absoluto Gênio potente e multiforme, Bulgakov propôs-se como objetivo principal de sua vida o de dar à teologia ortodoxa algo que ela não tinha, uma filosofia própria, que correspondesse ao entendimento da fé que a Igreja Ortodoxa tem, e de servir-se dela para efetuar uma sistematização completa de todo o vasto patrimônio teológico da Igreja oriental. Ele realizou esse objetivo com a famosa “ sofiologia”, uma visão filosófico-teológica centrada inteiramente no conceito de “ sabedoria” .

I. VID A

Serghiei Bulgakov nasceu em 16 de junho de 1871 em Livny (R ússia). Durante seis gerações, todos os seus antepassados tinham sido sacerdotes ou diáconos. Esse fato contribuiu para forjar um dos traços mais marcantes do seu caráter, o profundo espírito sacer­ dotal. Inicialmente, teve uma educação de acordo com os modelos tra­ dicionais. Com dez anos, ingressou no seminário. Mas, durante o liceu, entrando em contato com o pensamento da intelectualidade, que naqueles anos tornara-se uma potência irresistível, perdeu a fé e abandonou o seminário. Então, ingressou na Universidade de Moscou, onde tornou-se um marxista convicto. Em 1896, publicou sua primeira obra, O Papel do Mercado na Produção Capitalista. Em 1901, foi nomeado para a cátedra de Econo­ mia Política no Instituto Politécnico de Kiev. 1 Assim pensa, por exemplo, P. E v d o k im o v , que, no livro L'Ortodossia (Bolonha, 1965), escreve: “O padre Serghiei Bulgakov, o maior teólogo de nossa época, já ex­ pressou o essencial em seu vigoroso apelo em favor do retorno à grande verdade de Calcedônia, ao profundo ‘teandrismo’ ortodoxo” (p. 48). L. Zander não hesita em comparar a obra de Bulgakov com a de Orígenes e a de são Tomás de Aquino (cf. L. Z a n d e r , “ Le Père Serge Bulgakov” em Irenikon, 1946, pp. 168-185).


O ateísmo e o marxismo, contudo, não mais o satisfaziam. Em 1903, colaborou na publicação de um livro intitulado Do Marxismo ao Idealismo, que dava sinais de ruptura com o positivismo praticado pela intelectualidade. A ruptura assumiu caráter público em Vekhi, um simpósio realizado em 1909, no qual, juntamente com Berdiaev e outros convertidos, denunciou os erros da intelectualidade e sua incapacidade de transformar a Rússia. Em 1918, foi ordenado sacerdote, sendo escolhido para partici­ par do Supremo Conselho ( Soviet) Eclesiástico. Porém, em virtude de suas convicções religiosas, três anos mais tarde foi privado de sua cátedra e, no início de 1923, foi expulso de sua pátria. Deixando a Rússia, estabeleceu-se inicialmente em Praga, na qua­ lidade de professor de Direito Canônico e Teologia. Depois, em 1925, transferiu-se para Paris, lá assumindo a direção do Instituto Teológico Russo de São Sérgio, recém-fundado. Além de sua atividade de dire­ ção, também contribuiu de modo decisivo para a vida e o desenvolvi­ mento do instituto através do ensino: durante muitos anos ele foi o titular da cátedra de Teologia Dogmática. Os últimos anos de sua vida foram também os mais criativos. A esse período pertencem todas as suas mais importantes obras teoló­ gicas. O padre Bulgakov assumiu também um papel importante no desenvolvimento do Movimento Ecumênico, participando ativamente das conferências de Lausanne, Oxford e Edimburgo. Morreu em Paris, em 12 de julho de 1944. Scbre sua figura como sacerdote e como estudioso, N. Zer­ nov, seu grande amigo e profundo conhecedor, deixou-nos este precio­ so testemunho: “ O padre Bulgakov foi um padre ortodoxo no pleno sentido da palavra. Toda manhã, às sete horas, encontrava-se na capela do Instituto: a celebração dos Mistérios Divinos era o centro inspi­ rador de toda a sua vida. Nesse sentido, ele seguia fielmente as pe­ gadas de seus antepassados, aqueles homens da família Bulgakov que, uma vez convertidos do islamismo, mantiveram-se sempre firmes na fé. O padre Bulgakov herdou deles aquele zelo pastoral que foi uma das características que mais o distinguiram nos últimos anos de sua vida”2. Na base de seu zelo pastoral estava a convicção de que todos os homens são feitos à imagem de Deus e estão destinados para a vida eterna, sendo o sacerdote responsável perante Deus por suas almas. Era essa convicção que o impelia a viver uma vida espiritual bastante intensa. Era dotado de forte personalidade, mas nunca impunha a sua autoridade aos discípulos, porque tinha grande respeito pela liberdade individual. Dava-lhes conselhos, mas não pretendia que os seguissem. Dotado de grande talento, via sob uma luz pessoal todo problema que 2 N. Z ernov , lh e Russian Religious Renaissance of the X X Century, Londres, 1963, p. 142.


enfrentava. Nunca se contentava com as soluções que tivessem como única base a tradição. Era um revolucionário no melhor sentido do termo, “ não um homem que quisesse a destruição por amor à des­ truição, mas um homem decidido a construir e criar, que não se satisfazia a não ser com o ótimo, tanto nas doutrinas como nas ins­ tituições” 3. Era um combatente nato, que não tinha medo de tornar-se impopular debatendo questões que outros teriam preferido arquivar. Assim, por exemplo, na Conferência Ecumênica de Lausanne abalou os representantes das igrejas evangélicas chamando sua atenção para a posição única ocupada pela Mãe de Deus na vida da Igreja. Alguns anos mais tarde, ao contrário, assustou as igrejas ortodoxas com a proposta da intercomunhão parcial como meio para chegar à reunião total. Também o ponto mais original de sua especulação teológica, a “ sofiologia” , lhe atraiu numerosas críticas e até mesmo anátemas. Mas Bulgakov nunca desanimou.

II. OBRAS

Fruto de seu gênio multiforme e fecundo, a produção literária de Bulgakov é vastíssima, abarcando todo um conjunto de disciplinas que vai da economia à sociologia, da história à filosofia, da apologé­ tica à teologia. Já fizemos referência às suas primeiras obras, de caráter eco­ nômico e filosófico: O Papel do Mercado na Produção Capitalista (Petersburg, 1 896); Capitalismo e Agricultura (idem, 1 900); Do Marxismo ao Idealismo {idem, 1903). Agora, passemos a uma breve resenha de suas obras filosóficas e teológicas. O livro Filosofia da Economia (Moscou, 1912) contém o pri­ meiro esboço da “ s o f i o l o g i a Já Luz Indefectível (idem, 1917) é o desenvolvimento completo da “ sofiologia”, um compêndio de todo o pensamento filosófico religioso russo. Através da “ sofiologia” , Bulga­ kov esforça-se por superar as filosofias que dominavam o início do século, o kantismo, o idealismo e o marxismo. Repele o kantismo por­ que ergue uma barreira entre pensamento e ser; o idealismo pelo pre­ domínio universal que concede à razão; o marxismo pelo papel exage­ rado que atribui aos problemas da sociedade, em detrimento dos problemas da vida religiosa. Um desenvolvimento mais amplo da “ sofiologia” , com todas as aplicações e implicações na área da teologia, deu origem a duas gran­ des trilogias. A primeira abrange: A Sarça Ardente (Aubier, Paris, 1927), que expõe a mariologia; O Amigo do Esposo (idem, 1928), sobre são João Batista; A Escada de Jacó (idem, 1930), que trata 3 Ibid.,

p.

143.


da angelologia. Note-se que todas as obras mencionadas até aqui es­ tão em língua russa. A segunda trilogia abrange: O Cordeiro de Deus {idem, 1933), sobre a cristologia; O Consolador {idem, 1936), sobre a pneumatologia; A Esposa do Cordeiro {idem, 1945), sobre a eclesiologia e a escatologia. Além do russo, esses três livros também estão disponíveis na tradução francesa. Duas obras que podem servir de introdução ao pensamento de Bulgakov são: L ’Orthodoxie {idem, 1932) e The Wisdom of God: Brief Summary of Sophiology (Scribner, Nova York, 1937).

III. FILO SO FIA , T EO LO G IA E

“ SO FIO LO G IA

A especulação de Bulgakov parte da exigência de dar à Igreja Ortodoxa uma teologia sistemática, em conformidade com suas tra­ dições e seu espírito. Os teólogos russos do século X I X já haviam denunciado as de­ formações a que fora submetida a Ortodoxia devido à aceitação de sistemas teológicos ocidentais de derivação católica ou protestante. Alguns tinham ido mais adiante, propondo princípios para a constru­ ção de uma nova teologia: por exemplo, Soloviev, com a doutrina do Deus-Humanidade e Khomiakov, com a doutrina da Sohornost’, Mas ninguém havia elaborado um sistema completo da Ortodoxia. A essa empresa colossal dedicou-se Serghiei Bulgakov, que a levou a termo em dois momentos: nõ primeiro, elaborou uma filosofia cristã-ortodoxa; no segundo, utilizando-se de tal filosofia, reinterpretou e reestruturou os aspectos do credo ortodoxo. Devemos observar prontamente, porém, que em Bulgakov es­ ses dois momentos são distintos apenas logicamente. O seu sistema não tem duas seções, uma filosófica e outra teológica; mas é todo, do princípio ao fim, filosófico e teológico. Isso porque o princípio inspirador do seu pensamento, o conceito de “ sofia” ou “ sabedoria” , não é fruto da especulação filosófica pura, mas da reflexão sobre a fé cristã-ortodoxa. Em conseqüência, é um princípio que vale em termos filosóficos sim, mas que desde o ponto de partida está envolto num manto teológico. Não é um conceito formal, ou seja, um esque­ ma mental ainda aberto, como os conceitos da filosofia grega (por exemplo, os conceitos aristotélicos de substância e causa ou os con­ ceitos platônicos de idéia e alma) ou os conceitos da filosofia mo­ derna (por exemplo, os conceitos kantianos de transcendental e númeno), que são todos conceitos teologicamente vazios e recebem um conteúdo novo quando são utilizados pelo teólogo. O seu é um con­ ceito já materialmente determinado e teologicamente pleno. E essa


é a razão da impossibilidade de Bulgakov traçar uma linha de demarca­ ção entre filosofia e teologia4. Bulgakov chama o seu sistema filosófico-teológico de " sofiologia” porque se baseia inteiramente no conceito de “ sofia” ( “ sabedoria” ). Ele justifica a escolha do conceito de “ sofia” como conceito-chave do seu sistema com a tese de que, enquanto a visão cristã ocidental pode ser expressa adequadamente através dos conceitos de ser, liberdade, graça ou salvação, a visão cristã oriental só pode ser expressa plenamente através do conceito de “ sabedoria” . Como prova dessa tese ele apresenta dois argumentos, um de ordem his­ tórica, outro de ordem teorética. O primeiro diz que o conceito de “ sofia” tem atrás de si .uma longa história na teologia e na Igreja do Oriente. Na teologia, ele já ocupava o primeiro lugar nas especulações de Orígenes e de Clemente. Na liturgia, o culto da sabedoria de Deus remonta a tempos remotíssimos, especialmente em Constantinopla, onde lhe foi erigido o templo de “Haghia Sofia’’ . Na Rússia, o culto da “ sabedoria” sempre foi muito vivo. O argumento de ordem teorética mostra que o conceito de “ sofia” permite superar as duas falsas con­ cepções de mundo mais difundidas hoje em dia: em primeiro lugar, o maniqueísmo, inimigo das criaturas; em segundo lugar, o secularismo, que separa o mundo profano das fontes vivas da vida espiritual e religiosa. Com efeito, a “ sofia” uneo mundo material e o mundo espiritual, Deus e o homem, estando presente onde quer que seja, em Deus de modo infinito, no homem e nas outras criaturas de modo finito. Deus e mundo não estão separados por um abismo insuperá­ vel, porque o mistério da “ sabedoria” afeta todas as coisas Tudo é “ sabedoria ” .

IV. A “ S O F IA ” NO M IST É R IO T R IN IT Á R IO Segundo Bulgakov, a natureza de Deus pode ser considerada de dois modos: como é em si mesma, ou seja, como vida da qual Deus vive; ou então enquanto comunicável e revelável. Quando con­ siderada do segundo modo, temos “ a sabedoria divina incriada” , que é definida como “ mente divina que se pensa a si mesma” 5 ou então Zander diz muito bem que “o dogma nunca foi para Bulgakov apenas uma norma ou uma regra de fé, mas sempre resposta a um problema, um postulado da ra zão, uma questão colocada ao pensamento. Daí o caráter dinâmico do pensamento do padre Serghiei. Daí a profunda ligação existente entre seu pensamento filosófico e teo­ lógico: para ele, uma filosofia que não conduz ao dogma é uma mentira; uma dog­ mática que não resolve um problema de filosofia está morta. Pode-se formular assim a convicção fundamental do padre Serghiei, uma convicção que confere à sua filo­ sofia a seriedade de uma experiência religiosa e às suas pesquisas dogmáticas a força das verdades penetrantes. Daí, enfim, sua intenção de fundar uma filosofia ortodoxa, de colocar a ortodoxia na base da ontologia, da cosmologia, da filosofia, da cultura e da gnoseologia” ( Z a n d e r , o . c ., pp. 170-171). 5 O Cordeiro de Deus, Paris, 1933, pp. 125ss.


como “ organismo universal das idéias divinas” 6. Também pode ser descrita como ser que contém em si a plenitude das imagens divinas. Bulgakov chama-a além disso de “ mundo divino” , “ protótipo da cria­ ção” , “ humanidade celeste” 1. Com essas expressões, ele quer dar a entender que a “ sofia” não é uma simples idéia ou uma coleção de idéias, mas algo de vivo e real, ainda que não-hípostático. Na “ sofia” eterna podem ser distinguidos dois aspectos: o da Revelação da plenitude do ser divino ou da universalidade das idéias divinas na unidade e o da revelação da bem-aventurança e da beleza de Deus. Considerada segundo este último aspecto, ela se chama “ Glória de D eus” . Esta — precisa o teólogo — não é a glória dada pelas criaturas a Deus, mas sim a glória e o gáudio que Deus tem em si mesmo. A “ sofia” eterna pertence indistintamente a todas as três Pessoas divinas. Porém é revelação da Segunda ou da Terceira Pessoas, de­ pendendo do aspecto sob o qual a consideramos. É revelação da Se­ gunda Pessoa, ou seja, do Verbo, se a consideramos como universali­ dade das idéias divinas. É revelação da Terceira Pessoa, ou seja, do Espírito Santo, se a consideramos como Glória de Deus. Como se vê, para Bulgakov as relações intratrinitárias não são relações de origem e causalidade, como ensina a teologia latina, mas relações mútuas de revelação: o Pai se revela, o Filho e o Espírito Santo revelam o Pai. Estabelecendo uma distinção entre processão ( proischozdnie) e saída (ischozdnie) , Bulgakov afirma que a “ geração” do Filho e a “ expiração” do Espírito Santo não podem ser compreendidas com o conceito comum de processão. Com efeito, introduzir processões em Deus — diz Bulgakov — significa necessariamente tender a afirmar a desigualdade das Pessoas e a um certo caráter subordinativo de que está infectada toda a teologia católica sobre a Trindade, O único conceito legítimo é o da “ auto-revelação” . Bulgakov não admite as Pessoas como relações subsistentes; diz mesmo que essa sentença é um absurdo teológico. Concebe muito mais as relações trinitárias como relações predicamentais. Como já dissemos, a “ sofia” é propriedade de todas as três pes­ soas divinas; porém, em sua hipóstase imediata, a “ sofia” se identifi­ ca com o Verbo; por isso, pode-se afirmar que a “ sofia” é o Verbo de Deus e, vice-versa, que o Verbo de Deus é a “ sofia” . Já o Espírito Santo é a hipóstase do amor. “ O amor de Deus, o amor do Pai pelo Filho e o amor do Filho pelo Pai, não é uma simples qualidade ou uma relação: ele possui uma vida pessoal, uma vida hipostática. O amor de Deus é o Espírito Santo, que procede do Pai ao Filho e que repousa nele. O Filho só existe para o Pai no Espírito Santo que repousa nele. Igualmente, o Pai manifesta o 6 Ibid. ' "Zur Frage nach der Weisheit Gottes” em Kyrios, 1936, pp. 93ss.


seu amor ao Filho através do Espírito Santo, que é a unidade de vida do Pai e do Filho. Esse é o lugar do Espírito Santo no âmbito da Santíssima Trindade” 8. Bulgakov afirma que tanto a doutrina oriental sobre a pro­ cessão do Espírito Santo do Pai para o Filho como a doutrina oci­ dental sobre a processão do Pai filioque são puras sentenças teo­ lógicas e que essa divergência doutrinal não foi o empecilho que impediu a comunhão entre as Igrejas. Na época de Fócio, essa divergência foi exasperada ao máximo. Mas tanto a sentença de Fócio ( a Patre solo) como a dos latinos ( a Patre Filioque tamquam ab unico principio) eram inovações. O erro de ambas as facções consiste no fato de que um simples theologoumenon foi decla­ rado um dogma. Ademais, a própria posição da questão — vale di­ zer, relações trinitárias como processões de origem — é radicalmente errada, como já se disse. O inextrincável problema só pode ser resolvi­ do com o abandono desse falso ponto de partida.

V. A “ SO F IA ” E A CRIAÇÃO A “ sofia” eterna incriada constitui, segundo Bulgakov, o fun­ damento suficiente da criação. Com efeito, a “ sofia” eterna, ou seja, o “ mundo divino eterno” , é o modelo da “ sofia” criada, isto é, o mundo criado, porque este foi criado como imitação daquele. Na criação, Deus coloca o seu modelo eterno fora de si, como mundo “ por fazer” e limitado no ser; por isso, tudo aquilo que se encontra unido na “ sofia” eterna encontra-se multiplicado na “ sofia” criada. A criação do mundo é obra de toda a Santíssima Trindade; mas ela guarda uma referência especial ao Verbo, que, enquanto “ so­ fia ” , é o receptáculo das idéias. Por esse motivo, Bulgakov chama o Verbo de “ hipóstase demiúrgica” . À parte os aspectos trinitários, a doutrina “ sofíológica ” de Bulgakov, até esse ponto, apresenta fortes afinidades com a doutrina do “ Logos” de Fílon de Alexandria9. Mas as afinidades não terminam aí. Como o pensador judeu, ele defende uma teoria que a teologia cristã abandonou há muitos séculos, a teoria de que o mundo visível não foi criado imediatamente nem por Deus nem pela “ sofia” , mas pelo mundo angélico, que é a primeira manifestação “ad extra” da “ sofia” eterna e, ao mesmo tempo, é a idéia exemplar imediata do mundo visível10. * UOrtbodoxie, Paris, 1932, p. 2. 9 Sobre Fílon, cf. H. W o l f s o n , Philo, Cambridge (Massachussets), 1948, 2 vo­ lumes. 10 Cf, A Escada de Jacá.


Deus não tinha necessidade do mundo e, nesse sentido o mun­ do foi criado livremente. No entanto, afirma Bulgakov, a criação é necessária não apenas em relação ao mundo, mas também em relação ao amor de Deus, cuja característica própria é a de expandir-se além de todo limite (os limites da divindade) e de exaurir todos os modos em que pode se manifestar. Por conseguinte, conclui o nosso teólogo, Deus não pode ser pensado sem o mundo e não pode não ser criador. Na criação, a “ sofia” eterna torna-se “ sofia” criada não só no sentido de que o mundo é a imagem do exemplar “ sofiânico” , mas também no sentido de que a “ sofia” eterna, ou seja, Deus, entrou realmente na vida do mundo e vive não só com o mundo, mas tam­ bém no mundo, sujeitando-se voluntariamente ao mesmo modo de viver do mundo, inclusive à sua temporalidade. Portanto, a realidade do mundo e a realidade do tempo não são apenas colocadas por Deus, mas também têm valor em relação ao próprio Deus. Bulgakov conclui que, com a criação, Deus torna-se “ correlativo” ao mundo: de Absoluto torna-se Relativo; é o Absoluto-Relativo. No entanto, segundo nosso teólogo, isso não significa aceitar o panteís­ mo, porque o mundo permanece sempre distinto, real e essencial­ mente de Deus. Tendo sido criado à imagem da “ sofia” eterna, o mundo tem em si as características da “ sofianicidade ” ( sofiinost') ; porém, per­ manece imperfeito e incompleto, já que é ao mesmo tempo idêntico e não-idêntico à “ sofia” . Ele tende, todavia, a conquistar continua­ mente a conformidade perfeita com ela, ou seja, procura divinizar-se. A evolução para a divinização total é obra tanto do homem como de Deus, que dela participa com sua divina providência. A divinização do mundo só pode ser cumprida através de uma dura e longa viagem, especialmente em conseqüência da queda do pri­ meiro homem. VI. A “ S O F IA ” E O HOMEM O homem ocupa uma posição privilegiada no mundo. Como Fílon, Clemente de Alexandria, João Damasceno e outros Padres, Bulgakov afirma que o homem é um “ microcosmo” , que contém em si todos os elementos do mundo. Precisa, entretanto, que o homem se distingue do mundo, porque Deus comunicou-lhe sua imagem (G n 1,26-27), a imagem da divina “ sofia” . Juntamente com alguns Padres e teólogos gregos, Bulgakov dis­ tingue no homem três elementos: corpo, alma e espírito. O espírito é o que lhe confere a personalidade. Antes de receber o espírito, o homem já possui tudo aquilo que outros animais possuem, ou seja, o corpo e a alma.


Em Adão, o homem universal, fonte e origem do gênero humano, Deus infundiu uma alma perfeita, na qual estão contidas todas as almas individuais. Os descendentes de Adão derivam o corpo e a alma de seus genitores; já a imagem de Deus, o espírito divino, recebem do próprio Deus. Em relação à natureza da justiça original, Bulgakov discorda decididamente da doutrina católica. Segundo ele, tal justiça não consis­ tia nos privilégios da ciência infusa, da incorruptibilidade, etc., mas sim na imagem da “ sofia” . A presença dessa “ sofianicidade ” conferia ao homem uma dupla dignidade, cósmica e moral. Em virtude da dignidade cósmica, ele era soberano de todas as criaturas. Em virtude da dignidade moral, encontrava-se num estado de exímia santidade, imortalidade e de supra-sexualidade 11. A santidade colocava Adão em comunicação imediata e direta com Deus. Portanto, conclui Bulgakov, no estado original havia uma íntima conexão entre graça e natureza, não existindo nenhuma dis­ tinção efetiva entre o natural e o sobrenatural12. Nosso teólogo considera essa distinção absolutamente errada; chama-a o proton pseudos, o primeiro erro da teologia católica, um resíduo do semipelagianismo que se infiltrou na teologia latina pós-tridentina e contemporânea através do agostinismo de Baio e dos semi-racionalistas Hermes e Günther. Bulgakov apresenta muitos argumentos contra a distinção entre natural e sobrenatural, mas todos podem ser resumidos no seguinte: a referida distinção é uma esquematização que se choca contra a psi­ cologia humana e violenta-a, é um resíduo do caráter jurídico dos latinos. Enfim, em que consiste a graça? Bulgakov a define de modos variados, ora como imago Dei, ora como vida divina, ora como relação entre Deus e o homem, ora como operação de Deus no homem. Mas nunca a examina acurada e exaustivamente. Quanto à imunidade à concupiscência de que eram dotados os protopais, nosso teólogo a interpreta como supra-sexualidade. Isso significa que neles a masculinidade e a feminilidade não se baseavam no sexo. E, conseqüentemente, se Adão e Eva tivessem permanecido na justiça original, a geração dos filhos não ocorreria carnalmente, mas sim espiritualmente e virginalmente. Segundo Bulgakov, Adão e Eva foram criados como macho e fêmea para imitar a exemplaridade divina da geração: Adão imita a geração do Filho, modelo de toda paternidade; Eva imita a processão do Espírito, modelo de toda maternidade. Essa é, em síntese, a doutrina bulgakoviana sobre a justiça ori­ ginal. Baseia-se inteiramente no princípio de que o homem foi feito à perfeita imagem de Deus, ou, mais exatamente, da “ sofia” divina. 11 L ’Orthodoxie, Paris, 1932, pp. 146-147. 12 Ibid., p . 147.


Ao homem, como já se disse, cabe a tarefa de cooperar com Deus na realização da conformidade perfeita com a “ sofia” eterna. Cabe-Ihe tal tarefa em virtude de sua natureza, que, enquanto composta de alma e corpo, reúne em si todos os elementos do universo (é um microcosmo), e em virtude de sua semelhança com a “ sofia” divina. Daí ser o homem o “ sacerdote” do mundo criado, quase o seu “ lo­ go s” . No estado de justiça original, antes do pecado, o homem estava em condições de conduzir o mundo para a perfeita “ sofianicidade ” a que estava destinado. Contudo, com o pecado, o homem sofreu a atração do mundo e perdeu a capacidade de elevá-lo à “ sofia” eterna. O homem pecou porque era livre e finito. No pecado de Adão, Bulgakov distingue dois aspectos, um subje­ tivo (a culpa) e um objetivo (o fato e suas conseqüências). O as­ pecto subjetivo do pecado original consiste na soberba, na desobe­ diência e na impiedade. O aspecto objetivo consiste na separação de Deus, na concupiscência, na enfermidade e na mortalidade. Quanto à concupiscência, nosso teólogo sustenta logicamente que ela implica também a sexualidade. Como Bulgakov coloca uma conexão necessária entre natureza e graça, parece que a perda desta deve comportar também a corrup­ ção daquela. Porém não se trata de uma corrupção total, porque a imago Dei, que constitui a essência da graça, não se perdeu inteira­ mente, mas foi somente reduzida ao estado potencial. O pecado original teve repercussões sobre todos os descendentes de Adão. À exceção de Jesus Cristo, todos os homens nascem com as conseqüências subjetivas e objetivas do pecado: culpa e privações. A transmissão do pecado original ocorre através da geração. O pecado original não repercute somente sobre o homem, mas também sobre todo o cosmos. E isso faz com que a “ sof ianicidade ” de que o universo foi dotado na criação também seja ofuscada e re­ duzida ao estado potencial.

V II. CRISTO , ENCARNAÇÃO DA “ SO F IA ” ETERNA A imagem divina foi reativada ao homem e reconduzida ao es­ tado atual por obra de Jesus Cristo, o Verbo encarnado, o Homem-Deus terrestre, cópia perfeita do Homem-Deus celeste. Já vimos que o título de “ humanidade celeste”, mesmo perten­ cendo a toda a Trindade, é um título que cabe principalmente ao Verbo enquanto hipóstase da Sabedoria eterna. Por isso, na sua hipóstase, o Verbo é eternamente “ Deus-Homem”, modelo do Verbo en­ carnado. Segundo Bulgakov, aí reside o fundamento ontológico da Encar­ nação, um fundamento que nem a teologia patrística nem a teologia


escolástica souberam reconhecer. E é nessa falta de reconhecimento que ele vê a causa da fragilidade das concepções tradicionais da união hipostática. Conforme entende nosso teólogo, no período patrístico a expli­ cação mais satisfatória dessa verdade foi apresentada por Apolinário. Em geral, porém, a teologia patrística não só não apresenta nada de certo sobre o modo da união hipostática como também não reconhece nem mesmo uma verdadeira e própria união interna, considerando unilateralmente só a humanidade ou só a divindade. E tampouco a teologia escolástica contribuiu para resolver tal questão, pois, segundo Bulgakov, o que fez foi obscurecê-la ao traduzi-la nos termos da filo­ sofia aristotélica. A teologia protestante, ao contrário, lança uma certa luz sobre o problema com a doutrina da kenosis. Na solução proposta por Bulgakov, a união hipostática não é mais apresentada como um ato externo, ontologicamente arbitrário, mas como uma realidade ontologicamente fundada e predeterminada que, portanto, teria se efetuado mesmo independentemente do pecado de Adão. Ele coloca o fundamento ontológico no fato de que o homem é imagem de Deus, criado em imitação à “ sofia” celeste, tendo na reprodução perfeita da “ sofia” incriada o objetivo de sua existência. No entanto, como há uma distância infinita entre o criado e o Incriado, o homem não está em condições de alcançar tal objetivo com suas próprias forças. Daí, através da kenosis de Deus, a “ sofia” celeste torna-se “ sofia” terrestre, o Homem-Deus celeste torna-se Homem-Deus terrestre. Quanto à razão da unicidade da pessoa no Verbo encarnado, Bulgakov repele a explicação de são Tomás, segundo a qual esta unicidade teria como base o fato de que, enquanto a natureza divina tem o seu próprio ser, a natureza humana, ao contrário, subsiste no ser da natureza divina; ora, dado que a constituinte essencial da pes­ soa é a posse do próprio ato de ser, a natureza humana, sendo privada dessa posse, não é pessoa em si mesma, mas somente através da pessoa divina. Bulgakov considera essa explicação inaceitável, uma vez que, segundo sua concepção, natureza e hipóstase são dois correlativos que concretamente nunca podem ser separados: não pode haver natureza sem hipóstase, nem hipóstase sem natureza. Para formular a doutrina da unicidade da pessoa, Bulgakov re­ corre à terminologia espírito-hipóstase, ao invés da terminologia tomista natureza-pessoa. O constituinte essencial da hipóstase, isto é, da pessoa, é o espírito. Tem-se hipóstase humana onde há espírito humano; tem-se hipóstase divina onde há espírito divino. Ora, no caso de Jesus Cristo — declara o nosso teólogo — há somente o espírito divino, que também exerce as funções do espírito humano. Por isso, há só uma hipóstase nele, a hipóstase divina. Portanto, em Cristo se dá somente um centro hipostático, o Ver­ bo, que ocupa também o lugar do espírito humano. Este centro é a fonte da única e idêntica vida do Deus-Homem, nas duas nature­


zas. Sobre tal unidade de vida é que se baseia a doutrina clássica da comunicabilidade dos idiomas. Somente Jesus Cristo, em virtude da união hipostática, pôde curar o homem e reintegrá-lo ao estado de justiça original, restituin­ do-lhe toda a “ sofianicidade ” que recebera de Deus no momento da criação. Cristo redimiu todo o gênero humano, inclusive a Santa Virgem e são João Batista. A redenção objetiva foi operada por Cristo de uma vez por to­ das, mas sua aplicação subjetiva necessita da ação da Igreja. A apli­ cação se efetua concretamente no Batismo: “ na economia presente, só se obtém a redenção do pecado original mediante o Batism o” 13. Na doutrina da redenção, mantendo-se fiel à tradição ortodoxa, Bulgakov dá grande relevo à Nossa Senhora. Para redimir o gênero humano — afirma ele ■— , Cristo teve que assumir a natureza humana, porém uma natureza isenta de pecado. Para tanto, ele tornou-se carne nas entranhas da Virgem, que fora completamente cheia de graça (ou seja, de “ sofianicidade” ) por obra do Espírito Santo. Entretanto, segundo o nosso teólogo, mesmo estando totalmente isenta de todo pecado pessoal, a Virgem não podia deixar de estar afetada pelo pecado original, caso contrário ela mesma teria que ter sido concebida por uma virgem. Mas isso não impediu que Nossa Senhora se tornasse co-redentora do gênero humano. Com efeito, ela participou de todas as dores e da paixão do Filho 14.

V III. AVALIAÇÃO O sistema teológico de Serghiei Bulgakov, desde o seu apareci­ mento, despertou entusiasmo e aprovação em alguns, preocupação e crítica em outros. Duas autoridades da Igreja Ortodoxa, o metropolita Serghei de Moscou e o Concílio de Karlovcy, tomaram oficialmente posição con­ tra Bulgakov, condenando-o como herético. No seu documento de condenação, o metropolita Serghei apresenta contra o sistema de Bulgakov três acusações: 1) não leva em conta os ensinamentos e a tradição da Igreja; 2 ) está eivado de gnosticismo; 3) apresenta a sal-

Ibid.j p. 150. 14 Sobre a doutrina tnariológica d e Bulgakov, cf. B. W y n n y c z u k , Doctrina Sergii Bulgakov de Positiva et Negativa Sanctitate B. M. Virginis, tese de mestrado na Pon­ tifícia Universidade Urbaniana, Roma.


vação como resultado de um processo cósmico e, desse modo, mina os fundamentos da moral e da vida espiritual15. Mas a maior parte dos teólogos colocou-se a favor do autor da “ sofiologia” , mesmo não compartilhando todos os seus pontos de vista. Na “ sofiologia” eles encontraram um sistema que, longe de ser es­ tranho à Ortodoxia, desenvolve as suas características mais genuínas, como a ânsia da unidade e de “ onicompreensibilidade” , a inspiração mística e litúrgica, a aversão pela especulação abstrata 16. Nós também somos de opinião de que os primeiros dois argu­ mentos apresentados pelo metropolita Serghei contra Bulgakov não são pertinentes. Sua obra teológica não se deve a um desvio da tra­ dição ortodoxa em favor do gnosticismo, mas sim ao desejo de expli­ car teologicamente alguns textos da Escritura, dos Padres, da liturgia e alguns documentos iconográficos, tudo pertencendo à tradição orto­ doxa — e pertencendo-lhe tão intimamente que, se delas fosse pri­ vada, já não seria mais ela mesma. Quanto ao gnosticismo, quem leu as obras de Bulgakov sabe bem que é uma teoria pela qual ele nunca teve simpatia. Parece-nos que a acusação de gnosticismo não pode afetar Bulgakov mais do que a Orígenes, Clemente de Alexandria e todos os outros pensadores cristãos que, aplicando a razão à Escritura, procuraram elaborar uma visão de conjunto de toda a realidade huma­ na e divina, isto é, procuraram desenvolver uma Weltanschauung cris­ tã. Aliás, a acusação pode afetar Bulgakov ainda menos do que a muitos outros teólogos, comumente reconhecidos como ortodoxos, por­ que ele deriva o princípio arquitetônico do seu sistema, a “ sofia” , diretamente da Sagrada Escritura. Entretanto, não nos parece que o pensamento de Bulgakov pos­ sa ser aceito completamente 17. Há nele algumas teses que um católico não pode compartilhar, seja porque se chocam contra a Sagrada Escri­ tura (por exemplo, a tese sobre a necessidade da criação e da Encar­ nação) ou porque se chocam contra verdades dogmáticas (por exem­ plo, a negação da imaculada concepção da Virgem) ou ainda porque são contrárias a toda a tradição teológica, tanto oriental como ociden­ tal (por exemplo, a negação de que as relações trinitárias são essen­ cialmente relações de origem).

Os textos das condenações a Bulgakov podem ser encontrados em Irenikon, 1936, pp. 174-176. 16 Cf. C. L i a l i n e , “ L e Débat Sophiologique” em Irenikon, 1936, pp. 194ss. >7 No entanto, em minha opinião, o juízo de Lialine sobre a obra de Bulgakov é muito severo. Para ele, “ a sofiologia parece uma filosofia religiosa com relações muito fracas com a Revelação; é o produto de uma mentalidade religiosa de traços simbolistas e panteístas; é digna de interesse e de estudo não estreitamente teológicos, mas sim religiosos”. “ O sistema de Bulgakov parece-nos teologicamente pouco funda­ mentado e, portanto, imprudente. E até mesmo temerário, quando sem razões aparen­ temente suficientes vai contra as opiniões teológicas comumente reconhecidas” (C. L i a l i n e , o . c . , pp. 202ss).


Não obstante, há também no pensamento de Bulgakov muitos méritos que o tornam caríssimo ao leitor católico, como, por exemplo, o cristocentrismo, a doutrina da imago Dei, a doutrina da “ divinização” e a devoção à Virgem.

Nota bibliográfica. — O melhor estudo sobre o pensamento de S. Bulgakov é o de L e o Zander, Deus e o mundo (Filosofia e Teologia do Padre Bulgakov), em russo, 2 volumes, Paris, 1948. Outros ensaios que merecem ser consultados são os seguintes: T. S p a c i l , “De Theologicis Conceptibus et Doctrinis prof. Sergii Bulgakov” em Orient. Christ. Periodica, 1928, pp. 195-207; S. T y s z k i e w i c z , “ Die Lehre von der Kirche beim Russische-Orthodoxen Theologie S. Bulgakov” em Zeitschrift für Kath. Theol., 1927, pp. 215ss; C. L ia lin e , “Le Débat Sophiologique” em Irenikon, 1936, pp. 168-205; J. N. D anzas, “Les Reminiscences Gnostiques dans la Philosophie Religieuse Russe Moderne” em Revue de Sciences Phil, et Théol., 1936, pp. 658-685; G. l o V e r d e , “La Filosofia della Trinità di S. Bulgakov” em Logos, 1938, pp. 414-425; E. B e h r -Sp i e g e l , “La Sophiologie du Père S. Bulgakov” em Revue d’Histoire de la Philosophie Religieu­ se, 1939, pp. 130-158; L. Zander, “Le Père Serge Bulgakov” em Irenikon, 1946, pp. 168-185; B. S c h u l t z e , “ Sofia” em Humanitas, 1946, pp. 223-230; I d e m , “ S. Bulgakov zur Lehre des Augustinus” em Orient. Christ. Periodica, 1949, pp. 1-40; A. L itva, “ La ‘Sofia’ dans la Création selon la Doctrine de S. Bulgakov” em Orient. Christ. Periodica, 1950, pp. 39-76; V. V. Zenkovsky, History of Russian Philosophy, Nova York, v. I I , pp. 890-916.


GHIORGHIU FLOROVSKY E A SÍNTESE NEOPATRÍSTICA

Ghiorghiu Florovsky goza a fama de ser “ o mais teólogo russo ortodoxo de hoje” x. E granjeou essa reputação pelo modo como con­ cretizou o seu programa de libertar a teologia ortodoxa das influências católicas e protestantes e renová-la remetendo-a à tradição “ heléni­ ca” e patrística. Ele não o fez com a especulação abstrata ou com a construção de um sistema grandioso, mas sim com o estudo amoroso e meticuloso das fontes. Com a análise atenta do imutável. Procurou na Ortodoxia dos Padres uma resposta para as questões do mundo ocidental e do homem moderno. Florovsky nunca compartilhou o sistema “ sofiológico ” de Bulgakov, entre outras coisas, também por uma aversão inata ao sistema. Apaixonado ecumenista, Florovsky teve um papel fundamental nos acontecimentos relacionados com a inserção da Igreja Ortodoxa no Movimento Ecumênico e com a determinação da natureza e das funções do Conselho Mundial das Igrejas. Por todos esses títulos, ele é indubitavelmente um dos persona­ gens mais gabaritados da teologia contemporânea.

I. V ID A 2 E OBRAS

Ghiorghiu Vassilievich Florovsky nasceu nos arredores de Odessa em 28 de agosto de 1893. Na época, seu pai Basílio era capelão e professor de religião num colégio da cidade. Sua mãe, Cláudia Poprouzhenko, descendia do meio clerical: seu pai era reitor da paróquia da Apresentação de Jesus e professor de grego no Seminário Teológico de Odessa. 1 E. L a n n e , “La Teologia Russa” em Oriente Cristiano, 1968, n. 1, p. 4. 2 Para as notas biográficas, me vali do que já escreveram G . H. W i l l i a m s , “Georges Vassilievich Florov&ky: His American Career (1948-1965)” em The Greek Orthodox Theological Review, X I, 1965, pp. 7-107, e Y. N. L e l o u v i e r , Perspectives Russes sur l'Église — un Théologien Contemporain-, Georges Florovsky, Paris, 1968, bem como das experiências pessoais que pude acumular em 1958, ano em que fre­ qüentei um curso ministrado por Florovsky na Universidade de Harvard sobre a no­ ção de participação no período neopatrístico.


Ghiorghiu recebeu sua educação inicial de seus pais: não foi uma educação apenas profana, mas também religiosa. Assimilou de seus pais um sentido de profunda piedade e um conceito muito eleva­ do de tudo aquilo que diz respeito à religião: a Igreja, os ícones, a liturgia, a tradição, o clero. Realizou seus estudos clássicos num liceu de Odessa, formando-se em 1911. Foi sempre um dos melhores alunos. Ingressou então na Universidade de Odessa, onde inicialmente estudou história e filologia e depois filosofia, psicologia e ciências naturais (química e fisiologia). Teve duas celebridades entre seus professores: o filólogo e psicólogo N. N. Lange, seguidor de W. Wundt, e o biólogo B. Babkin, discípulo de I. P. Pavlov. Em 1917, Florovsky publicou seu primeiro trabalho, um ensaio sobre a secreção salivar, cuja publicação fora recomendada pelo próprio Pavlov. No ano anterior, nosso jovem estudioso elaborara um ensaio intitulado Doutrinas Contemporâneas sobre a Inferência Lógica. Esse escrito juvenil revela a influência da escola neokantiana alemã (so­ bretudo de Husserl) sobre o autor, influência da qual se livrará em seguida a ponto de tornar-se para todo o resto de sua vida um adversário declarado de qualquer forma de idealismo. Em 1919, obteve o Philosophiae Magister e a livre docência em filosofia na Universidade de Odessa. Nesse meio tempo, os comunistas haviam tomado o poder e se aproximavam tempos difíceis para o clero. Em 1920, toda a família Florovsky refugiou-se em Sofia, na Bulgária, juntamente comuma cen­ tena de sacerdotes e intelectuais. No ano seguinte, Florovsky deixou Sofia e rumou para Praga, onde se estabelecera uma grande colônia de emigrados. Prestou novos exames para obter a livre docência em filosofia. De 1922 a 1926, le­ cionou Filosofia do Direito na Universidade de Praga. Durante esse período, Florovsky submeteu todas as suas con­ vicções filosóficas a uma análise crítica: abandonou o idealismo, o kantismo e o racionalismo e voltou à filosofia cristã oriental. Expres­ são dessa conversão filosófica foi o ensaio intitulado As astúcias da R a z ã o um severo exame de todos os sistemas filosóficos do século X IX , do hegelismo ao marxismo, ao cientismo de Comte, ao determinismo freudiano ou darwinista, ao naturalismo de Bergson, ao antipsicologismo de Husserl, ao neo-escolasticismo protestante e à tendência acentuadamente jurídica dos católicos romanos. Em todos esses sistemas, Florovsky denuncia a esterilização da espontaneidade criadora do homem, a coisificação da vida e o matematismo dos mis­ térios. Em seu lugar, propõe uma reabilitação da Tradição cristã oriental, a única, segundo ele, capaz de salvaguardar o sentido do mistério e os direitos da pessoa. } Iskhod k Vostoku, Sofia, 1921, I, pp. 28-39.


Em 1925, realizou-se um sonho que os teólogos da Diáspora cultivavam há anos: a criação em Paris do Instituto Ortodoxo de São Sérgio, para a formação do clero ortodoxo destinado a prestar assis­ tência às comunidades dos exilados e defender a Ortodoxia. A direção do Instituto foi confiada a Bulgakov; Florovsky assumiu a cátedra de Patrologia. E, assim, nosso teólogo transfere-se de Praga para Paris, onde, em 1932, foi ordenado sacerdote e designado para o patriarcado de Constantinopla. Florovsky encontrou no ensino da patrologia o estímulo ne­ cessário para redescobrir aquela “ Tradição cristã oriental” que se tornara o seu novo modo de “ teologar” depois de seu repúdio às filosofias ocidentais e que a polêmica em torno da visão “ sofiológica ” de Bulgakov, na década de trinta, tornava tanto mais urgente. Não participou diretamente da violenta polêmica que se desen­ cadeou em tomo da “ sofiologia”, por razões de respeito para com o diretor de sua escola. Mas ofereceu uma alternativa à teologia de Bul­ gakov com a publicação de dois livros, Os Padres Orientais do Século Quatro (St. Serge, Paris, 1931) e Os Padres Orientais dos Séculos Cinco ao Oito ( idem, 1933). Tais livros contêm o núcleo da “ sín­ tese neopatrística ” ( ou “ sacro-helenismo ” ) com a qual se identifi­ ca a visão teológica florovskyana. Confirmando as teses apresentadas nesses dois livros, em 1937 Florovsky publicou uma obra magistral, Os Caminhos da Teologia Russa 4, na qual demonstrava que do século X V II em diante a teolo­ gia ortodoxa se afastara da tradição patrística, sofrendo profundas infiltrações por parte das teologias católica e protestante. Esses livros deram uma certa celebridade ao nosso autor, mas, ao mesmo tempo, colocaram-no em penoso conflito com seus supe­ riores e colegas do Instituto, que eram todos “ sofiólogos” convictos. Para não piorar a situação, Florovsky deixou por algum tempo de lado a pesquisa científica e dedicou-se exclusivamente à atividade ecumênica. O ecumenismo vinha sendo favorecido pela Igreja Ortodoxa Rus­ sa desde a Primeira Guerra Mundial. Florovsky, porém, só começou a se interessar por ele quando se estabeleceu em Paris. Naquela cida­ de, Berdiaev fundara um círculo ecumênico abrilhantado por nomes ilustres, como Bulgakov, Zenkovsky, Boegner, Maury, Maritain, Du Bos, Mareei e Gilson. Florovsky inscreveu-se no círculo logo que se transferiu para o Instituto São Sérgio. Em 1929, emprestou seu no­ me também para a “ Fellowship of Saint Alban and Saint Sergius” , uma organização ecumênica que reunia estudantes de línguas inglesa e russa. Em 1931, Karl Barth convidou Florovsky para pronunciar uma conferência sobre a Revelação na Universidade de Bonn. Foi um acontecimento memorável na história do ecumenismo. Em 1937, par­ ticipou da Conferência Ecumênica de Edimburgo e causou uma forte 4 Putí Russkovo Bogoslovija, YMCA Press, Paris, 1937.


impressão. Ao término do encontro, foi escolhido para participar do Comitê dos Catorze, encarregado de preparar o Conselho Mundial das Igrejas. Desde então, sempre esteve presente em todos os grandes encontros ecumênicos. E desses encontros nasceram alguns dos escritos mais significativos do nosso autor. Já em 1934, para a “ Fellowship of Saint Alban and Saint Sergius”, escrevera o ensaio intitulado Sobornost’ : the Catholicity of the Church. Em 1948, para a Confe­ rência de Amsterdã, preparou dois longos trabalhos eclesiológicos: The Church: her Nature and Task e Le Corps du Christ: une Inter­ prétation Orthodoxe de VEglise. Nessa conferência, Florovsky fez par­ te da Primeira Seção, tendo como colaboradores Barth, Nygren, Baillie, Lilje, Schlink e Craig. Na presença deles, criticou vigorosamente a expressão “ Conselho Mundial das Igrejas” . Para Florovsky, o plural “ Igrejas” era inadmissível. “ Ainda que a desgraça das divisões cristãs” , declarou o teólogo de Odessa, “ nos obrigue a reconhecer muitas confissões, só há uma única Igreja, a Igreja Ortodoxa, que tem uma função missionária no seio do Conselho M undial.” Em 1950, na Conferência de Toronto, lutou até o fim pela inserção no relató­ rio final do esclarecimento de que a participação no Conselho Mun­ dial das Igrejas não implica para qualquer Igreja-membro a obrigação de reconhecer às outras Igrejas-membros o título de Igreja no verdadei­ ro sentido da palavra. Nessa questão da definição eclesiológica do Conselho Mundial, Florovsky mostrou-se inarredável, fazendo dela uma conditio sine qua non para a participação da Ortodoxia. Na Conferência de Evanston (1 9 5 4 ), lançou uma conclamação a um novo tipo de ecumenismo: “ Ao ecumenismo no espaço deve-se acrescentar também um ecumenismo no tempo” , ou seja, uma nova tomada de contato com os grandes momentos da Tradição apostó­ lica, essencialmente salvaguardados pela Ortodoxia. Além das conferências ecumênicas, Florovsky também freqüen­ tou assiduamente os congressos de filosofia, história e teologia, fa­ zendo-lhes sempre notáveis contribuições. São especialmente memo­ ráveis dois relatórios que leu diante do Congresso Teológico Pan-Ortodoxo de Atenas (1 9 3 6 ), Westliche Einflüsse in der Russischen Theologie e Patristics and Modem Theology. O primeiro trata da “ pseudomorfose” da teologia oriental sob as influências latinas e pro­ testantes; o segundo apresenta o programa de “ re-helenização da Or­ todoxia ” . Durante a Segunda Guerra Mundial, nosso teólogo buscou refú­ gio inicialmente na Suíça, depois na Iugoslávia e finalmente na Tchecoslováquia. Depois da guerra, retornou a Paris. Em 1948, coube-lhe a tarefa de reorganizar o Seminário Orto­ doxo de São Vladimir, em Nova York. E assim teve início a fase norte-americana de sua vida. As medidas por ele impostas para a reforma acadêmica do Se­ minário foram consideradas muito rigorosas por parte dos colegas e estudantes; por isso, em 1955, demitiu-se das funções de decano.


No ano seguinte, ingressou na Faculdade de Teologia da Universidade de Harvard, na qualidade de professor de História da Igreja Orien­ tal. No ambiente sereno e acolhedor de Harvard, passou a se dedi­ car novamente à pesquisa científica. Desenvolveu e aperfeiçoou sua “ síntese neopatrística” e organizouum grupo de estudos sobre o tema “ Teologia e H istória” . Quando do anúncio da convocação do Concílio Vaticano II, embora se alegrando com o acontecimento, Florovsky manifestou algu­ mas reservas ao convite enviado por Roma à Igreja Ortodoxa para que enviasse alguns de seus membros da hierarquia como observa­ dores. Pareceu-lhe um sistema muito triunfalista e paternalista. Segun­ do ele, o convite devia ser endereçado somente aos teólogos 5. Em 1964, alcançado o limite de idade, deixou a cátedra de Har­ vard e ingressou na Universidade de Princeton, na qualidade de visiting professor. Na festa de despedida organizada pelos colegas de Harvard, o professor G . H. Williams pronunciou um aplaudidís­ simo discurso, dizendo, entre outras coisas: “ Cidadão de Odessa, cidade poliglota e interconfessional, filho de um arcipreste da Ortodoxia russa, aluno magistral de Odessa e de Praga, co-fundador do Instituto de São Sérgio em Paris e do Semi­ nário de São Vladimir em Nova York, padre do Conselho Mundial das Igrejas, nós, de Harvard, te saudamos como estudioso formador de estudiosos, como leal homem de Igreja e como genial colega, membro respeitado da Nova Cambridge, também ela poliglota e interconfes­ sional. E, enquanto te dizemos adeus ( . . . ) e te vemos pronto a abri­ lhantar uma outra universidade, já sentimos o frio e a escuridão descendo sobre nossos dias, conscientes de que durante todo o tempo em que ficaste entre nós fomos aquecidos e iluminados por um pouco da glória da Luz Incriada que foi estranhamente trazida a nós. Nós te somos agradecidos. Que Deus esteja sempre contigo no resto da tua peregrinação, cidadão de uma cidade de sólidos alicerces” 6. Como seu antigo aluno, recordamos Florovsky como o mais amável e humilde dos professores, que nunca alardeava sua imensa cultura, pois estava mais preocupado em conclamar ao estudo e ao amor à sabedoria do que comunicar informações interessantes ou doutrinas originais. Dele nos lembramos com um reconhecimento pro­ fundo por seus preciosos conselhos e pela assistência pressurosa que nos prestava em nossas pesquisas. E nos lembramos dele também por seu sentido de profunda religiosidade e piedade mística com que ce­ lebrava a sagrada liturgia. Dos grandes teólogos do nosso século, nenhum publicou tão pouco como Florovsky: apenas três livros e uma centena de artigos. Dos livros e também dos artigos mais importantes, já falamos ao lon­ go das notas biográficas. Por isso, desta vez, omitimos a seção 5 Cf. o artigo “On the Prospective Council of the Roman Church” Vestnik Russkovo Studentchskovo Kristianskovo Dvijenija, 1959, pp. 33-36. 6 W illia m s ,

o .c .,

p.

107.

em


habitualmente reservada às obras e passamos diretamente ao pensa mento do teólogo de Odessa.

II. A SÍN T ESE N EO PA TRÍSTICA

Florovsky deu vários títulos ao seu programa teológico: “ helenismo sacro”, “ helenismo cristão”, “ re-helenização do cristianismo” , “ síntese neopatrística” 1. São todos títulos expressivos: os primeiros três acentuam o componente filosófico de sua teologia; o último indi­ ca o modelo teológico no qual pretende se inspirar. Por “ helenização ” entende a racionalização da Sagrada Escritura através das categorias filosóficas do pensamento grego. Não compar­ tilha a antipatia de Adolf Harnack e de alguns de seus discípulos tardios, como T. J. Altizer e L. Dewart, por essa recionalização. Pelo contrário, considera-a como “ uma categoria permanente da ex­ periência cristã” , achando ser necessário “ sermos mais gregos para sermos verdadeiramente católicos, para sermos autenticamente orto­ doxos” 8. Mas Florovsky faz questão de esclarecer que há uma diferença radical entre “ helenismo cristão” e gnosticismo. Este, segundo o teólogo de Odessa, é a busca de um conhecimento religioso que nun­ ca consegue alcançar a verdadeira liberdade da vida religiosa9. Esse conhecimento foi chamado gnose no sentido pejorativo do termo, porque está associado a sistemas de pensamento que não garantem nenhum fundamento à liberdade da fé e não permitem que se tome consciência das antinomias insuperáveis da vida e do pensamento que se desenvolvem fora de Deus. Florovsky chegou até mesmo a suge­ rir a existência de uma conexão genética entre o gnosticismo antigo e a cabala hebraica; e, numa ousada generalização, reuniu num único grupo, ao qual deu o nome de “ teosofias para-escriturísticas” , o deís­ mo, a maçonaria, o idealismo alemão e grande parte do pensamento russo moderno, inclusive a “ sofiologia ” . Segundo ele, o gnosticismo não é um perigo que tenha se exaurido durante os primeiros séculos do cristianismo, mas sim uma ameaça que o persegue continuamente 10. O programa de Florovsky não é o programa do cripto-gnosticismo dos “ sofiólogos ” ; tampouco é o programa oposto da neo-orto7 Cf. F l o r o v s k y , “Patristics and Modern Theology” em Procès-verbaux du ler Congrès de Theologie Orthodoxe à Athènes, Atenas, 1939, pp. 238-242; “ Cristianity and Civilization” em St. Vladimir’s Seminary Quarterly, 1952, pp. 13-20; “The Cristian Hellenism” em The Orthodox Observer, 1957, pp. 9-10. 8 Ibid., p. 242. 9 Cf. “Le Astuzie della Ragione” em Dukhovna Kultura, Sofia, 1921, pp. 85-96, em búlgaro. 10 Cf. “Ein Unveröffentlichter Aufsatz von Vladimir Soloviev” em Zeitschrift für Slavische Philologie, 1965, pp. 16-26; 90-100.


doxia barthiana; na verdade, é o programa da “ síntese neopatrística”, Esta tem como ponto de partida a fé em Cristo como Pessoa, como Verdade, como Cabeça do Corpo místico dos fiéis, como único recur­ so para o indivíduo e para a 'humanidade durante o período de inte­ rinidade que vai da criação até o fim do mundo. Segundo o nosso teólogo, a teologia patrística soube dar expressão adequada a essa fé, pois, em seu juízo, ela não abrange somente o período que vai do primeiro ao quarto século, mas também o período que vai do quarto ao oitavo século ( e a esse período cabe propriamente o título de “ neopatrístico” ); aliás, prolonga-se até a incluir os teólogos bizantinos da Idade Média: Gregório Palamas, Nicola Cabasilas e outros n . To­ das as gerações que querem se manter em contato com a autêntica mensagem de Cristo e se defender de todo possível desvio devem to­ mar por referência a síntese teológica criada pela patrística oriental. Nela encontrarão, adequadamente formuladas, as respostas às questões que o Evangelho suscita nas mentes de todas as pessoas inteligentes, seja qual for a época a que pertençam. Portanto, a tarefa primária de todo teólogo (e, portanto, também do teólogo moderno) é apre­ sentar uma síntese patrística renovada. E essa, obviamente, é a tarefa que Florovsky, convencido da força sempre juvenescens da teologia dos Padres, tomou para si. A síntese neopatrística reconstruída por Florovsky, infelizmente até agora só em termos parciais, nasceu como resposta a desafios provenientes de várias partes. As primeiras linhas surgiram em sua mente quando se viu diante das implicações filosóficas e teológicas implícitas na revolução em curso no seu país. Depois, o projeto assumiu contornos mais precisos nas discussões com as filosofias de Kant, Hegel e Marx e com as teologias de Bulgakov, dos protes­ tantes e católicos. Em sua síntese, só duas partes foram amplamente desenvolvidas, se bem que de maneira assistemática: a cristologia e a eclesiologia. A elas dedicaremos, pois, toda a nossa atenção.

III. A C R ISTO LO G IA

O eixo em torno do qual move-se toda a síntese neopatrística de Florovsky é a figura de Cristo. Ela se encontra no centro da teo­ logia florovskyana da mesma forma como se encontra no centro da teologia dos Padres. Contudo — perguntarão alguns —-, não será anti-histórico colo­ car a figura de Cristo no centro da teologia no século X X ? Não esta­ ria mais em harmonia com a visão antropocêntrica do homem moder­ 11 F l o r o v s k y ,

“ Patristics and Modern Theology”,

p.

239.


no basear a teologia no homem, como propõem muitos teólogos ca­ tólicos e protestantes nos últimos tempos? Como pensa Florovsky, não se trata em absoluto de uma opera­ ção anti-histórica, porque a questão cristológica não foi superada em nada; ela ainda se encontra no centro do debate teológico. Com efeito, segundo nosso teólogo, a tensão de que somos hoje espectadores, entre o liberalismo teológico, de um lado, e a neo-ortodoxia, de outro, não passa de uma “ retomada da antiga luta entre nestorianismo e monofisismo, num nível existencial novo e em novos termos espirituais”12. Coloca na base de sua cristologia o credo de Calcedônia. Insiste repetidamente que “ não há nenhuma hipóstase humana” em Cristo e evidencia a prioridade e a incomensurabilidade da natureza divina em relação à humana. Para descrever essa situação de desigualdade, introduziu a bela expressão “ cristologia assimétrica” . Nos escritos de Florovsky, o termo “ assimétrico” aparece pela primeira vez no livro Os Padres Orientais dos Séculos Cinco ao Oito (Paris, 1933, p. 2 6 ), sendo introduzido propositalmente para es­ clarecer a fórmula de Calcedônia. Esta, segundo Florovsky, ainda carece de precisão: não diz explicitamente que o Verbo ou a Segunda Pessoa é a hipóstase da unidade humano-divina. Ela ainda deixa em aberto o problema do caráter e do valor da physis “ anipostática”, isto é, da humanidade de Cristo. Depois, a “ ^«ipóstase” foi esclare­ cida como “ e«ipóstase” . Como mostra Florovsky, com base na con­ cepção “ anipostática” foi possível às teologias orientais e, como é sabido, também às teologias ocidentais resolver o problema das rela­ ções da pessoa divina com as duas naturezas durante os três dias da morte e da descida aos Infernos. Cristo morreu como morrem todos os outros homens, isto é, devido à separação da alma do corpo; todavia, dado que a sua Hipóstase era única, a alma “ deificada” de Jesus pôde penetrar no tenebroso reino dos Infernos e levar-lhe a vida, enquanto a própria Hipóstase mantinha-se unida ao corpo, in­ corrupto e, em virtude da presença divina, incorruptível13. Não obstante a tendência a sublinhar o caráter “ assimétrico” entre as duas naturezas, a verdadeira Ortodoxia — como nota Flo­ rovsky — , conseguiu preservar não apenas as duas naturezas, mas, na controvérsia com os monotelistas, também as duas vontades. Máximo, o Confessor, e outros fizeram ver que a vontade e a liberdade são essenciais para a natureza humana de Cristo. A doutrina da “ assimetria” também encontra aplicação na soteriologia. Ela serve a Florovsky para abrir um caminho intermediá­ rio entre “ o maximalismo e o minimalismo antropológicos” . O maximalismo exagera as possibilidades de que o homem conquiste a salvação com suas próprias forças: é a doutrina pelagiana. Já o minimalismo 12 “As the Truth is in Jesus, Ephesians 4,21” em The Christian Century, 1951, 1458. 13 “On the Tree of the Cross” em St. 'Vladimir’s Seminary Quarterly, 1 (1953), n. 3-4, p. 17.

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exagera a iniciativa divina em prejuízo do esforço humano: é a posi­ ção do agostinismo. Com a doutrina da redenção, por um lado, e a doutrina da apropriação pessoal da obra de Cristo, por outro, nosso teólogo salvaguarda “ assimetricamente ” tanto a graça divina como a liberdade humana. Segundo Florovsky, o cumprimento da redenção ocorreu na morte e na descida de Jesus aos Infernos, independentemente da res­ surreição e da ascensão aos céus: “ A descida ao Hades já é a Ressur­ reição dos mortos. Através de sua própria morte, Cristo une-se à com­ panhia dos transpassados e concretiza assim a nova extensão da En­ carnação” u . Do momento da encarnação até a descida aos infernos, progressivamente, teve lugar a obra da redenção da humanidade. No seio da Virgem, assumindo a natureza humana, Cristo restituiu “ tudo à sua inocência ( sinlessness) e pureza originais” 15 “ Sobre o Gólgota, o Senhor Encarnado. . . in ara crucis. . . oferece em sacrifício a sua natureza humana” , porém “ não a oferece enquanto Inocente” , mas sim enquanto Senhor Encarnado ( Incarnate Lord) 16. Em diversos artigos, cita a ousada expressão de Gregório Nazianzeno: “ Tivemos necessidade de um Deus Encarnado, de um Deus condenado à morte, para poder viver” n . Contra a tendência crônica do Ocidente e particularmente das cristologias calvinistas para o nestorianismo, Florovsky insiste, como já observamos, no fato de que a humanidade de Cristo não era dotada de uma hipóstase própria. Por isso, conclui o nosso teólogo, “ pode-se dizer que Deus morreu sobre a cruz, mas morreu em sua humanidade” 18. Ademais, a morte sobre a cruz não foi uma ação imposta a Jesus pela traição de um discípulo, pela perfídia da ralé e de seus chefes, pela covardia de Pilatos, mas sim a conseqüência da decisão tomada por Jesus durante a Ültima Ceia: “ O sacrifício da Redenção, o sacrifício de sua Paixão e Morte, foi oferecido na sala superior do Cenáculo” 19. No batismo de sangue, que para Florovsky constitui “ a pró­ pria essência do mistério salvífico da Cruz” , foi operada a redenção da natureza humana20. No “ batismo de sangue de toda a Igreja e verdadeiramente de todo o mundo” , Cristo fez com que os cristãos, através da iniciação sacramental e moral, exprimissem sua adesão a ele. Fazendo o sinal da cruz, eles “ pertencem ao crucifixo” 21. Florovsky observa que na Igreja Ortodoxa, tanto antigamente como hoje, o batismo, a crisma e a eucaristia não estão separados. Esse complexo de ações sacramentais constitui para cada cristão 14 “ The Ressurrection of Life” em Bulletin of the Harvard Univ. Divinity School,

49 (1952), n. 8, p. 17. 15 16 17 18 19 20

“ On the Tree of the Cross”, p. 13. “The Ressurrection of Life”, p. 16; “ On the Tree of the Cross”, p. 13. “The Ressurrection of Life”, p. 16.

Ibid. Ibid. Ibid. 21 Ibid.


o cumprimento inicial da libertação dos laços da natureza e do mundo. Esta é a razão pela qual são celebrados em conjunto. Com sua paixão e morte, Cristo obteve para todos os homens a possibilidade de recuperar a união com Deus na vida presente e a visão beatífica na vida futura. Em sua ação salvífica, ele não visou apenas a alma nem tampouco apenas o corpo, mas sim o homem in­ teiro; portanto, também o corpo. Assim, conclui o teólogo de Odessa, a salvação operada por Cristo implica a garantia de imortalidade e in­ corruptibilidade para todos os homens. E isso porque Cristo compar­ tilhou nossa natureza humana 22. Mas só os batizados terão a plena co­ munhão com Deus. Os outros que, no exercício de sua liberdade, tiverem repelido a oferta divina permanecerão “ fora de D eus” . Este será o seu castigo. Aquilo que, para os que aceitam o evangelho e esperam a Segunda Vinda de Cristo, será motivo de júbilo eterno, para aqueles que os repelem será causa de eterna aflição23.

IV. A E C L E SIO L O G IA Em todos esses anos, a teologia ocidental não foi a única a se ocupar da questão da essência e das funções da Igreja. A teologia oriental também o fez, com o mesmo empenho e interesse. Basta recordar as contribuições sobre o assunto dadas por Afanassief, Nissiotis, Evdokimov e Trembelas. Entretanto, na esfera da teologia orto­ doxa, aquele que mais se dedicou ao estudo dos problemas da Igreja foi Florovsky. A eclesiologia sempre esteve no centro de suas pesqui­ sas teológicas; e nem poderia ser diferente, tratando-se de alguém que, como ele, participou tão ativamente do Movimento Ecumênico, cujo objetivo, como todos sabemos, é promover a unidade da Igreja. Sua eclesiologia centra-se nos dois princípios que estão na base de toda a sua síntese neopatrística: cristocentrismo e “ assimetria” . O cristocentrismo constitui o fundamento de sua concepção da Igre­ ja; a “ assimetria” precisa as relações existentes entre as várias par­ tes que a compõem. Para formular o princípio cristocêntrico, ele se vale da célebre expressão paulina: “ A Igreja é o Corpo de Cristo” . Segundo Florovsky, de todas as definições que a Escritura dá da instituição fundada por Jesus, essa é a que melhor exprime a experiência que os primeiros cristãos tinham da Igreja. “ Um corpo, em suma, o corpo de Cristo; esse excelente paralelo de que se serve são Paulo nos vários textos em que descreve o mistério da existência cristã é ao mesmo tempo o melhor testemunho que se possa prestar da experiência íntima da 22 lbid.,

25

lb id .,

p . 19, p . 20.


Igreja apostólica. Não é absolutamente metáfora acidental: é muito mais um resumo da fé e da experiência” 24. Ademais, conforme o pensamento do autor, a imagem da organização corpórea é também a imagem central em torno da qual gravitam todas as outras imagens utilizadas pela Sagrada Escritura para significar a Igreja. “ As outras imagens e analogias de que se vale são Paulo e o resto do Novo Tes­ tamento acentuam do mesmo modo a unidade orgânica entre Cristo e os crentes; o alicerce construído com pedras múltiplas e vivas, que no entanto se apresenta como uma única pedra-, a vinha e seus ramos, e muitas outras imagens, todas elas servem ao mesmo objetivo prin­ cipal. Dentre elas, a imagem do Corpo é a mais forte e a mais ex­ pressiva” 25. Nosso teólogo, todavia, acrescenta que o fato de ela estar tão carregada assim de significado não a impede de ser uma imagem aberta, integrável com outras imagens. Com efeito, são Paulo fre­ qüentemente faz com que ela se acompanhe com a imagem do pleroma, que, segundo Florovsky, tem um profundo significado teoló­ gico: quer dizer que “ a Igreja é o Corpo de Cristo e a sua ‘plenitude’. Corpo e Plenitude, to soma e to pleroma, esses dois termos são correlatos e estreitamente ligados na mente de são Paulo, pois um explica o outro: ‘ (a Igreja) que é o seu Corpo: a plenitude daquele que plenifica tudo em todos’ (E f 1,22-23). A Igreja é o Corpo de Cristo porque e na medida em que ( pour autant) ela é o seu com­ plemento . . . Noutros termos, a Igreja é a extensão e a ‘plenitude’ da Encarnação, ou melhor, da vida encarnada do Filho, ‘junto a tudo aquilo que foi feito por nossa salvação: a Cruz e o Sepulcro, a Res­ surreição ao terceiro dia, a Ascensão aos céus, o estar à direita do Pai’ (são João Crisóstom o)” 2'°. “ A Igreja, portanto, é o lugar e o mo­ do da presença salvífica do Senhor, glorificado no mundo ou na humanidade que ele salvou” 2/. Mas “ em que se baseia e radica essa unidade, essa conjunção de muitos, que deve ser tão íntima e orgânica quanto a união entre os membros do mesmo corpo? Qual é o poder que os reúne e liga uns aos outros? É apenas um instinto social, um impulso de afeto mútuo ou alguma outra atração natural? Em suma, a comunidade cristã, a Igreja é apenas uma sociedade humana, uma associação voluntária de hom ens?” 28. A resposta a essas perguntas é obviamente sempre negativa: nenhum poder, nenhum impulso, nenhuma atração humana servem de base à Igreja. Fiel ao princípio do cristocentrismo, Florovsky faz ver que a base é Cristo: “ Os cristãos não são apenas unidos entre 24 Sainte 25 26 27 28

“Les Corps du Christ Vivant, une Interpretation Orthodoxe de FÉglise” em La Église Universelle, Paris, 1948, p. 15. Ibid., p. 20. Ibid., p. 21. Ibid., p. 22. Ibid., p. 16.


si; antes de mais nada, eles são uma unidade em Cristo e só essa co­ munhão com Cristo torna possível a comunhão dos homens, nele. O centro da unidade é o Senhor e o poder que opera essa unidade é o Espirito Santo" 29. É na Igreja que se perpetua a Encarnação: como em Cristo o Verbo não estava acima ou fora da natureza humana, assim tam­ bém na Igreja Cristo “ não se encontra acima ou fora. Os fiés não são tanto aqueles que o seguem ou obedecem aos seus mandamentos quan­ to aqueles que foram incorporados a ele, que vivem nele ou mais ainda aqueles nos quais ele próprio habita misteriosamente” 30. O cristocentrísmo não impede que Florovsky evidencie tam­ bém o componente pneumatológico da Igreja. O penúltimo dos tex­ tos acima citados termina com a afirmação: “ o poder que opera essa unidade é o Espirito Santo” . Como muitos teólogos católicos e pro­ testantes, Florovsky ensina que o Espírito Santo é a alma da Igreja. Comunica-lhe a vida através dos sacramentos, sinais que extraem toda a sua eficácia da ação do Espírito Santo, que está presente no Deus que propõe e no homem que responde. Presente em ambos os interlocutores, o Espírito de Cristo, testemunha de Deus perante os homens e testemunha dos homens perante Deus, é o grande ator dos sacramentos que dão corpo à Igreja. É por obra sua que todos os ba­ tizados são incorporados e concorporados em Cristo, tendo por nutrimento o mesmo amor pelo Pai. Assim como a ação sacramental do Espírito Santo deu origem à Igreja no dia de Pentecostes, também através da ação que ele explica nos sacramentos a vida da Igreja se perpetua 31. Florovsky baseia no princípio do cristocentrismo não somente a natureza da Igreja como também as suas propriedades. Isso é par­ ticularmente evidente quanto às características da unidade e da san­ tidade, mas fica menos claro quanto à catolicidade e à apostolicidade. Quanto à catolicidade, Florovsky afirma que, “ por meio da criação da Igreja cristã, foi inaugurado um regime de existência ab­ solutamente novo. Um regime católico, dir-se-á, contrapondo-o a esse estado funesto de deslocação e fragmentação em que toda a humani­ dade foi aprisionada devido ao pecado original. A salvação implica uma verdadeira reintegração, uma recapitulação total” 32. A obra de Cristo consistiu verdadeiramente em reunir os filhos de Deus que se encontravam dispersos e recapitular todas as coisas nele. E essa obra continua na Igreja: “ A função principal da Igreja no mundo é pre­ cisamente reunir os indivíduos dispersos e separados, incorporando­ -os numa unidade orgânica e viva, em Cristo” 33. A catolicidade da 29 “L ’Église: sa Nature et sa Tâche” em L'Église Universelle et le Dessein de Dieu. Rapport Préparatoire de l’Assemblée d'Amsterdam: 1948, Paris, 1949, p. 64. 30 “Le Corps du Christ V iv a n t ...” já citado, p. 17. 31 Ibid., pp. 18-19. 32 Ibid., p. 24. 33 Ibid., p. 19.


Igreja, segundo Florovsky, consiste exatamente nessa recapitulação da multiplicidade desagregada na unidade ordenada. Como Congar, recusa-se a fazer com que a catolicidade consista na dimensão quanti­ tativa, na expansão geográfica e cultural da Igreja. Florovsky alega que a maior parte dos teólogos tenha reduzido a catolicidade à univer­ salidade espacial. Protestando contra essa mutilação, declara que “ a verdadeira catolicidade é a catolicidade do interior, uma qualidade intrínseca da Igreja, cuja catolicidade exterior não é mais do que uma manifestação. A catolicidade essencial não é uma concepção topográfica ou espacial. A Igreja de Cristo não era menos católica no dia de Pentecostes, quando toda ela se encontrava encerrada numa pequena sala de Jerusalém, do que mais tarde, quando as comunidades cris­ tãs não passavam de ilhas dispersas e quase perdidas no oceano da incredulidade e superstição pagãs” 34. Desse novo conceito de catolicidade, nosso teólogo deriva duas conseqüências importantes: a primeira diz respeito ao simples cristão e a outra ao tempo. Afirma que o simples cristão é católico e não apenas a comunidade: “ Católico não é um nome coletivo. A Igreja. . . é católica em todos os seus elementos. . . Cada membro da Igreja é e deve ser católico. Toda a existência cristã deve ser organicamente ‘catolicizada’, ou seja, reintegrada, concentrada, centralizada interior­ mente” 35. Quanto ao tempo, ele foi resgatado e “ catolicizado” pelo mistério da Encarnação, que continua na Igreja. “ Cristo é o mesmo, ontem, amanhã e sempre. Nele todas as gerações cristãs estão unidas”36. O Cristo onipresente e contemporâneo a todas as épocas transcende as divisões que impõem a distância e a duração. Quando uma comuni­ dade cristã celebra a Eucaristia, ela participa dessa assunção do espaço-tempo e é verdadeiramente, então, “ a Igreja católica inteira e junta que está presente. . . porque Cristo nunca está separado do seu corpo. Nesse sentido, a Eucaristia é sempre e cada vez em particular uma revelação majestosa do Cristo total. Na experiência eucarística, por assim dizer, o próprio tempo se detém, de maneira mística e mis­ teriosa, mustikôs, sacramentaliter. Nela é verdadeiramente antecipa­ da a síntese da eternidade” 37. Também sua doutrina da apostolicidade baseia-se na Igreja con­ cebida como Corpo de Cristo. Qualquer corporação, diz Florovsky, exige um esqueleto em torno do qual se organizam os membros. Na Igreja, tal ossatura é assegurada pelo Colégio Apostólico. A comuni­ dade messiânica “ foi constituída pelo próprio Jesus “nos dias da sua carne’, o qual deu-lhe pelo menos uma organização provisória, cóm a escolha e a posse dos Doze, aos quais deu o nome (ou melhor, o título) de ‘mensageiros’ ou ‘embaixadores’ . . . Os Doze ficaram en­ carregados de garantir a continuidade da mensagem e da vida comum. 34 35 36 37

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. 26. p. 27. p. 29. pp. 39-40.

10 - Os grandes teólogos... • Vol. 2


É por isso que a comunhão ‘com os Apóstolos’ . . . era a característica fundamental da primitiva ‘Igreja de Deus’ em Jerusalém” 38. O batismo, que incorpora os cristãos a Cristo, e a Eucaristia, que realiza a presença do Senhor no seu Corpo que é a Igreja, representam a fonte e o centro místico da comunhão católica. Os únicos ministros autorizados para a distribuição desses sacramentos, como também de todos os outros, são os Apóstolos e seus sucessores. O ministério apostólico, por conseguinte, é o instrumento privilegiado do nascimento, do crescimento e da coesão da Igreja. Representa “ aqui­ lo que a circulação do sangue é para o corpo animal” 39. Hoje, esse pa­ pel vital do sacerdócio evangélico dos Apóstolos e dos bispos está multiplicado através da ação dos padres, que, por delegação, são pais e unificadores das comunidades locais 40. O episcopado, que é a realização plena do ministério apostólico, apresenta-se como um sinal específico na Igreja: é o sinal da pre­ sença ativa do Espírito Santo, construtor e unificador do Corpo Místico por meio dos sacramentos. “ É através do seu bispo ou, mais exatamente, no seu bispo que cada igreja local ou particular se inclui na totalidade da Igreja católica. Através do seu bispo, ela é colocada em contato com as fontes primeiras da vida carismática da Igreja, ligada a Pentecostes” 41. Mas em que episcopado se realiza a herança dos apóstolos? Em outras palavras, onde se encontra a verdadeira Igreja hoje? A resposta a essa grave interrogação não pode ser obtida, se­ gundo o nosso teólogo, por caminhos jurídicos: “ Enquanto organis­ mo místico, o Corpo Sacramental de Cristo, a Igreja, não pode ser circunscrito adequadamente somente com categorias e termos jurí­ dicos” 42. O único caminho que pode oferecer uma solução satisfató­ ria é o do exame da situação sacramental de uma dada comunidade eclesial, devido ao princípio de que lá onde se cumprem os sacra­ mentos é que está a Igreja. Porém, contrariamente ao que pensam alguns ecumenistas católicos recentes, Florovsky não considera que a reta administração do batismo constitua por si só uma base suficiente de unidade. São necessários todos os sacramentos, particularmente a Eucaristia, que é o principal instrumento de nossa incorporação a Cristo. Dessas premissas, ele tira a conclusão de que a única Igreja verdadeira é a Igreja Ortodoxa: “ Por isso, para mim, a reunião dos cristãos outra coisa não é do que uma conversão universal à Orto­ doxia. . . Isso não significa que tudo aquilo que se encontra no es­ tado passado e presente da Igreja Ortodoxa se identifique com a ver­ dade de Deus. . . A verdadeira Igreja ainda não é a Igreja perfeita” 43. 38 Ibid., p. 15. 39 Ib ii., p. 36. 40 Ibid., p, 36. 41 Ibid., p. 37. 42 “ Les Limites de l ’Église” em Messager de l’Exarchat, 1961, n. 37, p. 30. 43 “ Confessional Loyalty in the Ecumenical Movement” em The Student World, v. 43 (1950), p. 204.


No início desta seção, dissemos que a eclesiologia florovskyana baseia-se integralmente em dois princípios: cristocentrismo e “ assime­ tria” . Do primeiro já tratamos amplamente. Façamos agora algumas breves observações sobre o segundo. Segundo o teólogo de Odessa, a realidade teândrica da Igreja só pode ser entendida corretamente à luz do princípio da “ assi­ metria” . Qualquer outro princípio traz o risco de se cair no monofisismo ou no nestorianismo eclesiológico. O princípio da “ assimetria” reconhece a existência tanto da Ca­ beça como dos membros na Igreja, porém atribui uma prioridade abso­ luta à Cabeça: a Igreja tem o seu fundamento em Cristo e o seu desenvolvimento se efetiva através da incorporação dos homens a ele. Este princípio, contudo, não opera somente ao nível das rela­ ções entre Cabeça e os membros, mas também ao nível das relações entre os membros, especialmente das relações entre o episcopado e o laicato. Contra a doutrina dos “ eslavófilos”, de planificação das partes visíveis da Igreja e da elevação do laicato às mesmas funções da hie­ rarquia, Florovsky defende, como já vimos, a prioridade do episco­ pado sobre todos os outros membros da Igreja. Unicamente aos bis­ pos cabe a função de instruir, guiar e reger o povo de Deus. Mas isso — precisa o nosso teólogo — não significa que o Espírito Santo seja monopólio da hierarquia. “ No dia de Pentecostes, o Espí­ rito Santo não desceu somente sobre os Doze, mas sobre toda a mul­ tidão que estava com eles, sobre toda a Igreja que estava então pre­ sente em Jerusalém ” 44. O Espírito Santo, todavia, não veio para se difundir numa massa informe, como uma carga de eletricidade es­ tática se difunde e dispersa num monte de limadura. Ele veio para animar um corpo, dando a cada órgão a vitalidade específica exigida por sua função no conjunto. “ Os dons e os ministérios do Espírito na Igreja são múltiplos e variados. O Espírito desce sobre todos, mas somente os Doze (e os seus sucessores) receberam o poder sacerdotal e ministerial, segundo a promessa solene de Cristo” 45. Em conseqüência, o episcopado tem poderes que não competem ao laica­ to; porém, é em função do laicato que tais poderes foram comunica­ dos ao episcopado.

V. AVALIAÇÃO O mínimo que se pode dizer é que a teologia de Florovsky pode parecer surpreendente a todos aqueles que estão habituados a falar de renovação da teologia em termos de pré-compreensão antropo44 “ Le Corps du Christ V iv a n t ...” já citado, p. 39. 45 Ibid., p. 38.


cêntrica, existencial e secular e a considerar como condição prelimi­ nar de tal renovação o abandono das categorias filosóficas clássicas ou “ helénicas”, como as chama o teólogo de Odessa. Para esses, a obra de Florovsky só tem valor como pesquisa histórica, provavel­ mente importante, talvez até preciosa, mas que não pode ir além da exumação de documentos do passado. Entretanto, para aqueles que não estão dispostos a admitir que o único modo possível de fazer teologia seja o de “ secularizá-la” , “ antropologizá-la” ou “ existencializá-la”, a obra teológica de Florovsky pode parecer digna de atenção também em termos teoréticos (além de em termos históricos). Com efeito, restituindo à teologia a sua estruturação clássica, nosso teólogo não só está em condições de preservar a inteligibilidade da parte mais preciosa do patrimônio teológico da Igreja, mas tam­ bém de garantir uma tal fidelidade de interpretação da Palavra de Deus que não se encontra em nenhuma das filosofias modernas (nem no idealismo, nem no existencialismo, nem no personalismo e muito menos no neopositivismo ou no materialismo). Esses são os dois maiores méritos de sua síntese neopatrística. É uma verdadeira pena, porém, que, em virtude de sua instintiva aversão aos sistemas, Florovsky nunca tenha se preocupado em es­ clarecer exatamente a natureza e a extensão da base helénica da teologia patrística. Em que consiste o helenismo dos Padres? De que tipo é ele? Platônico, aristotélico, estóico, neoplatônico? A que revisões foram submetidas as categorias filosóficas gregas (por exem­ plo: natureza, substância, pessoa, essência, hipóstase) antes de serem assumidas pela teologia cristã? Não colocamos em dúvida a aptidão do pensamento grego para servir de forma ao cristianismo. Mas quais foram as leis da “ informação” ? E será que ela sempre teve êxito? Florovsky respondeu apenas de arranhão e de modo inadequado a essas questões fundamentais. Entretanto, aquilo que disse já basta para excluir uma interpre­ tação “ integrista” da síntese neopatrística por ele projetada. Insiste muito, pois, na dimensão criadora que a revitalização do helenismo cristão deve comportar, sob pena de morte; e, para efetuá-la, não propõe reproduzir literalmente o pensamento dos Padres, mas somente imitar o seu modo de ver. “ Aquilo que Florovsky quer reencontrar e fazer com que a teologia realize hoje é um olhar sobre Deus e o homem, sobre o mundo e a história, que seja idêntico ao olhar ‘cristomórfico’ dos Padres dos séculos IV e V. Na época, ocorreu uma espé­ cie de crise de personalidade da Igreja: naquele momento histórico em que saía da infância, ela encontrou a estrutura de pensamento e a estrutura de linguagem que a caracterizarão por toda a vida. Florovsky pensa que, se um espírito quer coincidir com a indefectível juventude intelectual da Igreja, deve se nutrir com os primeiros frutos produzidos por sua consciência no momento em que se torna adulta; numa palavra, deve assimilar esse helenismo cristão que em


poucas gerações criou uma linguagem nova e específica da Igreja em diálogo com o mundo que deve salvar” 46. Portanto, no parecer de Florovsky, o exemplo dos Padres é normativo: “Nenhuma filosofia particular foi canonizada”, afirma ele. “ A verdade é que os Padres criaram uma nova filosofia, muito diversa do platonismo, do aristotelismo ou de qualquer outra. O que torna ridícula qualquer tentativa de reinterpretar a doutrina tradi­ cional nos termos ou categorias de uma filosofia nova, qualquer que seja ela. . . Aquilo que realmente se exige não é uma linguagem nova ou novas visões gloriosas, mas unicamente uma melhor vida espiri­ tual que nos torne novamente capazes de discernimento no âmbito da plenitude da experiência católica” 47. Além da falta de uma explicitação crítica das relações entre filosofia grega e teologia cristã, lamenta-se outras carências no pen­ samento de Florovsky. Por exemplo, não distingue com suficiente clareza “ tradição”, “ patrística” e “ teologia”, não define adequada­ mente a função do Magistério na Igreja e não enfrenta a questão capital do primado do Papa. Esses aspectos negativos, entretanto, são abundantemente contra­ balançados por numerosos aspectos positivos. Antes de mais nada, ele soube fundir admiravelmente em suas pesquisas e ensaios o conhecimento intuitivo e “ experimental” do Oriente com uma metodologia tipicamente ocidental. De tal forma que, como observa Lelouvier, quando o lemos “ nos encontramos ao mesmo tempo desambientados e em nossa própria casa: desambientados porque temos consciência de estarmos adentrando um universo no­ vo; na própria casa porque o estilo dialético se efetua de um modo que nos é familiar” 48. Em segundo lugar, soube integrar a eclesiologia na cristologia e ligar diretamente o mistério da Igreja ao mistério da Encarnação. Florovsky sustenta que a dialética teândrica de Calcedônia é também a lei necessária de toda eclesiologia, dado que a Igreja não é outra coisa senão um prolongamento da realidade inseparável, divina e humana, do próprio Cristo. Em sua eclesiologia, soube evidenciar tam­ bém outros aspectos importantes que a Igreja Católica proclamou so­ lenemente no Concílio Vaticano I I: os aspectos pneumatológico, “ misterioso” e sacramental. Em honra a Florovsky, citamos por fim um texto em que, contra os grandiosos e presunçosos programas da teologia contemporâ­ nea, ele fixa aquela que considera ser a tarefa primeira do teólogo do século X X : “ A primeira tarefa para a geração atual de teólogos ortodoxos é restaurar em si mesmos a capacidade de sacrifício que L e l o u v i e r , o .c ., p . 162. 47 F l o r o v s k y , “ Patristics and Modern Theology”, p. 241. 48 L e l o u v i e r , o .c ., p . 35,

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lhes permita não tanto exprimir as próprias idéias ou as próprias visões, mas unicamente prestar testemunho da fé imaculada da Mãe Igreja. Cor nostrum sit semper in Ecclesia! ” 49 Ele procurou ater-se a esse ideal em toda a sua vida. E isso ex­ plica porque sua produção teológica é tão fragmentária e limitada.

43

F lo r o v sk y ,

“ Patristics and Modern Theology”, p. 241.

Nota bibliográfica. — Há dois ótimos estudos sobre o pensamento de Florovsky: G, W i l l i a m s , “ Georges Vassilievich Florovsky: His American Career” em The Greek Orthodox Theological Review, X I, 1965, pp. 7-107; Y. N. L e l o u v i e r , Perspectives Russes sur VÉglise — un Théologien Contemporain: Georges Florovsky, Centurion, Paris, 1968. O primeiro é um estudo de caráter geral; o segundo é dedicado ao pro­ blema eclesiológico.


VLADIMIR LOSSKY E A TEOLOGIA MÍSTICA

A missão à qual os teólogos russos da Diáspora sentiram-se chamados foi a de conservar e transmitir ao Ocidente o grande e precioso tesouro do pensamento teológico da Igreja Ortodoxa, do qual eles eram os principais depositários. Entre aqueles que souberam cumprir mais brilhantemente essa missão importante deve-se colocar Vladimir Lossky. Ele é autor de uma síntese teológica mais completa e sistemática do que a de Florovsky e, ao mesmo tempo, mais “ ortodoxa” , ou seja, mais fiel à tradição oriental, do que a de Bulgakov. À sua síntese Lossky deu o nome de “ teologia mística” .

I. VIDA Vladimir Lossky é filho do célebre filósofo russo Nicola O. Lossky. Nasceu em Gõttingen em 8 de junho de 1903, pois seu pai lá se encontrava para completar sua formação universitária. Realizou seus estudos superiores na Universidade de Petersburgo, seguindo com grande interesse os cursos do historiador da filosofia Leon Karsavin. Dos seus ensinamentos, recebeu um impulso determi­ nante para suas futuras pesquisas sobre os teólogos ocidentais e sobre a tradição patrística grega. Em 1923 foi expulso da Rússia juntamente com seu pai. Como a maior parte dos russos exilados, Vladimir também se estabeleceu inicialmente em Praga, onde o pai fora nomeado professor de filoso­ fia. Lá seguiu os cursos de N. P. Kondakov, o célebre pesquisador de bizantinismo e historiador da arte iconográfica. Um ano depois, transferiu-se para Paris, iniciando seus estudos na Sorbonne, onde contínua e aprofunda seus estudos sobre o pensamento medieval, sob a direção do maior especialista católico no assunto, Etienne G il­ son. Com sua assistência, empreende em 1927 o estudo da doutrina mística de Mestre Eckhart, que deveria ser a sua tese de mestrado. Sua vocação já se encontra cristalizada: é a do encontro entre a tradição cristã do Oriente e a cultura ocidental da Idade Média. De modo particular, pretende prestar testemunho da Igreja dos seus país na França.


Ao mesmo tempo, engaja-se também na vida eclesiástica da Ortodoxia no Ocidente. Em contraste com a maior parte dos exilados, em 1931 ele se pronuncia a favor do Patriarcado de Moscou. Em 1935, coloca-se entre os opositores de Bulgakov a propósito de sua “ sofiologia” . Depois de uma intervenção sua junto ao metropolita de Moscou, Sérgio, a doutrina de Bulgakov é condenada. Em 1939, Lossky torna-se cidadão francês. Durante a Segunda Guerra Mundial, participa dos sofrimentos de sua pátria de adoção e da resistência contra o invasor. Os acontecimentos ligados à guerra, todavia, não o impedem de prosseguir suas atividades de estudioso. Em 1944, publica a sua obra-prima, A Teologia Mística da Igreja do Oriente. Em 1945, começa sua carreira de professor universitário. Mi­ nistra uma série de conferências na “ École des Hautes-Études ” da Sor­ bonne sobre a doutrina da visão de Deus na teologia bizantina, as quais seriam publicadas postumamente sob o título Vision de Dieu. Trabalhador incansável, continua suas pesquisas sobre Mestre Eckhart, que depois seriam reunidas numa obra também publicada postuma­ mente, organizada por seus amigos, em especial Gilson, dois anos depois de sua morte. Depois da Grande Guerra, o engajamento na vida de sua Igreja leva-o a dedicar-se também à atividade ecumênica. Em 1947, entra em contato com o mundo anglicano. No mesmo ano, participa da assembléia realizada em Oxford reunindo católicos, anglicanos e ortodoxos, e profere a memorável conferência intitulada “ The Proces­ sion of the Holy Spirit in the Orthodox Triadology” , na qual sustenta que o Filioque não é absolutamente um simples theologoumenon, co­ mo afirmara Bulgakov, mas sim a razão fundamental da divisão entre as Igrejas Ortodoxa e Latina. Expressão de suas preocupações ecu­ mênicas são ainda diversos artigos sobre as propriedades da Igreja (sobretudo a catolicidade), publicados na revista do patriarcado de Moscou na França, o Messager de VExarchat du Vatriarche Russe. Em 1956, sua atividade em favor da Igreja Ortodoxa é premiada pu­ blicamente: é convidado pelo Patriarca de Moscou, Alexis, a visitar a Rússia, terra de seus antepassados. Lossky atendeu ao convite com grande júbilo. Em 7 de fevereiro de 1958, morre inesperadamente com a idade de 55 anos, quando o seu talento estava maduro para a produção de excelentes obras teológicas, tanto no campo histórico como no dog­ mático. II. OBRAS A produção científica de Lossky não é muito vasta. Além de um certo número de artigos, ela abrange quatro livros: Théologie Mystique de VÉglise d’Orient (Aubier, Paris, 1 944); Théologie Né-


gative et Conaissance de Dieu chez Maître Eckhart (Vrin, Paris, 1 9 6 0 ); Vision de Dieu (Delachaux & Niestlé, Neuchâtel-Paris, 1 962); À l’Image et à la Ressemblance de Dieu (Aubier, Paris, 1967). Dessas obras, a mais significativa é sem dúvida a primeira: ela contém uma brilhante e vigorosa síntese do sistema teológico de Vla­ dimir Lossky, o qual, sendo construído sobre o princípio da “ apofaticidade”, é chamado pelo autor de “ teologia mística” . As três outras obras também abordam os problemas da teolo­ gia mística, mas não mais em termos sistemáticos e sim em termos históricos. A segunda, como diz o próprio título, é um penetrante estudo da teologia negativa de Mestre Eckhart. A terceira, Vision de Dieu, propõe-se a estudar o problema do conhecimento de Deus como ele foi colocado pela teologia bizantina. Seu objetivo é verificar se a distinção entre a “ apofaticidade ” da essência de Deus e a “ catafaticidade” das energias divinas é uma invenção de Gregório Palamas ou uma doutrina que já tinha precedentes na Sagrada Escritura e na Pa­ trística. Através de uma acurada análise dos textos da Escritura e do pensamento de alguns dos maiores Padres gregos, Lossky consegue estabelecer que a distinção entre a essência e as energias das opera­ ções divinas, tal como é ensinada por Palamas e pelos concílios do século X IV , “ é a expressão dogmática da tradição relativa aos atributos cognoscíveis de Deus que encontramos nos Capadócios e mais tarde em Dionísio, em sua doutrina sobre as uniões e distinções divi­ nas, sobre as virtudes ou raios da treva divina, cuja distinção da essência dá lugar a dois caminhos teológicos: o caminho afirmativo e o negativo; um revela Deus, o outro conduz à união na ignorância” ’ . A última obra, À l’Image et a la Ressemblance de Dieu, é uma coletânea de artigos em que o autor retoma e desenvolve alguns dos temas que mais lhe são caros (a “ apofaticidade”, o conceito de pes­ soa, a processão do Espírito Santo, a catolicidade da Igreja), investi­ gando sua validade através do estudo do pensamento dos Padres orientais. De capital importância é o ensaio intitulado La Procession du Saint-Esprit dans la Doctrine Ortodoxe, tradução da conferência mantida em Oxford em 1947: contém a quintessência do pensamento de Lossky.

III. OS QUATRO PILA R ES DA T E O LO G IA D E V. LO SSKY À “ sofiologia” de Bulgakov, que considerava gnosticismo e idealismo, Florovsky tinha contraposto, uma teologia mais rigorosamente fiel ao pensamento Igreja bizantina. Mas observamos que os princípios

impregnada de como já vimos, dos Padres da de sua síntese

1 V. L o s s k y , La Teologia Mistica delia Chiesa d’Oriente, II Mulino, Bolonha, 1967, pp. 389-390.


neopatrística ficaram bastante vagos e que a própria síntese ficou em estado fragmentário. . A obra teológica de Lossky parte dos mesmos princípios ins­ piradores da teologia de Florovsky: ela quer contrapor à “ sofiologia” de Bulgakov o pensamento autêntico da teologia ortodoxa. Só que al­ cança resultados mais satisfatórios, na medida em que explicita mais claramente os princípios sobre os quais pretende edificar sua síntese e, em segundo lugar, na medida em que dá a essa síntese um desen­ volvimento sistemático e completo. Os princípios fundamentais — os pilares em que se baseia a construção teológica de Lossky — são os seguintes:

1 . A " apofaticidade" : que justifica a qualificação “ mística” que o autor dá à sua teologia. 2. As energias divinas, distintas realmente da essência divina sem estarem separadas dela: essas energias permitem a Lossky sal­ vaguardar a transcendência absoluta de Deus e, ao mesmo tempo, man­ ter intactas as doutrinas da graça incriada, da imago Dei, da visão de Deus e da “ deificação ” , 3. A dupla economia (do Filho e do Espírito Santo): essa tese permite ao autor elaborar uma doutrina pneumatológica bem mais rica e substancial do que conseguiram os teólogos ocidentais, tan­ to católicos como protestantes. 4. O conceito de pessoa: entendida como capacidade de renun­ ciar à própria vontade, às inclinações da própria natureza. Com esse conceito, nosso teólogo ilumina os mistérios da Encarnação de Cristo e de nossa santificação. Dada a importância capital desses quatro conceitos para a teo­ logia losskyana, considero valer a pena examiná-los atentamente, um por um. Comecemos pelo primeiro, a “ apofaticidade” . 1. A “Apofaticidade" e a Teologia Mística O caráter distintivo da teologia de Lossky é a “ apofaticidade” 2. Por essa razão, sua definição exata seria “ teologia apofática” . Seu autor, no entanto, chama-a “ teologia mística ” . Não estaríamos aqui diante de uma incongruência? À primeira vista, parece que sim. Com efeito, para Lossky, o aspecto místico não consiste na “ apofa­ ticidade” (o que lhe permitiria dar à sua teologia o título de “ mística” , em virtude da identidade entre “ mística” e “ apofaticidade” ), mas 2 Sobre o caráter apofático da teologia, cf. sobretudo o segundo capítulo de La Teologia Mistica delia Chiesa d’Oriente e os primeiros dois capítulos de À l’Image et à la Ressemblance de Dieu. Daqui por diante, citaremos essas duas obras na forma abre­ viada: Teologia M istica ... e .á l'Im a g e ...


sim na experiência vivida. “ O dogma, que exprime uma verdade reve­ lada e nos aparece como um mistério insondável” , diz ele, “ deve ser vivido por nós num processo no curso do qual ocorre que, ao invés de assimilarmos o mistério ao nosso modo de entender, nós atendemos a uma profunda mudança, uma transformação interior do nosso espí­ rito, para nos tornarmos aptos para a experiência mística. Longe de se oporem, teologia e mística se apóiam e completam mutuamente. Uma é impossível sem a outra: se a experiência mística significa va­ lorizar pessoalmente o conteúdo da fé comum, a teologia é a expres­ são, em proveito comum, daquilo que pode ser experimentado por cada um. . . A mística, portanto, é considerada aqui como a perfeição — o vértice — de toda teologia, como teologia por excelência. Ao contrário daquilo que ocorre na gnose, onde o conhecimento em si mesmo constitui o objetivo do gnóstico, a teologia cristã é sempre, em última análise, um instrumento, um conjunto de conhecimentos que devem servir a um objetivo que ultrapassa todo conhecimento. O objetivo último, pois, é a união com Deus, ou ‘deificação’, a theosis dos Padres gregos. Chega-se assim a uma conclusão que poderia parecer bastante paradoxal: a teoria cristã teria um significado emi­ nentemente prático e, quanto mais mística é ela, mais visa direta­ mente o objetivo supremo da união com D eus” 3. Se formos nos basear nesse texto, parece que a mística não tem nada a ver com a “ apofaticidade ” : esta é definida como expe­ riência, como assimilação pessoal dos mistérios da fé, como união com Deus, como incidência prática do conhecimento teológico. De fato, porém, a “ apofaticidade ” está incluída nessas definições, porque é exatamente a fé vivida dos mistérios que impede sua transformação em fórmulas abstratas, em simples teoremas, em artífices da razão, em idéias claras e distintas; é a experiência vivida que proclama sua inefabilidade. Assim, a “ apofaticidade” está implícita na mística e, portanto, dizer “ teologia mística” e dizer “ teologia apof ática” é a mesrna coisa. Mas o que é a “ apofaticidade ” ? Lossky descreve-a assim: “ É um caminho constante do pensamento, que elimina progressivamente 1 do objeto que quer alcançar qualquer atribuição positiva, para desem-i bocar finalmente numa espécie de possessão por ignorância totalí daquele que nunca poderia ser um objeto de conhecimento. Pode-se dizer que é uma experiência intelectual da derrocada do pensamento diante daquilo que está além do pensável. Com efeito, a consciência da derrocada do pensamento humano constitui um elemento comum de tudo aquilo que se pode chamar de apófase ou teologia negativa, tanto quando ela permanece nos limites da inteligência, constando simplesmente a inadequação radical entre o nosso pensamento e a realidade que ele quer captar, como quando ela ultrapassa os limi­ tes da inteligência, atribuindo à ignorância daquilo que Deus é em 3 Teologia M ístic a ..., pp. 4-5.


sua natureza inacessível o valor de um conhecimento místico superior ao intelecto” 4. Mas será que a “ apofaticidade” não desemboca inevitavelmente no anti-racionalismo, no agnosticismo, no fideísmo cego, na logomaquia? Lossky responde a essa dificuldade assegurando-se de que a “ apofaticidade” “ não pode levar à supressão do pensamento teoló­ gico sem atentar contra o fato essencial do cristianismo, a Encarnação do Verbo, acontecimento central da revelação, que garante a possibili­ dade da teologia” 5. Não estamos certos, porém, de que o autor sempre tenha levado a sério tal declaração. Quando ele quer precisar o significado dos termos filosóficos que o teólogo toma emprestados à filosofia, afirma que esses termos são reduzidos a simples sinais-, “ mais do que con­ ceitos, são sinais convencionais” 6; “ são despojados para se tornarem sinais da realidade pessoal de um Deus que não é aquele dos filósofos, nem (freqüentemente) aquele dos teólogos” 7. Ora, essa interpreta­ ção nominalista da linguagem teológica parece-nos levar inevitavelmen­ te àquele anti-racionalismo, àquele agnosticismo, àquela logomaquia que o autor diz querer repelir. Em seus trabalhos sobre a “ apofaticidade”, Lossky inclui al­ guns estudos magistrais, mostrando que essa é uma propriedade da teologia de quase todos os Padres gregos e bizantinos, particular­ mente de João Crisóstomo, Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio, João Damasceno, Máximo, o Confessor, e Gregório Palamas 8. Ademais, ele evidencia bem que a “ apofaticidade” é uma cons­ tante de todos os mistérios cristãos, tanto os trinitários como os cristológicos, tanto os pneumatológicos como os antropológicos, tanto os esclesiológicos como os escatológicos. Ilustremos brevemente esse aspecto original do pensamento de Lossky. “ A existência de uma atitude apofática, de uma superação de tudo aquilo que provém da finitude criada, está implicada no paradoxo da revelação cristã: o Deus transcendente torna-se ima­ nente no mundo, mas também na imanência de sua economia, que leva à encarnação e à morte na cruz, ele se revela como transcen­ dente, como ontologicamente independente de qualquer ser criado. Essa é a condição sem a qual seria impossível conceber o caráter vo­ luntário e absolutamente gratuito da obra redentora de Cristo e em geral de tudo aquilo que é ‘economia’ divina, começando pela criação do mundo, a respeito da qual a expressão ex nihtlo deve assinalar 4 Á l’I m a g e ..., p. 7. Cf. também Teologia M istic a ..., pp. 33ss, 233. 5 Ibid. 6 Ibid., p. 110; cf. p. 78. 7 Ibid., p. 113. 8 Cf. Vision de Dieu (todo) e À l'Im a g e ..., especialmente os dois primeiros capítulos.


justamente a ausência de qualquer necessidade ex parte Dei, uma certa contingência divina, se podemos assim dizer, no ato da vontade cria­ dora” 9. O mesmo deve-se dizer do mistério trinitário: “ Para que a teo­ logia trinitária se tornasse possível, foi necessário que a apófase pre­ sidisse ao despojamento do pensamento, forçado a elevar-se a uma noção de Deus que transcende toda relação com o ser criado, abso­ lutamente independente, naquilo que é, da existência das criaturas” 10. “ Para falar de Deus em si, fora de qualquer laço cosmológico, de qualquer implicação com a oikonomia relativa ao mundo, será preci­ so que a teologia, isto é, o conhecimento que se pode ter da Trindade consubstanciai, seja o resultado de uma vida de abstração, de decantação apofática mediante a negação de todas as apropria­ ções (Bondade, Sabedoria, Vida, Amor, etc.) que podem ser ligadas às noções das hipóstases divinas no plano da economia e de todos os atributos que manifestam a natureza divina na criação” 11. “ O ponto final a que chega a teologia apofática (se é que se pode falar de fim e de chegada onde se trata de uma elevação para o infinito) não é uma natureza ou uma essência, nem tampouco uma pessoa, mas algo que supera ao mesmo tempo toda noção de natureza e pes­ soa: é a Trindade” 12. “ Eis a realização do ‘apofatismo’: a revelação da Santíssima Trindade como fato inicial, realidade absoluta, dado primeiro que não pode ser deduzido, explicado ou encontrado a par­ tir de uma outra verdade, porque não há nada que lhe seja anterior. O pensamento apofático, que renuncia a todo sustento, encontra sus­ tento em Deus, cuja incognoscibilidade aparece como Trindade. O pensamento adquire aqui uma estabilidade inabalável, a teologia encontra o seu fundamento, a ignorância torna-se conhecimento” 13. Na cristologia, o caráter apofático pode ser facilmente obser­ vado examinando-se a fórmula do Concílio de Calcedônia: “ Com efei­ to, a união das duas naturezas é expressa por quatro definições negativas: asunkútos, atréptos, adiairétos, akorístos (sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem distinção). Nós conhecemos o fato da união das duas naturezas numa só pessoa, mas o ‘como’ dessa união continua sendo para nós um mistério fundado na distinção-identidade incompreensível da natureza e da pessoa” 14. A atitude apofática tam­ bém pode ser notada na multiplicidade de imagens usada para ilustrar a obra realizada por Cristo, obra incompreensível para os homens, segundo são Paulo: imagens como redenção, mediação, etc. 15 O “ apofatismo” que está na origem de toda a teologia trinitária encontra-se especialmente na base da teologia do Espírito Santo, ou seja, da pneumatologia. Com efeito, no caso da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o ensinamento bíblico “ já tem o caráter de 9 À l'Im a g e ..., p. 8. 10 Ibid., p. 8. ü Ibid., p. 10. 12 Teologia M istica.. . , p. 39.

13 Ibid., p. 58. 14 Ibid., p. 135. 15 Ibid., p. 143.


uma tradição mais secreta, menos revelada, em lugar da manifestação refulgente do Filho, proclamada pela Igreja até os confins do uni­ verso” 16. “ O Espírito Santo permanece não-manifestado enquanto pessoa, permanece escondido, dissimulando-se no seu próprio apareci­ mento” 17. O caráter apofático também está presente na doutrina da cria­ ção. “ Quando, da plenitude do Ser divino, nos voltamos para aqui­ lo que está chamado a conquistar essa plenitude, para nós mesmos, para o universo criado que é em si não-plenitude, não-ser, devemos constatar que, se já era difícil elevar-se à consideração de Deus, se fomos forçados a uma ascensão apofática para receber na medida do possível a revelação da Trindade, não menos difícil é passar da noção do Ser divino à noção do ser criado. De fato, há o mistério de Deus, mas também há o mistério da criatura. Também aqui é necessário um salto da fé para admitir que exista, fora de Deus, ao lado de Deus, outra coisa que não ele, um sujeito absolutamente novo. E é necessá­ rio uma espécie de ‘apofatismo’ ao contrário para chegarmos à ver­ dade revelada da criação ex nihílo, do nada” 18. Concluindo, “ o ‘apofatismo’ é expressão de uma atitude de fundo que faz da teologia em geral uma contemplação dos mistérios da Revelação e não um ramo da teologia, um capítulo, uma intro­ dução inevitável sobre a incognoscibilidade de Deus, depois da qual passa-se tranqüilamente à razão humana, à filosofia comum. O ‘apofatismo’ nos ensina a ver nos dogmas da Igreja antes de mais nada um sentido negativo, um veto a que nosso pensamento siga os seus caminhos naturais e forme conceitos que substituiriam as rea­ lidades espirituais. O cristianismo não é uma escola filosófica que especula com conceitos abstratos, mas é antes de mais nada uma comu­ nhão com Deus vivo. Foi por essa razão que os Padres da tradição, fiéis ao princípio apofático da teologia, apesar de toda a sua cultura filo­ sófica e suas inclinações naturais para a especulação, souberam conter o seu pensamento no umbral do mistério, não substituindo Deus por ídolos de D eus” 19. 2, As Energias Divinas Para temperar as conseqüências do princípio da “ apofaticidade ” , que, por si só, levaria a acentuar de tal maneira a infinita dife­ rença qualitativa entre Deus e o homem que tornaria impossível qual­ quer contato entre eles, tanto em termos gnoseológicos como ontoló­ gicos (impediria tanto o conhecimento como a união com D eus), e para lançar uma ponte sobre o abismo que separa a essência inefá­ 16 Ibid., p. 153. Cf. À 1’Im age. . . , p. 175. 17 Ibid. 1® Ibid., p. 83. 19 Teologia M istica. .., p. 37.


vel de Deus das criaturas, Lossky introduz um segundo princípio: o das energias divinas. Trata-se de forças, ou seja, expressões dinâ­ micas da realidade divina, que representam o modo de existir do próprio Deus em relação ao que está fora dele. Elas são realmente distintas da essência divina, mas, ao mesmo tempo, são absolutamente idênticas a Deus. Por essa razão, conhecendo-se as energias divinas, conhece-se Deus; recebendo as energias divinas, recebe-se Deus. Esse é, in nuce, o pensamento losskyano sobre o segundo prin­ cípio arquitetônico de sua teologia. Como no caso anterior do princípio da “ apofaticidade” , Lossky também examinou atentamente tanto o desenvolvimento histórico como as justificações dogmáticas desse princípio. Historicamente, ele faz ver que a doutrina das energias divinas já pode ser encontrada na patrística grega (em Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Pseudo-Dionísio, etc.), tendo depois recebido uma sistematização definitiva por parte de Gregório Palamas. Dogmaticamente, a principal razão que justifica sua admissão é que ela torna possível o conhecimento e a união com Deus sem comprometer sua inefabilidade. Seus pontos de partida são dois dados dogmáticos certos: 1) a essência divina é incognoscível; 2 ) o homem conhece Deus e está destinado a unir-se a ele. Ora, de que modo es­ ses dois dados aparentemente contraditórios podem ser salvaguar­ dados conjuntamente? Segundo Lossky, isso só pode ser feito pelo princípio das energias divinas. Com efeito, “ se pudéssemos num certo momento nos encontrar unidos à essência de Deus, participar dela, ainda que apenas em certa medida, naquele momento não seríamos mais aquilo que somos, mas sim Deus por natureza. Deus então não seria Trindade, mas um Deus ‘myriypóstatos’, com hipóstases mil, porque haveria tantas hipóstases quantas fossem as pessoas partici­ pantes de sua essência. Pode-se dizer que entramos em união com uma das três pessoas divinas? Seria então uma união hipostática pró­ pria unicamente do Filho, do Deus que se torna homem sem deixar de ser a segunda pessoa da Trindade. Mesmo participando da mesma natureza humana, mesmo recebendo em Cristo o nome de filhos de Deus, nós, entretanto, pelo fato da Encarnação, não participamos nem da essência nem das hipóstases da Trindade. E, no entanto, a promessa divina não pode ser uma ilusão: nós somos chamados a participar da natureza divina. É preciso, portanto, admitir uma outra distinção ine­ fável em Deus, diversa da distinção da essência e das pessoas, uma distinção segundo a qual ele seria totalmente inacessível e acessível ao mesmo tempo, sob diversas relações. É a distinção entre a essência de Deus ou a sua natureza propriamente dita, inacessível, incognoscível, incomunicável, e as energias e operações divinas, forças naturais e inseparáveis da essência, nas quais Deus procede externamente, se manifesta, se comunica, se d á” 20. 20 Ibid.,

p. 64.


Mas em que consistem mais exatamente essas energias? Lossky precisa sua natureza da maneira que se segue. Em primeiro lugar, as energias não são funções relativas à cria­ ção, “ ainda que Deus crie e opere por meio de suas energias, que penetram tudo aquilo que existe. As criaturas poderiam não existir e mesmo assim Deus se manifestaria igualmente ao que está fora de sua essência, assim como o sol brilha em seus raios, fora do dis­ co solar, existam ou não seres capazes de receber a sua luz” . Por outro lado, “ o mundo criado não se torna infinito e co-eterno com Deus pelo fato de as processões naturais ou energias divinas o serem. As energias não implicam absolutamente a necessidade da criação, que é um ato livre, efetuado pela energia divina, mas determinado por uma decisão da vontade comum das Três Pessoas. É um ato do querer de Deus, que cria um novo sujeito fora do ser divino, ex nihilo. Assim tem início o ambiente da manifestação. Quanto à pró­ pria manifestação, ela é eterna: é a glória de D eus” 21. Em segundo lugar, as energias não são propriedade desta ou daquela pessoa divina (por exemplo, do Pai ou então do Espírito Santo), mas sim propriedade comum a toda a Santíssima Trindade, a sua “ manifestação e irradiação eterna. Elas não são acidentes da natureza em sua qualidade de energias puras, não implicam passivi­ dade em Deus. Não são tampouco seres hipostáticos, similares às três pessoas. Não se pode também atribuir exclusivamente a uma das hipóstases divinas uma energia qualquer, ainda que se diga ‘a Sabedoria’ ou ‘a Potência do Pai’, falando do Filho. Recorrendo a um termo habitual, poder-se-ia dizer que as energias são atributos de Deus; todavia, esses atributos dinâmicos e concretos não têm nada em comum com os atributos-conceitos aplicados a Deus pela teolo­ gia abstrata e estéril dos manuais. As energias revelam os inumeráveis nomes de Deus, conforme o ensinamento do Areopagita: Sabedoria, Vida, Potência, Justiça, Amor, Ser, Deus e uma infinidade de outros nomes que permanecem desconhecidos para nós, porque o mundo não pode conter a plenitude da manifestação que se revela nas ener­ gias, como não poderia conter os livros nos quais se escrevesse tudo aquilo que Jesus fez, conforme as palavras de são João (2 1 ,2 5 ). Os nomes divinos são inumeráveis e por isso a natureza que eles reve­ lam permanece anônima, incognoscível, treva escondida por uma profusão de luz” 22. Por fim, as energias divinas — que, como acabamos de ver, em nível ontológico, em relação às Pessoas Divinas, encontram-se em igual posição — distinguem-se em nível “ epifânico” . Por conseguinte, há uma ordem em sua manifestação: “ Todas as energias provêm do Pai, se exprimem no Filho e procedem exteriormente através do E s­ pírito Santo. H á uma processão natural, energética, manifestadora, 21 Ibid.,

p.

68.

22 Ibid., p . 73.


que deve ser claramente distinta da processão hipostática, pessoal, interna, só do P ai” 23. Enquanto a processão natural das energias ocorre através do Filho e se cumpre no Espírito Santo, a processão pessoal do Espírito Santo, segundo Lossky, ocorre imediata e direta­ mente do Pai, sem a mediação do Filho. 3. A Dupla Economia-, do Verbo Encarnado e do Espírito Santo A terceira doutrina que tem função arquitetônica na teologia de Lossky é a distinção de suas economias na história da salvação: a do Filho e a do Espírito Santo. Comumente, a história da salvação é concebida como história da ação desenvolvida por Cristo para libertar o homem do pecado e para restituir-lhe a graça de Deus, a vida divina. Todos os sistemas teológicos são construídos mais ou menos explicitamente em torno da figura de Cristo ou de qualquer mistério relativo à sua existência (Encarnação, Paixão, Ressurreição, Parusia). Um breve olhar às teologias do nosso séculoconfirmam claramente essa afirmação. Todas as construções teológicas protestantes são marcadamente cristocêntricas: da teologia de Barth à de Tillich, da de Brunner à de Bonhoeffer, da de Bultmann à de Cullmann. Cristocên­ tricas são também as construções teológicas católicas de Teilhard de Chardin, de Lubach, Schillebeeckx, Guardini, Chenu, Congar, Daniélou, von Balthasar e, à sua maneira, também a de Rahner. E, por fim, cristocêntricas são também as construções dos ortodoxos Bulgakov e Florovsky. No entanto, na base do sistema teológico de Lossky encontra­ mos dois centros: Jesus Cristo e o Espírito Santo. Com efeito, se­ gundo o autor de Teologia Mística da Igreja do Oriente, nossa salva­ ção é operada em parte pela Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e em parte pela Terceira. Há, portanto, uma economia soteriológica do Verbo Encarnado e uma outra do Espírito Santo. As duas econo­ mias “ encontram-se na base da Igreja, ambas necessárias para que possamos obter a união com D eus” 24. A economia do Verbo Encar­ nado refere-se somente à natureza humana, não às pessoas individual­ mente. Já a economia do Espírito Santo refere-se diretamente às pes­ soas em particular. “ A obra realizada por Cristo” , declara Lossky, “ refere-se à nossa natureza, que não está mais separada de Deus de­ vido à culpa. É uma nova natureza, uma criatura renovada que apare­ ce no mundo, um novo corpo, puro de todo assalto do pecado, livre de toda necessidade exterior, separado de nossa iniqüidade, de toda vontade estranha, mediante o precioso sangue de Cristo. É a Igreja, lugar puro e incorruptível em que se alcança a união com Deus; é 23 À l’Im age. . p. 88. 24 Teologia M istica.. p. 149.


também a nossa natureza, enquanto natureza incorporada à Igreja, en­ quanto parte do Corpo de Cristo, ao qual é integrada por meio do batismo. Contudo, muito embora por nossa natureza sejamos mem­ bros, partes da humanidade de Cristo, nossas pessoas ainda não chegaram à união com a divindade. A redenção e a purificação da natureza ainda não oferecem todas as condições necessárias para a ‘deificação’. A Igreja já é o Corpo de Cristo, mas ainda não é 'a ple­ nitude daquele que plenifica tudo em todos’ (E f 1,23). A obra de Cristo está consumada; agora, já se pode cumprir a obra do Espírito Santo” 25. “ A obra do Espírito Santo refere-se às pessoas, dirigindo-se a cada uma delas. O Espírito Santo comunica na Igreja às hipóstases humanas a plenitude da divindade segundo um modo único, 'pes­ soal’, apropriado para cada homem enquanto pessoa criada à imagem de Deus. . . Cristo torna-se a imagem única apropriada à natureza co­ mum da humanidade; o Espírito Santo confere a cada pessoa criada à imagem de Deus a possibilidade de efetivar a semelhança na natureza comum. Um empresta sua hipóstase à natureza, o outro dá sua divinda­ de às pessoas. Assim, a obra de Cristo unifica, a obra do Espírito Santo diversifica: a unidade de natureza se realiza nas pessoas; quanto às pessoas, elas não podem alcançar sua perfeição, tornar-se plenamente pessoas, senão na unidade de natureza, deixando de ser ‘indivíduos’ que vivem para si mesmos, que têm natureza e vontade próprias, ‘individuais’. A obra de Cristo e a do Espírito Santo, portanto, são inseparáveis: Cristo cria a unidade do seu corpo místico através do Espírito Santo e o Espírito Santo se comunica às pessoas humanas através de Cristo ” 26. Mas de que modo o Espírito Santo se comunica às pessoas? “ A qui”, responde Lossky, “ permanece um mistério: o mistério da exinanição, da kénosis do Espírito Santo vindo ao mundo. Se na kénosis do Filho a pessoa nos apareceu enquanto a divindade permanecia es­ condida sob ‘o semblante do servo’, o Espírito Santo no seu advento manifesta a natureza comum da Trindade, porém deixa que sua pessoa seja dissimulada sob a divindade. Permanece não revelado, por assim dizer escondido pelo dom, para que o dom que ele comunica seja plenamente nosso, feito propriamente por nossas pessoas” 27. “ Precisa­ ríamos muito mais dizer que o Espírito Santo se cancela, enquanto pes­ soa, diante das pessoas criadas às quais ele dá a graça. Nele, a vontade de Deus já não nos é mais externa: ela nos dá a graça desde o interior, manifestando-se em nossa própria pessoa, até que nossa vontade humana permaneça de acordo com a vontade divina e coope­ re com ela na obtenção da graça, fazendo-a nossa. É o caminho da ‘dei­ ficação’ que termina no Reino de Deus, introduzido nos corações pelo Espírito Santo desde a vida presente. Isso porque o Espírito 25 Ibid., p. 147.

26 Ibid., p. 159. 27 Ibid., pp. 160-161.


Santo é a unção régia que repousa sobre Cristo e sobre todos os cristãos chamados a reinar com ele no século futuro. Então, essa pessoa divina desconhecida, que não tem sua imagem numa outra hipóstase, se manifestará nas pessoas ‘deificadas’: sua imagem será a multidão dos santos” 28. É evidente que, concebendo assim a obra do Espírito Santo em nossa salvação, toda a teologia é redimensionada e assume uma no­ va configuração; todos os tratados adquirem um aspecto “ pneumático” que os transforma radicalmente, tanto o de revelatione como o de trinitate, tanto o de sacramentis como o de ecclesia, tanto a anthropologia supernaturalis como a eschatologia. Isso pode ser muito bem visto na teologia losskyana. 4. O Conceito de Pessoa Um outro conceito-chave da teologia de Lossky, que propicia a solução de alguns problemas fundamentais de cristologia, pneumatologia, antropologia, eclesiologia e teologia trinitária, é o conceito de pessoa. Procurando dar uma definição desse conceito, nosso teólogo observa: “ nunca encontrei aquilo que se poderia chamar uma doutrina elaborada da pessoa humana na teologia patrística, ao lado de ensina­ mentos muito precisos sobre as pessoas ou hipóstases divinas” 29. Não ignora as célebres definições de Boécio ( rationalis naturae individua substantia incomtnunicabilis) e de Ricardo de são Vítor ( ratio­ nalis naturae incommunicabilis existentia), mas considera ambas in­ satisfatórias, porque ressaltam excessivamente um aspecto da realida­ de humana, a razão, o nous. Segundo Lossky, “ para distinguir a hipós­ tase humana daquilo que constitui a sua natureza complexa, o corpo, a alma e o espírito (se é que estamos dispostos a aceitar esta tricoto-, m ia), não é possível encontrar nenhuma propriedade definível, ne­ nhuma atribuição que seja estranha à physis e que pertença exclusiva­ mente à pessoa tomada em si mesma” 30. Portanto, concluí o autor, a única definição satisfatória é aquela que descreve a pessoa em ter­ mos de kénosis. Com efeito, aquilo que mais caracteriza a pessoa é sua capacidade de subtrair-se aos instintos da natureza, às paixões e aos impulsos egoístas da vontade. “ Na livre renúncia a tudo aquilo que lhe é próprio, a pessoa humana se realiza plenamente. . . A pes­ soa perfeita é livre de toda constrição, de toda necessidade natural” 31. “ A perfeição da pessoa se realiza no abandono total, na renúncia a si mesma. Cada pessoa que procura se afirmar acaba somente na frag­ mentação da natureza, no ser particular, individual, que cumpre 28 29 30 31

Ibid., p. 165. A V lm age..., p. 109. Ibid., p. 118. Cf. também Teologia Mistica. . ., p. 48. Teologia Mistica. . ., p. 211.


uma obra contrária à de Cristo” 32. Também a imago Dei, com a qual a pessoa se identifica, consiste nesse domínio sobre a natureza: “En­ quanto ser criado à imagem de Deus, o homem apresenta-se como ser pessoal, como pessoa que não deve ser determinada pela natureza, mas que pode determinar a natureza, assimilando-a ao seu Arqué­ tipo divino” 33. “ É-nos mais fácil imaginar a pessoa que quer, que se afirma, que se impõe com sua vontade. Entretanto, a idéia de pes­ soa implica a liberdade diante da natureza; a pessoa é livre por na­ tureza, não é determinada por ela. A hipóstase humana só pode se efetivar na renúncia à vontade própria, àquilo que nos determina e nòs subjuga a uma necessidade natural. O individual — a afirmação de si na qual a pessoa se confunde com a natureza e perde a sua verdadeira liberdade — deve ser despedaçado. É o princípio fun­ damental do ascetismo: a livre renúncia à própria vontade, a um simulacro de liberdade individual, para recuperar a verdadeira liber­ dade, a liberdade da pessoa que é a imagem de Deus, própria de cada um ” 34. Quais são as implicações desse conceito de pessoa nas vá­ rias áreas da teologia? Lossky as evidencia muito bem, especialmente no setor da cristologia: “ A kénosis é o modo de ser da pessoa divina enviada ao mundo, pessoa na qual se cumpre a vontade comum da Trindade, da qual o Pai é a fonte. As palavras de Cristo ‘o Pai é maior do que eu’ expressam essa renúncia ‘quenótica’ à própria vontade” 35. “ A vida terrestre de Cristo foi um contínuo abaixamento: a sua vontade humana renunciava incessantemente àquilo que lhe era próprio por natureza e aceitava aquilo que era contrário à humanida­ de incorruptível e deificada: a fome, a sede, o cansaço, a dor, os sofrimentos e, por fim, a morte na cruz. Assim, pode-se dizer que, antes do fim da obra redentora, antes da ressurreição, a pessoa de Cristo tinha em sua humanidade como que dois pólos diversos: a incorruptibilidade e a impassibilidade naturais própriais de uma natureza perfeita e deificada e, ao mesmo tempo, a corruptibilidade e a sujeição voluntariamente assumidas, condições às quais a sua pes­ soa ‘quenótica’ submeteu e submetia sem pausas a sua humanidade li­ vre do pecado” 36. “ Assim, toda a realidade de nossa natureza decaída — inclusive a morte — , todas as condições essenciais que eram resul­ tado do pecado e, como tais, tinham um caráter de pena, castigo e maldição, foram transformadas pela Cruz de Cristo em condições de salvação” 37.

32 33 34 35 36 37

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. 175. p. 110. p. 113. p. 137. p. 140. pp. 145-146.


IV. A T EO LO G IA T R IN IT Á R IA Os quatro princípios que acabamos de examinar formam a gran­ de trama da poderosa síntese teológica elaborada por Lossky. Não pretendemos oferecer ao leitor uma exposição completa dessa síntese aqui. Limitamo-nos a um breve resumo da teologia trinitária, que é a mais interessante. Duas são as principais teses de Lossky nessa questão. A primeira diz respeito à ordem de abordagem: o autor afirma que se deve partir das Três Pessoas e daí ir à natureza e não ao contrário, como faz a teologia latina. O procedimento que vai da natureza às pessoas está para ele viciado pelo racionalismo. A segunda tese diz respeito à origem das Pessoas: contrariamente ao que ensina a teologia latina, o Espírito Santo procede imediata e exclusivamente do Pai, não por meio do Filho ou conjuntamente com o Filho. Tanto o per Filium como o Ftlioque são concessões ao racionalismo. Quanto à primeira tese, eis como o autor a formula: “ Sendo anterior a qualquer qualificação — bondade, inteligência, amor, po­ tência, infinidade — em que Deus se manifesta e pode ser conhecido, a Trindade é uma realidade primordial, que não pode estar baseada em nenhuma outra razão que não a de si mesma. . . A Trindade per­ manece para nós o Deus absconditus, o Santo dos Santos da existência divina, ao qual não é lícito levar nenhum ‘fogo estranho’. A teologia permanecerá fiel à tradição na medida em que suas expressões técnicas — ousía, ypóstasis, consubstancialidade, relações de origem, causali­ dade — sirvam para melhor fazer emergir esse mistério inicial do Deus-Trindade, sem obnubilá-lo por meio das ‘deduções trinitárias’ que partem de um outro princípio” 38. “ Se Deus é verdadeiramente o Deus vivo da revelação e não a essência simples dos filósofos, então ele só pode ser Deus-Trindade. Essa é uma verdade primária que não pode estar baseada em nenhum raciocínio, porque toda razão, toda verdade e todo pensamento se apresentam como posteriores à Trinda­ de, fundamento de qualquer ser e de qualquer conhecimento” 39. Dessa tese resulta a impossibilidade de deduzir a Trindade das relações de origem, como faz a teologia latina: “ É a diversidade absoluta das três hipóstases que determina as diferentes relações e não o contrário. Aqui, o pensamento se detém diante da impossibi­ lidade de definir uma existência pessoal na sua diferença absoluta e tem que adotar uma atitude negativa para declarar que o Pai privado de início ( ánarkos) não é nem o Filho nem o Espírito Santo; que o Filho gerado não é nem o Espírito Santo nem o Pai; que o Espírito Santo oriundo do Pai não é nem o Pai nem o Filho. Não se pode falar aqui de relações de oposição, mas apenas de relações de diver­ 38 À l'Im a g e ..., pp. 82-83. 39 Ibid., p. 83.


sidade. Seguir nessa questão um caminho positivo e conceber as relações de origem de outro modo que como sinais da diversidade inexprimível das pessoas significaria suprimir o caráter absoluto dessa diversidade pessoal, ou seja, relativizar a Trindade e, de certo modo, despersonalizá-la” 40. Segundo Lossky, esses são os defeitos que macularam a teologia trinitária da patrística e escolástica ocidentais. A atitude positiva que eles adotaram nessa parte da ciência sagrada “ deu lugar a uma certa racionalização do dogma trinitário, na medida em que suprimiu a antinomia fundamental entre a essência e as hipóstases: tem-se a impressão de que deixou os cumes teológicos para descer ao nível de uma filosofia religiosa” 41. Prosseguindo seu forte ataque à teologia latina, Lossky declara que nela “ a fé busca a inteligência para transferir a revelação ao plano da filosofia” ; já na teologia oriental, “ a inteligência busca as realidades da fé para transformar-se, abrindo-se sempre mais aos mistérios da fé ” 42. Da constatação dessas profundas divergências que dividem as duas teologias, não só na questão da colocação do problema trinitá­ rio, mas também em todas as outras questões, Lossky não hesita em extrair a grave conclusão de que é difícil aplicar, em sentido unívoco, o mesmo nome de teologia a esses dois modos de tratar as realidades divinas” 43. A segunda tese afirma que o Espírito Santo se origina direta e exclusivamente do Pai ( a Patre solo ), sendo uma conseqüência da tese precedente, sobre a prioridade do dogma da Trindade das Pessoas em relação ao dogma da unidade da natureza. Com efeito, afirmada a Trindade das Pessoas, de que modo é possível levar em conta a uni­ dade da natureza senão reconhecendo o Pai como única fonte do Filho e do Espírito Santo, que dele recebem essa mesma natureza? Foi isso o que, segundo Lossky, os Padres gregos ensinaram: eles “ sempre afirmaram que o princípio de unidade da Trindade é a pessoa do P ai” 44. “ Ele confere sua natureza una igualmente ao Filho e ao Espírito Santo, nos quais ela permanece una e indivisa, não repartida, mesmo sendo conferida de modo diverso, porque a processão do E s­ pírito Santo do Pai não é idêntica à geração do Filho pelo mesmo P ai” 45. “ Se se quisesse introduzir aqui, em conformidade com a fór­ mula latina (do filioque), uma nova relação de origem, fazendo o Espírito Santo proceder do Pai e do Filho, a ‘monarquia’ do Pai, essa relação pessoal que cria a unidade e a trindade ao mesmo tempo, cederia lugar a uma outra concepção: a da substância una, na qual 40 Ibid., p. 75.

41 Ibid. 42 Ibid., p. 76. 43 Ibid. 44 Teologia M istic a ..., p. 52. Cf. também À l'Im a g e ..., p. 74. 45 Ibid., p. 55.


as reiações interviriam para basear a distinção das pessoas, e a hipóstase do Espírito Santo seria apenas um laço recíproco entre o Pai e o Filho. Se se percebeu a tônica diferente das duas doutrinas trinitárias, então se compreenderá porque os orientais sempre defenderam o caráter inefável, apofático, da processão do Espírito Santo do Pai, fonte única das Pessoas, contra uma doutrínF mais rãclõnãl que, Tãzéndo do Pai e do Filho um princípio comum do Espírito Santo, colocava o comum acima do pessoal, uma doutrina que tendia a enfraquecer as hipóstases, confundindo as pessoas do Pai e do Filho no ato natural da expiração e fazendo da pessoa do Espírito Santo o laço entre ambas ” 4à. Portanto, o Ftlioque não é uma “ bagatela” teológica, um simples theologoumenon, como afirmou Bulgakov, mas sim o sinal patente daquele grave desvio racionalista de que, segundo Lossky, foi vítima a teologia latina. Com efeito, declara o nosso teólogo com termos bem mais categóricos do que o habitual, “ por meio do dogma do Filioque, o Deus dos filósofos e dcs sábios se introduz no seio do Deus vivo e toma o lugar do Deus absconditus, quiposuit tenebras latibulum suum. A essência incognoscível do Pai, do Filho e do Espírito Santo recebe qualificações positivas. Torna-se objeto de uma teologia natural; é um ‘Deus em geral’, que poderia ser o de Descartes, o de Leibniz e também — como poderei saber? — talvez, em certa medida, o de Voltaire e dos deístas cristianizados do século X V I I I ” 47. Por isso, Lossky conclui coerentemente que o Filioque é “ a razão primordial da separação entre Oriente e Ocidente” 48, sendo ainda agora o principal obstáculo, o impedimentum dirimem, para a res­ tauração da unidade 49.

V. AVALIAÇÃO Em nossa breve apresentação da teologia mística de Lossky não pudemos propiciar ao leitor a vastidão e a harmonia de sua admi­ rável construção, que abrange numa poderosa síntese quase todas as doutrinas da fé cristã (menos as doutrinas da Revelação, do peca­ do e da estrutura da Igreja): da Trindade aos atributos divinos, da criação à graça, da encarnação à redenção, da Igreja aos sacramentos, da santificação à união beatífica. Em nosso estudo, ao invés de examinarmos todas as partes do sistema, preferimos considerar os princípios arquitetônicos, porque são eles que constituem a sua originalidade: são os caráteres de “ apofaticidade” e “ pneumaticidade” e os conceitos de pessoa e de energia 46 47 4* 49

Teologia Mística. . . , p. 56. A l’Im a g e ..., pp. 84-85. Teologia M istic a ..., p. 51. À l’Im a g e ..., pp. 67-68.


divina que distinguem a construção de Lossky de todas as outras cons­ truções que passamos em revista. No entanto, a beleza do sistema losskyano deriva sobretudo do componente “ pneumático” , que ele vai buscar na teologia oriental, mas ao qual sabe dar uma nova base, apoiando-o numa economia es­ pecial do Espírito Santo, distinta da do Filho. Essa base da pneumatologia numa economia especial da Terceira Pessoa merece a maior atenção. É preciso distingui-la claramente da pneumatologia do “ joaquinismo” , baseada numa suposta terceira épo­ ca da Revelação, que sucederia às do Pai e do Filho. Portanto, não baseia sua pneumatologia numa terceira época, mas numa segunda economia, que não se desenvolve depois da do Filho, mas junto com ela. O Espírito Santo não toma em suas mãos a humanidade depois que o Filho voltou para o Céu, mas o Filho e o Espírito Santo rece­ bem simultaneamente do Pai a missãc da salvação da humanidade: o primeiro da natureza, o segundo das pessoas em particular. Não é que essa doutrina que baseia a pneumatologia numa eco­ nomia particular esteja isenta de todas as dificuldades. Parece difícil, sobretudo, poder conciliá-la aos textos evangélicos em que Jesus diz que, subindo ao Pai, mandará aos seus discípulos o Espírito Santo. A julgar por esses textos, parece que o Espírito Santo não desenvol­ ve uma economia própria, mas sim subsidiária à do Filho. Mas talvez não seja impossível dar-lhes uma interpretação compatível com a tese da dupla economia. Se essa dificuldade é possível de superação, então deve-se reconhecer a Lossky o mérito de ter dado uma contri­ buição fundamental ao desenvolvimento da teologia “ pneumática” . O conceito de pessoa, com sua forte acentuação da “ quenoticidad e ”, também me parece uma contribuição positiva, em termos teoló­ gicos. Na bela construção de Lossky, junto a tantos elementos posi­ tivos, entretanto, há também alguns de valor dúbio e negativo. Já assinalamos o perigo de agnosticismo e nominalismo que sua teologia corre, devido à sua concepção de “ apofaticidade” , que é tão radical a ponto de esvaziar todos os conceitos de todo conteúdo. Uma outra doutrina sobre a qual nutrimos forte perplexidade é a das energias divinas. O autor procurou defendê-la, protegendo-a contra todos aqueles que a criticaram, acusando-os de racionalismo e de obtusidade mental. Não me parece que com argumentos desse tipo ele tenha conseguido dar maior crédito à sua doutrina. A acusação de racionalismo poderia, inclusive, se sustentar se se tratasse de uma verdade seguramente revelada. Mas a doutrina das energias divinas é apenas uma hipótese teológica, ainda que tenha sido valorizada pela aprovação de alguns concílios locais da Igreja bizantina durante o século X IV , e, portanto enquanto hipótese teológica, vale aquilo que valerem os argumentos levantados em seu favor. Ora, a maior parte dos teólogos consideram-na inaceitável, exatamente porque os argumentos que militam em seu favor não são muitos nem fortes.


A julgar pela apresentação que dela nos faz Lossky, a doutrina das energias divinas é, em nosso entender, obscura e contraditória. É obscura quando diz que as energias são realmente distintas da natureza divina e, no entanto, não introduzem nenhuma composição em D e u s30. Logo, como é possível uma distinção real sem compo­ sição real? Não são os conceitos de distinção e composição dois con­ ceitos correlatos? Porém, se tal é a sua natureza, então não vejo como se possa considerar a distinção real entre essência divina e energias e, ao mesmo tempo, excluir a composição real entre elas. Ademais, a doutrina é contraditória quando, por um lado, pre­ tende tornar Deus acessível e, por outro, declara que as energias divinas “ lhe são inferiores, logicamente posteriores ao seu Ser em si, na sua essência” 51. Para que possam tornar Deus realmente aces­ sível, as energias devem ser iguais a ele. É impossível afirmar a um só tempo que Deus é acessível por meio de suas energias e que es­ tas lhe são inferiores. Trata-se de uma contradição patente. Da mes­ ma forma contraditória é a tese de que as energias encontram-se eter­ namente fora de Deus, embora antes da criação não exista nada fora dele 32. Uma outra tese que temos dificuldade em aceitar é a relativa à derivação do Espírito Santo ex Patre solo. Não me parece que ela possa se harmonizar com as numerosas passagens em que os Padres chamam o Espírito Santo de “ imagem do Filho” 53. Lossky não ignora esses textos, até compartilha sua doutrina. Mas como se pode justifi­ car tal doutrina sem admitir uma dependência de origem também em relação ao Filho? A similaridade comporta sempre uma dependência entre o modelo e a imagem. Mas o aspecto menos feliz de todo o pensamento de Lossky são as suas repetidas acusações de racionalismo contra a teologia ca­ tólica, tanto em relação à doutrina da dedução da Trindade da natu­ reza divina como em relação ao Filioque. Trata-se, pois, de acusações fáceis de refutar, tanto voltando-as contra o próprio Lossky como contestando o seu fundamento. Antes de mais nada, pode-se voltar a acusação contra o próprio Lossky fazendo ver que os procedimentos através dos quais, partindo do pressuposto discutível da absoluta inefabilidade de Deus, deduz a necessidade das energias divinas, ou então, partindo da presumida prioridade do dogma trinitário, deduz a necessidade da origem do Espírito Santo exclusivamente do Pai, não são menos racionalistas do que aqueles com que a teologia latina deduz a Trindade ou demonstra o Filioque. Não há, por conseguinte, nenhuma diferença de método; a diversidade está somente nos pontos de partida,

50 Teologia Mistica. . ., pp. 64, 80. 51 Ibid., p. 74. 52 Ibid., pp. 67-68. Alguns textos são citados também por Lossky. Cf. À l'Image. . ., p, 89.


As acusações também podem ser repelidas contestando-se o seu fundamento: negando que se trate, efetivamente, de procedimentos racionalistas, como afirma Lossky. Na realidade, em ambos os casos contra os quais ele se lança, não se trata da dedução de verdades teológicas incertas a partir de verdades teológicas certas, mas sim de tentativas de compreensão de dados que somente são aceitos pela fé. Ora, não parece que essas tentativas de compreensão do mistério possam ser tachadas de racionalismo, a menos que se esteja disposto a excluir da teologia qualquer emprego da razão. Mas, em tal caso, não restaria ao teólogo outra coisa a fazer a não ser ajoelhar-se diante de Deus e exclamar “ Ah! Ah! A h !” , como o profeta.

Nota bibliográfica. — Lossky foi bem pouco estudado. Um bom ensaio é o de E. “L ’Opera di Vladimir Lossky: um Importante Messaggio dei Cristianesimo Ortodosso”, introdução a V. L o s s k y , La Teologia Mistica delia Cbiesa d Oriente, II Mulino, Bolonha, 1967, pp. V II-X X V II. L anne,


IN D IC E

INTRODUÇÃO À H IST Ó R IA D A T E O LO G IA PRO­ TESTAN TE I. A teologia dos fundadores II. A Escolástica protestante ou Ortodoxa III. O racionalismo IV. O protestantismo liberal V. Da Neo-Ortodoxia ao Ateísmo Cristão KA R L BARTH E A T EO LO G IA DA PALAVRA DE DEUS I. Vida II. Obras III. Definição da teologia IV. Relações entre teologia e filosofia V. O método da analogia da fé V I. A Palavra de Deus V II. Deus como totalmente Outro e como Pai V III. O cristocentrismo IX . A Igreja X . Avaliação E M IL BRUNNER E A T E O LO G IA D IA LÉTIC A I. Vida II. Obras III. A dialética IV. Fé e razão V. O homem e a itnago Dei V I. Deus V II. A Igreja V III. Avaliação PAUL T IL L IC H E A T E O LO G IA DA CORRELAÇÃO I. Vida II. Obras III. Pensamento IV. Avaliação


5 . R EIN H O LD N IEBU H R E A T E O LO G IA A PO LO G É­ TICA 90 95 96 97

102 107 113

I. Vida II. Obras III. Principais características do pensamento de Niebuhr IV. A teologia apologética V. O homem, o pecado, a graça V I. Cristo e a história V II. Avaliação 6 . RUD OLF BULTM ANN: D EM ITIZAÇÃO DA REV ELA ­ ÇÃO E T E O LO G IA E X IST E N C IA LIST A

115 117 119 130 134 »

M

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I. Vida II. Obras III. A teologia e seus instrumentos: a história, a herme­ nêutica e a filosofia IV. A demitização V. Avaliação 7 . OSCAR CULM ANN E A T EO LO G IA BÍBLIC A I. Vida II. Obras III. Natureza, objeto e método da teologia bíblica IV. A história da salvação pertence à essência da mensagem cristã V. O desenvolvimento da história da salvação V I. Jesus, centro da história da salvação V II. Valor soteriológico da Igreja apostólica e pós-apostólica V III. O primado de Pedro IX . Avaliação 8. D IE T R IC H BO N H O EFFER E O CRISTO CEN TRISM O A -RELIG IO SO

166 171 173 179 182 186 190

I. Vida II. Obras I II. Natureza e funções da teologia IV. Distinção e relações entre ordem natural e sobrenatural V. Cristocentrismo e Imitação V I. A Igreja e a secularização V II. Avaliação 9. JÜ R G E N M OLTM ANN E AS T EO LO G IA S DA CRUZ E DA ESPERANÇA

195

I. Vida II. Obras


197 200

III. Cristologia IV. Eclesiologia 10. INTRODUÇÃO À H IST Ó R IA DA T EO LO G IA O RTO­ D O XA

211 212 213 214 215 216 217

I. Período patrístico (séculos I-V I) II. A era de Justiniano (séculos V I-V III) I II . Período de Fócio e Cerulário (séculos IX -X III) IV. O período de Gregório Palamas (séculos X IV -X V ) V. A teologia da Diáspora (séculos X V I-X V II) V I. A escola de Kiev (séculos X V II-X V III) V II. O renascimento moderno (séculos X IX -X X ) 11. SE R G H IE I BU LG A KO V E A “ SO F IO L O G IA ”

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I. Vida II. Obras III. Filosofia, teologia e “ sofiologia” ' IV. A “ sofia” no mistério trinitário V. A “ sofia” e a criação V I. A “ sofia” e o homem V II. Cristo, encarnação da “ sofia” eterna V III. Avaliação 12. G H IO R G H IO U FLO RO V SKY E A SÍN T E SE NEOPAT R ÍST IC A

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I. Vida e obras II. A síntese neopatrística III. A cristologia IV. A eclesiologia V. Avaliação 13. V LA D IM IR LO SSK Y E A T E O LO G IA M ÍSTICA

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I. Vida II. Obras III. Os quatro pilares da teologia de V. Lossky IV. A teologia trinitária V. Avaliação


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