Digitalizado por: Alex Bruno
MISSIONÁRIOS FERIDOS Categoria: Missões / Liderança / Igreja
Copyright © 2009, Antonia Leonora van der Meer Todos os direitos reservados Primeira edição: Março de 2009 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Preparação e revisão: Paula Mazzini Mendes Colaboração: Délnia Bastos Diagramação: B. J. Carvalho Capa: Caio Campana
Ficha Catalográfica Preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV Missionários feridos — como cuidar dos que servem / Antonia Leonora van der Meer. – Viçosa, MG : Ultimato, 2009. 176p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7779-026-5 1. Igrejas protestantes - Missões. 2. Sofrimento Aspectos religiosos - Igrejas protestantes. 3. Missionários Vida religiosa. 4. Missionários - Aspectos sociais. I. Título. CDD. 22.ed. 266.4
PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS EDITORA ULTIMATO LTDA Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br
SUMÁRIO Prefácio Introdução
7 11
Parte um: Sofrimento e missão — modelos bíblicos 1. A vida de Jesus 2. O ensino de Jesus 3. A vida de Paulo 4. O ensino de Paulo
15 25 33 49
Parte dois: Contextos atuais de sofrimento 5. Guerra e violência 6. Problemas sociais 7. Perseguição 8. O preço
67 81 95 111
Parte três: Cuidado e apoio 9. Valores bíblicos 10. Como cuidar dos que servem
119 127
Apêndice – Ouvindo os próprios missionários Notas Bibliografia
155 165 169
PREFÁCIO
A missão é a fé em movimento. Movimento do Espírito Santo, mas também movimento de homens e mulheres que se dedicam integralmente à obra do Senhor. A fé é missionária porque é baseada na vida de Jesus de Nazaré, que desceu dos céus e, sendo Deus, viveu na terra como homem. É inspirada na Palavra de Deus, anunciada, pregada, para que todo aquele que crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Quando nos debruçamos sobre a história da Igreja verificamos que, ao lado da Reforma e dos avivamentos, o movimento missionário é uma das suas páginas mais inspiradoras e desafiadoras. No Brasil não poderia ser diferente. A consciência missionária, desde o Congresso Missionário Ibero-Americano (COMIBAM) em 1987, mobilizou o povo de Deus na obediência ao mandato de Jesus de anunciar o evangelho a todas as nações. Muitos pastores foram despertados para missões, surgiram várias agências e um grande número de missionários foi enviado para as mais remotas áreas do Brasil e do exterior. Foram muitas conferências, estratégias, treinamentos, levantamento de recursos, relatórios, testemunhos e livros. No entanto, nem sempre se considerou que o mais importante em missões é a pessoa do missionário. Não se trata de um herói, mas de um ser humano com suas carências, dores e dificuldades. No afã de resultados, pouco se cuidou da pessoa do missionário.
Deixar a família, a cultura, uma profissão para se entregar a um outro povo, muitas vezes em situação de penúria, guerra, doenças endêmicas e perseguições, foi o contexto para o amadurecimento de muitos. Para outros, no entanto, gerou grande sofrimento, crise emocional e espiritual. Muita gente foi enviada, mas pouco cuidada, com pouca retaguarda pastoral e financeira. Tonica escreve a partir de uma realidade que só quem vivenciou sabe o que representa. Ela serviu como missionária em Angola durante dez anos e, de volta ao Brasil, passou a se preocupar com a saúde integral (espiritual, física e emocional) do missionário. Desde 1996 trabalhando no Centro Evangélico de Missões (CEM), ela tem direcionado sua pesquisa acadêmica para o tema do cuidado pastoral de missionários, além de se envolver ativamente em programas de restauração de missionários. Por exemplo, ajudou a criar o Grupo de Cuidado Missionário, ligado à Associação Brasileira de Missões Transculturais. Tenho o privilégio de conhecer Tonica desde 1973 e colaborar com ela nos encontros anuais de restauração para missionários no CEM. Ouvimos suas histórias, seus desafios, suas dores, mas acima de tudo aprendemos com eles, com sua dedicação, seu amor sacrificial, seu desprendimento, sua dependência de Deus e sua obediência. Lições preciosas desses que, certamente, representam aquilo que a igreja brasileira tem de melhor. Eles são a resposta de Deus para aqueles que nunca ouviram o evangelho e que vivem em lugares remotos e carentes. Missionários Feridos revela uma realidade que nos desafia, e o faz com sabedoria, integridade e compaixão. Dessa forma, se junta a outras importantes iniciativas surgidas nos últimos anos em favor dos missionários. Contribui para que eles tenham uma retaguarda cada vez mais eficiente no apoio espiritual e material quando do envio, e para que, ao voltar do campo, em vez de apenas enfrentar uma agenda pesada e muitos compromissos, possam ser cuidados, acolhidos, pastoreados, e encontrar descanso, restauração e encorajamento. Sim, porque, o mais importante em missões é a pessoa do missionário. Osmar Ludovico da Silva
INTRODUÇÃO
O crescimento do número de missionários brasileiros transculturais é motivo de alegria. Nossas limitações financeiras e nosso estilo de vida simples fazem com que nos encarnemos mais rapidamente em comunidades carentes. Em 1989 havia 880 missionários transculturais; em 2005, esse número subiu para 3.195. O número de missionários atuando na Janela 10/40 cresceu de 44 em 1989 para 640 em 2005. Há missionários brasileiros servindo em países como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau — lugares assolados por guerras e desastres naturais, e que enfrentam situações de extrema pobreza. Recentemente, a igreja brasileira respondeu ao clamor do povo do Timor Leste, país que sofreu muito por causa da guerra e da destruição. Vários missionários transculturais brasileiros servem em campos onde há muitas dificuldades e sofrimento, mas pouco cuidado pastoral ou apoio prático. Ainda hoje, alguns são abandonados por suas igrejas e retornam ao Brasil, arrasados, sem esperança e em crise de fé. Isso mostra que ainda temos muito que aprender sobre como melhor apoiar e cuidar dos missionários. Como esses missionários podem exercer seu ministério em contextos tão difíceis, enfrentando tantas necessidades? Os brasileiros geralmente vêm de famílias com muita interação e cuidado mútuo. Por isso, é muito difícil para eles suportar a solidão. A maioria dos missionários que sofre com depressão, por exemplo, enfrenta incompreensão e trava uma batalha árdua e solitária para superar a dor.
Este livro tem como objetivo ajudar as igrejas e agências brasileiras a compreender melhor os contextos de sofrimento em que seus missionários atuam e motivá-las a oferecer mais cuidado e apoio adequados a fim de reduzir as taxas de retorno prematuro do campo. A primeira parte aborda o sofrimento na vida de Jesus e de Paulo, e a forma como eles prepararam seus discípulos e as igrejas jovens para enfrentarem o sofrimento. A segunda descreve alguns contextos atuais de sofrimento em que os missionários e suas famílias estão inseridos. A terceira apresenta sugestões de como cuidar melhor dos missionários, tendo como base os resultados de entrevistas feitas com missionários que servem em locais onde há muito sofrimento e com líderes de agências missionárias e igrejas que enviam obreiros para esses campos. E o apêndice mostra o resultado da pesquisa entre os próprios missionários. Que as páginas a seguir nos ajudem a compreender o sofrimento que os missionários enfrentam e a perceber como ele está relacionado à missão cristã. Que outros se animem a responder aos desafios existentes, para que Cristo se torne conhecido e mais pessoas possam ter sua esperança de vida renovada.
Parte 1
Sofrimento e missão — modelos bíblicos Antes de nos atentarmos para o que os escritores contemporâneos têm a dizer sobre dor e sofrimento, precisamos observar as Escrituras. Esta primeira parte aborda especificamente os aspectos do sofrimento na vida de Jesus e de Paulo, a forma como eles reagiram e o que ensinaram a seus discípulos sobre esse tema. Mostra o que podemos aprender com eles e como podemos ser desafiados em relação ao nosso próprio testemunho e ministério missionário.
capítulo um
A VIDA DE JESUS
AS PERGUNTAS RELACIONADAS AO SOFRIMENTO NA VIDA e no ministério dos cristãos hoje precisam estar conectadas à compreensão bíblica do sofrimento de Cristo, que sofreu pelos seres humanos e por sua criação a fim de restaurá-los da corrupção para a glória de Deus. Aceitamos com gratidão esse sofrimento. Ninguém é chamado a sofrer da mesma maneira — este foi o preço que somente ele poderia pagar: a culpa de nossos pecados para a redenção completa. Mas Jesus nos chama a negarmos a nós mesmos, a seguirmos o seu caminho para a cruz, a sermos objetos do ódio do mundo e a sofrer; não para pagar pelos nossos pecados, mas para testemunhar sobre a nova realidade do seu reino. Esse testemunho provoca reação daqueles que estão nas trevas, que pertencem ao sistema vigente desse mundo, rebelde à vontade de Deus. Sofreremos por sermos seus seguidores. O próprio Jesus sofreu quando aceitou nossa natureza, enfrentou nossas tentações, viveu nossa tristeza e dor, levou sobre si nossos pecados e morreu nossa morte. Sua identificação total em amor significou sofrimento. Jesus veio para servir, para amar e dar a si mesmo. Mas isso não é motivo de lamento, pois esta era a única maneira pela qual a humanidade e a criação poderiam ser restauradas. Jesus assumiu as limitações e fraquezas de um ser humano: se tornou dependente de seus pais, vulnerável a ameaças violentas, a sede e fome, ao cansaço e exaustão e a relacionamentos difíceis. Por exemplo, Jesus teve de fugir para o Egito com seus pais quando ainda era pequeno, vivendo como refugiado em terra estrangeira.
O Messias que restaura os pobres Maria compreendeu a vinda do Messias como Deus agindo contra o orgulho dos poderosos e dos ricos e se colocando ao lado dos humildes e famintos; uma identificação clara com os pobres e insignificantes deste mundo. Deus inverte os conceitos humanos de grandeza e insignificância ao destituir os opressores, os orgulhosos e os ricos de seu poder e autossuficiência e exaltar o pobre, o humilde e o faminto, ou seja, todos os que se reconhecem necessitados. Em outras palavras, Deus vira de ponta-cabeça as estruturas sociais (Lc 1.51-53). Apesar de impressionados com seu ensino, os ouvintes de Jesus não queriam aceitar suas afirmações ou reconhecer seu ministério. Em sua leitura e aplicação da profecia de Isaías 61.1-2, Jesus enfatizou: boas novas para os pobres, incapacitados de resolver seus problemas por falta de recursos; liberdade para os cativos, que não podiam ir aonde quisessem ou precisassem ir; libertação para os oprimidos, quaisquer que fossem as causas de sua opressão que os destituíssem de sua dignidade e valor; e o ano do favor do Senhor, o jubileu, com a devolução das propriedades aos seus donos por direito (Lv 25.10). A tentação no deserto As palavras de Deus no batismo de Jesus — ―Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado‖ — unem os temas de entronização (Sl 2) e servo sofredor (Is 42). Depois de ter sido batizado por João, Jesus foi levado para o deserto pelo Espírito, onde jejuou durante quarenta dias e foi tentado pelo diabo três vezes (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13; Lc 4.1-13). 1. ―Manda esta pedra transformar-se em pão‖ (Lc 4.3), ou seja: Alimente as multidões e você será rei. A tentação era a de não se submeter às limitações da existência humana. Seria um ato de insubordinação e falta de fé. Jesus decidiu esperar a provisão do Pai, ele aceitou viver dentro das limitações dos seres humanos. ―Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus‖ (Mt 4.4). 2. ―Se me adorares, tudo será teu‖ (Lc 4.6). Jesus discerniu o caráter idolátrico da fome de poder político. Era a tentação de fundar o reino messiânico, em aliança com os poderes das trevas. Muitos sucumbem à tentação de atingir seus objetivos por meio da violência e manipulação, em vez do amor auto-sacrificial.
3. ―Joga-te daqui para baixo...‖ (Lc 4.9). Essa tentação estava relacionada à afirmação do reinado divino; ele foi desafiado a não confiar em Deus, e sim tentá-lo, para ver se ele manteria as suas promessas. Foi a tentação de evitar o caminho mais difícil, de dar uma demonstração de poder. Mas Jesus escolheu o caminho do sofrimento e da morte, e não o da aclamação popular.
A tentação é parte do sofrimento humano. Temos um inimigo que está presente quando nos sentimos fracos e desanimados, e que nos oferece uma saída fácil; ou quando recebemos elogios e reconhecimento, ele nos estimula a nos sentirmos autossuficientes. Isso leva os cristãos em missão a erros sérios ou ao pecado, luta, pressão e sofrimento. Previsão de sua morte Jesus sabia que precisava sofrer para cumprir as Escrituras, e repetidas vezes mostrou saber que sofreria uma morte violenta e prematura; também sabia que sua morte tinha um propósito (Jo 12.27; 13.1).
Nos Evangelhos Sinópticos O sofrimento de Jesus é anunciado várias vezes nos Evangelhos Segundo Marcos (8.31; 9.12, 31; 10.32-34) e Mateus (16.21; 17.22-23; 20.17-19). Depois da confissão de Pedro, Jesus começou a falar a seus discípulos que ele iria sofrer, seria rejeitado, morto, e ressuscitaria três dias depois. Ele seria entregue aos gentios, que iriam zombar dele, cuspir nele, açoitá-lo e crucificá-lo. O texto de Lucas 5.35 sugere morte violenta, e Lucas 9.21- 22 ensina que seu sofrimento não era acidental, e sim um imperativo divino. A cruz era parte da vocação de Jesus, a alternativa política para o quietismo e a insurreição. Em Lucas 9.51 e 12.50, Jesus está decidido a ir a Jerusalém e não tenta escapar do sofrimento: ―Mas tenho que passar por um batismo, e como estou angustiado até que ele se realize‖. Jesus estava consciente de que iria passar por uma grande provação (cf. Lc 13.32-33; 17.25; 18.31-34).
No Evangelho Segundo João Há sete referências para a ―hora‖ em que ele iria deixar este mundo e voltar para o Pai. Essa hora estava no controle do Pai; apesar de os judeus terem tentado,
sem sucesso, colocar as mãos nele, só o conseguiram quando era chegada a sua hora (Jo 7.25- 44). A glória de Jesus seria vista em sua limitação como ser humano e na auto-humilhação de sua encarnação (Jo 1.14). Ele se referiu à sua morte como um evento pelo qual ele e seu Pai seriam glorificados. O Pai e o Filho revelaram seu amor sacrificial na cruz. Apenas depois de crucificá-lo, os homens conseguiriam compreender quem era Jesus. João usa a expressão ―ser levantado‖ ao fazer referência à cruz, porque sua maior glória consistia em aceitar a vergonha e humilhação da cruz (Jo 8.28; 13.31-33). Jesus glorificou o Pai ao fazer a sua vontade; ao aceitar a cruz, ele se tornaria uma bênção para muitos (Jo 16.16-22; 17.1-5). Jesus explicou a Nicodemos que ele precisava ser levantado a fim de oferecer vida eterna. Assim como a serpente de bronze foi um sinal da graça perdoadora de Deus, Jesus seria levantado para oferecer perdão e cura eternos (Jo 3.14-15). Depois de Jesus ter sido levantado da terra (indicação do tipo de morte que ele sofreu), ―todos os homens‖, e não apenas os judeus, foram atraídos a ele (Jo 12.23-32). Ao expulsar os vendedores do templo, uma ação que provocou reações fortes e questionamentos quanto à sua autoridade, Jesus respondeu: ―Destruam este templo, e eu o levantarei em três dias‖. Jesus afirmou que a maneira ritual usada pelos judeus para se aproximarem de Deus não era mais válida e que ele abriria um novo caminho de acesso a Deus (Jo 2.19-22). Jesus refere-se a si mesmo como o pão da vida, ensinando a seus ouvintes que eles precisavam comer sua carne e beber o seu sangue. Oferecer sua carne significa sua morte voluntária, para que o mundo tivesse vida (Jo 6.48-57). A primeira preocupação do pastor é com a ovelha, não com sua própria vida. O bom pastor foi morto porque se ofereceu como sacrifício voluntário (Jo 10.11-18). No contexto da visita de alguns gregos que queriam vê-lo, Jesus fala sobre o grão de trigo que precisa morrer a fim de produzir vida (Jo 12.24). Esses gregos foram os primeiros de muitos que viriam de todas as partes do mundo para receber nova vida. Mas antes, Jesus tinha de morrer. No mundo natural e espiritual, a vida vem através da morte. A morte não é uma tragédia, e sim um triunfo. Luta no Getsêmani Jesus começou a se sentir ―aflito e angustiado‖ (Mc 14.33). Jesus orou: ―Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim
como tu queres‖ (Mt 26.39). ―Estando angustiado, ele orou ainda mais intensamente; e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão‖ (Lc 22.44). Em sua segunda oração ele pediu: ―Meu Pai, se não for possível afastar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade‖ (Mt 26.42), e um anjo veio fortalecê-lo. Era o cálice da agonia das trevas espirituais, de se tornar o pecado do mundo e enfrentar o juízo divino pelos nossos pecados. Jesus decidiu beber o cálice que o Pai havia lhe dado. No Getsêmani, foi travada a batalha mais importante do universo. Se ele falhasse tudo estaria perdido; em seu triunfo, foi garantida a vitória. Julgado por Pilatos Nas províncias romanas, a pena capital era uma prerrogativa do governo, mas Roma abriu uma exceção, que permitiu que os judeus punissem aqueles que violassem seu templo. Se Jesus fosse morto pelos judeus teria sido por apedrejamento. Mas Ele foi ―levantado‖ — uma expressão que se refere à morte numa cruz (Jo 18.28-40; 19.1-16). A discussão entre Pilatos e Jesus sobre a natureza da verdade é relevante. Jesus define o reino em termos de verdade, que está próxima à ideia de realidade, de um relacionamento genuíno com Deus, e de verdade e justiça nos relacionamentos interpessoais. Pilatos ficou impressionado com o silêncio de Jesus e viu que não tinha base para acusá-lo de algum crime. Ordenou que ele fosse açoitado (um açoite era um chicote de tiras de couro com pedaços de osso ou chumbo em suas extremidades). Por causa da pressão da multidão, Pilatos libertou Barrabás e entregou Jesus para ser crucificado. Judas entregou Jesus aos judeus (motivado pela cobiça); eles o entregaram a Pilatos (por inveja); e Pilatos entregou-o aos judeus (por covardia). Porém, na esfera divina, o Pai o entregou, ofertou-o, e Jesus se entregou para morrer por nós. Jesus experimentou sofrimento físico, relacional e emocional, ao levar sobre si a condenação que merecíamos para que fôssemos libertos (Mt 27.11-26; Mc 15.1-20; Lc 23.3-25). Crucificado e morto Jesus foi preso pelos sacerdotes e executado por Roma como se fosse um líder popular extremamente perigoso. Simão foi forçado a carregar a sua cruz e as mulheres de Jerusalém choraram por ele. Jesus respondeu: ―Filhas de Jerusalém, não chorem por mim; chorem por vocês mesmas e por seus filhos‖ (Lc 23.28). Suas palavras
expressam compaixão, e não condenação. Eles o crucificaram, dividiram suas roupas lançando sortes. A acusação escrita em latim, grego e hebraico era: ―Este é Jesus, o Rei dos Judeus‖ (Mt 27.37), mostrando que ele era considerado uma ameaça para o Império Romano (Mt 27.32- 44; Mc 15.21-32; Lc 23.26-43; Jo 19.16-30). Jesus orou: ―Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem‖ (Lc 23.34). Ele orou por seus inimigos e teve compaixão deles (Lc 6.27-35). Lucas 23.42-43 registra o arrependimento do ladrão que orou: ―Lembre-se de mim quando entrares no teu reino‖ e a resposta de Jesus: ―Hoje mesmo estarás comigo no paraíso‖. Outros o insultaram: ―Salvou os outros, mas não é capaz de salvar a si mesmo […] Desça agora da cruz […] Que Deus o salve agora, se dele tem compaixão, pois disse: ‗Sou o Filho de Deus!‘‖ (Mt 27.39-43). Na realidade, Jesus não poderia salvar os outros e também salvar a si mesmo. Da hora sexta à hora nona, o céu ficou escuro. Não foi um eclipse solar, pois era dia de lua cheia. Na hora nona Jesus exclamou: ―Eloi, Eloi, lama sabachtani‖ (Mt 27.46), expressão do profundo horror que lhe causava a separação de seu Pai. A escuridão foi um símbolo das trevas espirituais, da exclusão absoluta da luz da presença de Deus. Jesus estava sozinho e abandonado por Deus. Foi uma verdadeira separação entre o Pai e o Filho, uma ação voluntária de ambas as partes. A exclamação de Jesus expressa a dor de ter sido abandonado pelo Pai. Jesus foi abandonado para que nós nunca sejamos abandonados (Hb 13.5). Jesus bradou em alta voz: ―Está consumado‖ (Jo 19.30), expressando sua resposta à vontade do Pai e anunciando que a redenção do mundo estava completa. Ele assumiu, de livre vontade, o julgamento pelos nossos pecados, movido pelo seu amor por nós. Ao final, ele disse: ―Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito‖ (Lc 23.46). A cortina do templo se rasgou de alto a baixo. A barreira do pecado que separava o homem de Deus foi derrubada, foi aberto um novo caminho de acesso a Deus. O significado do sofrimento de Jesus O Cristo crucificado é o Cristo do pobre, aquele que tomou a forma de servo para estar com eles e amá-los. O chamado para seguir a Jesus está associado ao seu sofrimento e, portanto, segui-lo significa negar a si mesmo, tomar a sua cruz e compartilhar do seu sofrimento. O teólogo alemão Jürgen Moltmann afirma que ―O sofrimento do amor não tem medo do que é doente e feio, mas o aceita [...] a fim de curá-lo‖.1 Jesus
sofreu e foi rejeitado. Alguém pode sofrer e ser admirado, mas a rejeição elimina a dignidade do sofrimento. A cruz fala sobre morrer como um pária. Ser crucificado com Cristo significa perseverar apesar de não receber nenhum apoio. Jesus morreu por nossos pecados, recebeu a penalidade que nós merecíamos. A cruz ensina que nossos pecados são tão sérios, que a única saída foi Deus levá-los sobre si, em Cristo, a fim de oferecer-nos perdão. É preciso compreender a gravidade do pecado e a santidade de Deus. A cruz é a expressão da misericórdia e da justiça divinas, o lugar onde, em santo amor, Jesus pagou por nossos pecados. O pano de fundo principal da cruz não é apenas nosso pecado, é também a reação justa de um Deus santo contra essas coisas. Assim como a graça de Deus está relacionada à sua atividade pessoal graciosa, a ira se refere à sua hostilidade pessoal contra o pecado. Mas isso não diminui seu amor pelo pecador. Precisamos compreender a santidade de Deus e a nossa pecaminosidade, para compreender a necessidade e a glória da cruz. Por causa do grande amor de Deus por nós, Cristo veio para nos salvar (Lc 1.78; Tt 2.11). Deus não desejava agir em amor à custa de sua santidade, ou em santidade à custa de seu amor. Ele satisfez seu amor santo ao morrer nossa morte e suportar nosso julgamento. Nosso substituto não foi apenas Cristo, nem apenas Deus, mas Deus em Cristo. Ao entregar seu Filho, Deus entregou a si mesmo. O amor divino triunfou sobre a ira divina por meio do autossacrifício. Amor é Jesus dar sua vida por nós; amor é Deus enviar seu Filho para morrer por nós. Resumindo, Deus deu seu Filho e Jesus deu sua vida para nos libertar como pessoas e como sociedade, criando uma nova comunidade, que deve aprender a viver de acordo com seu exemplo e ensino. Ele sabia que o custo seria alto, mas estava disposto a pagar o preço e se tornar o servo sofredor de Deus. A vida de Jesus foi marcada pelo sofrimento e rejeição. Isso não fez dele um objeto de pena, pois ele sempre esteve no controle e se deu de forma consciente e voluntária por causa de seu grande amor por nós. Para nos libertar, Jesus teve de enfrentar nossas algemas e opressão, nossos pecados pessoais e também as estruturas sociais opressoras. Ele confrontou o pecado de maneira firme e os pecadores com paciência. Trouxe nova vida por meio de sua morte e sofrimento e preparou o caminho para que pudéssemos seguir seus passos, se quisermos também ser instrumentos da graça restauradora de Deus.
capítulo dois
O ENSINO DE JESUS
DURANTE SUA VIDA, JESUS ENSINOU SEUS DISCÍPULOS através de suas atitudes em relação ao sofrimento. Nunca buscou seu próprio conforto, estava sempre disposto a pagar o preço necessário para que sua missão fosse cumprida, buscava agradar a Deus em todas as coisas e abençoar e restaurar os seres humanos caídos. Além de viver com transparência diante de seus discípulos, Jesus falou com eles e usou suas próprias experiências para ensiná-los e prepará-los para enfrentar o sofrimento. O Sermão do Monte Bênçãos são prometidas aos discípulos que deixam tudo para seguir a Jesus, que por causa do seu chamado estão prontos a negar a si mesmos (Mt 5.3-12; Lc6.20-23). "Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus" (Mt 5.3). Os pobres são os que dependem humildemente de Deus (SI 34.6), que por meio da convicção dada pelo Espírito Santo reconhecem que não podem salvar a si mesmos. Também são os literalmente pobres como mostra o texto de Lucas 6.20-28. Eles buscam a ajuda de Deus, sabendo que não a merecem. "Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados" (Mt 5.4). Essa tristeza se refere ao arrependimento, reconhecimento de sua incapacidade moral e contrição humilde. São os que choram pela situação de violência, degradação moral e opressão presentes no mundo. Lutero fala que carregam, em nome de Cristo, o sofrimento que encontram em seu caminho.
"Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança" (Mt 5.5). Os humildes são gentis com os outros, renunciam a seus próprios direitos e enfrentam a violência com paciência. Valores mundanos, por outro lado, ensinam que os que lutam receberão a herança e os humildes serão desprezados. "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos" (Mt 5.6). Essa fome está relacionada a um padrão de vida de acordo com a vontade de Deus e sempre inclui justiça social-buscar de maneira ativa a liberdade para aqueles que são oprimidos. Os discípulos cristãos têm fome de serem completamente renovados e anseiam pela renovação completa da terra, levando sobre si a angústia pelos pecados dos outros, com um amor irresistível pelos desprezados. "Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia" (Mt 5.7). A palavra é EÀ.Elll1.OvEç (eíeérnones) e significa misericórdia, compaixão pelo miserável e aflito; uma palavra que está relacionada à dor, desespero e pobreza. Nossa misericórdia é fruto da misericórdia que recebemos de Deus. "Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus" (Mt 5.S). Refere-se àqueles que são sinceros, que têm um relacionamento transparente com Deus e com os outros e que buscam purificação contínua na fonte de todo perdão. Essas qualidades são indispensáveis para termos comunhão com Deus. "Bem-aventurados os' pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus" (Mt 5.9). Ao promovermos reconciliação, sofreremos reações. Jesus fala que poderá haver conflitos na casa o daqueles que o seguem (Mt 10.37); porém, não devemos nunca promover conflitos, pois Deus é o autor da paz e reconciliação. Os pacificadores serão chamados "filhos de Deus", porque eles seguem seu propósito, renunciando à violência e suportando o sofrimento ao invés de infringi-lo a outros. Eles sofrem ao enfrentar o ódio e o erro e vencem o mal com o bem. "Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês" (Mt 5.10-12). Aqueles que buscam a justiça e seguem a Cristo podem ser rejeitados e perseguidos como fruto do conflito entre sistemas que têm valores contraditórios. A reação cristã não é a auto-piedade ou a raiva, mas o regozijo. O preço do discipulado Jesus explicou que seus seguidores não teriam segurança, que o compromisso com o Reino é mais sério que outros compromissos humanos, e que tal compromisso
causaria problemas e conflitos. Jesus escolheu seguir o caminho da cruz, e seus discípulos precisavam estar prontos para segui-lo. Ser discípulo é dar prioridade e compromisso absolutos a Cristo. Qualquer um que não esteja disposto a carregar a sua cruz não pode ser discípulo de Jesus. Por isso, a cruz é a característica que define o estilo de vida do discípulo, chamado para sofrer a hostilidade do mundo, com Cristo, por causa do reino (Lc 9.57-62; 14.25-35; Mt 8.18-22; 10.34-39). Ser discípulo de Jesus significa colocar os interesses particulares de lado e aceitar o sacrifício e o sofrimento que precisam ser enfrentados por estar a seu serviço. Isso se aplica a todos os discípulos, pois sem autonegação, sem tomar a cruz e seguir a Jesus não há discipulado. Isso também significa não negá-lo em situações de perseguição, mesmo quando a punição é a morte; pois quem se envergonha de Cristo vai descobrir que o Filho do Homem se envergonhará dele quando vier em glória. Carregar a cruz é a única maneira de triunfar sobre o sofrimento. Jesus estava preparando seus discípulos para uma missão global, para a edificação de sua igreja entre as nações. Ele sabia que o reino do mal declararia guerra contra a sua igreja, por isso ele ensinou seus discípulos como encarar a violência que seria desencadeada contra eles (Mt 16.18, 24-26; 17.12; 23.33-36; Mc 6.4; 8.34-38; Lc 9.23-26). O exemplo de Jesus O lava-pés em João 13.1-17 foi a encenação de uma parábola. Faz referência à cruz, e foi a maneira de Jesus mostrar um novo modelo de liderança: Ele, Mestre e Senhor, lava os pés de seus discípulos e deseja que eles sigam o seu exemplo. Enquanto os discípulos discutiam sobre quem era o maior, Jesus explicou que não deveriam ser como os poderosos deste mundo, mas que o maior seria o menos importante e aquele que lidera seria aquele que serve. Jesus ensinou que grandeza em seu reino vem através de serviço, através de ajudar os outros a crescerem. Em João 17.18 e 20.21 fica claro que nossa missão precisa seguir seu modelo de encarnação (Mt 20.26-28; Mc 10.45; Lc 22.24-26). Jesus sabia que o mundo queria matá-lo, e que ele salvaria o mundo por meio da sua morte. Ele sabia que seus discípulos enfrentariam a mesma resistência. Por isso, grande parte de seu ensino foi sobre sofrimento e morte. O pastor romeno Josef Ton diz que "A característica básica que Deus quer desenvolver em seus filhos é a de servo, a capacidade de perceber as necessidades e feridas dos outros e agir para supri-las".'
A cruz do discípulo O propósito da cruz de Jesus foi o perdão de nossos pecados; sua cruz foi um evento único, que nunca será repetido. A salvação do mundo consiste no sofrimento de Cristo pelos pecados do mundo e na proclamação de sua salvação para todas as nações. Essa salvação não pode alcançar as nações sem o auto-sacrifício de seus mensageiros. Por isso, levar nossa cruz significa que o objetivo principal de nossa vida será testemunhar de Cristo para os outros, fazendo discípulos e ensinando-os a obedecer a Cristo. Isso pode custar nossa reputação, pode nos levar para o campo missionário e pode até mesmo significar a morte. Quando os discípulos de Jesus ouvem o chamado de Deus e obedecem, pregando as boas novas para as nações, vivendo em humilde obediência e demonstrando compaixão e amor pelas outras pessoas, eles se sacrificam em prol da salvação do perdido. A cruz de Cristo é o símbolo do serviço sacrificial, um estímulo a uma perseverança paciente e o caminho para a santidade madura. O lugar do sofrimento no serviço, e da paixão na obra missionária é pouco ensinado hoje; o segredo da efetividade missionária é a disposição para sofrer e morrer. Hebreus 12 e João 15 nos levam a concluir que Deus usa o sofrimento como um meio de graça, pois ele produz fé e humildade purificadas e também traz benefícios para outras pessoas, por meio da solidariedade e do serviço. Sofrimento e serviço, paixão e missão fazem parte da experiência de Jesus e de seus discípulos. Cristo suportou suas provações por causa da "alegria que lhe fora proposta" (Hb 12.2). Compartilhar seus sofrimentos é compartilhar sua glória. É a esperança da glória que torna o sofrimento suportável O propósito de Deus é nos apresentar puros, e com grande alegria diante de sua gloriosa presença (Jd 24).
A reação do mundo O ódio do mundo contra os seguidores de Cristo é causado exatamente por pertencerem a Cristo. Eles o odiaram porque ele realizou as obras de seu Pai entre eles (Jo 15.18-25). A palavra "mundo" se refere ao mundo sem Deus, organizado em oposição a ele; por isso, um estilo de vida coerente com o ensino de Jesus expõe a escuridão do "mundo" e gera ódio. Aqueles que estão em Cristo serão inevitavelmente perseguidos
pelo mundo. A perseguição começará com rejeição, mas poderá resultar em violência e martírio. Jesus disse que tal oposição seria suportável, por que em meio às situações que passamos, experimentamos comunhão com seu sofrimento e isso confirma que pertencemos a ele (]o 16.1-4, 33). Isso não significa que devemos desenvolver uma aceitação passiva da perseguição, e sim uma compreensão de que isto aconteceria e um compromisso de servir àqueles que estão sofrendo. Jesus ensinou seus discípulos a não resistirem ao perverso, mas estarem prontos a reagir com humildade e disposição para servir. Jesus fala sobre reações pessoais e recomenda que vençamos o mal com o bem, não apenas aceitando o mal feito por outros, mas amando os que fazem o mal e trazendo-os para Deus. Os discípulos podem se comportar assim porque são filhos de um Pai que ama aqueles que o criticam e o odeiam (Mt 5.38-48; Jo 3.16; Lc 6.27-36). Jesus ensinou uma nova ética guiada pelo amor de Deus (Mt 6.32-34). Ser um discípulo significa seguir a Jesus e aprender dele. Também significa um paralelismo de caráter e comportamento: perdoar como ele nos perdoou (Lc 11.4; Mt 6.14; 18.32-35); amar incondicionalmente como Deus amou (Lc 6.32-36; Mt 5.43-48) e como Cristo amou, entregando a si mesmo (Jo 13.34; 15.12). Jesus enviou seus discípulos como ovelhas entre lobos, como pessoas vulneraveis que precisam ser astutas como as serpentes e ao mesmo tempo ingênuas como as pombas. Não é uma questão de revidar, ou de usar a violência contra violência, mas uma disposição para o martírio se for necessário (Lc 12.3-12; Mt 10.16-33). Ao ajudar seus discípulos a se prepararem para a perseguição que sofreriam e ao ensinar como eles deveriam agir frente a essa perseguição, Jesus mostrava estar preocupado em prepará-los para participarem de sua missão. Ele os conclamou a serem testemunhas audazes quando estivessem à frente de líderes hostis (Mt 10.1718). Em Lucas 21.13, ele os ensinou a usar essas oportunidades para testemunhar. Mesmo hoje em dia, cristãos que estiveram frente a frente com autoridades hostis ficaram surpresos com a capacidade que tiveram de falar e testemunhar. Durante a perseguição é fácil perder o domínio próprio e fazer coisas tolas ou provocar as autoridades. Sabedoria e inocência são necessárias quando se está sob perseguição. Os discípulos serão odiados por suas famílias e por todos os homens. Em tal situação, a resposta não é a amargura, e sim o amor perseverante. Jamais devemos negar a Cristo ficando escondidos. Resta-nos a pergunta: De que julga-
mento temos mais medo, do julgamento dos homens ou do julgamento de Deus? (Mt 10.34-39). As promessas de Deus Jesus ensinou que guerras, fome, terremotos, falsos cristos e perseguições viriam, mas que "aquele que perseverar até o fim será salvo" (Lc 21.5,37; Mt 24; Mc 13). A missão cristã suscita perseguição e Jesus quer que seus discípulos continuem a pregar o evangelho, permaneçam firmes na fé e não fiquem abalados pela oposição. A grande preocupação e a repetida ordem dada por Jesus é vigiar e orar, ser cuidadoso, estar alerta. Por isso, ao enfrentarmos situações de crise e sofrimento crescente no fim dos tempos, somos estimulados não a especular, mas a desenvolver uma atitude de vigilância e prontidão. Jesus prometeu recompensar os que estão prontos a sofrer em seu serviço, aos que servem a Deus e aos menos importantes (Mt 5.12; 10.42; 16.25-27). A recompensa é cuidar das propriedades do Mestre (Mt 24.47; Lc 12.44,19.17-19). Todos os que se sacrificaram por causa de Jesus "receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna" (Mt 19.29). Somos mordomas de Deus, e a maneira como administramos as coisas terrenas prova nossa fidelidade a Deus. A qualidade de nossa ação como mordomas determinará se seremos dignos de receber posições de autoridade no céu. O desejo do Pai é conceder todas as coisas a seus filhos, mas eles precisam provar que são fiéis e capazes de administrar sua herança. Jesus não promete um caminho fácil, ou abundância imediata de bênçãos materiais. Ele manda que seus discípulos o sigam em serviço humilde, sofrimento e vitória final. Todos precisam pensar sobre o quanto custa seguir a Jesus. Pertencer a ele significa ser odiado pelo mundo; segui-lo significa morrer a fim de produzir fruto e ganhar a vida eterna. Ele também prometeu sua presença, força e sabedoria, necessárias para cumprir a missão de pregar o evangelho a todas as nações e discipulá-las.
capítulo três
A VIDA DE PAULO
PAULO É O PERSONAGEM MISSIONÁRIO MAIS INTRIGANTE e inspirador da Bíblia. Ele estava disposto a pagar um alto preço por uma vida de compromisso e obediência. Logo depois de sua conversão, Paulo foi chamado para sofrer em nome de Jesus e por causa do evangelho. Paulo aceitou esse grande desafio e enfrentou muitas aflições e humilhações, aprendendo a se tornar mais dependente de Deus. Ele também preparou seus seguidores, ensinando-os sobre a necessidade de aceitar o sofrimento como parte da vida cristã, da batalha entre o reino da luz e o reino das trevas. Para aprendermos sobre Paulo como modelo de compromisso radical, estudaremos seus próprios escritos e também os relatórios de Atos, escritos por Lucas, seu companheiro de viagem, sobre os sofrimentos que ele enfrentou em seu ministério.
Sofrimento no ministério apostólico e missionário Não foi Paulo quem decidiu seguir a Jesus. Foi Jesus que o chamou (Ar 9.1-6, 15-16) e teve um encontro com ele na estrada para Damasco. Saulo compreendeu que Jesus estava vivo e que suas afirmações eram verdadeiras; que sua perseguição aos cristãos tinha sido, na verdade, perseguição ao próprio Cristo. Logo após a sua conversão, compreendeu que tinha sido escolhido para levar o nome de Jesus aos gentios e judeus, e que essa missão envolveria muito sofrimento.
Paulo mostrou que uma teologia bíblica da glória está intrinsecamente ligada a uma teologia da cruz. Deus revelou a si mesmo em fraqueza em seu Filho, que foi humilhado e desprezado, assim como seus servos serão. Paulo viu os apóstolos como seguidores de Cristo, traçando o caminho da cruz. Por causa de sua posição de liderança tornaram-se alvos da fúria do inimigo. Mas os apóstolos enfrentaram o sofrimento, e glorificaram a Deus por meio de suas ações e reações (l Co 4.9-13). Paulo compreendeu que os apóstolos deveriam estar dispostos a morrer como mártires, algo que não deveria ser visto como um evento trágico, mas como uma comissão dada por Jesus. Enquanto a maioria dos comentaristas evangélicos não presta muita atenção às aplicações atuais desses textos bíblicos sobre sofrimento, Josef Ton, líder que sofreu sob a ditadura comunista na Rornênia, interpreta o ensino bíblico sobre sofrimento e sobre o martírio como o chamado supremo para os cristãos. Hoje o martírio está se tornando uma realidade para muitos cristãos. Não podemos ignorar essa possibilidade e suas implicações na interpretação desses textos. Tensão e sofrimento fazem parte do corpo de Cristo. Alguns podem experimentar uma prosperidade tranquila enquanto outros sofrem muitas pressões. Paulo não omitiu sua fraqueza ou sofrimento porque sabia que Deus transforma seres humanos fracos em instrumentos de sua graça. Em 2 Coríntios 4, ele escreveu sobre como tinha sofrido pressões por causa do seu testemunho cristão. Com frequência se sentia encurralado ou perplexo, não sabendo qual direção tomar, mas nunca em desespero; apesar de odiado e caçado por causa de seu ministério, ele não foi deixado como presa para seus inimigos, mesmo nos momentos em que parecia que iriam destruí-lo. É importante ressaltar que depois de cada palavra referente a sofrimento, está a expressão "mas não". O versículo 8, por exemplo, diz que somos "pressionados, mas não desanimados; ficarmos perplexos, mas não desesperados". Deus estava com Paulo e deu-lhe forças conforme suas necessidades. Paulo estava falando sobre sua experiência, sua vulnerabilidade, e o poder de Deus para transformar todas as situações. Carregar a morte de Jesus se refere ao sofrimento relacionado a seu ministério, porque para Paulo, o martírio não estava restrito à hora da sua morte, mas era expresso em sua experiência diária (2Co 4.7-12; 6.4-10; 11.2330). Sofrimento e morte não são meritórios em si mesmos.
O único motivo válido é "pelo nome de Jesus". É precisamente por meio daqueles que são perseguidos e desprezados pelo mundo que o Espírito Santo opera transformações em muitas vidas. Morrer não é ser destruído, mas entrar em regozijo eterno e receber a coroa da justiça (2Tm 4.6-8). Isso se aplica a todos os cristãos que se entregam à missão, pois haverá sofrimento por causa das reações do mundo e por causa de mal-entendidos e insultos, mesmo por parte de amigos e familiares. É precisamente quando sofrermos por Jesus e com Jesus que experimentaremos sua vida de ressurreição. Nem todo sofrimento é comunhão com os sofrimentos de Cristo. Para estar nessa categoria, ele deve se relacionar com a obediência ao chamado cristão. O sofrimento verdadeiro nesse sentido é chamado sofrimento de acordo com a vontade de Deus (lPe 4.19), em nome de Jesus Cristo (Fp 1.29), e pelo evangelho (2Tm 1.8). Em 2 Coríntios 6, Paulo mostrou que era muito cuidadoso com seu estilo de vida, evitando ofensas e procurando recomendar a si mesmo como servo de Deus. Ele respondeu a acusações, declarando que seu comportamento era evidência de ser um verdadeiro ministro de Deus. Os líderes da igreja de Coríntio apresentaram uma imagem de poder, enquanto Paulo compartilhava experiências de fraqueza. Quando seguimos a Jesus, é a fraqueza, e não o poder, que autentica um ministério verdadeiramente cristão. Paulo rendeu o comando de sua vida inteiramente a seu Senhor. Seu amor pelos coríntios era incondicional. A resposta de Paulo a novos líderes (2Co 11) faz menção de sua fraqueza e seu sofrimento por causa de Cristo. Aqueles super-apóstolos não sabiam o significado de ter comunhão com os sofrimentos de Cristo. Na realidade, Paulo poderia ter dito: "Eu plantei mais igrejas, preguei o evangelho para mais povos e escrevi mais livros". Mas sua intenção não era exaltar a si mesmo, senão a graça de Deus, que era suficiente para sustentá-lo em meio às aflições. O sofrimento fazia parte de seu ministério. O livro de Atos faz referência a cinco de suas prisões. Mas quando a epístola de 2 Coríntios foi escrita, apenas uma das prisões registradas no livro de Atos tinha ocorrido; logo, ele foi preso mais vezes. Ele menciona que por cinco vezes recebeu dos judeus 39 açoites, e nenhuma dessas ocasiões é mencionada no livro de Atos. Essas surras podem matar. Três vezes os gentios o golpearam com varas; entretanto, o livro de Atos menciona apenas uma dessas ocasiões. Paulo enfrentou muitos perigos
e dificuldades em suas viagens e sofreu três naufrágios (antes da ocasião mencionada em Atos). Fica claro que o livro de Atos não é um catálogo completo das experiências dolorosas e humilhantes de Paulo. Muitas vezes ele ficou sem dormir. Em outras ocasiões passou fome e sofreu com o frio intenso. Sua vida esteve constantemente em perigo por causa da inimizade dos judeus, das turbas de gentios, de ladrões e, infelizmente, por causa de falsos irmãos. Sua vida parece uma tragédia. Mais do que todas essas aflições, Paulo sentia o peso de seu cuidado diário para com as igrejas. Ele conhecia a inimizade selvagem de Satanás, que faria qualquer coisa para destruir o trabalho do evangelho. Estava profundamente preocupado com o respeito ao nome de Deus, especialmente nas igrejas, e tinha uma preocupação pastoral com cada um de seus filhos em Cristo (2Co 11.26-28). O ministério de Paulo, na realidade, era o ministério de Jesus por meio dele (1Co 1.28-29). Cristo viveu em Paulo e operou seus propósitos por meio dele. Isso significa que, quando Paulo sofria, Cristo sofria por meio dele (1Co 1.24). Paulo nunca buscou ou provocou o sofrimento de maneira desnecessária e sem sabedoria. Ele usou seus direitos como cidadão romano para evitar ser açoitado pelos romanos e ser linchado pelos judeus (At 22.25-29; 23.16-24; 25.9-11), mas, se fosse necessário, estava disposto a sofrer pelo evangelho para cumprir seu chamado e não sentia vergonha, pois era uma honra sofrer por Cristo. Sua fé era fundamentada numa pessoa, e não num credo (2Tm 1.11-12; 3.12). Em Filipenses 1.12-24 Paulo discute a possibilidade do martírio. Ele estava preparado para isso, mas a decisão era de Cristo e ele seria exaltado por meio de sua vida ou por meio de sua morte. Para manifestar a Cristo, Paulo estava disposto a enfrentar sofrimento diário e morte. Seu objetivo era fazer Cristo conhecido por meio de seu próprio sofrimento, porque viver para Jesus significa fazer tudo, não importa o quanto custe, para proclamar o evangelho a outros. Ameaça, perseguição, e tortura A perseguição contra Paulo começou logo depois que ele passou a proclamar o evangelho em Damasco. Em Icônio, por causa da calúnia e difamação dos judeus, as pessoas da cidade planejaram apedrejar Paulo e Silas, mas eles conseguiram escapar. Em Listra, eles foram inicialmente saudados como deuses; depois, instigados pela oposição de Icônio, uma turba raivosa apedrejou Paulo quase até à morte. Em Filipos, uma das consequências da pregação
do evangelho foi atrapalhar o lucro de alguns empresários corruptos. Os donos de uma jovem escrava esconderam o verdadeiro motivo de sua raiva e declararam que Paulo e Silas tinham introduzido costumes ilegais para os cidadãos romanos. Era aceitável seguir outra religião, desde que ela não transgredisse as leis romanas (At 9.23-24; 14.5, 19; 16.16-39). Não se tem certeza de que o apóstolo Paulo travou embate com animais selvagens na arena (raramente um cidadão romano sofreria tal destino), mas as palavras usadas por ele podem fazer referência a ameaças severas a sua vida (lCo 15.32). Paulo perseverou porque sabia que havia vida após a morte. Em 2 Corintios 1.8-10, ele fala sobre a grande pressão que sentia, além de sua capacidade para suportar. Mas Deus o alcança nessas circunstâncias e o leva a um relacionamento mais profundo com ele. O Paulo que escreve para Timóteo é um homem velho, preso, que sabe que terminou seu ministério, apesar de ainda estar lutando com necessidades humanas reais (2Tm 4.9-21). Ele foi abandonado pelos amigos (9-13) e ficou sem apoio em sua primeira defesa (16-18), Enfrentou sua provação sozinho e se sentiu terrivelmente abandonado pelas igrejas e pelas pessoas a quem amava. Vários de seus companheiros mais próximos o deixaram. A deserção de Demas foi dolorosa; ele não foi acusado de apostasia, mas de não estar disposto a enfrentar a possibilidade do sofrimento ao se associar a Paulo. Sem poder contar com Lucas, Paulo está sozinho na prisão e pede três coisas: pessoas para fazerem companhia a ele, uma capa para mantê-lo aquecido e livros. Ele pede a Timóteo que venha logo. Em toda essa situação, entretanto, a presença de Cristo é muito real, dando forças a Paulo para proclamar o evangelho. "O Senhor me resgatou [...] e me livrará de toda obra maligna" não significa libertação da morte, mas de qualquer mal que não seja parte da vontade de Deus. Prisão Em Atas 22.26-29, Paulo foi colocado debaixo da proteção do tribunal militar de Cláudio Lísias, que o resgatou de um linchamento e o salvou de um compló por porte dos judeus, tratando-o com o respeito que um cidadão romano merecia. Em Atas 23.35, ele foi detido no palácio construído por Herodes, o Grande, em Cesaréa, que funcionava como centro administrativo do procurador. Em Atas 28.30-
31, Paulo estava em regime de prisão domiciliar em Roma, mas com liberdade para compartilhar o evangelho com todos que viessem a sua casa, sem qualquer impedimento por parte das autoridades (cf. At 24.23-27; 26.29,32). Paulo queria que os filipenses compreendessem que suas cadeias não eram uma desgraça ou vergonha, mas uma evidência da graça (Fp 1.7, 12-14). Ele estava com algemas nos pés -como um criminoso, um malfeitor. Essa mesma palavra foi usada para aqueles que foram crucificados com Jesus. Paulo estava disposto a suportar todas as coisas por causa do evangelho. Ele enfrentou a prisão com coragem e animou seu filho Timóteo a não ter vergonha dele, nem do evangelho (2Tm 1.8). Paulo continuou a insistir que ele era prisioneiro de Cristo, e não de Roma; que ele estava ali por causa de Cristo e porque Deus tinha permitido que ele fosse preso. Esse conhecimento deu sentido a seu sofrimento e forças para suportá-lo (2Tm 2.9). Exemplo Depois de apresentar sua maneira de viver no serviço de Cristo, Paulo teve a coragem e autoridade (l Co 4.16) para conclamar seus filhos a imitá-lo, vivendo a vida cotidiana de acordo com a fé e com os valores cristãos. No capítulo 11, ele repete a mesma exortação, explicando-a: "Tornem-se meus imitadores, como eu o sou de Cristo" (v. 1). Cristo é o maior modelo e Paulo também, enquanto ele imitar a Cristo. Paulo está agradecido porque os tessalonicenses imitaram sua atitude em relação ao sofrimento, como parte de uma experiência de discipulado genuíno (lTs 1.6). A atitude de Paulo para com eles é gentil, terna e sacrificial como a de uma mãe. Em vez de Paulo ser uma carga para eles, tinha sido como um pai em seu exemplo, instrução e disposição para dar a sua própria vida por eles. Deu-lhes um exemplo saudável, continuou a encorajá-los e exortá-los, ensinando-os com sua palavra e com sua vida e instando-os a seguirem seu exemplo. Nunca usou seus direitos para receber apoio financeiro, mas trabalhou duro a fim de servir como exemplo (lTs 2.6-10; 2Tm 3.7-9). Paulo disse que era autossuficiente, forte o bastante para não precisar de ajuda (Fp 4.11-13). Mais forte que seu domínio próprio era sua dependência do Senhor. Paulo sabia ser humilhado, o que significa mais do que disposição para o sofrimento
ou para o martírio; reflete sua atitude de não ter nenhuma preocupação com seu próprio conforto. Paulo descreve a si mesmo como objeto da misericórdia e paciência de Cristo. Tanto seu estilo de vida como seu ensino se tornaram uma regra para Timóteo. Paulo não se preocupava apenas com o que Timóteo fazia, mas também com suas atitudes (com fé e amor em Cristo Jesus), pois ele o via como seu sucessor e herdeiro. Aqueles que fogem do mundo ou se conformam com ele não sofrem oposição, mas todos os que permanecem fiéis sofrerão, assim como Jesus sofreu (2Tm 3.12-14), Timóteo se lembraria de como Paulo foi apedrejado por uma turba hostil em Listra e sabia que ele tinha de seguir seu exemplo e enfrentar provações semelhantes. Paulo mostrou como o Senhor tinha sido bom para com ele e o tinha libertado e Timóteo podia esperar a mesma ajuda (2Tm 3.10-14). Paulo dependia de Deus e estava constantemente preocupado com a fé de seus filhos. Sua atitude é de submissão obediente a Cristo. Paulo aceitou uma vida de aflições e pobreza a fim de enriquecer a muitos, explicando que foi o amor de Cristo que o constrangeu a viver assim (2Co 5.14-15). Ele considerava a vida de Jesus o exemplo mais atraente que ele podia encontrar. Em Filipenses 3.10, Paulo expressa seu alvo de ser parceiro com Cristo em seu sofrimento e se alegra porque os filípenses tinham sido parceiros com ele em seu sofrimento por causa do evangelho. Reação ao sofrimento Quando Paulo e Silas foram cruelmente surrados e tiveram os pés presos no tronco, na prisão em Filipos, à meia-noite, os prisioneiros e carcereiros ficaram surpresos ao ouvirem hinos de louvor a Deus no lugar de gemidos ou maldições (At 16.22-30). Em Atas 20.22-27 e 21.4-13, Paulo estava a caminho de Jerusalém, esperando prisão e tribulação, mas disposto a enfrentar todas as coisas conquanto pudesse completar sua tarefa. Ele não estava preocupado com a proteção de sua própria vida, pois o mesmo Espírito Santo que o tinha avisado dos sofrimentos iminentes, continuou a confirmar que ele deveria ir para Jerusalém. Paulo expressou sua mais profunda humilhação no contexto da experiência de sua mais alta exaltação. Quanto à natureza exata do "espinho na carne", foi melhor Deus ter decidido nos deixar na ignorância. Era algo muito doloroso e humilhante. Podemos identificar o espinho com nossa mais profunda humilhação e dor. O
espinho de Paulo atrapalhava sua vida e drenava suas energias. Mas foi permitido por Deus e, para o bem de seu servo, ele negou seu pedido de extirpá-lo. O objetivo era manter Paulo humilde e dependente de Deus, e ensinar-lhe o segredo de que o poder de Deus se manifesta na fraqueza (2Co 12.7). Paulo, assim como Jesus no Getsêmani, implorou três vezes por libertação, e o que parecia ser vitória de Satanás foi transformado em triunfo da graça divina. Deus ouviu sua oração, mas deu uma resposta diferente e Paulo aceitou essa resposta, não com resignação, mas com regozijo. Ele acolheu a fraqueza como um canal para a manifestação do poder de Cristo (2Co 12.S-lO). As fraquezas em que Paulo se alegrava foram as que suportou por causa de Cristo; ele nunca buscou o sofrimento para receber mérito. Com Paulo, aprendemos a discernir a mão de Deus em circunstâncias dolorosas, sabendo que ele permanece no controle. A resposta às orações de Paulo foi a promessa de graça mais abundante, para viver com esse espinho doloroso. Como cristãos, podemos aprender a ser mais que vencedores em circunstâncias dolorosas. Temos o direito de orar por libertação, mas se o Senhor não responder como desejamos, aprenderemos a desenvolver perseverança (2Co 12.9-10). Paulo encorajou os cristãos, mostrando que apesar de sua prisão, o evangelho era livre e estava alcançando mais pessoas. A grande preocupação de Paulo era continuar a exaltar a Cristo com toda a ousadia, na vida ou na morte. Ele sabia que Deus estava no controle, e que ele iria sofrer apenas o que Deus permitisse. Ele sabia também que receberia ajuda do Espírito, provisão generosa e força para enfrentar as provações. Conhecer a Cristo, servi-lo e sofrer por ele deu sentido à sua vida. Apesar de preferir enfrentar logo o martírio, ele queria permanecer fiel a seu chamado e servir às igrejas, e por isso acreditava que o Senhor iria libertá-lo. A decisão não seria do Império Romano, mas de Deus (Fp 1.12-24). Paulo percebeu que apesar de ter sido conquistado pelo Senhor, ele ainda não tinha atingido o objetivo de Deus para sua vida. Por isso seguiu adiante, compreendendo que sofrimento e morte é o caminho para a vida ressurreta com Cristo. Consideramos o sofrimento como algo maligno e fazemos o possível para evitá-lo. Achamos que o sofrimento faz as pessoas duvidarem da bondade de Deus. Paulo passou por muitas situações de sofrimento. Mesmo assim, ele nos chama para nos
alegrarmos no sofrimento. Para Paulo, o sofrimento é evidência de que Deus nos ama (Rm 5.3-5). Há qualidades do caráter que só podem ser desenvolvidas por meio do sofrimento. Por isso, Deus usa as provações para nos aperfeiçoar. Os sofrimentos de Paulo também eram evidência de seu amor por seu Senhor e pelas pessoas a quem estava servindo. Sofrimento - oportunidade para testemunhar Asreações surpreendentes de Paulo e Silas na prisão em Filipos deram oportu-nidade para apresentar o evangelho ao carcereiro e sua família. O carcereiro creu, se arrependeu e, mais tarde, os tratou com cuidado e respeito (At 16.29-34). Enquanto estava na prisão em Cesareia, Paulo teve oportunidade de falar sobre o evangelho para o governador Félix e sua esposa Drusila. Quando foi trazido à presença de Festo, Agripa e Berenice, Paulo relatou de maneira clara a mudança radical que tinha acontecido em sua própria vida e seu chamado para proclamar o evangelho a fim de libertar as pessoas da escuridão para a maravilhosa luz de Deus. Ele fez referências claras a Cristo, seu sacrifício propiciatório, morte e ressurreição para que todos pudessem se tornar cristãos (At 24.24-26; 26.11-29). Quando levamos o evangelho de vida e luz para os que estão espiritualmente cegos, eles se sentem incomodados e podem até mesmo nos matar. Entretanto, quando os crentes reagem à violência com amor, muitos irão crer. Seguir nosso Mestre e morrer em favor de outros é uma honra suprema (Fp 3.10). Em 2 Coríntios 4, Paulo descreve como as pessoas que não creem tiveram suas mentes cegadas pelo deus desta era e como Deus pode capacitá-las a crer, fazendo com que ele mesmo brilhe "em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo" (v. 6). Esse é o tesouro que Paulo carrega em um frágil vaso de barro. Suas tribulações e morrer diário são por causa de Jesus, a fim de que a graça de Deus seja espalhada. Enquanto ele sofre pelo evangelho, a verdade brilha, penetrando os olhos cegos dos que não creem. A auto-humilhação de Paulo Os coríntios esperavam que Paulo defendesse seus direitos apostólicos. Mas Paulo decidiu ignorar seus direitos; assim, podia celebrar sua liberdade em Cristo, pois considerava um grande privilégio ser chamado para proclamar o evangelho. Ele era
livre de todos os homens, mas se submetia a Jesus e procurava a melhor maneira de ganhar as pessoas para Cristo. Ele se preocupava com a sensibilidade de seus ouvintes e estava disposto a se submeter às regras judaicas para alcançar os judeus. Ele também era livre para ignorar as obrigações religiosas, a fim de alcançar pessoas que estavam fora do sistema religioso vigente. Ele era forte, mas sensível às pessoas de consciência mais fraca. Fez todas essas coisas "por causa do evangelho" (lCo 9.19-23). Filósofos gregos cobravam por seus serviços e recusar remuneração os tornaria suspeitos. Paulo lembra aos coríntios que ele se humilhou e se sustentou com trabalho braçal enquanto lhes proclamava o evangelho porque se sentia em débito com Cristo, aquele que se humilhou para ser nosso Salvador. Se não podiam aceitar a humilhação de Paulo, como reagiam a Jesus? Se Paulo estava errado, Jesus também estaria errado? Como eles, que experimentaram o poder transformador do evangelho pelo ministério de Paulo, poderiam questionar a veracidade de sua missão apostólica? Ele recebeu apoio de outras igrejas e passou necessidades em Corinto, mas permaneceu firme em sua decisão de não aceitar remuneracão (2Co 11.7-9). Paulo declarou que teria razão para se orgulhar no dia de Cristo se a fé dos filipenses provasse ser genuína e pura. Ele já tinha se oferecido como sacrifício a Deus. A vida de Paulo seria oferecida como libação se ele morresse como mártir, e ele enfrentou essa possibilidade com alegria porque iria contribuir para a causa do evangelho (Fp 2.16-17). Paulo tinha sofrido a perda de todas as coisas que eram valiosas para ele, considerando-as refugo a fim de receber um ganho maior. Compreendeu que a comunhão profunda com Cristo só era possível através do compartilhar de seus sofrimentos. Todos os cristãos devem vigiar e orar continuamente a fim de compartilharem do sofrimento de Cristo. É um chamado para conhecer a Cristo por meio de uma vida de serviço e sofrimento (Fp 3.8-11). Paulo pede orações Paulo esperava enfrentar grandes dificuldades em sua viagem para Jerusalém e pediu aos cristãos para lutarem em oração, se juntando a ele em sua luta contra as forças das trevas, e permanecendo ao lado dele em intercessão persistente. Seu pedido era
urgente: "Recomendo-lhes, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 15.30). Ele sabia que os inimigos judeus fariam qualquer coisa para causar a sua morte. Ele também orou por sua visita a Roma, para que seus planos fossem realizados de acordo com a vontade de Deus. Como a oração de Paulo foi respondida? Apesar de ter sido bem recebido e de ter escapado de um linchamento por meio da intervenção dos romanos, ele não foi liberto dos rebeldes em Jerusalém. Três anos depois, ele visitou a igreja em Roma, mas só depois de passar muito tempo na prisão (Rm 15.30-31). Paulo contou com as orações dos crentes como um pré-requisito para ser liberto pelo poder de Deus. Essas orações também promoviam comunhão entre os crentes e Paulo já antevia as orações de agradecimento (2Co 1.11). Paulo sabia que estava envolvido numa grande luta e pediu a seus amigos que orassem por ele, pois precisava de forças especiais para seu ministério de libertar as pessoas dos poderes das trevas por meio da proclamação do evangelho. Ele precisava de poder para pregar com ousadia e clareza. Eram orações totalmente devotadas aos planos de Deus, pois Paulo não buscava libertação da prisão, mas liberdade para pregar (Ef 6.19-20; 1Co 4.3). Em 2 Tessalonicenses 3.1-2, ele faz um apelo enfático por orações: "Orem por nós, para que a palavra do Senhor se propague rapidamente e receba a honra merecida". Pediu que ele e sua equipe fossem libertos dos homens perversos. Sabia que estavam envolvidos em uma luta espiritual. Sabia também que o Soberano Senhor estava com eles. Recebendo consolação para consolar outros, Paulo ficou desanimando com as graves aflições que tinha sofrido na Ásia, mas Deus o livrou e o consolou. Ele pôde, então, descrever Deus como o Pai de toda consolação, que oferece conforto completo em qualquer circunstância. Em 2 Coríntios 1.3-7, Paulo usa dez vezes a palavra "consolação", no sentido de estar ao lado do outro para encorajá-lo durante uma provação difícil. O uso do verbo no presente indica que Deus nos conforta constantemente, em todas as nossas aflições; por isso, nossos problemas são transformados em triunfos à medida que Deus se faz conhecido em nossas fraquezas. Aqueles que experimentam consolo de Deus estão mais capacitados para apoiarem outras pessoas. Assim como os sofrimentos de Cristo foram um prelúdio para sua glória, devemos estar dispostos a compartilhar de seu sofrimento se desejamos compartilhar sua glória.
Ao servirmos a Cristo poderá haver decepções, mas não desespero; aflições, mas não falta de consolo (2Co 1.3-7). No Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, B. Gãrtner afirma que "os cristãos esperam não o fim do sofrimento, mas seu alvo". Observar a vida de Paulo de forma mais ampla, além do sofrimento, nos lembra que ele era servo de Cristo, um pregador corajoso e capaz, um pastor com um coração amoroso e sensível, um homem conquistado pelo grande e imerecido amor de Cristo. Um dos segredos de sua perseverança contínua no ministério e de seu espírito inabalável era sua disposição para sofrer por Cristo, sem restrições. Se o Senhor se entregou completamente em favor dos pecadores, como ele, seu servo, poderia fazer menos? Ele sofreu na mão dos judeus, em circunstâncias perigosas, sofreu por causa de inimigos pagãos, amigos infiéis e solidão, mas sabia que essas coisas eram temporárias, que haveria recompensas gloriosas para todos aqueles que aguardam a vinda do Senhor.
capítulo quatro
O ENSINO DE PAULO
PAULO FOI UM GRANDE MESTRE E ESTRATEGISTA MISSIONÁRIO. Por estar constantemente viajando e por causa de seu chamado como pioneiro, ele precisava delegar muitas responsabilidades à equipe de obreiros que viajava com ele e aos líderes locais. Ele escreveu suas epistolas para manter suas igrejas firmes nas verdades e estilo de vida do evangelho, para ajudá-las a crescer no conhecimento do Senhor e para que discernissem entre ensinos falsos e verdadeiros. Suas epístolas estão relacionadas a situações da vida real. Paulo estava sempre ensinando e dando exemplo do estilo de vida cristão e fazendo com que seus leitores compreendessem que o sofrimento por Cristo é parte da vida cristã. A necessidade do sofrimento o Novo Testamento mostra que a tribulação faz parte da vida dos cristãos. São aqueles que sofrem com Cristo que compartilharão sua glória, e Jesus mostrou a seus seguidores que deveriam avaliar o custo e estar preparados para o sofrimento. Paulo preparou seus convertidos para uma vida de tribulação, mas também prometeu a presença e graça de Deus para todas as situações. Os cristãos tinham visto como Paulo foi perseguido e eles também precisavam estar preparados para reações fortes contra o testemunho deles (At 14.22) Paulo os encoraja com a promessa do apoio contínuo do Espírito Santo. O Espírito se identifica com nosso sofrimento e intercede por nós com gemidos inexprimíveis, ansioso por nossa libertação. Ele sabe como orar de acordo com a vontade de Deus. Deus age para nosso bem em todas as coisas, e mesmo as
experiências aparentemente negativas têm um bom propósito na vontade de Deus. O sofrimento e humilhação atuais confirmam que iremos receber glória no reino de Deus. No propósito de Deus há uma relação entre sofrimento e glória, pois Deus nos ama e nos "predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho" em nosso caráter, conduta, amor e missão (Rm 8.26-30). Em Romanos 8.31-39, Paulo apresenta uma série de questões retóricas que servem para provar que ninguém e nada pode prejudicar aqueles que foram chamados por Deus, que deu seu único Filho por nós e com ele nos dará todas as coisas. Nenhuma acusação pode ser sustentada contra nós, nenhuma perseguição, nenhuma necessidade física, nenhum perigo e nem ameaça de morte pode nos separar do amor de Cristo. Algumas vezes tudo pode parecer sombrio, mas a luz da graça de Deus brilha através das nuvens de sofrimento e nos conforta. Os cristãos vivem num mundo de poderes que se opõem a Deus e os ameaçam, mas eles podem permanecer firmes porque são mais do que vencedores. Deus não nos promete libertação de problemas, mas que os problemas nunca poderão nos separar de seu amor. Os cristãos de Filipos estavam enfrentando a pressão da perseguição, mas Paulo confiou que eles permaneceriam firmes na fé. A oposição traz sofrimento em nome de Cristo, mas por meio desse sofrimento a fé é provada como sendo verdadeira, e Deus providencia graça para permitir que os crentes permaneçam firmes em seu sofrimento por Cristo (Fp 1.28-29). Os cristãos em Tessalõnica receberam a mensagem do evangelho num contexto de perseguição, mas a compreenderam e a receberam muito bem. A mensagem do evangelho lhes trouxe alegria, por meio do Espírito Santo, tornando-os mais parecidos com Jesus, um exemplo para outros (lTs 1.6-8), e imitadores das igrejas na Judeia em sua fé e sofrimento (lTs 2.14). Timóteo foi enviado para visitá-los, para dar-lhes apoio, encorajá-los e ajudá-los a crescer na fé. Paulo ensinou aos novos convertidos que o sofrimento é parte da vocação cristã e que, em meio a tribulações, é possível aprender que o Senhor é fiel e protege do maligno (lTs 3.2-8); O próprio Deus controla o grau de provação e dá a capacidade para permanecermos firmes. Em Romanos 8.17, Paulo escreveu que somos cc-herdeiros com Cristo se sofremos com ele. "Em Romanos 8.18, Paulo enfatiza que os sofrimentos do tempo presente não se comparam à glória futura, por isso o sofrimento pode ser
considerado um dom precioso" (Fp 1.29). Os sofrimentos dos mensageiros do evangelho têm por objetivo a proclamação da graça de Deus (2Co 4). Ele desenvolve em nós o caráter que precisamos ter para a vida na glória. Deus nos chama para sermos companheiros do sofrimento de Cristo, assumindo seus objetivos como nossos objetivos e seus métodos como nossos métodos. Seguir o exemplo de Cristo significa sacrifício e serviço. Paulo declarou que eles tinham recebido a graça da salvação e de sofrer por Cristo (Fp 3.10). Compartilhar de seus sofrimentos é parte do conhecer a Cristo e eles receberam essa graça especial. Deus manifesta sua sabedoria nos lugares celestiais por meio da fidelidade de seus filhos e por meio da disposição deles para seguirem no caminho da cruz (Ef 3.10). Alegria no sofrimento e na tribulação Um grande privilégio da justificação é o livre acesso a Deus por meio de Cristo. Por isso Paulo podia expressar a alegria da esperança da glória de Deus, pois os crentes serão transformados na imagem da glória de Deus, refletida neles. Torna-se claro que o sofrimento é o único caminho para a glória (Rm 8.17), e que produz perseverança e um caráter testado. Nos gloriamos nas tribulações porque elas levam a um processo de santificação, que resulta na esperança cristã que não nos decepcionará, porque o amor de Deus inunda nossos corações (Rm 5.1-5). Em Romanos 12.12, a esperança cristã nos leva a nos regozijarmos e a enfrentarmos as aflições com perseverança. A alegria, que é fruto da esperança, e a perseverança, que é fruto da adversidade, estão intrinsecamente ligadas; fazem parte da vida da pessoa que toma a sua cruz para seguir Jesus. A fidelidade de Deus é a segurança dos cristãos. Essa segurança garante nossa continuidade na salvação e nos capacita a enfrentar provações (lCo 1.7-9). 1 Coríntios 10.12-13 fala sobre o perigo da tentação. A mesma palavra se refere às provações que vem de Deus para purificar seus filhos, e às tentações que vem do diabo para os seduzir para o pecado. O ponto principal sobre a tentação não é a força de sua atração, mas se ela resulta em mais resístência ao pecado e maior fé em Deus. Podemos descansar em Deus, que é fiel e não permite tentações além de nossas forças para suportá-las.
Paulo orou para que os colossenses fossem fortalecidos com todo o poder para ficarem firmes ao enfrentar tribulações, oposição e a prova de sua fé. Paulo confia que eles irão desenvolver perseverança, com alegria. O poder da glória de Deus descansa sobre aqueles que perseveram com Cristo (Cl l.ll). Consagração completa a Deus Paulo ensinou que uma vida piedosa é uma necessidade (Rm 6.11-13) e dá uma ordem: "não permitam que o pecado os domine". "Não ofereçam os membros do vosso corpo ao pecado." O verbo está no presente, e significa uma atitude contínua. Os cristãos já morreram para o pecado e devem usar os membros de seus corpos para servir a Deus. A retidão, assim como o pecado, se manifesta de maneira concreta em nossos corpos. Em Romanos 12.1-2, Paulo enfatiza a necessidade de um compromisso total de vida a serviço de Deus. Paulo fala sobre a consagração do corpo, em contraste com a filosofia grega que deprecia o corpo. Nossos pés vão andar em seus caminhos e nos guiar para lugares onde nossos lábios proclamarão o evangelho para aqueles que ainda não o ouviram; nossas línguas trarão cura e nossas mãos animarão ao que está desanimado. Um sacrifício vivo é positivo e dinâmico, uma adoração que envolve nossas mentes e corações, em contraste com um mero ritual. O sacrifício vivo é para ser oferecido em nossos contextos diários de trabalho e vida familiar. Tal reação positiva em relação a Deus é acompanhada por uma reação negativa ao padrão deste mundo. Os cristãos não devem se conformar ao mundo, mas ser transformados pela renovação das suas mentes, num processo contínuo, no qual compreendem cada vez mais o que é bom e agradável a Deus. Romanos 12 propõe uma transformação total de caráter e conduta, semelhante ao modo de vida de Jesus e capaz de operar transformação em nosso contexto. Depois de morrer para a lei, Paulo estava livre para uma vida totalmente consagrada a Deus (Gl 2.19-20). Ele compreendeu que Cristo se sujeitou à maldição da lei para nos libertar e nos capacitar a viver uma nova vida. Nossa vida anterior morreu com Cristo e fomos ressuscitados com ele para uma nova vida; o senhorio do pecado foi quebrado e somos livres para servir a Deus. Em Gálatas 5.24, aqueles que pertencem a ele vivem em comunhão com Cristo, compartilham sua cruz e rejeitam
o senhorio da carne e suas paixões. Essa crucificação deve ser feita por nós, numa rejeição da carne e da sua inclinação para o pecado. Temos de pegar nosso "eu" volúvel, crucificá-lo e renovar essa ação diariamente. Enfrentando conflitos espirituais Paulo esperava que os cristãos em Roma fossem sábios para andar na obediência e tão afastados do mal que pareceriam ingênuos. Prometeu que Deus iria esmagar Satanás, e exortouos a lutar contra ele, com a certeza de que seriam vencedores no Senhor (Rm 16.19-20). Paulo tinha uma avaliação realista do poder da descrença e do orgulho na mente humana, ensinando que por trás da resistência humana estão forças satânicas e que apenas as armas espirituais fornecidas pelo Espírito Santo são capazes de vencêlas. Esses baluartes pertencem à vontade e ao intelecto, determinam a conduta do homem e estão baseados em suas pressuposições e filosofia de vida. A rebelião do coração humano é vencida quando a verdade de Deus prevalece e há verdadeira libertação (2Co 10.3-5). Em Efésios 6.10-12, Paulo apresenta os poderes que estão por trás de todo o mal e oposição, especialmente no contexto da evangelização mundial: o demónio e os poderes sob seu comando. Paulo não estava preocupado em satisfazer nossa curiosidade sobre eles, mas em nos advertir e ensinar a lutar, não contra seres humanos, mas contra inteligências demoníacas. Essas forças têm três características: são poderosas, chamadas de "dominadores deste mundo de trevas"; usam seu poder para fazer o mal, pois pertencem às trevas; são astutos e atacam de maneiras sutis, numa ação mais semelhante à de serpentes do que leões, pois trabalham no disfarce da escuridão. Só o poder de Deus pode vencêlos. É necessário usar a armadura de Deus para permanecermos firmes contra tal oposição. Parece que Paulo se inspirou nos textos de Isaías que descrevem a batalha vitoriosa do Messias, trazendo salvação para Israel e para os confins da terra. Efésios 6.14 fala sobre a necessidade de usar o cinto da verdade e a couraça da justiça, e em Isaías 11.4-5, o Messias é descrito como alguém que traz justiça para os pobres da terra, e cuja palavra é arma poderosa para vencer os poderes do maligno.
Ele usa sua retídão e fidelidade como cinto; um símbolo de força, prontidão e também um enfeite. Ele protege e liberta seu povo de toda injustiça e opressão e suas ações têm repercussões profundas e abrangentes: a terra será cheia com o conhecimento do Deus vivo (Is 11.9-12). Isaías 52 descreve uma espera ansiosa por boas notícias; os pés dos mensageiros são vistos de longe nas montanhas, trazendo alegria e uma mensagem de esperança e salvação. Confirmase o reinado do Senhor sobre todos os poderes do mal (Rm 10.15; Ef 6.15) quando ele "arregaça suas mangas" e usa seu braço forte para trazer salvação (Is 52.7-10). Isaías 59 fala sobre pecado, injustiça e sofrimento, explica que a princípio Deus não ouvia as orações do povo porque viviam no pecado. Mas houve arrependimento e o Senhor interveio. Seu braço trouxe salvação quando vestiu sua armadura: a justiça como couraça, o capacete da salvação, vestes de vingança (ira justa) e uma capa de zelo para libertar seu povo (Is 59.16-19). A armadura do Messias é agora oferecida a seus seguidores. Paulo estava preocupado com a proclamação do evangelho para todos os povos e ensinou que os cristãos precisavam estar constantemente alertas, orando sem cessar e usando sua armadura em suas orações e em seu ministério missionário. Com o perdão dos pecados, vem a libertação das acusações e de outros aspectos do poder de Satanás e o poder do pecado é quebrado. Na cruz, os principados do mal foram vencidos. Paulo descreve o desfile triunfal de um general vitorioso seguido por centenas de prisioneiros de guerra -um sinal claro da derrota deles. Ele proclama que Cristo teve uma vitória semelhante na cruz, quando libertou seu povo da culpa e dos grilhões do pecado. Essa é uma mensagem de esperança para homens e mulheres em frustração e desespero: o Cristo crucificado é o Senhor do Universo e todas as forças malignas estão sujeitas a ele. Estar unido com Cristo é estar livre do domínio deles (Cl 2.13-15). Mostrando misericórdia àqueles que sofrem Paulo ensinou os romanos a desenvolver relacionamentos que são agradáveis a Deus, viver em amor e apoiar uns aos outros. Encorajar inclui confortar aqueles que estão passando por aflições. Como os cristãos primitivos não tinham uma vida fácil, esse era um ministério muito necessário. A misericórdia está relacionada a servir aos que
têm necessidade, e isso deve ser feito com alegria e não como se fosse uma carga desagradável (Rm 12.8). Paulo nos exorta a identificar as necessidades de outras pessoas e a compartilhar nossos recursos com elas (Rm 12.12-20). Abençoar aqueles que nos perseguem é uma atitude positiva em relação àqueles que nos tratam mal. Não é apenas suportar a perseguição. Numa atitude de amor cristão, nós invocamos as bênçãos de Deus sobre eles e, por fazer o bem e suprir suas necessidades, nós vencemos sua animosidade. Por meio do amor podemos transformar inimigos em amigos, amontoando brasas vivas sobre suas cabeças não para machucá-los, mas para levá-los ao arrependimento e conquistá-los com amor. Há mais três imperativos: a) "Não paguem o mal com mal", ou seja, vivam de tal maneira que os não-cristãos reconheçam a graça de Deus na vida de vocês; b) "Não se vinguem", mas deixem a justiça nas mãos sábias de Deus; c) "Não deixe que o mal os vença", ou seja, nunca deem lugar ao mal em suas reações, mas vençam o mal com o amor (Rm 12.17-21). Em 1 Coríntios 13.4-7, Paulo descreve o amor em ação: Paulo menciona cinco atitudes de renuncia: o amor é paciente, é bondoso, não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Paulo fala sobre cinco atitudes negativas de outras pessoas: algumas nos provocam constantemente e precisamos aprender a amá-las como são. Quando as palavras e ações de outros nos prejudicam, precisamos aprender a perdoar e esquecer. Nunca devemos nos alegrar com o mal feito por outros. O amor não pode se alegrar quando a verdade é negada. A palavra "tudo" aparece quatro vezes. Isso deixa claro que o amor vem de Deus e não é uma realização humana: "tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta". O amor ajuda a confiar, a renovar nossa esperança e a superar nossas dificuldades. Paulo ensinou os cristãos a apoiar os irmãos necessitados em Jerusalém. Uma das razões para a doação por parte das igrejas gentias era a promoção da unidade do corpo de Cristo. Ele percebia a doação e a generosidade como graça de Deus e temia que os coríntios estivessem perdendo essa graça, enquanto os macedónios tinham dado generosamente apesar da sua pobreza (2Co 8.14). Paulo falou sobre a
necessidade de promover igualdade. Seria errado os cristãos na Judeia viverem em grande pobreza enquanto outros viviam confortavelmente. A igreja deve ser modelo da justiça de Deus para o mundo. Embora muitos cristãos se sintam satisfeitos em serem fiéis no dízimo, a verdadeira atitude cristã nos levará além desse ato de dar o mínimo, e apenas para a igreja onde somos membros (2Co 8 e 9). Paulo também ensinou sobre a necessidade de estarmos prontos para agir com gentileza em relação aos que foram apanhados em pecado, com o objetivo de restaurá-los. Cada um de nós tem cargas e Deus não deseja que as carreguemos sozinhos. Amar uns aos outros, como Cristo nos amou, geralmente não leva a ações espetaculares, mas ao ministério prático de carregar as cargas uns dos outros. O serviço cristão é exigente, e Paulo nos encoraja a seguir em frente, porque a colheita depende de sermos fiéis na semeadura. Pessoas virão a Cristo por meio de nosso testemunho prático e receberemos a recompensa nos céus (1 Co 16.1-2, 9-10). Em termos práticos, aqueles que viveram por meio de pequenos furtos, devem aprender a trabalhar com as próprias mãos para se sustentarem e poderem ajudar os outros, pois a graça da generosidade é uma virtude cristã, assim como a bondade, a compaixão, e o perdão de uns para com os outros. Esses são atas que refletem como Deus agiu com graça em nossas vidas (Ef 4.28-29). Apoio mútuo, tolerância e perdão devem marcar os relacionamentos dos cristãos, pois nosso exemplo de perdão é o próprio Senhor (C13.12-16). Paulo também incita os cristãos a oferecer cuidado pastoral aos membros das igrejas, a exortar o tolo, encorajar o desanimado e ajudar os fracos na fé ou no viver cristão. Paulo apresenta uma visão da igreja local como uma comunidade de conforto mútuo, encorajamento e serviço, com membros dispostos a abençoar aqueles que lhes causaram sofrimento (lTs 5.14-15). Os ricos são chamados a serem generosos, a usarem sua riqueza para fazer o bem e a alcançarem os necessitados. Essas ações não vão empobrecê-los, e sim dar-lhes tesouros mais preciosos no céu (1Tm 6.17-19). Formando o caráter de Cristo Cristo era o modelo supremo de Paulo, que lutou para segui-lo e ser moldado por Deus à sua semelhança. Ele tinha o mesmo objetivo em mente para as igrejas e para seus filhos na fé. Nós também somos chamados a sermos imitadores de Deus como
seus filhos amados, nos tornando cada vez mais semelhantes a ele. Assim como Jesus manifestou seu amor ao morrer em nosso lugar, sendo obediente até o fim, Deus deseja que sejamos obedientes, demonstrando amor sacrificial a outros e um sacrifício agradável a Deus (Ef 4.32; 5.1-2), Não deve haver busca de interesses próprios ou orgulho, mas humildade em procurar o interesse dos outros. O maior exemplo de tal amor é Cristo, modelo de perfeita humildade e renúncia. Uma demanda bastante alta é colocada sobre os que creem: "Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus" (Fp 2.5). O direito de Jesus era ser igual a Deus, mas ele não se apegou a isso. Esvaziou-se, tomando a forma de servo, vindo à terra como um homem comum, semelhante a nós em todas as coisas (exceto no pecado). Sua vida na terra foi de auto-humilhação e culminou numa morte vergonhosa na cruz. Se seguirmos tal amor e humildade como nosso modelo, nenhuma tarefa será difícil demais, nenhum relacionamento exigente demais (Fp 2.5-8). Temos a promessa de que Cristo viverá em nós, que sua imagem será formada em nós, se aceitarmos uma vida de humildade, sofrimento e renúncia. Nossa recompensa real é nos tornarmos como ele, imitando-o e tendo sua mente desenvolvida em nós. Quando entendemos a humildade de Jesus e seu auto-sacrifício, ficamos maravilhados com o privilégio de sermos parceiros dele em seu ministério. O pastor Josef Ton diz: Sofrer por Cristo significa [...] que Cristo ainda sofre por causa de um mundo moribundo e ainda está aperfeiçoando seu corpo [...]Tornar-nos conforme a imagem de Cristo ao clamar o poder de sua ressurreição em nossa própria doação autossacrificial e, se formos escolhidos por Deus, morrer em seu serviço.'
Quando compreendemos o amor de Cristo na cruz, sua vida doada em favor de outros, somos conquistados por tal amor e aprendemos a desejar ter uma vida semelhante; a sermos mais preocupados com o interesse dos outros, com sua salvação e maturidade crescente. Enfrentaremos várias lutas e talvez o martírio, mas, em tudo isso, continuaremos sendo transformados mais e mais, de acordo com o caráter de Cristo. A glória futura Os cristãos receberam uma nova vida, paz com Deus e esperança da glória de Deus. Mas há várias ameaças à realização desta esperança, como as tribulações que causam
tensão na vida cristã. Os cristãos têm a esperança de que, apesar das aflições, eles atingirão a salvação final. Aqueles que depositam sua esperança na glória de Deus não serão envergonhados, pois Deus deu seu mais precioso presente pelos pecadores e os cristãos continuam a permanecer firmes apenas em sua graça. Aqueles que pertencem a Cristo compartilharão de sua glória (Rm 5.1-11). "Cc-herdeiros" significa que entraremos com Cristo na posse de sua herança, que compartilharemos sua glória, que é a recompensa de Cristo. Mas não há como partilhar sua glória, se não houver partilha em seu sofrimento. Entretanto, os sofrimentos do presente perdem o significado quando comparados com a radiante glória do Deus imortal (Rm 8.17-18). Paulo ensina que todas as criaturas estão passando por um período de ansiedade, enquanto esperam pela revelação da glória dos filhos de Deus, pela libertação das correntes da corrupção, da morte presente no mundo. Esses gemidos da criação não são de morte, mas de nascimento. Um sofrimento na esperança de uma nova vida. Deus prometeu libertação de tudo o que é mal e sem sentido; prometeu uma nova harmonia para a criação. Como cristãos, também gememos em nossa fraqueza e sofrimento esperando a totalidade da salvação e ressurreição de nossos corpos (Rm 8.19-23). O fogo testará a genuinidade do nosso trabalho. Precisamos orar para que nossos esforços estejam impregnados com a graça de Deus e que nossa motivação seja a glória de Deus. Se esse é o caráter de nosso serviço, nós receberemos nossa recompensa. Não há dúvida de que há valores mistos em todo o nosso trabalho. Além disso, nesse mundo, nosso trabalho nem sempre é avaliado corretamente. Mas o Senhor revelará seu caráter verdadeiro, julgando a qualidade do trabalho feito e não a quantidade. A parábola dos talentos sugere que nossa recompensa será um serviço de maior responsabilidade. Por outro lado, o trabalho feito de maneira errada não terá nenhum fruto permanente (lCo 3.12-15). Paulo contrastou a vida que vivemos externamente, em nosso corpo mortal, com o que somos internamente, o que já pertence à era que há de vir. Então nosso progressivo desgaste externo é acompanhado por uma renovação interna. Nós também, como novas criaturas, esperamos a glória eterna, que de longe supera todas as coisas. Desse modo, vemos que as tribulações presentes são temporárias e leves, enquanto a glória é eterna. Paulo pode ter parecido um fracasso, mas seu olhar estava
fixo na glória além, em ver o Senhor face a face, e em ser transformado à sua imagem (2Co 4.16-18). 1 Coríntios 15.58 ensina que há vida além desta presente, onde os cristãos receberão suas recompensas. Em 1 Coríntios 2.7-9, Paulo fala sobre a glória futura além de qualquer imaginação -que Deus preparou para nós. Como cristãos somos herdeiros de Deus, porque somos seus filhos. Mas a posse atual de nossa herança é condicional, está relacionada à nossa parceria com Cristo em seu sofrimento (Rm 8.16-17) e à nossa obediência a Deus (1Co 6.9-10). Tomar posse de nossa herança significa ser glorificado com Cristo (1Co 6.2-3), pois os filhos de Deus serão encarregados dos negócios de seu reino. Tal recompensa não implica em mérito de nossa parte: recebemos isso apenas pela graça de Deus, pois não merecemos nada. Mas será que os filhos de Deus estão preparados para lidar com a sua herança? Deus nos testa, principalmente por meio de nossas aflições. Ao mesmo tempo, ele é fiel e nos dará graça para vencer as lutas. Nossa salvação começa quando somos reconciliados com Cristo e termina quando recebemos a glória de Deus. No intervalo há uma cadeia de eventos, entre eles as tribulações que produzem perseverança e a perseverança que produz um caráter aprovado (Rm 5.3-4). O objetivo final dessa sequência é que seremos aprovados por Deus. Estaremos diante do trono de Deus para sermos recompensados pelas obras feitas por nossos corpos, sejam boas ou más (2Co 5.9-10). Paulo encorajou os tessalonicenses a viverem conforme o Deus que os chamou para o seu reino, insistindo que eram herdeiros da sua glória. Eles deviam desenvolver e manifestar seu caráter (lTs 2.12). Ele também agradeceu a Deus pela perseverança daqueles cristãos em meio à perseguição e tribulações. "Vocês estão passando" -o verbo está no tempo presente, ou seja, as tribulações ainda continuavam. Se Deus permitiu que sofressem, eles podiam ter certeza que ele os estava preparando para sua glória e usando a perseguição como meio para desenvolverem sua fé, amor e perseverança, em contraste com a raiva e amargura de seus perseguidores. A graça transformadora de Deus os estava adequando para sua herança eterna. Quando o Senhor Jesus vier, ele será revelado em seu esplendor, mas seu esplendor também será revelado em nós e por meio de nós. Não apenas veremos, mas compartilharemos sua glória para sempre (2Ts 1.4-7; 10-11). Aqueles que
morrem com Cristo tomarão parte em sua ressurreição e em sua glória. A vida cristã é retratada como uma vida de morrer e perseverar. Aqueles que compartilham de sua morte na terra irão compartilhar de sua vida no céu. A estrada para a vida é a morte e a estrada para a glória é o sofrimento (2Tm 2.11-13). Paulo olhou em retrospectiva para seu ministério e descreveu-o com as seguintes expressões: "Combati o bom combate", combinando metáforas atléticas e militares e deste modo expressando sua dedicação à causa de Cristo; "completei a carreira", completou a tarefa para a qual tinha sido chamado; e "guardei a fé", ou seja, manteve o tesouro do evangelho e o entregou a discípulos capazes (2Tm 4.6-8). Agora ele aguardava a coroa que lhe seria entregue. Enquanto a justiça humana tratou Paulo como um criminoso comum, Deus reservou a ele, seu servo, a coroa de justiça. Paulo escreve sobre as tribulações serem usadas para testar se os cristãos são dignos do Reino de Deus. Jesus discorreu sobre o valor das tribulações (2Ts 1.5, 11; Lc 20.35), ensinando que a fidelidade determina posições de maior ou menor autoridade no céu. Recebemos nossa herança pela graça de Deus, mas devemos sofrer pelo reino e andar de maneira digna. Portanto, há dois níveis de ação. no nível mais elevado é Deus quem salva, chama, santifica e glorifica. Porém, no nível humano, nós temos que crer, ser zelosos pelas boas obras, negar a nós mesmos, servir a Deus e às outras pessoas, enfrentar dificuldade e buscar a santidade. Se seguirmos esses requisitos, nos tornaremos mais parecidos com Cristo, refletindo seu caráter e Deus nos concederá responsabilidades ainda maiores. Como será a eternidade para aqueles que sofreram por Cristo, que morreram com e por ele? Paulo escreve que eles reinarão com Cristo (2Tm 2.11-12), e que essa é sua recompensa principal. Deus treina seus filhos para responsabilidades maiores na eternidade, e por meio do processo de sofrimento nos tornamos dignos e capacitados para lidar com a autoridade de governar. Paulo era um obreiro comprometido e dedicado, não se amedrontava com os perigos, ameaças e reações de ódio. Ele também aprendeu a trabalhar com pessoas de caráter diferente e a valorizar seus dons, compromisso e suas contribuições. Ele nunca pensou que estava mais capacitado que os outros para fazer o trabalho, mas sempre pedia que outros o acompanhassem e dava-lhes oportunidades e responsabilidades. Paulo valorizava seus companheiros de trabalho e amava suas igrejas.
Seu cuidado amoroso é expresso em suas cartas. Não era um amor superprotetor, mas um amor firme. Sua ambição é que eles fossem aprovados diante do trono do julgamento de Cristo e não simplesmente tivessem uma vida confortável aqui e agora. Podemos aprender muito com Paulo. Se seguirmos seu ensino e ênfase no discipulado, poderemos preparar nossos missionários e nossas igrejas para enfrentar e suportar provações por Cristo, quando isto for necessário para levar o evangelho aos não-alcançados, e ensiná-los a fazer isso com alegria. Poderemos ajudá-los a depender da presença e do conforto de Deus, e também permaneceremos ao lado deles em amor, compreensão e encorajamento contínuo.
Parte 2
Contextos atuais de sofrimento É importante analisar as diferentes situações de grande sofrimento no mundo atual a partir do olhar dos nacionais e das pessoas enviadas para servir entre eles. Esta parte apresenta situações de sofrimento decorrentes de grande pobreza, problemas sociais, perseguição, violência e guerra, levando em conta a situação global nos últimos vinte anos, que representa um desafio especial para a tarefa missionária hoje.
capítulo cinco
GUERRA E VIOÊNCIA
O SOFRIMENTO É PARTE INTRÍNSECA DA VIDA HUMANA, apesar de a cultura pós-moderna valorizar as facilidades e as riquezas, e defender o 'direito' a um nível de conforto cada vez maior. Isso é ilusão. Vivemos em um mundo violento, repleto de ódio e egoísmo, onde o número de vítimas continua a crescer. Apesar de confrontados diariamente com situações que provocam sofrimento, preferimos manter distância emocional dessas situações. É preciso, portanto, recuperar a visão bíblica e ouvir o chamado de Deus para ministrar àqueles que estão alquebrados pelo sofrimento, ouvir com atenção o que eles dizem e procurar compreender suas necessidades e sua dor. A igreja precisa aceitar esse desafio missionário e aprender a apoiar e cuidar melhor de seus servos, que ministram o amor de Cristo àqueles que sofrem. O teólogo croata Miroslav Volf afirma que vivemos em um mundo dominado pela injustiça, pelo preconceito e morte. Durante as guerras na antiga Iugoslávia e em Ruanda, as pessoas desenvolveram um apetite insaciável pela brutalidade. Samuel Escobar, teólogo peruano, afirma que vivemos num período de progresso científico e tecnológico que anda de mãos dadas com formas refinadas de barbárie. Em Ruanda, professores e freiras, médicos e enfermeiros compilaram listas de pessoas a serem mortas e traíram seus colegas. Em Moçambique, 48% dos postos de saúde foram destruídos e pacientes, sequestrados; 45% das escolas foram destruídas. Em EI Salvador, soldados assassinaram cirurgiões que estavam fazendo cirurgias, por suspeitarem que estivessem tratando "subversivos". Forças sérvias bombardearam hospitais na Croácia e na Bósnia.
Dados chocantes Na década de 70 houve catorze guerras por ano. Na década de 90, houve pelo menos cinquenta. De todas as pessoas mortas em consequência de conflitos armados na Primeira Guerra Mundial, 5% eram civis; na Segunda Guerra Mundial, 50% eram civis; e na década de 90, mais de 90% eram civis. Nos últimos dez anos, 2 milhões de crianças morreram na guerra, de 4 a 5 milhões ficaram feridas ou com deficiências físicas, 12 milhões desabrigadas e 1 milhão ficou órfã ou separada dos pais. Tabela 1 -Morte em contextos de guerra
País
Anos
Angola Congo Libéria Moçambique
1975-2002 1998-2001 1989-1996 1976-2002
5udão
1982-2002
Total de mortes causadas pela guerra 1,5 milhões 2,5 milhões 150 a 200 mil 500 mil a 1 milhão 2 milhões
Mortes em batalha 160.475 145 mil 23.500 145.400
Porcentagem de mortes em batalha 11% 6% 12-16% 15-29%
55 mil
3%
(Relatório de Segurança Humana, 2005) Tabela 2 -Refugiados e deslocados de guerra Anos 1970-1974 1980-1982 1990-1994 2000 2002
Deslocados de guerra (em milhões) 6 7.5 23-25 22 25
Refugiados de guerra (em milhões) 2.5 10-11 17 12 10
(Relatório de Sequrança Humana, 2005)
Ficamos um pouco menos chocados ao olhar apenas para o número de refugiados; entretanto, muitas vezes os deslocados (refugiados internos) vivem em situações muito precárias, e o número de pessoas que se encontram nessa situação e suas necessidades pessoais ainda são enormes. Dados das Nações Unidas mostram que em 1997 havia 37,4 milhões de refugiados e 26 milhões de deslocados de guerra. Consequências emocionais e sociais da guerra Uma análise estatística é diferente da reflexão sobre o sofrimento causado pelas guerras, especialmente aos inocentes e indefesos. Um grupo social se sente indefeso quando não vê significado no que aconteceu a eles e quando suas maneiras tradicionais de lidar com as crises se tornam inúteis. Na Guatemala, apenas a menção dos nomes das vítimas já era considerada uma atividade subversiva e as viúvas "esqueceram" os nomes de seus maridos assassinados. A verdade precisa ser dita. As famílias dos latino-americanos que foram torturados e desapareceram durante as ditaduras de Direita querem saber quem foram seus algozes e como seus queridos morreram. As vitimas do regime comunista da Europa Central e Oriental querem saber quem foram os informantes e o que estava escrito nos arquivos da KGB. Ao buscarem a verdade, estão tentando proteger e restaurar sua dignidade. Esquecer os abusos é dar carta branca a futuros algozes; lembrar suas transgressões é levantar uma barreira contra futuros abusos. O sofrimento causado pela violência e pela guerra não termina com o fim das agressões. Há uma carga de sofrimento emocional e social que precisa ser enfrentada, que exige uma resposta de amor e de busca pela justiça. Pessoas com deficiência Outra terrível consequência da guerra é o sofrimento das pessoas que se tornam deficientes físicas, com poucas oportunidades para desenvolver seu potencial. A exposição de pessoas a conflitos armados causa sofrimento físico e deficiências permanentes como: amputação, perda da visão ou audição e a rejeição por serem "diferentes". Essas pessoas precisam de apoio e aceitação. As pessoas com deficiências físicas podem sofrer muitas restrições e têm de lidar com o isolamento, o que acaba levando a uma baixa autoestima. Jesus se apresentou como advogado das pessoas com deficiências (Lc 4.16-18). Precisamos ajudá-los a
confiar em Deus, que pode curá-los; entretanto, é preciso também fortalecê-los para viver de acordo com suas novas limitações. Podemos ajudar a igreja a aprender a desenvolver atitudes corretas. Ainda há grande necessidade nessa área em Angola e em outros países onde houve longos períodos de guerra violenta. As vítimas precisam ser respeitadas e valorizadas, precisam de ajuda para viver novamente uma vida com sentido e significado. Não é uma tarefa fácil quando o número de vítimas é alto e a vida é difícil até mesmo para as pessoas saudáveis. Pessoas violentadas A guerra permite a ocorrência de violência desumana, incluindo o estupro. A violência sexual sempre foi parte de situações de guerra, mas nunca foi praticada de maneira tão sistemática como nas guerras recentes. Estima-se que 250 mil mulheres e garotas foram estupradas em Ruanda entre os anos de 1994 e 1995. Os sérvios estupraram de maneira sistemática mulheres bósnias muçulmanas. Quando falamos em estupro é preciso levar em consideração os aspectos sociais, culturais, politicos, psicológicos e físicos do estupro. Os traumas causados por essa violência estão misturados à experiência da perda dos maridos, filhos e casas. Os resultados dos estupros são infecções, desde as mais comuns até HIV/ aids, e incluem o trauma físico, o aborto ou o nascimento de crianças cujas mães não têm condições de cuidar delas. As agências que ofereceram ajuda humanitária nos Balcãs não pensaram na necessidade de contextualização da psicoterapia ocidental. As pessoas enviadas não estavam familiarizadas com as maneiras culturais de lidar com as perdas. Um grupo local abriu um Centro de Apoio à Mulher contra a Violência Sexual para atender sobreviventes e condenar a violência sexual como forma de subordinação feminina. Em Uganda, um programa de terapia para vítimas de tortura organizou reuniões com as mulheres cuja maioria tinha sido estuprada. A equipe ofereceu exames médicos e tratamento de saúde. Uma mulher de 42 anos e sua filha tinham sido estupradas por vários soldados, enquanto sua família (que foi assassinada logo depois) foi forçada a assistir e aplaudir. Essas mulheres estavam reconstruindo sua casa e roça, e cuidando dos filhos de uma prima. Sentiam-se envergonhadas em falar sobre o estupro. O que elas mais precisavam era de ajuda médica, assistência prática e encorajamento.
Nos hospitais de Angola e mesmo nas igrejas havia histórias sobre estupros brutais. Quanta dor e raiva isso causou nas vítimas e em suas famílias. Essas pessoas precisam de ajuda para se sentirem dignas novamente. Crianças A vida das crianças está sob constante ameaça numa guerra; a violência causa sofrimento e prejuízos em longo prazo. Ficam expostas à fome e ao frio, especialmente durante os períodos em que estão fugindo do inimigo. É comum as famílias se separarem ou os pais serem mortos, deixando crianças pequenas que não podem fornecer nenhuma informação sobre suas origens. Experiências traumáticas para as crianças incluem perderem todo o suporte familiar, serem forçadas a matar seus pais ou serem sequestradas, presenciarem um bombardeio, verem a destruição de suas casas e serem forçadas a se juntar às forças de combate. Em tempos de guerra, crianças com frequência sofrem abuso sexual. Elas experimentam culpa, humilhação e vergonha. Têm pesadelos, começam a urinar na cama, têm medo de ficar sozinhas e têm uma autoimagem negativa. A possibilidade de poderem contar suas histórias num contexto de confiança ajuda essas crianças. Elas precisam se sentir aceitas e não forçadas a falar. Precisam aprender a aceitar e respeitar seus próprios limites e os limites dos outros. Crianças foram forçadas a participar ativamente na guerra em 33 conflitos diferentes nos anos de 1995-1996. Em Serra Leoa, em 1997, havia 50 mil combatentes rebeldes, metade deles com idade entre 8 e 14 anos. A maioria foi recrutada contra sua vontade; outras acreditavam que tinham de lutar para defender sua terra ou sua família, e recebiam drogas para amortecer o medo. Algumas gostavam da vida no exército, pois tinham liberdade para saquear e estuprar. Em Moçambique, na década de 80, a taxa de mortalidade infantil durante a guerra civil com a Resistência Nacional Mocambicana (RENAMO) foi a mais alta do mundo. Crianças, foram forçadas a matar seus pais e irmãos e ver barrigas de mulheres grávidas serem abertas. Quando a RENAMO invadia uma vila, queimava casas, estuprava mulheres e garotas e levavam crianças pequenas, algumas com apenas 6 anos, para trabalhar em suas bases. Essas crianças podem superar as crises e crescer emocional e espiritualmente. Elas precisam aprender a discernir o que é certo
e o que é errado, e o ensino precisa se dar em um ambiente seguro. Esse é um grande desafio para a missão cristã. Os filmes Diamante de Sangue (2006) e Hotel Ruanda (2004) não exageraram ao mostrar a realidade dessas crianças. Restauração do trauma de guerra Como pessoas de outras culturas podem compreender o que significa o sofrimento causado por trauma de guerra e oferecer cuidado adequado? As guerras criam uma memória social traumática. É preciso estimular apoio mútuo, ouvir o que as pessoas atingidas consideram prioridades e fortalecer as estruturas comunitárias e familiares. O conceito de transtorno de estresse pós-traumático foi desenvolvido em culturas ocidentais, mas a maioria dos conflitos ocorre em contextos não-ocidentais. O desafio é fortalecer os que sofrem em consequência dos conflitos e ajudá-los a reconstruir um senso coletivo de realidade, moralidade e dignidade. Grande parte do benefício alcançado pelos centros de aconselhamento em Sarajevo não foi devido aos especialistas em saúde mental, mas ao fato de as pessoas terem um espaço para se encontrar e criar uma solidariedade coletiva. É necessário ajudar a reunir famílias, para reconstruir as estruturas sociais e econômicas. É necessário quebrar o ciclo da impunidade e promover a justiça. Asvozes das vítimas precisam ser ouvidas e seus algozes precisam ser responsabilizados. Desde o ano de 1990, antes da guerra mais recente, centenas de milhares de crianças iraquianas morreram em consequência do embargo económico imposto pelo Ocidente. Essas mortes são menos traumáticas do que as causadas por bombas? É preciso compreender a inter-relação das forças culturais, sócio-econâmicas e políticas operantes em uma guerra e como o povo reage a essa situação e ao sofrimento por ela causado. Pessoas afetadas pela guerra geralmente estão preocupadas com seu mundo social despedaçado. É realmente necessário ser sensível à cultura local e fortalecer as maneiras de se lidar com o trauma de guerra que são apropriadas à cultura. Durante e logo após o término de uma guerra, as estruturas sociais podem estar tão enfraquecidas que há necessidade de ajuda externa. Em Angola, tanto nativos como estrangeiros, inclusive missionários, ficaram mentalmente doentes em consequência do trauma de guerra.
A restauração é uma forte possibilidade mesmo em circunstâncias caóticas. Se, ao sofrermos, não dermos lugar à amargura, nossa força e sabedoria aumentarão. Crianças e adultos precisam ter um relacionamento significativo com Deus e ter a esperança que brota da certeza de que Deus não os abandona. Servindo de maneira adequada Como responder a um mundo que sofre? Para avaliar o trauma sofrido por uma pessoa, é preciso compreender o grau de exposição a situações extremamente estressantes e quanto apoio recebeu de familiares, amigos ou agentes externos. Fatores internos como estabilidade emocional, fé em Deus e experiências anteriores de trauma também influenciam. Pessoas traumatizadas precisam conversar com alguém que as ouça e encoraje a contar a história completa -não apenas os fatos, mas também os sentimentos associados aos fatos. Significa dedicar tempo e atenção com sensibilidade. Quando terminar de contar sua história podemos encorajar a pessoa ferida a entregar sua dor para Jesus e deixar que ele carregue a dor e as feridas (Is 53.4), ajudá-la a se dirigir a Deus para receber graça para perdoar (Mt 5.43-48) e orar por sua restauração. Como cristãos somos chamados a ser promotores da paz, que na Bíblia significa vida plena. Vida plena é muito mais do que ausência de violência e inclui o compromisso da igreja na luta por um mundo mais justo e menos violento. Podemos trabalhar junto com outros setores da sociedade que buscam os mesmos benefícios.
Insights A guerra nos Bálcãs A guerra nos Bálcâs foi uma experiência aterradora. Como é possível superar tanto ódio? Miroslav Volf, teólogo croata, questiona como devemos nos posicionar a respeito da história de violência entre os povos. Os sérvios afirmam que os croatas assassinaram 700 mil sérvios em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Os croatas dizem que foram "apenas" 30 mil pessoas e que os sérvios assassinaram mais croatas durante e logo após a guerra. Como cristãos devemos procurar a verdade, com humildade para reconhecer que não somos os detentores exclusivos dela. É impossível reconstituir os
fatos ocorridos no passado de maneira isenta, sem nenhuma influência de um ponto de vista em particular. Limpeza étnica sugere que a outra etnia é uma sujeira que precisa ser eliminada. Os outros têm de ser colocados em campos de concentração, massacrados ou enterrados em valas comuns. A exclusão é frequentemente um mal perpetrado pelos "bons" cujas ações são fundamentadas em seus preconceitos e convicções. Nos evangelhos vemos a conexão entre a percepção de justiça que os inimigos de Jesus tinham a respeito de si mesmos, e os planos que eles maquinaram para provocar sua morte. A identidade cultural se insinua com força religiosa. Assim, pode transformar um assassinato em um ato de piedade. A religião se tornou uma maneira de legitimar o uso da violência para fins políticos. Adoradores do mesmo Deus brigam entre si, e ambos acreditam que Deus está do seu lado. Senhores de guerra decidem que é permitido ser violento quando não existem alternativas não-violentas ou quando seus objetivos são justos. Se ouvirmos o que as vítimas relatam sobre seus inimigos ficaremos chocados com a maldade deles. Mas quando os algozes são confrontados com sua própria maldade, eles a negam e tentam provar que estavam agindo em defesa própria. Muitas vezes as vítimas de ontem são os algozes de hoje. A disposição para amar e acolher pode nos ajudar a perceber indícios de justiça na causa e nas ações do outro. Porém, o ódio nos cega de tal maneira que apenas vemos as injustiças cometidas por eles. Com toda a dor causada pela exclusão e violência, como é possível pensar sobre a possível justiça da ação dos algozes? Só poderemos ser capazes de perceber os dois lados da situação se estivermos engajados na luta pela justiça. Entretanto, quanto pior for a injustiça sofrida, mais cega a pessoa fica em relação à injustiça que ela mesma inflige. O genocídio em Ruanda O genocídio brutal em Ruanda causou sofrimento inimaginável e centenas de milhares de mortes. Como a igreja deve reagir e ajudar a superar esse mal? O ruandense Laurent Mbanda, diretor do programa de desenvolvimento da Cornpassion Internacional, comenta sobre as raízes históricas desta luta. Os missionários "padres brancos" a princípio promoveram o desenvolvimento
econômico dos hutus pobres. Posteriormente, a igreja católica romana e as autoridades belgas favoreceram os tutsis, em relação à educação e empregos. O rei e vários chefes se converteram e o catolicismo se tornou a religião dos poderosos. A igreja católica romana, antes aliada dos hutus, passou a ser aliada dos tutsis e depois se tornou novamente aliada dos hutus. Em 1959, o país testemunhou uma disputa de poder entre hutus e tutsis. Depois do assassinato de milhares de tutsis e o exílio de mais centenas de milhares, a igreja poderia ter promovido a reconciliação, mas não tomou nenhuma iniciativa. Alguns assassinos, ao irem se confessar, ouviram dos padres: "Vá em paz, meu filho, matar um tutsi não é pecado". Em 1963 e em 1973 houve outras ondas de assassinatos, mas a igreja não se pronunciou. Durante os assassinatos de 1994, as igrejas foram palco de genocídio em massa. A reconciliação só é possível quando a justiça é feita, quando há confissão e mudança de atitude dos que apoiaram os massacres. Depois dos assassinatos de 1959, missionários protestantes escreveram um manifesto de protesto. Durante os assassinatos de 1973, os protestantes não se manifestaram. Em 1994, os hutus que não concordaram com o genocídio e apoiaram seus amigos tutsis também foram mortos. O silêncio das missões cristãs foi estarrecedor. Depois dos massacres, cristãos nativos se reuniram para oração e confissão. Gary Haugen, fundador e presidente da Internacional Justice Mission, foi para Ruanda como oficial das Nações Unidas para reunir provas contra os algozes para o Tribunal Criminal Internacional. Em 1994, cerca de meio milhão de mulheres e crianças foi morto a facão, por seus vizinhos. Haugen entendeu que Deus amava essas pessoas e odiou o mal que elas sofreram (cf Ez 22.25-30). Cada corpo depositado naquelas valas comuns foi criado à imagem de Deus. Muitas pessoas preferem se afastar do mundo sombrio da injustiça, ou buscar o amor de Deus sem amar a seu irmão. Outros oferecem seus serviços, como os cinco pães e dois peixes, e dizem: "Jesus, estão à sua disposição". A Catedral de St. Jean, em Kibuye, foi cuidadosamente limpa, mas o odor penetrante de um sepulcro coletivo ainda permanecia. Nesse chão centenas de crianças e mães indefesas foram mortas a facadas. O governador da província ordenou que as mulheres e crianças tutsis fossem buscar refúgio na igreja. Durante os massacres anteriores as pessoas encontraram refúgio nas igrejas. Esse mesmo
governador incitou a milícia extremista hutu contra elas, e foram assassinadas com facões, barras de metal e porretes de madeira com pregos. Os mutilados em Angola No mesmo período da crise nos Balcãs, Angola estava atravessando uma guerra ainda mais sangrenta, mas esse conflito foi grandemente ignorado pela comunidade internacional. De acordo com as Nações Unidas, no final de 1992 e no ano de 1993, morreram mil pessoas por dia em Angola. Durante a guerra em Angola, visitei hospitais, principalmente o hospital para deficientes físicos, e me tornei amiga de crianças, jovens e adultos. Nunca encontrei um grupo de pessoas tão necessitado e tão receptivo. Muitas vezes me senti sobrecarregada com suas necessidades, por ter poucos recursos para oferecer-lhes esperança e conforto. Porém, dezenas se tornaram cristãs. Um enfermeiro paraplégico é agora encarregado de uma clínica de saúde, de uma escola para enfermeiros e se tornou pastor de uma igreja que teve início em seu quintal, com cinco pessoas. Eles construíram um templo muito simples, onde 150 pessoas se reúnem para o culto de domingo e já têm duas igrejas filhas. Sempre havia crianças nos hospitais, algumas muito deprimidas por causa da dor contínua, e outras que tinham perdido a família inteira e se sentiam desesperadamente sozinhas. Um menino estava muito magro e deprimido, mas quando, com a ajuda da Cruz Vermelha, conseguimos encontrar sua família, ele recuperou sua alegria e força. Muitas crianças viram seus pais serem mortos. Um garoto perdeu as pernas por causa de uma mina terrestre. Ele se converteu, mas teve gangrena, sofreu muito e morreu. Sua família não-cristã foi muito impactada por seu testemunho. Outro menino estava muito triste e solitário quando chegou ao hospital. Dei a ele um caderno e lápis de cor. Todas as semanas eu o visitava e via o que ele havia desenhado. Aos poucos ele recuperou a alegria e coragem para viver. Um dia ele disse: "Agradeço a Deus por ter me trazido para este hospital, porque eu não conhecia a jesus, mas agora o conheço e vou falar dele para minha família". Quando ele recebeu alta, foi deixado sozinho, num quarto escuro, na casa de um tio, com pouco contato humano e sem oportunidade de estudar. Logo depois ele pegou uma infecção e morreu. Em Angola, campeã mundial em minas terrestres, há tantas
pessoas com deficiências físicas e a vida é tão difícil que geralmente essas pessoas são consideradas uma carga pesada demais para se carregar. A maior parte dos deficientes físicos eram ex-soldados, que lutaram numa guerra que não era deles. Restou a sensação de que suas vidas perderam o valor. Alguns eram tão receptivos, que na minha primeira visita creram em Jesus. Para outros, isso levou mais tempo. Muitos eram influenciados pelo ensino marxista, então foi necessário um diálogo paciente. Aqueles que creram recuperavam a alegria e coragem para viver e servir os outros. Numa ocasião, não havia água no hospital e encontrei dois rapazes, que tinham sido operados recentemente, febris e sedentos. Não tinham familiares para cuidar deles e por isso não tinham água para beber. Encontrei um de meus amigos deficientes que tinha conseguido encher um bidão e uma garrafa de água, depois de esperar quatro horas numa fila em sua cadeira de rodas. Pedi a ele: "Você poderia dar um litro de água para esses dois homens? Senão eles vão morrer de sede". Ele nem hesitou e deu 20% de sua preciosa água. Um amigo especial foi José Gomes, tetraplégico, que chegou ao hospital quando tinha 16 anos. Ele era marxista e não tinha nenhum interesse na Bíblia ou em orações. Tornei-me sua amiga e, aos poucos, começamos a discutir questões de fé. Ele creu em Jesus e se tornou uma pessoa alegre, com desejo de alcançar outros e de ser útil. Decidiu aprender a escrever com a boca. Já escreveu um livro contando seu testemunho. Ele desejou ser uma bênção para outras pessoas deficientes e, com alguns amigos, iniciou o projeto FENADOR (Felicidade na Dor), até que Deus o chamou para si em abril de 200S. O projeto continua e procura oferecer educação escolar e oficinas práticas como artesanato, culinária e computação. O objetivo principal é ajudar portadores de deficiências físicas a crer em Jesus, crescer na fé e ter sua dignidade restaurada. É resposta a uma necessidade muito grande. De acordo com as Nações Unidas, em 2001, Angola, um país com apenas 12 milhões de habitantes, tinha um quinto de toda a população mundial de pessoas com deficiências físicas causadas por guerra.
capítulo seis
PROBLEMAS SOCIAIS
A TAREFA DA IGREJA É PROCLAMAR O EVANGELHO do reino de Deus em seu próprio contexto. Porém como pregar o evangelho em contextos de pobreza, corrupção, injustiça e violência? Missão integral significa obedecer ao mandamento de Jesus de proclamar o evangelho, e isto inclui suas implicações espirituais, físicas e sociopolíticas. Precisamos refletir sobre os conflitos sociais de nosso tempo e nos envolver nos movimentos de reconciliação. É necessária uma atitude de humildade, serviço e amor genuíno. Davíd Bosch define a missão cristã como: ... a relação dinâmica entre Deus e o mundo [...] como retratado no nascimento, morte, vida e ressurreição de Jesus de Nazaré [...] Missão se refere a missio Dei [...] a auto-revelação de Deus como aquele que ama o mundo [...] Missões se referem a formas particulares de participação na missio Dei [...] A tarefa missionária é tão coerente, abrangente e profunda quanto as exigências da vida humana... [O] sim de Deus para o mundo se revela [...] no engajamento missionário da igreja quanto às realidades da injustiça, opressão, pobreza e violência. 1
Devemos reconhecer a contribuição da igreja católica romana ao pensamento teológico e à prática pastoral. Austin P. Flannery escreve sobre as conclusões do Concílio Vaticano II: A alegria e esperança, a tristeza e angústia dos homens de nosso tempo, especialmente daqueles que são pobres ou aflitos [...] são a alegria e
esperança, a tristeza e angústia dos seguidores de Cristo [...] Em nenhuma outra época a humanidade gozou tanta abundância de riquezas [...] e ainda assim imensa proporção da população mundial é assolada pela fome e por extrema pobreza [...] Grande número de pessoas têm nítida consciência de estarem privadas dos bens do mundo por causa da injustiça [...] nações famintas clamam pela ajuda de seus vizinhos afluentes. 2
No contexto da América Latina, o Concílio de Puebla, em 1979, conclui: O luxo de alguns poucos convertidos é um insulto contra a extrema pobreza de grandes massas [...] Nessa angústia e dor, a Igreja discerne a situação de pecado social [...] uma situação devastadora e humilhante de pobreza desumana em que milhões de latino-americanos vivem. Em vários paises latino-americanos há um clamor crescente por justiça em favor das pessoas que sofrem. Afirmamos a necessidade de uma igreja integral com opção preferencial pelo pobre, a fim de alcançar sua libertação holística.'
O pobre no contexto urbano É necessário dar atenção especial ao pobre que vive nos grandes centros urbanos. Há um número crescente de crianças na rua, vítimas de todo tipo de exploração. Uma situação que é, em grande parte, consequência da desintegração familiar. As igrejas se tornaram fonte de ajuda e esperança para o pobre urbano. As cidades com seu acúmulo de [...] serviços educacionais e médicos têm atraído as massas, mas a mesma ganância, injustiça e o abuso [...] têm tornado os corações dessas cidades em uma selva de concreto [...] onde seres humanos vivem em alienação e desespero." O escritor Viv Grigg, autor de Servos entre os Pobres e O Grito dos Pobres nas Cidades, considera os pobres urbanos o maior desafio missionário contemporâneo devido às suas grandes necessidades. A quantidade de pessoas nessas condições continua a crescer e elas são bastante receptivas ao evangelho. Isso se aplica aos muçulmanos em Karachi, aos hindus em Calcutá e aos budistas em Bangcoc. As causas principais desse crescimento são a pobreza rural e as guerras, que forçaram muitos a procurar a segurança das grandes cidades. Em São Paulo, a família com quem Grigg morou veio das montanhas onde eram muito pobres, não havia atendimento médico disponível, e por isso apenas dois dos cinco filhos sobreviveram. Eles se mudaram para a cidade, onde o pai trabalhava à noite por um
salário irrisório. Apesar disso a vida melhorou, eles tiveram mais três filhos e todas as crianças frequentavam a escola. De acordo com Shahid Yusuf, do Banco Mundial, nos primeiros 25 anos do século 21, a pobreza mundial ficará cada vez mais concentrada nos grandes centros urbanos. O número de pobres urbanos, vivendo em pobreza absoluta, cresceu dramaticamente na América Latina, na África e nos países asiáticos com economia menos favorecida. A renda média familiar de países industrializados é 38 vezes maior do que a de cidades africanas: 9.544 dólares contra 252 dólares por ano. O crescimento urbano é muito maior nos países pobres -5% ao ano, contra 0,7 % em países desenvolvidos. Em 2015 haverá 527 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, e de cada quatro, três estarão em países em desenvolvimento. Estão nestes países oito das dez megacidades do mundo. São cidades com mais de 10 milhões de habitantes, como Cidade do México, São Paulo, Bombaim, Calcutá e Xangai. Em 2015, haverá 27 cidades desse porte e a população urbana dos países em desenvolvimento excederá 4 bilhões. No Brasil, o número de chefes de família sem renda triplicou em dez anos: em 1991 havia 1,4 milhão e esse número cresceu para 4,1 milhões em 2001. Esses números representam 9,2% de todos os chefes de família no Brasil e estão concentrados principalmente nas grandes cidades. Uma igreja batista de classe média em Buenos Aires recebeu a visita de um extraficante de drogas, que indagou se a igreja estaria disposta a receber seus velhos companheiros. No domingo seguinte, vinte pessoas viciadas em drogas começaram a frequentar a igreja. A igreja se envolveu num programa de reabilitação, jovens da igreja começaram um ministério com crianças carentes com dificuldades de aprendizado e uma assistente social e seu marido se mudaram para a favela para servirem de maneira mais efetiva. A igreja começou a cuidar de pacientes com HIV/aids e desenvolveu um programa de missão integral. O pastor argentino Arturo Baspineiro serve na Fundação Kairós de Buenos Aires, organização comprometida em encontrar novas maneiras de servir e proclamar o evangelho nas áreas de educação, saúde, habitação, alimentação e emprego. A Fundação ajuda as igrejas a organizarem encontros que têm por objetivo promover ações práticas de missão integral. Em Lima, surge uma nova favela a cada mês, de acordo com o Banco Mundial. Desde 1960, a população de Lima
quadruplicou de 1,5 milhão para mais de 6 milhões. Sem escritura, a posse de propriedade não é garantida; as crianças, em vez de irem à escola, ficam tomando conta da casa enquanto seus pais trabalham, para impedir que outra família desabrigada ocupe a casa. Em 1998, o Banco Mundial aprovou um empréstimo de 38 milhões de dólares para o registro legal de 960 mil propriedades urbanas. O governo contribuiu com 24 milhões de dólares e 1,3 milhão de pessoas carentes são agora proprietárias de suas casas. Itaperussu, perto de Curitiba, é a comunidade mais pobre do estado do Paraná, com índices elevados de desemprego, criminalidade e mortalidade. O projeto Monte Horebe oferece a essas pessoas uma nova esperança. Por causa da necessidade de cobertores, iniciou-se um curso de corte e costura. Foi aberta uma creche para cuidar das crianças, que depois se transformou em uma pré-escola e, posteriormente, em uma escola de ensino fundamental. Esse projeto é administrado por um casal nacional e é praticamente autossuficiente. Em 2001, 837 milhões de pessoas viviam em favelas urbanas, locais de extrema pobreza e degradação ambiental, com grandes riscos de doenças, mortalidade e tragédias. Na Índia, um estudo mostrou que em nove favelas não havia latrina e que em outras dez favelas, havia dezenove latrinas públicas para 102 mil pessoas. O governo de Calcutá desenvolveu uma estratégia para reciclagem de água. Hortas são plantadas com adubo' de lixo orgânico e irrigadas com esgoto tratado e 3 mil hectares de tanques de criação de peixes integram o tratamento de esgoto e de cultivo de peixes. Com esse processo, todo o esgoto de Calcutá é tratado, os campos adubados com lixo orgânico produzem 150 toneladas de vegetais e 16 mil toneladas de arroz e os tanques de peixes produzem 8 mil toneladas de peixes por ano. Grupos da comunidade administram o projeto. Na favela de Tatalon, em Manila, o governo decidiu construir alguns banheiros e bombas de água e permitir que as pessoas comprem um pequeno terreno pagando cerca de seis dólares por mês, durante 25 anos. É um local de esperança, onde o evangelho é bem recebido. Metro Manila tem cerca de 10 milhões de habitantes. Por causa do alto índice de crescimento populacional, corrupção, tensão política e desastres naturais, a pobreza e o desemprego têm aumentado. Cerca de 3 milhões moram em favelas. Há novecentas áreas carentes na cidade e não há igreja em quatrocentas delas. Nos últimos dez anos, o número de igrejas dobrou e há um
movimento crescente para plantar igrejas e trazer desenvolvimento comunitário para essas áreas. Nas áreas urbanas do Quénia, 60% das pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, em favelas onde não há água encanada, eletricidade, rede de esgoto ou latrinas. A favela Kibera, em Nairóbi, tem um odor fétido característico e não é adequada para moradia. O pastor Makuku, da igreja reformada, desenvolve ali seu ministério e é respeitado e amado pelo povo. Há muitas igrejas nas favelas de Nairóbi, mas seus líderes não são treinados. Makuku está formando o Ministério Daybreak Word and Deed [Alvorada, palavra e ação], com o objetivo de treinar pastores nas áreas de liderança, auxílio jurídico, plantação de igrejas e justiça social. Há um contraste entre o rápido crescimento da igreja nas favelas da América Latina e a presença insignificante da igreja nas favelas da Ásia. Em Lima, de 60 a 90% das igrejas evangélicas são localizadas em favelas. Na Cidade do México, a maioria das igrejas está entre os pobres. Os pobres urbanos são um dos maiores desafios missionários de nossos tempos. Como cristãos, é nossa tarefa estar cientes do que acontece ao nosso redor, responder às necessidades de maneira adequada, aprender com aqueles que os serviram com excelência a alcançar os pobres com o amor e a humildade de Cristo. A criança no contexto de pobreza Precisamos prestar atenção à realidade chocante do sofrimento das crianças e estar prontos a atender suas necessidades. De acordo com dados da UNICEF e da Visão Mundial, 500 milhões de crianças não receberam comida suficiente para crescerem fortes e sadias. Há 2,5 milhões de crianças com deficiências mentais no mundo árabe e menos de 50 mil participam de um programa oficial de atendimento. Em alguns países da África, um terço das crianças perderam seus pais por causa de HIV/aids. Cerca de 2 milhões de crianças recebem o apoio de cristãos do mundo todo. Mas esse é um número pequeno quando comparado à necessidade: 10 milhões de órfãos por causa da aids, 10 milhões de vítimas da guerra; 10 milhões envolvidas em prostituição, 150 a 300 milhões vivendo nas ruas. A Visão Mundial tem um projeto no norte de Bangcoc, onde ensina atividades que podem gerar renda a garotas. Eles oferecem um bom treinamento e combatem a prostituição através da mídia local. Em dois anos, o número de garotas que teriam sido vendidas para o mercado de
prostituição caiu 80%. Devido à grande pobreza, em 1996 havia 120 milhões de trabalhadores infantis – com idades entre 5 e 14 anos – trabalhando até doze horas por dia. As crianças recebem os salários mais baixos, trabalham sob as piores condições e não têm direitos legais. Nas ruas, crianças sobrevivem catando papelão, engraxando sapatos, vendendo pequenos artigos, tomando conta de carros etc. Algumas famílias pobres mandam seus filhos para as ruas. Em outros lares, a violência os empurra para as ruas. No México, 40% das crianças vivendo nas ruas tinham entre 5 e 8 anos e 60% entre 9 e 14 anos. Com o crescimento das cidades, há um aumento acentuado da prostituição infantil. A cada ano, 1 milhão de crianças é vendido para o mercado sexual. Na Tailândia, crianças são raptadas nas vilas e vendidas para o mercado sexual, onde atendem dez, vinte ou trinta homens por dia. No sudeste asiático, muitas crianças trabalham em fábricas em condições precárias, e a solução desse problema não é simples. A pressão internacional levou fábricas têxteis de Bangladesh a demitirem 75% de seus trabalhadores infantis. Nenhum deles foi para a escola e a maioria acabou trabalhando em condições piores. Se o mundo gastasse 1% do que gasta em armas durante um ano, poderia oferecer educação gratuita em boas escolas para todas as crianças. Na maioria dos países pobres, metade da população é composta por crianças e muitas estão em situação de risco. Para mudar esses fatos, deveriam ser organizados mais projetos cristãos para oferecer oportunidades de ensino e abrigo. A igreja precisa fortalecer as estruturas familiares na comunidade e estar envolvida na provisão de proteção e educação para crianças. A Rede Viva mantém contato com 20 mil organizações cristãs que atendem crianças carentes. Ela fornece informação e cooperação aos cristãos, a üNOs seculares e aos governos e é uma estrutura de apoio importante para o ministério com crianças em situação de risco. Encarnação - serviço e estilo de vida apropriados Como cristãos, qual é nossa responsabilidade para com os pobres? Qual é a vontade de Deus para a sua igreja em meio a tanto sofrimento? Como podemos seguir o modelo de Jesus, que se tornou um de nós para nos servir?
Jonathan Bonk, direitor executivo do Overseas Ministries Study Center nos Estados Unidos, escreve sobre missão de acordo com os padrões bíblicos: Precisamos de uma missiologia que recupere o modelo de servo [...] que deixa seu mestre estabelecer a tarefa. Precisamos de uma missiologia que recupere [...] o principio do (grão de) trigo [...] Precisamos de uma missiologia que distinga entre [...] organização engenhosa e encarnação custosa. Precisamos uma missiologia que nos mova para longe da "eficiência" e nos ensine a caminhar com os pobres."
A encarnação é o paradigma cristológico para a missão, como vemos nos evangelhos. A missão inclui compaixão como resultado da inserção nas multidões, e não deve ser simplesmente uma opção acadêmica, mas uma ação clara de serviço. Missão inclui confrontar os poderes da morte com o poder do Servo Sofredor. O cristianismo não criou raízes na Índia porque nunca perdeu o estigma de ser estrangeiro. A fé cristã precisa ser interpretada dentro do contexto de seu ambiente e cultura –uma tarefa que envolve risco, como todas as interpretações em diferentes tempos e contextos. Na África Sahariana dar dinheiro e ajudar as pessoas que moram próximas é um sinal de amizade e solidariedade. Como uma pessoa rica pode ser considerada amiga se não estiver pronta a compartilhar seus bens com quem tem necessidade? Quando compartilhamos o evangelho em contextos muçulmanos, precisamos estar prontos a suprir as necessidades dos convertidos que podem ter perdido tudo após sua conversão. Nas reuniões entre cristãos angolanos que pediam ajuda a representantes de ONGs, alguns do segundo grupo ouviam o que os angolanos tinham a dizer, enquanto outros já "sabiam o que era o melhor para eles". Alguns cristãos nacionais acreditavam que as ONGs ficaram ricas por estarem envolvidas em projetos com angolanos pobres e por divulgarem fotografias de sua situação humilhante, e que as ONGs não permitiam que a situação melhorasse porque seria o fim de seus recursos. É necessário criar estruturas de apoio para os obreiros que servem entre os pobres. O escritor Viv Grigg enfatiza a necessidade de cristãos que, como Jesus, estejam prontos a viver entre os pobres nas mesmas condições em que eles vivem, demonstrando um estilo de vida encarnado e buscando a transformação dos poderes
que promovem injustiça e opressão. Um pastor na Ásia decidiu viver entre os pobres de Manila e lutar por habitações melhores. O diretor local do Sistema Financeiro para Habitação e lideres de gangues foram ver o que ele estava fazendo. Eles decidiram ajudar em seu projeto de construção e ao verem esse homem expressar em sua vida o amor e a justiça de Deus alguns se converteram. Precisamos enviar homens e mulheres assim, dispostos a viver como os pobres entre os pobres, pregar o evangelho e plantar igrejas nessas regiões carentes. A marginalização não consiste apenas em pobreza econômica, é também a falta de oportunidade para o desenvolvimento humano, é uma maneira de ver a si mesmo e o mundo: um sistema espiritual, cultural e social Ao servir pessoas marginalizadas é necessário viver entre elas, entendê-las e aprender a trabalhar junto. Pessoas marginalizadas desenvolveram redes sociais para sobrevivência, como várias famílias compartilhando o cuidado das crianças. A Igreja precisa redescobrir o valor da adoção de um estilo de vida simples, do compartilhar seus pertences com os pobres. Na parábola do Bom Samaritano não sabemos o nome nem idade da vítima, se ela é casada ou solteira, sua classe social ou sua religião. A única informação que temos é que ela é uma pessoa e como tal é feita à imagem de Deus. Jesus nos fala sobre a indiferença do sacerdote e do levita. Eles tinham muitas razões para justificar sua incapacidade de ajudar. Jesus intencionalmente faz com que a pessoa que oferece ajuda seja um samaritano. Ninguém esperaria nada de bom dele. O que o motivou a agir foi ele ter visto o homem e sentido compaixão (Lc 15.33). O samaritano não ofereceu apenas primeiros socorros, mas ofereceu tudo o que estava ao seu alcance. A mensagem do amor de Deus se torna digna de crédito quando acompanhada de um serviço de amor. O amor não é apenas dar bens materiais, mas também doar a si mesmo. Portanto, não é possível amar se não há disposição para enfrentar o sofrimento. Missão integral Jesus ensinou seus seguidores a buscar os valores do seu reino, a serem sal e luz. O que isso significa para a igreja em missão hoje? A teologia da libertação na América Latina foi fruto da preocupação de teólogos católicos romanos com as questões de pobreza e justiça. Por causa de sua preocupação com o contexto em que estavam inseridos e por meio do estudo da
bíblia, líderes evangélicos na América Latina descobriram que justiça e transformação social são temas que devem fazer parte da agenda do povo de Deus e assim influenciaram o movimento evangélico em todo o mundo. Joseph D'Souza, escritor indiano e presidente da Dalit Freedom Network, organização que luta pelo fim das castas na Índia, formula algumas perguntas importantes: Como lidamos com a acusação de que a fé cristã só constrói escravos mais dóceis sob os seus opressores e não lida com o assunto da justiça [...]? Corno convenceremos as pessoas de que Deus é um Deus de justiça, clemência e compaixão? Como mostraremos às pessoas que, ao nível humano, Cristo foi pregado à cruz porque se posicionou em favor da justiça, compaixão e clemência, e que ele era urna real ameaça à ordem política e religiosa dos seus dias?
Em muitos círculos missionários chegou-se à conclusão de que tanto a abordagem da caridade tradicional quanto a abordagem mais abrangente (educação, saúde e capacitação agronômica) não são modelos adequados. Surgiu então o modelo de desenvolvimento, com o pressuposto de que aquilo que é bom para o Ocidente seria bom para o Terceiro Mundo. Entretanto, a situação sócio-econõmica dos pobres continuou desesperadora; eles não perceberam que a pobreza está relacionada às relações estruturais globais. O verdadeiro problema é o da dominação e dependência, da relação opressores versus oprimidos. A pobreza só será eliminada quando as raízes causadoras da injustiça forem extirpadas. A libertação precisa ser efetiva nas várias esferas de opressão social, pessoal, e de pecado. A morte de Jesus na cruz para nossa salvação é a essência do evangelho, mas, sua morte não pode ser isolada de sua vida. Ele foi crucificado por causa de sua identificação com pessoas à margem da sociedade. A cruz é também um manifesto em favor da reconciliação entre indivíduos e grupos rivais. A reconciliação exige sacrifício tanto da parte do opressor quanto da parte do oprimido. Demanda o fim da opressão e injustiça e o compromisso com justiça e paz. O movimento evangélico missionário tem percebido, aos poucos, a necessidade de desenvolver uma missão integral que responda a todas as necessidades humanas. No Congresso de Lausanne, em 1974, foi redescoberto o conceito bíblico de missão integral, com ênfase no evangelismo ao mesmo tempo em que relaciona
missão a todas as áreas de necessidade humana. Foi enfatizada a necessidade de considerar as lutas espirituais, ideológicas e sociais que estão presentes nos contextos específicos em que a missão é realizada. Em Lausanne II, em 1989, houve sinais de progresso significativo em relação à prática de missão de acordo com a agenda de Lausanne I, especialmente no Terceiro Mundo e na Europa Oriental: estilo de vida simples, missão integral e o tema do reino de Deus sendo colocados em prática segundo o modelo de Jesus. Uma das afirmações da Declaração de Foz do Iguaçu é: ―Enfatizamos a natureza holística do evangelho de Jesus Cristo. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento demonstram a preocupação de Deus com as pessoas como um todo, dentro da sociedade como um todo."
E um de seus compromissos: Num mundo cada vez mais controlado pelas forças da economia global, os cristãos precisam estar atentos ao efeito corrosivo da riqueza assim como ao efeito destrutivo da pobreza. Devemos estar atentos ao etnocentrismo do nosso entendimento a respeito das forças econômicas. Comprometemo-nos em denunciar as realidades da pobreza mundial e nos opormos às politicas que servem ao poderoso ao invés do fraco [...) Chamamos todos os cristãos a se comprometerem a refletir acerca da preocupação de Deus pela justiça e bem-estar de todos os povos.
Alguns cristãos mantêm um equilíbrio saudável entre a importância fundamental do evangelismo e o serviço às pessoas em todos os aspectos de sua humanidade sofrida. Isso define missão como missão integral. Mas outros ainda definem missão apenas como oferecer salvação do pecado. Jesus respondeu a todos os tipos de necessidades humanas (Lc 4.16-28). A visão de pobres e leprosos chorando no funeral da Madre Teresa e do evangélico Graham Staines não será esquecida por um longo tempo. Muitos vieram a Cristo por causa do testemunho deles. A igreja e a missão na Índia precisam produzir mais pessoas envolvidas no ministério entre os pobres, movidas pelo amor de Cristo para cumprir a missão integral. Quando Jesus encontra seus discípulos pela última vez, eles o adoram, apesar de alguns duvidarem. É a essa comunidade que adora e duvida que Jesus entrega a
grande comissão. Jesus tem "toda autoridade", a mensagem é para "todas as nações", e eles recebem a tarefa de ensiná-los a "obedecer todas as coisas que ordenei a vocês". Isso significa que não podemos fazer separação entre evangelismo, discipulado e serviço. Fazer discípulos está relacionado a todas as dimensões da vida. Lucas 4.18-19 mostra como Jesus cumpriu sua missão e quais foram os padrões que ele estabeleceu para nossa prática missionária. A manifestação do "ano do favor do Senhor" foi acompanhada por sinais do reino no ministério de Jesus: esperança para os perdidos, inclusão dos marginalizados, libertação dos oprimidos, cura dos doentes, dignidade para as mulheres. O reino conquistou as ruas, superou as tradições e convidou os desesperançados para o banquete da vida.
capítulo sete
PERSEGUIÇÃO
A PERSEGUIÇÃO SEMPRE FOI UMA MARCA DA IGREJA CRISTÃ, especialmente da Igreja em missão. Hoje a Igreja é maior, há mais testemunhas e missionários, os campos missionários são maiores e mais pessoas sofrem perseguição e martírio. Em muitos países, outras ideologias e religiões são predominantes e resistem a nossos esforços missionários. Na obediência ao chamado missionário precisamos estar prontos a enfrentar essas dificuldades. Também precisamos dar apoio àqueles que vivem em contextos de perseguição. Porém, nem tudo pode ser considerado perseguição. Alex Buchan e Paul Estabrooks, da missão Portas Abertas, citam o Irmão André: "Se um cristão mata um muçulmano, e em vingança um muçulmano mata um cristão, isso não é perseguição". Alguns cristãos construíram uma igreja perto de um templo budista no Sri Lanka e foram apedrejados por isso. A igreja foi demolida não por perseguição, mas por falta de sabedoria. Perseguição é a oposição por ser um seguidor de Cristo e não por causa de comportamento belicoso e atos de provocação. Algumas publicações ocidentais também podem incitar a perseguição. Por exemplo, ao fazerem pesquisa na internet, líderes hinduístas leem o que as organizações missionárias e igrejas ocidentais publicam e interpretam literalmente as palavras "guerra", "batalha", "espiar a terra". Assim, entendem que o interesse dos missionários é dominar a terra e desrespeitar sua cultura e religião, o que aumenta ainda mais a perseguição aos cristãos locais.
Tokunboh Adeyemo, secretário-geral da Associação de Evangélicos na África, escreve que: "Em muitos lugares, a perseguição religiosa, a hostilidade política e a intolerância cultural estão aumentando. São colocadas barreiras no caminho da missão." Em vista das violações constantes da liberdade religiosa e com base no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Assembleia Geral das Nações Unidas redigiu a Declaração da Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença, proclamada pela resolução 36/55 de 25 de novembro de 1981: Considerando que a quebra e o desrespeito dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em particular do direito de liberdade de pensamento, consciência, religião ou qualquer crença, tenha trazido direta ou indiretamente, guerras e grande sofrimento à humanidade [...] Considerando que a religião ou crença, para qualquer um que professe L..] é um dos elementos fundamentais de sua cosmovisão e que a liberdade de religião [...] deve ser [...] respeitada e garantida [...] [Estamos] preocupados com as manifestações de intolerância e existência de discriminação em matéria de religião ou crença ainda em evidência em algumas partes do mundo.!
A Aliança Evangélica Mundial (WEA) recebeu status de consultora oficial da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1997. Esse privilégio permite que a WEA apresente um relatório anual e faça uma apresentação oral na reunião plenária da Comissão de Direitos Humanos das ONU, em Genebra, Suíça, a cada primavera. A Aliança Evangélica Mundial [...] estima que haja mais de 200 milhões de cristãos no mundo hoje que não tenham direitos humanos plenos, como definido pela Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, simplesmente por serem cristãos [...] a liberdade religiosa está sendo violada [...] e há a necessidade urgente de assegurar o direito de liberdade religiosa para todos [...] governos locais e nacionais devem respeitar o direito de cada um praticar, ensinar, propagar, mudar e observar sua religião [...] grandes violações da liberdade religiosa como: genocídio, assassinatos, escravidão e tortura fundamentados na fé ou crença religiosa [...] devem ser objeto de sanções [...] Deve ser rejeitado o uso indevido da psiquiatria e da ciência para restringir a liberdade religiosa. O sequestro de membros de uma fé religiosa para forçá-los a mudar sua fé ("desprogramação") [...] deve ser condenado com
vigor pelas autoridades do governo [...] cada fé religiosa deve receber proteção igual de sua liberdade religiosa e políticas do governo não devem estabelecer hierarquia de religiões [...] Do mesmo modo [...] as religiões devem agir com honestidade, responsabilidade e respeito para com os direitos humanos e dignidade humana.' A perseguição coexiste com o cristianismo desde o seu início. Como a igreja conseguiu permanecer firme em tempos de sofrimento e martírio? Tácito, historiador do primeiro século, afirma que "além de serem condenados à morte, eles eram feitos (por Nero) objetos de diversão, eram jogados às feras e mortos pelas mordidas de cachorros; alguns eram crucificados, outros eram incendiados para iluminarem a noite".
A Declaração de Foz do Iguaçu fez uma afirmação desafiadora: Sofrimento, perseguição e martírio são realidades presentes na vida de muitos cristãos. Reconhecemos que nossa obediência missionária envolve sofrimento e que a igreja tem experimentado esta realidade. Afirmamos nosso privilégio e responsabilidade de interceder por aqueles que estão debaixo de perseguições. Somos chamados a compartilhar suas dores, proporcionar todo alívio que pudermos aos seus sofrimentos [...] Num mundo cada vez mais injusto e violento [...] comprometemo-nos a preparar a nós mesmos e a outros para sofrer no serviço missionário e servir à igreja sofredora. Comprometemo-nos a articular uma teologia bíblica do martírio.
O missiólogo africano Seth Anyomi afirma: Sofrimento, perseguição e martírio, temas antes negligenciados na doutrina cristã, são agora parte integrante de nossa reflexão [...] O chamado para [...] reunir esforços para trazer liberdade e justiça aos cristãos oprimidos no mundo inteiro também é um chamado para os cristãos se tornarem verdadeiramente o corpo de Cristo onde quando um sofre, todos sofrem com ele. 5
Wilfred Wong é advogado evangélico e serve os cristãos por meio da Campanha do Jubileu e como lobista da Comissão de Direitos Humanos nas Nações Unidas. Ele menciona uma visita que fez a líderes que supervisionam 2 mil pastores e evangelistas nas Ilhas Maluku, Indonésia. Meses antes de sua visita, centenas de obreiros foram mortos, alguns deles queimados vivos, outros cortados em pedaços.
Um pastor perguntou: "Porque ninguém se importa conosco?" Wong ressalta que precisamos obter autorização para defendê-los. É importante verificar se a pessoa tem dependentes que precisam de assistência. É importante confirmar a informação, com a corroboração de uma fonte independente. Antes de procurar auxílio jurídico, é preciso verificar a gravidade da perseguição e a possibilidade de a ajuda jurídica piorar ainda mais a situação da vítima. Muita coisa já foi escrita sobre perseguição e martírio de cristãos em países comunistas. Em tais contextos há discriminação, intimidação e prisão com a finalidade de criar apóstatas e não mártires. O governo exige o registro das igrejas, mas a vida de uma igreja registrada ainda é difícil. Desde que o evangelho chegou ao Vietnã, os cristãos foram perseguidos. Sob o domínio dos vietcongs, os cristãos sofreram por seus princípios morais e sua aversão à violência. Explosões violentas destruíram casas de missionários, em Banmethuot. Os sobreviventes se esconderam num lixão e cinco missionários foram levados como reféns. A perseguição de cristãos tribais continuou, com sequestros em massa e massacres. Em 1972, houve um reavivamento por todo o Vietnã e em An Loc, 1.086 pessoas vieram a Cristo. Porém, em 1978, sessenta pastores foram presos. Apenas recentemente conquistou-se certa liberdade religiosa. Em 1991, no Vietnã, o pastor Ding foi preso por dois anos. Seu crime foi a propagação de religião "sob o disfarce de trabalho social". Padres e pastores foram atacados, intimidados, multados e enviados para campos de reeducação. Muitos morreram na prisão. Hoje há cerca de 5 milhões de católicos romanos e 1 milhão de protestantes no país. Todos os missionários foram expulsos do Camboja em 1965, mas depois do golpe de estado de Lon Nol, eles retornaram. Em 1972, foi realizado um evento evangelístico com Stanley Mooneyham, da Visão Mundial. Na primeira noite, quinhentas pessoas aceitaram a Cristo. A igreja cresceu de trezentas pessoas em 1970 para 10 mil em 1975. Porém, em 1975, o partido comunista Khmer Vermelho tomou o poder e mais de 2 milhões de cambojanos foram mortos. Apenas dois pastores sobreviveram ao período do Khmer Vermelho. O cristianismo agora é tolerado, mas ainda há poucos cristãos. No Camboja, 90% dos protestantes e 30% dos católicos foram mortos. Mam Barnabas, por exemplo, passou dez anos em três campos de trabalhos forçados. Seu
pai, seis irmãos e 29 membros da família foram mortos; somente sua mãe sobreviveu. Hoje Barnabas está reconstruindo sua igreja. O pastor chinês Allen Yuan foi levado para um campo de trabalho forçado perto da fronteira soviética. Quando Deng Xiaoping chegou ao poder, prisioneiros com mais de 60 anos de idade, que serviram por mais de vinte anos, foram libertos. Quando Yuan chegou em sua casa, sua família não o reconheceu. O pastor Wang Mingdao foi sentenciado à prisão perpétua em 1950. Ele foi finalmente libertado em 1980, cego e doente, mas firme na fé. As ações corajosas de cristãos podem influenciar a sociedade. O pastor Lazlo Tokes, na Rornênia, foi perseguido pela Polícia Secreta por vários anos, situação que piorou depois que ele falou na televisão húngara sobre a violação de direitos humanos e da liberdade religiosa, em 1989. Quando a polícia veio prendê-lo, um grupo composto por cristãos de várias igrejas e por não-cristãos resistiu à policia. Esse foi o começo da revolução romena. Nos anos de 1960-1961, em Cuba, vários padres católicos romanos e bispos foram presos. Apenas em Havana, 20 mil pessoas foram presas. Mais de uma centena de padres e 2 mil freiras foram expulsas. Espiões do governo começaram a frequentar reuniões da igreja. Em 1990, Cuba afrouxou as restrições. Em 1974, houve um golpe comunista na Etiópia. O Coronel Mengistu se tornou ditador e proclamou a formação da República do Povo, em estilo soviético. Em 1977, ocorriam até 150 assassinatos e execuções por dia. Os militares usaram dinamite para execuções em massa, para economizar munição. Mais de mil crianças foram massacradas e seus corpos deixados nas ruas. Líderes cristãos foram perseguidos até o final do regime, em 1991. Em Angola, depois de 1991, houve uma mudança na economia e na atitude do governo em relação às igrejas. O governo angolano tentou manter certo controle sobre as igrejas por meio do registro. Uma igreja registrada tinha o direito de receber visitantes estrangeiros e seu pastor tinha direito a obter passaporte e viajar para fora do país. As igrejas não-registradas não tinham direito algum, mas raramente sofriam perseguição direta. Evangelizar estudantes universitários, futuros líderes da nação, era um problema. Numa província, os universitários cristãos foram ameaçados de expulsão. No final do semestre, houve uma reunião pública e os cristãos foram obrigados a
declarar se escolhiam os estudos ou sua religião. Os estudantes menos corajosos já tinham deixado o grupo, mas cada um dos sete que permaneceram disse: "Nós queremos estudar, nós queremos servir nosso país, mas não podemos negar nosso Senhor". Então foram impedidos de continuar seus estudos, forçados a entrar para o exército e enviados para frentes de batalha. Continuaram a ser testemunhas fiéis. A perseguição raras vezes foi severa no pais, mas havia a pressão psicológica que influenciava o comportamento cristão. A maioria dos cristãos se tornou muito submissa. Alguns cristãos foram presos por roubo nos departamentos onde trabalhavam, e fingiram estar sendo perseguidos por causa de sua fé. Perseguição na China Devido ao tamanho de sua população e ao maravilhoso crescimento da igreja cristã em tempos de perseguição, a China merece consideração à parte. Numa visita ao país em 2000, fiquei impressionada ao ver na cidade de Guangzhou uma "igreja nãooficial" se reunindo abertamente numa rua movimentada, com 1.500 pessoas por culto. Também fiquei impressionada com o fervor cristão e crescimento do ministério de líderes e igrejas do Movimento Patriótico das Três Autonomias (autogovernada, autossustentada e auto-propagada). É interessante observar o diálogo entre dois cristãos, um pertencente à igreja oficial e outro pertencente à "igreja doméstica". Ambos os grupos sofrem, ambos crescem e ambos possuem muitos crentes verdadeiros. O primeiro disse: Somos visíveis, então as pessoas podem nos achar com facilidade, temos permissão de ter um local para reuniões, um pastor pode nos liderar e podemos ter algumas cópias da Bíblia. É claro que há certo controle do governo, mas pensamos que temos mais ganhos do que perdas [...) e estamos felizes em sermos patriotas."
E o segundo replicou: Ah, mas nós somos livres. Sofremos por causa de nossa desobediência civil quando as autoridades nos encontram, mas por outro lado somos livres para amar a Deus [...) a Palavra de Deus é muito preciosa para nós por ser tão difícil termos Bíblias. Os descrentes não determinam o que podemos ou não ensinar.'
Em 1958, a maioria das igrejas foi fechada. O crescimento de igrejas domésticas foi influenciado por igrejas chinesas autóctones: A Família de Jesus, organizada por Jing Tianying, o Pequeno Rebanho, fundada por Watchman Nee, e o ministério de Wang Mingdao. Em 1978, Deng Xiaoping declarou que era perigoso tentar eliminar a religião pela força e que permitia a visita de estrangeiros às igrejas. Porém, em províncias mais remotas, a perseguição continuou. A essência da nova política é que a crença religiosa é um assunto privado. O governo não propagaria o ateísmo nas igrejas e a igreja não disseminaria qualquer literatura religiosa na sociedade.
As políticas do governo chinês em relação à religião se tornaram mais liberais na década de 80, mas voltaram a ser mais rígidas depois da supressão do movimento democrático de 1989. O Gabinete de Assuntos Religiosos é responsável pela implementação da política religiosa. A Segurança Pública é responsável pela prisão dos envolvidos em atividades religiosas ilegais e monitora a influência estrangeira. Os Departamentos dos Assuntos Religiosos têm escritórios municipais e provinciais para exercer controle sobre as atividades religiosas. Exorcismo e orações por cura são proibidos. Nas igrejas oficiais, a pregação do evangelho, o batismo, a Santa Ceia e os estudos bíblicos são permitidos. Pastores das igrejas reconhecidas que têm a fé evangélica e que se concentram na pregação do evangelho atraem muitos crentes. Hoje as igrejas podem pedir de volta suas propriedades (que foram confiscadas pelo governo), por meio dos comitês locais dos Assuntos Religiosos. Muitos líderes presos foram libertos e dirigem igrejas oficiais. A igreja reconhecida dirige seminários, um programa de publicações, treinamento para líderes leigos, grupos de jovens e agências humanitárias. Crescem também as atividades religiosas conduzidas pelas igrejas domésticas. Pesquisas confiáveis concluem que havia entre 40 e 50 milhões de cristãos na China em 1998. Muitas pessoas participam dos dois tipos de igreja. Lareau Lindquist, da organização Barnabas International, descreve seu encontro com Samuel Lamb, o pastor da maior igreja doméstica na China. Mesmo tendo sido preso duas vezes, uma por dezesseis meses e outra por vinte anos, ele insiste: "Maior perseguição é seguida por maior crescimento [...] o sofrimento não é nada para nós [...] Deus vai nos fortalecer".
Perseguição no contexto de outras religiões mundiais Há uma reação crescente contra o cristianismo também em países onde outras religiões se fortaleceram ou foram revitalizadas. Em Israel, grupos ortodoxos judeus agridem ministros evangélicos, especialmente os que recebem judeus que se convertem à fé cristã. Membros de uma igreja em Jerusalém tiveram seus nomes pichados nos muros, foram comparados a membros da Ku Klux Klan, e acusados de serem apoiados pela Organização pela Libertação da Palestina (OLP). Jogaram pedras nas janelas de uma igreja em Tiberíades e colocaram fogo no edifício. Apesar disso, a igreja está crescendo. Muitos cristãos indianos foram deserdados por suas famílias e centenas foram mortos em tumultos. Em Tamil Nadu, um pastor indiano foi pego numa emboscada e decapitado por membros de uma seita hindu radical. Outros missionários indianos receberam cartas ameaçadoras. A irmã Rani Maria serviu os pobres na Índia com muito amor. Certa vez, quando ela foi visitar sua família, homens armados de um partido hindu fundamentalista pararam o ônibus, a arrancaram de lá e a esfaquearam mais de quarenta vezes. Metade dos cristãos na Índia é da casta dos intocáveis, portanto, não têm permissão para entrar nos templos hindus, apesar de serem considerados hindus. Pastores e missionários cristãos indianos foram mortos por servir essas pessoas. Desde agosto de 2008, a perseguição a igrejas e lideres cristãos tem crescido em várias províncias da Índia. Em Bhatakpur, no Nepal, duas vans policiais chegaram ao final do culto em uma igreja, prenderam quarenta pessoas e espancaram o pastor Bahadur Dewan. O chefe de polícia ameaçou os crentes: ''Vai acontecer o mesmo com vocês se não se curvarem a esse ídolo". O pastor permaneceu na prisão por vários anos. No Butão, país budista onde os monges têm cargos oficiais no governo e são sustentados pelo Estado, a conversão é ilegal. Em 1992, algumas famílias cristãs estavam celebrando o Natal, quando um policial veio e as fotografou. Três pessoas foram interrogadas, espancadas e forçadas a assinar um pedido de permissão para deixar o país. No Paquistão, Salamat Masih, de 14 anos, foi acusado de escrever na parede da mesquita -o garoto é analfabeto. Ele foi condenado à morte. Sua história ficou conhecida no Ocidente, a sentença foi revogada e ele conseguiu fugir do país.
Algumas cortes civis paquistanesas protegem os cristãos, mas essas cortes estão perdendo poder. Há incursões de gangues em vilas cristãs, que invadem casas, estupram mulheres e raptam meninas. Cerca de 90% dos cristãos estão desempregados ou têm os empregos mais desprezados pela sociedade. Na Argélia, duas freiras francesas que serviram o povo por 33 anos foram assassinadas. Sete monges trapistas foram assassinados em 1996. O monge superior deixou uma carta para ser lida após sua morte: Minha vida não tem maior valor do que qualquer outra. Nem menor valor [...] Já vivi o suficiente para saber que eu compartilho do mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo [...] Gostaria, quando for a hora [...] de pedir perdão a Deus e a todos os companheiros seres humanos, e ao mesmo tempo perdoar de todo o meu coração aquele que vai me matar. 8
O islã foi declarado a religião oficial do Egito em 1980. As leis da Sharia foram adotadas e a perseguição aos cristãos é crescente, especialmente contra os muçulmanos convertidos. Nesse país há milhares de conversões forçadas ao islã. Em 1996, uma turba de 10 mil jovens muçulmanos atacou lares cristãos em várias vilas. Contudo, vários líderes evangélicos relatam que hoje há mais oportunidades para evangelizar e mais liberdade do que havia alguns anos atrás. No Sudão, os habitantes do norte mataram meio milhão de habitantes do sul por meio de armas, bombas, fome e doenças. Líderes cristãos foram açoitados e esfregaram sal em suas feridas. Alguns foram esfaqueados. A maior parte das igrejas foi destruída. Em 1989, um novo governo perseguiu cristãos, matou pastores e queimou igrejas. Os conflitos e massacres continuam, mas são de caráter mais étnico do que unicamente religioso. O pastor Mehdi Dibaj, do Irã, ficou na prisão por dez anos. Foi libertado, mas desapareceu quando estava a caminho da festa de aniversário de sua filha, no dia 24 de junho de 1994. Seu corpo foi encontrado em um parque de Teerã, no dia 5 de julho. Enquanto estava na prisão ele escreveu para seu filho: "Sempre invejei os cristãos que ao longo da história da Igreja foram martirizados por causa de Cristo Jesus nosso Senhor. Que privilégio viver para nosso Senhor e também morrer por ele".
Desde o início, a fé cristã foi considerada uma ameaça para as religiões, as ideologias e os interesses políticos. A perseguição ainda é uma realidade muito presente em países de outras maiorias religiosas e precisamos preparar nossos missionários e igrejas para enfrentá-la. Perseguição às mulheres Os líderes homens são presos ou assassinados com maior frequência, o que não significa que as mulheres não sofram nesses contextos estressantes e perigosos. K'Sup Nri era a esposa de um líder vietnamita chamado Dieu, que foi levado para um campo de reeducação. Ela trabalhou arduamente no campo para sustentar seus filhos pequenos, com saudades do marido, mas sem ter notícias dele e sem poder visitá-lo. Foi pressionada a desistir da sua fé. Orava constantemente, mas tinha a impressão de que Deus não respondia. Um dia, as autoridades a informaram que Dieu tinha morrido. Ela ficou desconsolada. Um jovem oficial comunista ouvia seus lamentos e mostrava preocupação por ela. Ela acabou se casando com ele. Alguns meses depois recebeu a notícia de que Dieu ainda estava vivo. Desesperada, ela cometeu suicídio. A chinesa Alice Yuan passou por muitas dificuldades para criar seus filhos enquanto seu marido estava na prisão, por vinte e dois anos. Eles tinham ido a Beijing para visitar a mãe de seu marido e foram forçados a ficar. Ele começou a pregar nas ruas, formou uma igreja, e então foi preso. Ela sofreu com a solidão e a discriminação, mas recebia doações de outros cristãos para alimentar seus filhos, e conseguiu um emprego. Colocando sua confiança no Senhor, ela recebeu graça para enfrentar suas lutas. A iraniana Takoosh é viúva de Haik Hovsepian. Ele era líder de uma comunidade que estava crescendo. Certa ocasião, sofreram um acidente de carro por causa de um motorista negligente. Eles ficaram feridos e seu filho bebê morreu. Takoosh levou bastante tempo para superar essa perda. Posteriormente nasceram mais três meninos e uma menina. Haik se tornou líder do Conselho Iraniano de Pastores e se recusou a parar de pregar para muçulmanos. Quando seu filho mais velho tinha 23 anos, Haik desapareceu; seu corpo mutilado foi encontrado um tempo depois. Takoosh ficou arrasada, mas Deus falou a seu coração e ela conseguiu perdoar os assassinos do marido. Ela recebeu cuidado amoroso da igreja, e tornou-se
uma fonte de conforto para viúvas de outros mártires. Mary, uma moça egípcia, foi raptada para se tornar muçulmana. Derramaram ácido sulfúrico em seus pulsos para remover a cruz tatuada. Seu pai foi advertido de que se interferisse na vida da Mary e ela se ferisse, ele seria responsabilizado. Em 2007, houve um atentado violento em Malatya, Turquia, contra um alemão e dois turcos que trabalhavam numa pequena livraria cristã. Diante da televisão e dos jornais do país, as viúvas publicamente declararam perdoar aos algozes que torturaram e mataram seus maridos. Desafio Infelizmente, nos países onde há liberdade religiosa, a igreja não se envolve no sofrimento dos que são perseguidos por causa de sua fé. Precisamos entender o que isso significa para os que estão sofrendo. Durante um interrogatório, a resposta de ]osef Ton a um oficial de segurança romeno que ameaçou matá-lo foi: Sua maior arma é me matar. A minha arma maior é morrer [...] você sabe que meus sermões estão em todo o país agora, gravados em fitas. Se você me matar [...] quem quer que ouça meus sermões vai dizer: "É melhor ouvir o que ele fala. Esse homem selou suas palavras com seu sangue. Elas vão soar dez vezes mais alto do que antes."
Ton aprendeu que, quando agia com cautela e tentava salvar sua vida, ele na realidade a estava perdendo; quando decidiu perder sua vida, ele a ganhou. A polícia feriu o pastor romeno Vasile Talos durante uma tentativa de assassinato, mas depois que Ton falou no rádio que a pregação dele seria mais poderosa por causa das feridas da perseguição, naquela mesma noite, Talos pregou para uma igreja lotada. O pastor Baruch Maoz, de Jerusalém, sofreu perseguição por muitos anos e crê que mostrar fraqueza e medo encoraja a intimidação por parte da oposição. Os perseguidos são membros do mesmo corpo de Cristo e a dor deles deve ser a nossa dor. Aprendemos com Paulo a não ficar intimidados com sofrimento e perseguição (2Co 4.7-12; 11.23-30). Ele conhecia e usava seus direitos como cidadão romano para escapar de ser açoitado e morto (At 21.35-40; 22.23-29; 25.7-12) e ensinava que o sofrimento era parte da vida de uma testemunha cristã (2Tm 2.1-3; 3.10-12). Não devemos nos comprometer ou permanecer em silêncio para escapar da
perseguição; devemos ser sábios e aprender como melhor nos relacionar com nosso contexto a fim de não sofrermos desnecessariamente. Revendo o conceito de martírio A igreja primitiva considerava o martírio um chamado especial em momentos de perseguição e expansão. Como responder ao sofrimento dos mártires cristãos hoje? Como preparar os missionários enviados para contextos onde podem ser chamados a sofrer por causa de seu testemunho? Joseph D'Souza acredita que "no fim das contas é o martírio que revela ao mundo a própria essência da mensagem cristã?‖ A perseguição nem sempre purifica a Igreja; algumas vezes leva a heresias e apostasia. Entretanto, sempre há exemplos de pessoas que enfrentaram o martírio com coragem e fidelidade. Precisamos enxergar o sofrimento como Deus o vê e desenvolver um caráter semelhante a Cristo, anunciando o evangelho até os confins da terra. Em 202 depois de Cristo, Perpétua e Felicidade foram presas em Cartago e lançadas às feras. Perpétua estava amamentando e Felicidade estava grávida. Porém, ambas entraram na arena com coragem e alegria. Os mártires de Lyon, no ano 177 depois de Cristo, também sofreram perseguição feroz. A alegria do martírio veio da percepção de que teriam a honra de sofrer pelo Senhor. Havia uma intimidade extraordinária entre Deus e o sofredor, fato que deu novas forças aos mártires. O bispo Inácio, já condenado e a caminho de Roma, escreveu à igreja de Éfeso que seu desejo era "obter graça para receber meu destino sem interferência". Ele estava receoso de que, em seu amor, eles o quisessem libertar: Pois se vocês continuarem em silêncio e me deixarem sozinho, eu serei a palavra de Deus, mas se vocês amam minha carne, então eu serei novamente apenas uma voz. Concedam [...] que eu seja derramado como oferta a Deus [...] Deixem que eu sirva de alimento para as feras, eu sou trigo de Deus, e estou sendo moído pelos dentes dos animais selvagens, que eu seja um pão puro.
No tempo da Reforma, Lutero sabia que poderia morrer por pregar as Noventa e Cinco Teses nas portas da Catedral de Wittenberg. Ele estava disposto a morrer pelo evangelho e considerava que a igreja verdadeira era a igreja dos mártires.
A perseguição contra os anabatistas começou em 1523; o motivo principal era a liberdade para escolher sua própria religião. Milhares foram martirizados. Os anabatistas desenvolveram sua própria teologia do sofrimento e suas palavras-chave eram: obediência e discipulado (viver como Jesus viveu). O sofrimento era considerado uma prova de veracidade e o martírio um sermão que tocava os corações. A recompensa pela perseguição é a comunhão mais íntima com Deus -e receber de Deus responsabilidades ainda maiores (Mt 25.14-30). Ser perseguido por amor a Cristo resulta em nossa qualificação para sermos glorificados com ele. O sofrimento produz semelhança com Cristo, qualidade essencial para reinar com ele. Jesus chama as pessoas para serem totalmente leais a ele e as envia ao mundo como mensageiras. Deus revelou, em Jesus, que o sofrimento e o auto-sacrifício são seus métodos para lidar com os problemas do mal e do pecado. Somos chamados a enfrentar os problemas do mundo com o mesmo amor. A glória de Deus brilha por meio do autosacrifício de cada mártir. Muitos livros com testemunhos de cristãos que estão sofrendo hoje tendem a glorificar o sofrimento, como se ele produzisse uma categoria superior de cristãos. Temos de estar prontos para sofrer na realização de nossa tarefa, se esta for a vontade de Deus, conscientes de que este é um desafio real para a igreja em missão, e que Deus vai dar a graça e a força necessárias. Porém, devemos evitar a veneração daqueles que sofrem por causa de seu testemunho. Em Angola, durante a guerra, sob o regime marxista, ouviam-se histórias inverídicas, criadas para abastecer um mercado ávido por relatos de heróis que sofreram por Cristo. O tema da perseguição é complexo. Por um lado, pode produzir uma nova unidade e solidariedade e ajudar pessoas a amadurecerem na fé. Por outro, alguns líderes que foram corajosos ao enfrentar perseguições podem ser tentados a pensar que fazem parte de uma elite espiritual e achar que têm uma autoridade especial. Alguns permanecem humildes e realmente recebem sabedoria e graça, mas quando começam a sentir que são especiais, tendem a formar um grupo de seguidores e rejeitar aqueles que não reconhecem sua posição especial. É uma tentação perigosa.
capítulo oito
O PREÇO
A VIDA MISSIONÁRIA É UM PRIVILÉGIO. Porém, é uma carreira que tem um alto custo. Há muitos desafios, o estresse está sempre presente e com frequência envolve sofrimento. Por isso, os missionários precisam de compreensão e apoio amoroso. O cuidado do obreiro é especialmente necessário em locais com muitas necessidades espirituais, sociais e de ação humanitária de emergência. É importante apoiar os que trabalham com grupos que foram negligenciados pelos esforços missionários da Igreja. A maioria dos missionários brasileiros recebe pouco cuidado pastoral, apesar de muitos líderes de agências e de igrejas atualmente estarem mais conscientes dessa necessidade. As igrejas esperam que seus missionários sejam pessoas especialmente capacitadas por Deus, que apresentem grandes histórias de sucesso. Porém, há missionários deprimidos por causa de experiências dolorosas no campo, por causa de problemas em sua equipe ou por serem confrontados com situações de guerra e morte. Os missionários e suas famílias sofrem com atendimento médico precário, salário insuficiente, educação escolar inadequada para os filhos e falta de recursos na aposentadoria. O sofrimento é uma parte desafiadora da vida missionária, e os missionários enviados para contextos difíceis precisam de cuidado e apoio constantes. Felicity Bentley-Taylor nasceu na China, era filha de missionários, e enfrentou situações de perigo e sofrimento desde a infância. Quando tinha 4 anos, ela e seus pais vivenciaram o conflito da guerra entre China e Japão. Em 1949, quando foi
criada a República Popular da China, ela foi enviada para a Inglaterra para estudar. Anos mais tarde, ela serviu como pioneira na Sociedade Missionária Sul-Americana (SAMS) e na Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE), no Chile e na Bolívia. Ela afirma: "Ser uma pioneira significa que [...] nenhum colega da SAMS trabalhou comigo entre os estudantes [...] e apenas aos poucos começou a participação de chilenos [...], com quem eu podia dividir o trabalho. Batalhei com a solidão por anos".' A Anne Dennet é uma médica que serviu por doze anos como missionária na Somália. Agora ela exerce um ministério de aconselhamento. Quando ela foi para o campo, esperava causar um impacto positivo nos relacionamentos com seus colegas de trabalho e com os nacionais. Porém, logo percebeu que o relacionamento com seus colegas era prejudicado por pensamentos críticos e que as demandas irracionais dos nacionais a irritavam. O pressuposto de que a ida para o campo liberta os missionários de suas lutas com velhos padrões de comportamento é irreal. Em vez disso, por causa da tensão da vida missionária, essas batalhas pessoais até se intensificam. Os missionários enfrentam perigos de guerra e sequestro em muitas regiões do mundo. Por exemplo, Janet Brown, que serviu aos refugiados na guerra da Libéria, teve sua casa invadida, seus filhos foram ameaçados de morte e ela foi estuprada. Ela está aprendendo a lidar com isso, por meio da comunhão com o sofrimento de Cristo. Vivienne Stacey descreve o exemplo de Ada Lum, uma chinesa havaiana que serviu a CIEE. Ela se viu em meio aos protestos estudantis no Vietnã, na Coreia e nas Filipinas: Avisaram que ela deveria ficar em silêncio na frente de um vietcong. Certa ocasião, em 1965, o ônibus quebrou à noite [...] no território dos vietcongs. Carros que estavam passando [...] levaram os cinquenta passageiros até que só ficaram ali Ada e seu intérprete. Um carro [...] parou e elas tiveram que entregar todo o dinheiro que tinham em troca de uma carona até a cidade mais próxima. 2
Lum enfrentou perigos no Vietnã, em meados da década de 60. Ela fazia visitas regulares ao país, retornando anualmente para falar em conferências para a liderança. Nesse contexto de sofrimento e insegurança, ela dizia: "Se essa é a última vez que eu vou [para lá], vou me preocupar com o quê?'"
Em Luanda, Angola, vi soldados armados por todos os lados, alguns deles bêbados. Em vez de flores, havia tanques de guerra nas praças públicas. Era uma cena deprimente. Durante as primeiras semanas, tinha medo de andar nas ruas. Fui para Huambo, onde, com duas colegas brasileiras, compartilhei dos parcos recursos alimentícios da família do pastor. Uma guerra traz lágrimas e muita dor, mas também oportunidades sem precedentes para apresentar o evangelho às pessoas que sofrem. Encarei extrema pobreza e sofrimento no período da guerra em Angola. Fiquei mais próxima dos que tinham perdido a maioria dos membros de suas famílias; mulheres que tinham sido cruelmente estupradas, e que se machucaram por dentro e por fora. Muitos entenderam o amor de Deus. A guerra é de fato um grande mal, mas a graça de Deus pode manifestar-se em qualquer contexto. Paula ü'Keefe viveu em uma zona de guerra durante um ano e testemunhou da violência. Muitas vezes ficava sem eletricidade, gás e água encanada, tinha de carregar baldes de água por longas distâncias, os telefones estavam cortados e ela não tinha contato com o mundo exterior. Um dia ela sentiu vontade de se jogar da varanda de um prédio. Outra missionária foi ao encontro dela na varanda e perguntou como ela estava. Levou-a para sua casa para descansar por alguns dias, ouviu seu desabafo e orou por ela. O Senhor providenciou para Paula um lugar seguro e de descanso. Ela escreveu para seu pastor, explicando o que tinha acontecido e recebeu uma resposta afirmativa. Fica muito evidente que, a fim de sobreviver numa zona de guerra, um missionário precisa de apoio pastoral adequado e de pelo menos uma pessoa que seja seu confidente, com quem possa compartilhar suas lutas. Conflitos na perspectiva de trabalho e autoridade As agências missionárias têm sua maneira de liderar e às vezes as igrejas nacionais têm costumes diferentes relacionados à liderança e serviço. Os missionários geralmente estão prontos a dar o melhor de si, mas muitas vezes sentem falta de direção e de liberdade para servir. Muitos missionários sofrem pressão por parte de suas agências e precisam lidar com relacionamentos difíceis com seus colegas, liderança fraca, estruturas de autoridade patriarcal, desorganização e treinamento inadequado. Um missionário havia sonhado em ir para o campo quando tinha apenas 8 anos de idade. Ele fez todo o estudo recomendado, e mais um tempo de
serviço com a InterVarsity (ABU dos Estados Unidos). Quando finalmente chegou ao campo missionário, teve de lidar com um líder que criava conflitos constantemente. Ao final do seu primeiro período de serviço, já estava pronto para desistir. Os líderes de campo precisam aprender a oferecer aconselha mento e ajudar na solução de problemas. Poucos missionários querem ser supervisionados por nacionais, mas ter um amigo nacional como supervisor num país de acesso restrito pode ser melhor do que ter como supervisor um missionário com dificuldades para renovar o visto. Choque cultural reverso Muitas pessoas sabem que ir para outros lugares pode causar sofrimento ao missionário, mas não fazem ideia de como o processo de voltar para casa também pode ser doloroso. A coreana Chun Chae Ok foi uma missionária pioneira no Paquistão e professora na Ehwa Women's University, na Coreia. Quando ela voltou para casa, depois de dezessete anos servindo no Paquistão, se sentiu uma estranha entre seus familiares e amigos, e passou por sofrimento extremo; algumas vezes pensou que não fosse aguentar. Para muitos missionários, a volta para casa é um desafio maior do que foi toda a experiência missionária. Uma missionária que estava em processo de reentrada em seu país estava sob grande estresse. Desesperada, procurou o pastor depois do culto dominical e disse: "Estou pendurada na ponta de uma corda! Tenho a impressão de que estou soltandoa! Preciso de sua ajuda!" Ele respondeu: "Estou muito ocupado. Se for mesmo necessário, ligue para a minha secretária e marque um horário para quarta-feira da semana que vem". Depois disso, ela decidiu tomar um vidro de remédio e acabar com a vida. Os missionários que retornam para seus locais de origem com frequência se sentem confusos, exaustos, inseguros, perdidos e solitários. O estresse da volta é um choque cultural reverso, aumentado pelas reações de luto. Eles perdem a amizade com os nacionais e não são mais respeitados por seu trabalho. Se os missionários estão experimentando choque cultural reverso, podemos assegurá-los de que essa é uma reação comum. No mundo contemporâneo, milhões de pessoas sofrem por causa da pobreza, da perseguição, da violência, das guerras e das doenças. É trágico perceber que nossa
cultura ocidentalizada não prepara as pessoas para enfrentar dificuldades e sofrimento, mas sim para defender seus direitos e seu bem-estar, e para servir apenas se os custos não forem muito altos e se as recompensas estiverem de acordo com suas expectativas. Temos a tendência de esquecer que o preço para o alcance dos povos não-alcançados envolve sofrimento, embora as recompensas em longo prazo sejam ainda maiores: a glória de Deus, nosso enriquecimento pessoal e bênçãos para aqueles a quem servimos. Hoje não há mais distinção entre países que enviam e países que recebem missionários, e sim um chamado para que toda a igreja alcance o mundo com o evangelho, ultrapassando barreiras e trabalhando em parceria e aprendizado mútuo entre igrejas ricas e pobres, experientes e sem experiência.
Parte 3
Cuidado e apoio Com o objetivo de ouvir os próprios missionários que servem em contexto de sofrimento, foi realizada uma pesquisa (ver Apêndice) no período de abril a junho de 2003, com missionários que servem no Timor Leste, em Angola, em Moçambique, no Brasil, e em outros países mais fechados. Esta parte apresenta possíveis respostas para as questões levantadas pelos missionários. São sugestões práticas de como as igrejas locais e agências missionárias podem aperfeiçoar o cuidado com seus enviados, a partir do exemplo e do ensino de Jesus e Paulo.
capítulo nove
VALORES BÍBLICOS
OS VALORES BÍBLICOS SÃO O OPOSTO do que o mundo ensina. São considerados pela sociedade como falhas dos "fracassados". Entretanto, são esses valores que nos ajudam a perseverar em situações difíceis. Infelizmente, muitas igrejas têm atitudes e valores semelhantes aos do mundo, e os aspectos do caráter cristão não são ensinados nem desenvolvidos. Precisamos recuperar essa dimensão essencial do discipulado, pois o treinamento missionário não começa nas escolas de missão, mas na igreja local. Sofrimento pelo evangelho e no nome de Jesus É preciso ter cuidado para não buscar ou glorificar o sofrimento, como se ele fosse prova de uma santidade superior -ideia que algumas vezes surge em contextos de sofrimento. Aqueles que foram presos, que quase morreram ou que foram torturados são considerados santos. Os que sobreviveram e continuam a servir fielmente são muitas vezes vistos como cristãos de segunda classe. A Bíblia deixa bem claro que o sofrimento como fruto da falta de sabedoria não glorifica a Deus, pois é sofrimento merecido (1Pe 2.18-20; 4.14-16). Algumas pessoas que vivem em contexto de sofrimento são ousadas de uma maneira tola e provocam problemas ao desrespeitar a fé ou a cultura majoritária. Outras sofrem por se envolver em negócios no mercado negro, mas se apresentam como pessoas que sofrem por causa de sua fé. Os missionários precisam ser honestos e sábios, respeitar o governo local, ouvir os conselhos dos cristãos locais e aprender a dar testemunho de maneira
contextualizada. Também é muito importante não criar barreiras por causa de comportamentos insensíveis. Devemos aprender com outros grupos, como as ONGs, os líderes católicos romanos que servem ao povo e as boas iniciativas do governo. Sofrimento em nome de Jesus é o sofrimento que enfrentamos quando fizemos o melhor que podíamos, servindo a ele de forma fiel e por isso fomos desprezados, ameaçados, torturados, presos ou mortos. Esse sofrimento traz fé, contentamento, e uma profunda comunhão com Cristo. Algumas vezes, a ajuda além da oração será muito limitada. Em muitos casos, não será possível escrever abertamente. Pode ser arriscado visitá-los, e os que forem precisam estar preparados, a fim de não lhes causarem problemas. Encorajamento espiritual e amizade, sensibilidade às necessidades dos missionários, sabedoria para saber quando e como eles devem deixar o campo de serviço por um tempo, reações apropriadas em situações de prisão ou sequestro são algumas questões que precisam ser seriamente consideradas. As agências missionárias podem aprender com organizações que lutam pela justiça a serviço de cristãos perseguidos. Pode ser difícil enfrentar uma situação de sequestro e decidir como ajudar as vítimas. Pagar o resgate encorajará os criminosos a seguir nessas atividades. É preciso buscar auxílio de intermediários capazes, que podem manter contato com os sequestradores e fazer o que for justo para libertar as pessoas. Sofrimento em nome de Jesus pode levar os missionários a sofrer violência física, traumas ou precisar ser evacuados. Algumas agências brasileiras têm planos para intervir nesses casos, mas muitos missionários ainda enfrentam essas situações sem qualquer orientação. Alguns alegarão que o missionário que é "realmente chamado" nunca deixará seu posto. Entretanto, isso dependerá da situação no campo. Devemos ouvir os conselhos dos cristãos locais e de outros missionários presentes na mesma região; não podemos forçar as pessoas a permanecer no campo se estiverem desgastadas, se sentindo incapazes de lidar com o estresse gerado pela situação de risco, ou se a presença de estrangeiros estiver causando perigo para os cristãos nacionais. Há situações em que alguns precisam voltar, ser cuidados e retornar ao campo quando for apropriado. Aqueles que sofrem por servir a Cristo e por proclamar seu reino podem ter a certeza de que nunca estarão sozinhos. Jesus prometeu estar sempre com eles, em
todos os lugares, e vai manter sua promessa (Mt 28.18-20; Hb 13.5-6). Nem sempre sentiremos sua presença, porque o sofrimento nos fere e algumas vezes quase nos derruba, mas ele estará sempre perto e não permitirá que os sofrimentos sejam maiores do que podemos suportar (1Pe 5.10; 2Co 4.7-11). Esse é um grande ânimo para os missionários, especialmente em tempos de perigo, e também para aqueles que os apoiam e cuidam deles. Autonegação, humildade e serviço Tornou-se comum avaliar o sucesso de um líder cristão por sua agenda lotada e pelo número de seus seguidores. No entanto, se avaliarmos a vida de Jesus com base nesses critérios, ele não impressionará ninguém. Ele começou seu ministério muito tarde, não agiu apressadamente, foi abandonado por muitas pessoas, sempre foi pobre, se afastou das multidões que o aplaudiam e morreu desprezado e ridicularizado pela maioria. Fica claro que, para sermos seguidores de Jesus, capazes de lidar com contextos de sofrimento, precisamos nos tornar peregrinos. Esse é um conceito estranho para as normas culturais atuais, mas muito necessário se queremos ser bênção para nosso mundo. Os programas de missão devem oferecer um treinamento pré-campo que estimule o desenvolvimento da maturidade cristã e da humildade, por meio de exemplos de pessoas piedosas, do ensino bíblico e da vida em comunidade. Esse é um processo contínuo que precisa ser desenvolvido nas vidas e nos relacionamentos dos missionários. No entanto, nenhum treinamento produzirá efeito se as pessoas treinadas não estiverem dispostas a ser moldadas. Um treinamento com qualidade acadêmica ou um treinamento prático são úteis, mas nenhum deles é suficiente para manter o missionário no campo, especialmente em contextos de grande sofrimento. A autonegação e a humildade serão muito importantes no relacionamento com a agência, com colegas e com líderes locais, pois os conflitos surgirão. O processo de lidar com eles deve resultar em piedade crescente. O caminho da cruz é a maneira como Deus lida com o mal e com o sofrimento -amor sacrificial, obediência e serviço até a morte. Não é o caminho da defesa de nossos direitos, como aprendemos na sociedade secular, mas o caminho da autonegação. Como resultado, pode-se receber ódio em troca de amor, como
aconteceu com Jesus. Alguns missionários passaram pela experiência de servir com humildade e ser mal-compreendidos ou tratados com amargura e ódio pelas pessoas locais, ou, o que foi mais doloroso, por seus colegas missionários, por seus líderes, ou por aqueles que os enviaram. Precisamos manter nossos olhos em Jesus e servi-lo, pois ele sabe o que estamos fazendo e trará frutos no seu tempo. Justiça e paz Não estamos buscando justiça e paz a qualquer custo. Estamos buscando o governo justo de Deus para nós mesmos e para a sociedade, promovendo misericórdia e paz enquanto estas não neguem a justiça. Isso significa que os missionários que servem em contextos de sofrimento precisam desenvolver sensibilidade aos apelos das pessoas, ter corações compassivos e mostrar sabedoria ao atender as necessidades apresentadas. Precisam estar comprometidos com a justiça bíblica, que busca restaurar a dignidade e a esperança do pobre e do marginalizado. As igrejas e agências precisam de graça e sabedoria para apoiar os missionários em contextos difíceis, se colocando ao lado deles, orando por eles e mantendo contato. Buscar a justiça significará confrontar as políticas e as práticas dos ricos e poderosos, feitas com a intenção de manter o pobre submisso e dependente. Os missionários e obreiros cristãos de ONGs precisam buscar maneiras de apoiar aqueles que estão envolvidos nessa batalha. Os missionários precisam saber estabelecer limites em sua identificação com o estilo de vida dos pobres de forma que estejam acessíveis sem prejudicar sua própria saúde. Para que desenvolvam relacionamentos saudáveis, eles precisam manter o equilíbrio entre o cuidado das pessoas locais e o cuidado de sua própria vida familiar. Perseverança A maior parte dos povos não-alcançados vive em áreas de risco: extrema pobreza, exposição a doenças, perseguição e situações de violência. Os missionários precisam estar preparados para perseverar na adversidade. A falta de segurança gera muito estresse. Jesus falou que seus discípulos sofreriam tribulações e que o evangelho seria pregado a todas as nações (Mt 24.13-14). Perseverar, confiando em Deus, é a atitude cristã frente ao sofrimento. As igrejas, agências e institutos de treinamento precisam desenvolver estudos bíblicos sobre esse tema, a fim de que os candidatos compre-
endam que perseverança é essencial, e que todos os cristãos passam por momentos de provação e dor. A reação humana lógica nessas situações é desistir; porém, nosso chamado cristão nos diz que devemos confiar em Deus e seguir em frente, sabendo que ele não nos deixa sozinhos e que trará bom fruto em meio às experiências difíceis. As igrejas e institutos de treinamento também podem oferecer oportunidades para os missionários servirem em ministérios desafiadores na terra natal, ou em culturas menos distantes, em situações nas quais a perseverança do missionário será testada e fortalecida. Pode ser útil organizar acampamentos de sobrevivência, onde os alunos têm de enfrentar lutas, ser criativos e superar seus medos. No entanto, é preciso perceber os limites de uma pessoa, e trazê-la de volta para um tempo de renovação e cuidado pastoral quando não estiver mais conseguindo enfrentar a situação no campo. Nesses casos, é muito importante que a igreja-mãe, a agência e os líderes de campo estejam em contato regular e sejam capazes de decidir juntos o que será mais apropriado. Márcia Tostes é diretora de cuidado pastoral na Missão Antioquia. Ela relata o caso de uma missionária brasileira que passou oito meses isolada numa cidade africana. Essa missionária cuidou das vítimas da violência e a igreja se tornou um centro de ajuda e esperança. Tostes questiona se outros missionários estão preparados para as situações adversas que poderão ter de enfrentar e afirma que precisamos treinar nossos obreiros para perseverar em meio ao sofrimento, como testemunhas fiéis de Cristo.' A cultura brasileira aprecia imensamente a beleza e o desfrutar a vida -elementos raros em lugares onde a opressão e a guerra são devastadoras. Semelhança com Cristo O sofrimento cristão não é sem sentido, pois Deus está no controle da história do mundo, de sua Igreja e de cada um de seus filhos. Ele permite o sofrimento, mas está bem próximo de nós nessas horas de dor e de agonia. Fomos criados à imagem de Deus, mas essa imagem foi distorcida pelo pecado e pela rebelião do homem. Por isso, vivemos num mundo caído e não estamos livres do sofrimento. Entretanto, sabemos que Deus, em sua misericórdia, usa até mesmo as experiências dolorosas para nosso crescimento e nos dará coragem para suportá-
las. Deus continua a nos moldar para refletirmos a sua glória e vivermos em sua presença sem sentirmos medo. Deus permite certas formas de sofrimento e perseguição para nos ajudar a crescer, para nos purificar e para nos preparar para uma glória maior em seu reino eterno. Algumas vezes o sofrimento parece não fazer sentido, mas Deus continua no controle e não permitirá que os poderes do mal vençam. Ser chamado para servir ao Senhor é um grande privilégio e uma grande responsabilidade. Nenhum missionário é suficientemente forte, equilibrado, ou sábio para enfrentar e resolver todas as questões que surgirem, por isso, precisamos continuar aprendendo e permitindo que o Senhor nos molde à sua imagem. A recompensa Como foi enfatizado na primeira parte, Paulo estava convencido de que seus sofrimentos presentes resultariam em um inimaginável peso de glória, e essa convicção lhe deu forças para suportar lutas e dores contínuas (2Co 4.7-12,16-18). Parece, entretanto, que em muitas igrejas ocidentais a ênfase mudou: não esperamos mais as grandes bênçãos e recompensas no futuro; queremos receber bênçãos imediatamente. Alguns até ironizam os cristãos que almejam e falam das glórias futuras preparadas para os filhos de Deus. Lendo a Bíblia e vendo a história da igreja cristã, vemos que períodos de conforto e respeitabilidade são exceções. Aqueles que servem em contextos de sofrimento precisam ter sempre em mente a certeza das bênçãos futuras preparadas para aqueles que creem em Cristo. Por isso, os cristãos na Angola marxista e devastada pela guerra podiam cantar com alegria e anseio pelas bênçãos do lar eterno. Talvez esse seja o segredo da alegria e do louvor contagiantes que encontramos nas igrejas africanas em meio à pobreza gritante. As igrejas e agências missionárias precisam recuperar essa perspectiva e compartilhar essa esperança com os missionários e parceiros no campo e com as pessoas a quem servem. Os cristãos não estão livres do sofrimento e precisam perseverar. Porém, isso não é motivo de desânimo e sim de esperança. Motivo para aprendermos a ter um espírito inabalável.
capítulo dez
COMO CUIDAR DOS QUE SERVEM
PARA ALCANÇAR OS POVOS MENOS ALCANÇADOS, um número cada vez maior de missionários estão sujeitos a sofrimento intenso e a situações de perigo. Têm de servir em florestas, desertos hostis ou metrópoles, entre povos que sofreram os horrores da guerra e entre pessoas orgulhosas de sua própria cultura e religião. Em alguns lugares, o simples desejo de ler a Bíblia causa intensa oposição e pode levar à morte. Alguns missionários precisam aprender outras línguas, mudar o estilo de vida e adotar hábitos que parecem estranhos. Podem ser questionados e mal compreendidos. Além disso, enfrentam a saudade da família, dos amigos e da igreja, e começam a se preocupar com os pais, que estão envelhecendo. Às vezes se sentem solitários e precisam de alguém que os compreenda, já que se tornaram duplamente estrangeiros: no campo missionário e ao voltar pra casa e descobrir o quanto mudaram. Assim, voltamos à pergunta que norteia este livro: como as igrejas, as agências missionárias e os programas de treinamento missionário podem preparar melhor as pessoas para atuarem nesses contextos de sofrimento e ministrarem aos que ali vivem? Quais são as necessidades mais prementes em termos de treinamento précampo, de treinamento e cuidado contínuos e de cuidado com aqueles que retornam à terra natal, temporariamente ou de modo definitivo? Discutiremos algumas ênfases que podem nos ajudar a responder a essas perguntas. Apoio integral Uma das necessidades apontadas pelos missionários foi a necessidade de apoio integral, que inclui cuidado pastoral, apoio para as necessidades do ministério, apoio
financeiro, comunicação e visitas regulares. Um quarto dos missionários mencionou que a falta desse cuidado seria a principal razão para fazê-los desistir e retornar do campo. O psicólogo Kelly O'Donnell define o cuidado integral do missionário como: Um investimento contínuo [...] pelas agências missionárias, igrejas [...] para [...] o desenvolvimento do pessoal envolvido em missões. Focaliza-se em cada um que está envolvido em missões [...]e fazassim durante todo o curso do ciclo vital do missionário [...] O cuidado do missionário é [...] a responsabilidade de cada um envolvido em missões -a igreja que envia, a agência missionária [...] os especialistas em cuidado missionário [...] relações mútuas que os missionários formam com aqueles na cultura hospedeira [...] o objetivo é desenvolver bom caráter, força interior e habilidades para [...] permanecerem efetivos no trabalho.'
O cuidado pode se expressar num simples oferecimento para a pessoa tirar alguns dias de férias; numa visita, num telefonema, numa carta de encorajamento, ou num plano de saúde para o missionário. Essa pesquisa deixou claro o quanto os missionários estão preocupados com o sofrimento das pessoas a quem servem e o quanto desejam servir bem -mas se sentem inadequados para fazê-lo. Um apoio mais integral, que os ajude a desenvolver projetas e forneça os recursos necessários, seria de grande ajuda. Em relação ao apoio financeiro, é bom que os missionários tenham um estilo de vida simples e mais identificado com o povo, servindo com amor e respeito e considerando o povo local como parceiro. Essa identificação é mais valiosa do que o paternalismo oferecido por missionários que aparentam ser ricos, por causa de seu estilo de vida e porque conseguem recursos com facilidade. A solução não é parar de investir, e sim fazê-lo com sabedoria, respeito e humildade, compreendendo que, aos olhos de Deus, somos chamados a praticar justiça e misericórdia em resposta à graça que recebemos de nosso Senhor. Ele confiou a nós seus recursos materiais e financeiros não como proprietários, mas como mordomos. Cuidado pastoral e psicológico Os principais fatores na prevenção de retorno precoce do missionário do campo são: convicção de chamado, apoio familiar, relacionamentos saudáveis e cuidado pastoral.
Devemos priorizar aqueles que trabalham entre os povos menos evangelizados e oferecer apoio aos traumatizados pela guerra e pelos desastres naturais. O cuidado pastoral os ajudará a servir com amor, fidelidade, coragem e perseverança. Embora nos preocupemos com os missionários, que geralmente são os estrangeiros mais vulneráveis servindo em contextos de sofrimento, existem outras pessoas que oferecem seus serviços e também precisam receber cuidados. O livro Sharing the Front Une and the Back Hills foi escrito em resposta ao número crescente de "ataques terríveis contra representantes das Nações Unidas, agências de ajuda humanitária, a mídia, organizações não-governamentais [...] que estavam em missão de aliviar [...] o sofrimento humano por todo o mundo'? O objetivo do livro foi avaliar os riscos, o sofrimento e a necessidade de cuidado especial dessas pessoas que têm se dedicado a ajudar outras, muitas vezes à custa de sacrifício pessoal, e buscar formas de oferecer proteção e um apoio mais abrangente. As organizações devem fazer o que for possível para mitigar a vulnerabilidade crescente que enfrentam. Antes da missão, é preciso oferecer treinamento para lidar com os riscos que poderão surgir. "No campo eles precisam aprender a minimizar todos os riscos e a evitar aqueles que podem ser evitados.":' É importante fornecer informação sobre reações de estresse e sobre a assistência disponível. Uma comunicação franca é fundamental; as pessoas precisam compreender que não há nada errado em procurar ajuda psicológica. Depois da missão, a maior dor é que "amigos, colegas e mesmo familiares [...] têm pouco tempo ou interesse em ouvir e conversar sobre suas experiências [...]o apoio social é um dos fatores mais importantes para se lidar com o estresse traumático". Se receberem apoio e cuidado pastoral adequado, os missionários podem aprender a lidar com seus problemas e dores. Christopher Shaw vive na Argentina. Ele oferece cuidado pastoral a missionários latino-americanos em vários campos. Shaw afirma que os pastores latino-americanos consideram que os missionários são maduros e não precisam de cuidado pastoral, e que os missionários acreditam que não devem passar por dificuldades ou ter feridas emocionais. Quando retornam do campo, sabem que a expectativa dos seus mantenedores é que eles apresentem relatórios positivos. As pessoas não esperam ouvir que os missionários estão sofrendo. Pessoas que trabalham com crianças em contextos traumáticos também estão sob grande pressão. Elas geralmente têm uma grande carga de trabalho e lutam com
sentimentos de incapacidade e inadequação. O cuidado com crianças órfãs ou fisicamente mutiladas pode gerar muita raiva nos obreiros. Hesitação em expressar emoções tem efeitos devastadores em seu bem-estar e prejudicam o cuidado que esses obreiros oferecem. Eles precisam de um ambiente seguro onde possam expressar sua raiva, frustrações e medos. Missionários de todas as agências que participaram da pesquisa consideram o cuidado pastoral e psicológico uma necessidade prioritária. A necessidade de cuidado pastoral foi expressa por 50% dos missionários e a necessidade de apoio psicológico por 38%. Entre os entrevistados, 24% responderam que recebem cuidado pastoral e os líderes de igrejas e agências entrevistados concordam que essa é uma grande necessidade. A maior parte dos líderes entrevistados declarou que oferece cuidado pastoral a seus missionários e pouco mais da metade declarou oferecer apoio psicológico. Entretanto, grande parte dos líderes entrevistados são líderes mais experientes. Muitos ainda não consideram esse apoio uma prioridade. É necessário investir no crescimento espiritual e na estabilidade emocional dos missionários antes de enviá-los para contextos de sofrimento. Isso pode ser feito por meio de mentoria, de cuidado pastoral, de atividades em grupo acompanhadas por psicólogos, e do investimento pessoal em suas vidas e relacionamentos. Isso é importante porque muitos candidatos a missões vêm de lares desfeitos, tiveram envolvimento com drogas ou passaram por experiências emocionais negativas. O cuidado pastoral e psicológico dos obreiros exige um grande investimento inicial, mas pode significar que essas pessoas, que passaram por tragédias pessoais, serão mais sensíveis ao lidar com pessoas que sofrem. Alguns dos líderes entrevistados consideraram que a falta de apoio pastoral seria a razão principal para o retorno prematuro de missionários brasileiros. O retorno prematuro é uma tragédia para aqueles que vão com a expectativa de ser uma bênção, mas voltam desanimados. É também uma tragédia para as igrejas, que vão hesitar em investir em missões novamente. O aparente fracasso de alguns pode fechar as portas para futuros missionários. É preciso investir no acompanhamento dos missionários, no cuidado pastoral e no atendimento de suas necessidades. Isso significa gastar tempo escrevendo para eles, dando telefonemas, e ajudando-os a encontrar maneiras de solucionar seus
problemas. Cerca de um quarto dos missionários recebeu visitas de líderes da agência missionária ou de membros de sua igreja mãe. Foram visitas muito significativas quando esses líderes tiveram coração pastoral e gastaram tempo ouvindo os missionários e orando com eles. Alguns reclamaram que aqueles que os visitaram não tinham tempo disponível para eles, e a visita os deixou ainda mais frustrados. Mais da metade dos líderes entrevistados afirmaram que visitaram seus missionários no campo e 11% mencionaram oferecer apoio em tempos de crise e de emergência - algo muito importante no cuidado dos missionários, mas que infelizmente ainda não é uma prática comum nas agências e igrejas brasileiras. As visitas aos missionários representam um grande investimento. Precisamos trabalhar junto com membros de outras igrejas e agências para enviar pessoas que tenham coração pastoral, prepará-las para compreender os missionários e o contexto onde atuam, ajudá-las a organizar um programa que responda às necessidades dos missionários e pedir-lhes que, ao retornarem, compartilhem suas experiências e percepções com a igreja. Poucas agências e igrejas compreendem como é a vida em um contexto de guerra e violência. Por isso, é difícil para o missionário compartilhar suas próprias necessidades e as do povo que sofre; esses missionários precisam de muita oração, orientação e apoio pastoral específico, especialmente quando são forçados a deixar o campo de serviço e voltam para casa emocionalmente esgotados. Em vez de criticá-los ou julgá-los, devemos ficar ao lado deles, animando-os e expressando nosso cuidado. Certamente não é o melhor momento para fazerem palestras e visitas a igrejas, e sim para um tempo de descanso, cuidado espiritual, mental e físico. "Debriefing" Uma das formas como a igreja ou agência pode mostrar cuidado amoroso e compreensivo por seus missionários é por meio da prática do debriefing. Laura Mae Gardner, missionária do departamento de cuidado do missionário da Wydiffe Bible Translators, define o debriefing como "um ouvir com hora marcada, prestando atenção; é contar nossa história completa, com experiência e sentimentos, fatos e emoções; é o 'descarregar' de uma experiência".' O debriefing ainda é um conceito novo para as agências missionárias e igrejas brasileiras.
Porém, essa prática de agendar um horário para ouvir o que os missionários têm a dizer, contar como foi a experiência no campo, que problemas e desafios eles enfrentaram e relatar os sentimentos atrelados a esses eventos, pode fazer uma grande diferença em suas vidas. Significa que alguém os ouviu e os compreendeu. O obreiro percebe que não é um fracasso como missionário, mas um ser humano normal que está passando por dificuldades. O debriefing deveria ser uma prática regular quando os missionários retornam do campo, e especialmente após passarem por períodos de grande estresse e sofrimento. Pessoas que viveram em contextos de sofrimento, pastores e psicólogos com disposição para ouvir são, provavelmente, os que melhor podem oferecer esse serviço. Como qualquer outro serviço cristão, deve ser aprendido e praticado com humildade; devemos ouvir a Deus e aprender com aqueles a quem ele concedeu sabedoria e discernimento. As consultas organizadas pelo Grupo de Cuidado Integral do Missionário da AMTB podem ensinar mais sobre isso. A psicóloga Esly Regina Carvalho, autora do livro Saúde Emocional e Vida Cristã, afirma que geralmente não se dá tempo para os missionários processarem as conquistas e as perdas ocorridas durante o tempo de serviço no campo. Outra reclamação comum é que eles não têm com quem desabafar. Seria bom providenciar o debriefing tão logo fosse possível. No campo, os missionários podem sofrer incidentes traumáticos, como doenças, guerras, abuso sexual ou ações terroristas. Em 1999, a psicóloga clínica Debbie Hawker fez uma pesquisa com 145 missionários e obreiros humanitários. Ao perguntar qual tinha sido a pior experiência deles, 8% responderam que tinha sido um incidente traumático. A maioria respondeu que foram problemas de relacionamento (18%), dificuldades culturais (21%) e insatisfação com a organização ou com o trabalho (17%).7 Crianças também precisam de um espaço para compartilhar seus sentimentos. É mais assustador sentir que algo está errado e não saber o que é do que ouvir o que está acontecendo e poder compartilhar seus sentimentos. Crianças pequenas podem ter a oportunidade de desenhar o que aconteceu. Pode ser proveitoso para crianças maiores e adolescentes compartilharem seus sentimentos em família, mas eles talvez prefiram compartilhar separado de seus pais, já que também podem ter sentimentos fortes, talvez de raiva ou luto.
Encontros de restauração Missionários casados e solteiros, de várias agências e denominações, com experiência de campo na África, Ásia, Oriente Médio, Europa, América Latina e entre povos indígenas brasileiros, têm participado dos encontros de restauração para, missionários, organizado pelo Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MO. São encontros de uma semana, com um programa que busca a renovação da caminhada espiritual com o Senhor e comunhão com pessoas que passam por lutas semelhantes. O programa inclui temas como: reavaliação do chamado; a dor do choque cultural reverso; cuidado físico e emocional das famílias dos missionários; como enfrentar tempos de crise; nossa identidade em Cristo; lutas específicas de casais e de solteiros; Jesus, nosso modelo missionário. É uma experiência de restauração simplesmente pelo fato de estarem juntos, serem ouvidos por pessoas que os compreendem, terem um tempo tranquilo sem grandes demandas ou expectativas, terem a oportunidade de perceber que suas experiências são semelhantes e terem liberdade para chorar. A maior parte sai restaurada. Vida emocional A solidão foi mencionada por 16% dos missionários, a maior parte mulheres solteiras e casadas. As missionárias solteiras podem se sentir solitárias quando não fazem amizades significativas com outras pessoas e sentem muitas saudades da família, amigos, igreja e de outras estruturas de apoio. As esposas de missionários sofrem quando não têm uma função específica, e são vistas como meros apêndices do ministério de seus maridos e não como missionárias "de verdade". É difícil para aquelas que não têm certeza de seu próprio chamado, mas estão dispostas a acompanhar seus maridos, e para aquelas que têm convicção de chamado, mas não encontram oportunidades para servir. Há mais missionárias do que missionários no campo, especialmente em contextos de sofrimento. Precisamos levar suas necessidades a sério. Podemos ajudálas a aprender a oferecer apoio e encorajamento mútuos e ajudar missionários homens a ser sensíveis a suas necessidades, especialmente os líderes de agências e dos conselhos missionários das igrejas. Também é preciso compreender as necessidades emocionais e limitações físicas das mulheres durante a gravidez e com filhos pequenos. Com a compreensão e o encorajamento adequados, muitas vão florescer e
servir por um longo período, mas caso se sintam abandonadas ou ignoradas, poderão desistir e voltar para sua terra natal. Depressão ou tristeza por causa do contexto foi um problema mencionado por 18,7% dos missionários, e 5,3% disseram ter pesadelos e sentir uma grande angústia. Essas respostas evidenciam que há sobrecarga emocional por causa do contexto de sofrimento e por causa das expectativas dos próprios missionários e das pessoas a quem eles servem, que os veem como prontos para atender suas necessidades quando, com frequência, podem fazer pouco. Os líderes entrevistados também reconheceram que solidão, sentimento de perda, estresse e esgotamento emocional são sentimentos reais que afetam os missionários que servem em contextos de sofrimento. Há, portanto, necessidade de auxílio mais constante e específico se quisermos que os missionários permaneçam firmes. Essa ajuda deve começar antes de irem para o campo, para que aprendam a desenvolver as qualidades cristãs, a ter disposição para enfrentar o sofrimento, a compartilhar as cargas uns dos outros, a manejar conflitos e a entregar as preocupações para Deus. Os missionários precisam de uma preparação para aprender a lidar com suas próprias fraquezas e limitações e saber onde procurar ajuda para suas necessidades emocionais e relacionais. Também é necessário preparar as igrejas, as agências e os centros de treinamento para serem sensíveis e sábios ao lidar com essas necessidades. Precisamos aprender a compreender quando as pessoas já ultrapassaram sua capacidade de suportar a situação e precisam de um tempo de cuidado e descanso antes que entrem num estado depressivo, antes que o estresse comece a ameaçar e prejudicar os relacionamentos entre casais e entre equipes missionárias. Essa ajuda pode ser oferecida por meio de leituras recomendadas, e da disposição para ouvir os missionários que têm coragem de compartilhar suas dores mais profundas. Podemos aprender com pessoas que têm mais experiência em oferecer aconselhamento a missionários, e ser mais sensíveis para perceber sinais de ansiedade e necessidades não expressas de forma verbal ou escrita. É importante levar em consideração o pano de fundo dos missionários brasileiros. As famílias brasileiras são gregárias e possuem vínculos relacionais fortes. Os filhos adultos geralmente permanecem em casa enquanto estudam e, muitas vezes, até casarem. Os tios e avós fazem parte dessa estrutura familiar de apoio.
Geralmente, a igreja é uma comunidade acolhedora. Por isso, estar em uma situação de solidão, sem comunicação e apoio regulares, é uma experiência muito difícil para um missionário brasileiro. Por outro lado, essas mesmas características culturais ajudam os brasileiros a se integrar em outras culturas com padrões parecidos. Cuidados com a saúde Por meio dos questionários respondidos, ficou evidente que a necessidade de ajuda em caso de doença ou crise é uma de suas maiores preocupações. Significa que precisamos melhorar o auxilio na área de saúde. Apesar de 31,2% dos missionários responderem que têm auxílio nessa área, muitos ainda ficam sem nenhum apoio quando surge uma emergência médica ou doença grave e alguns até morrem por causa da dificuldade em encontrar auxílio disponível. Quando perguntados sobre o que os levaria a abandonar o campo prematuramente, 12,5% responderam que seriam os "problemas de saúde". Os líderes entrevistados também consideraram a necessidade de cuidados com a saúde como uma das principais, e 55,5% responderam que oferecem provisão de saúde para seus missionários. Considerando o contexto em que servem, com altas taxas de malária, aids e outras doenças sérias, esse cuidado precisa ser aperfeiçoado, para que os missionários e seus filhos tenham acesso apropriado à saúde e possam continuar a servir as pessoas no campo missionário. Antes de serem enviados para o campo, os missionários precisam receber instruções claras quanto ao cuidado preventivo da saúde, primeiros socorros e orientações gerais sobre os recursos disponíveis em caso de emergência. Precisam também receber instruções básicas sobre como ajudar o povo local em caso de emergência: cuidados básicos de saúde, informações sobre o hospital mais próximo e quais os procedimentos de emergência apropriados. Recentemente, uma missionária brasileira sofreu um grave acidente de carro em Angola, ficou seriamente ferida e foi levada para um hospital na Namíbia. Um missionário brasileiro que lá morava assinou os documentos, tornando-se responsável pelas despesas. Como a vítima teve de permanecer na UTI, a conta foi superior a 40 mil dólares. Sem dinheiro, o missionário foi ameaçado com ação judicial. Depois de muita oração e comunicação, as doações para o pagamento da dívida começaram a chegar.
Cuidados com a família Vários missionários expressaram preocupações nessa área. Isso aponta para a necessidade de oferecer orientação desde o treinamento pré-campo, incluindo estudos de caso e avaliações, para que as famílias possam ir e servir, sabendo que seus filhos estão sendo cuidados. Os pais precisam saber quais são as oportunidades de estudo para os filhos, quais os custos, o que é mais apropriado para as crianças e receber orientação para fazer um planejamento cuidadoso. Precisam também pensar sobre oportunidades de lazer, férias familiares e amizades para as crianças. É difícil estabelecer regras gerais e inflexíveis que se apliquem igualmente a todas as famílias, por isso, a orientação pastoral e psicológica dada à família antes da ida para o campo e durante a licença é parte dessa orientação geral. A maior parte das crianças lida bem com a situação e amadurece com a experiência transcultural. Entretanto, algumas famílias parecem não ser capazes de enfrentar as dificuldades e precisam voltar para casa e receber cuidado especial antes de retornarem ao campo ou serem enviadas para um campo diferente. Um dos líderes entrevistados relatou que um adolescente de 13 anos era hiperativo e o comportamento dele foi interpretado por líderes eclesiásticos locais como possessão demoníaca; trataram-no de maneira humilhante e a situação piorou. Quando voltou para sua terra natal e recebeu o tratamento apropriado, o adolescente se recuperou, mas a família não quis retornar para o mesmo campo. Algumas agências e igrejas têm desenvolvido mais compreensão sobre as necessidades dos filhos dos missionários, mas essa questão precisa ser mais desenvolvida. Com frequência, uma das experiências mais traumáticas para eles é deixar para trás o país e o povo que aprenderam a amar, e ter de se adaptar ao país de seus pais, que é estrangeiro para eles. Talvez eles se comportem ou usem roupas que parecem estranhas aos adolescentes em sua terra natal, fazendo-os parecer estrangeiros. Existe também a necessidade de cuidar dos casais. Eles precisam de cuidado pastoral e ajuda durante períodos de crise em seu relacionamento. Essa ajuda pode estar disponível no campo, ou talvez seja mais sábio enviar o casal de volta para casa, não como fracassados, mas para um tempo de restauração. A igreja local e a agência que os enviou precisam explicar como o cuidado pastoral será oferecido. Existem algumas situações na vida familiar que naturalmente
geram muito estresse e vulnerabilidade. Os líderes de igrejas e de agências missionárias precisam estar atentos e cuidar das famílias em ocasiões como a gravidez e o parto (especialmente no caso do primeiro filho), quando a falta de apoio por causa de diferenças culturais pode gerar grande pressão nos relacionamentos familiares, ou quando os filhos chegam à adolescência e precisam de boas escolas e de orientação para ajudá-los a crescer de maneira saudável. Os missionários precisam saber que, se for preciso, poderão retornar ao lar para um tempo de restauração. Cuidados com as mulheres solteiras As palavras "outros renunciaram ao casamento por causa do reino dos céus" se aplicam a missionários cuja resposta ao chamado de Deus inclui o celibato involuntário. Muitas mulheres gostariam de se casar, mas o número de homens solteiros é pequeno, e elas começam a se perguntar se há algo errado. A aceitação dessa realidade significa que, nesse momento em particular, estar solteira é parte da vontade de Deus. As mulheres solteiras são parcela significativa das pessoas que responderam ao questionário, e estão presentes em todos os campos onde há grande sofrimento. Annemie Grosshauser trabalhou na África Oriental e na Ásia Central como conselheira para mulheres estrangeiras. Em seu artigo "Apoiando mulheres estrangeiras em contextos difíceis", ela escreve sobre os desafios das mulheres estrangeiras em países muçulmanos. As mulheres podem servir nas áreas de saúde, ensino, administração, hospitalidade, cuidado e oração. Entretanto, mulheres estrangeiras podem ser tocadas de maneira inapropriada em público ou serem alvos de obscenidades. As mulheres cristãs precisam de alguém a quem prestar contas. Uma parceira de oração pode ser um grande apoio. É muito importante organizar um grupo de apoio de oração, pois elas precisam estar preparadas para enfrentar batalhas espirituais. Muitas serão confrontadas com as crueldades da guerra: evacuação, roubo, abuso e estupro. Mulheres solteiras precisam de apoio especial da equipe, especialmente em uma cultura muçulmana, por causa do sentimento de solidão que resulta do estilo de vida restrito que a mulher tem de levar. Há algumas vantagens em ser solteira, mas também há necessidades e desafios especiais. A principal vantagem é que as solteiras têm maior liberdade para servir,
para viajar, para interagir com o povo local e mesmo para enfrentar situações perigosas, se estiverem dispostas a pagar o preço. Como não têm filhos que dependam delas, geralmente se integram mais cedo, aprendem a língua mais rapidamente, desenvolvem bons relacionamentos e encontram satisfação em seu ministério e amizades. Porém, essa mesma disponibilidade pode fazer com que outros missionários e o povo local as sobrecarreguem, esquecendo que elas também têm limitações e precisam de tempo para atividades de lazer e descanso. Elas precisam estar conscientes de que são responsáveis por cuidar de si mesmas e de que precisam desenvolver redes de apoio mútuo. As missionárias solteiras também precisam do apoio da agência e da igreja para estabelecerem certos limites. Precisam investir em amizades com pessoas com quem possam compartilhar suas necessidades e dores e orar, ou simplesmente fazer alguma atividade de lazer com outros. Outro desafio que enfrentam é que geralmente têm mais limitações para participar de atividades à noite, ou para viajar sozinhas -coisas que uma mulher local não faria. Por não pertencerem a uma família, podem ser vistas como mulheres fáceis (prostitutas). Mulheres solteiras precisam ser discretas ao se relacionarem com homens, precisam ser cuidadosas e observar as regras locais e os limites para relacionamentos respeitosos. Outra necessidade, que nem sempre é atendida, é ter moradia apropriada. Uma missionária desabafou que por dezoito anos dividiu a casa com dezesseis companhias diferentes. As missões geralmente cuidam de maneira adequada das famílias, mas pensam que as solteiras podem viver juntas. Isso pode causar muito estresse, especialmente se há mudança contínua das pessoas com quem compartilham a casa. Algumas desejam morar sozinhas, enquanto outras preferem morar com mais alguém, seja por questões de segurança, por medo de ficar sozinha, ou porque é inadequado uma mulher sozinha receber visitantes do sexo oposto. A melhor solução seria deixar as pessoas solteiras escolherem (obviamente de acordo com as possibilidades do campo e das finanças), e ajudá-las a encontrar o tipo de moradia onde se sentem à vontade. As mulheres solteiras querem ter o mesmo grau de participação nas decisões que seus colegas casados têm. Com frequência, os solteiros têm grandes responsabilidades, mas não se lhes permite exercer qualquer papel de liderança. Isso acontece
dentro da comunidade missionária e na igreja local. É claro que na igreja local há necessidade de se adaptar ao que é próprio à cultura. Em minha experiência missionária em Angola, onde a liderança da igreja era toda masculina e onde a maior parte das igrejas não permitia que uma mulher pregasse, fui aos poucos tendo maior liberdade para ministrar. Alguns anos antes de deixar o país, pediram que falasse na conferência nacional da Aliança Evangélica de Angola sobre "O Papel da Mulher no Ministério da Igreja". Preparei minha palestra com temor e tremor, mas ela foi bem recebida, e dei essa mesma palestra em vários locais e várias ocasiões. Mais tarde, as mulheres locais tiveram mais liberdade e voz em suas igrejas e fui convidada a pregar em algumas dessas igrejas. A questão de ir solteira e permanecer solteira é um grande .desafio para muitas mulheres, pois a maioria tem o desejo de encontrar um marido com visão e chamado semelhantes. Muitas que vão para o campo sozinhas casam-se com missionários de outra nacionalidade ou com um cristão local –o que também é uma área de cuidado pastoral, pois essas mulheres enfrentam uma adaptação transcultural em seu próprio lar, e isso também traz estresse. Um casamento transcultural pode ser uma bênção, mas precisamos preparar as missionárias solteiras para não entrarem de maneira precipitada em relacionamentos transculturais. Antes de considerar tal decisão, precisam estar adaptadas ao campo, servir bem sozinhas e conhecer bem a cultura. Se as missionárias não estiverem bem preparadas, e não receberem cuidado pastoral adequado, elas podem entrar num relacionamento com potencial de causar muitas feridas e que poderá significar até mesmo o término de seu ministério. As missionárias precisam de apoio amoroso e compreensão, especialmente se, como resultado do compromisso a seu chamado, elas permanecerem solteiras. Precisam de ajuda para compreender que não são menos valiosas como pessoas ou como mulheres. Precisam aprender a confiar no Senhor e a acreditar que ele lhes dará graça para enfrentar cada dia, e também cuidará delas quando ficarem velhas. Vamos, então, continuar a enviar missionárias solteiras, ajudando-as a estarem bem preparadas e emocionalmente estáveis, dando-lhes apoio fiel, amoroso e continuo. Relacionamento com colegas, igreja ou agência
Os missionários estão envolvidos numa batalha espiritual continuai somadas a ela estão as fraquezas humanas e as diferenças culturais ou de percepção pessoal. Assim, os conflitos e estresse serão inevitáveis. Por um lado, os missionários envolvidos precisam ser respeitados, precisam de líderes que os ouvem sem preconceito, e oferecem compreensão e encorajamento. Por outro lado, os líderes também precisam ser sábios, porque alguns missionários causam problemas ao contarem sua própria versão da história em sua terra natal, de uma maneira tão convincente que recebem todo o apoio possível. Os líderes da terra natal precisam ouvir os líderes nacionais e outros missionários, a fim de terem uma visão mais correta da situação. Geralmente, os problemas se agravam quando os líderes ouvem apenas uma das partes envolvidas na situação. Este tema foi mencionado por 16,9% dos missionários como uma razão para considerar um retorno prematuro. Isso mostra que há a necessidade de um melhor preparo para viver e servir em equipes, especialmente em equipes transculturais. Há muitos casos de estresse e desânimo por causa de dificuldades nos relacionamentos com outros missionários; parcialmente porque todos são pessoas com forte determinação (senão teriam ficado em casa), mas também por falta de preparo para ouvir e dar espaço para outros, por dificuldades em resolver conflitos e perdoar, ou por falta de longanimidade, que é fruto do Espirito. Um treinamento pode ser mais proveitoso quando os alunos têm a oportunidade de servir juntos como equipe e de aprender a se submeter a um líder com quem nem sempre concordam. Viagens missionárias em um contexto transcultural podem ser parte valiosa de um treinamento. Alguns dos líderes entrevistados consideraram o relacionamento entre o missionário e a agência como uma área de estresse e como uma das razões para o retorno prematuro. Vários missionários que responderam ao questionário haviam trocado de agência ou estavam planejando fazê-lo. Alguns missionários não têm liberdade suficiente para servir, não têm a orientação que esperavam, não têm um cuidado pastoral que atenda às suas necessidades, ou são alvo de expectativas muito altas -o que provoca um sentimento de fracasso e esgotamento emocional. Há necessidade de desenvolver uma consciência de Corpo, de compartilhar e ouvir um ao outro e de compreender e respeitar os dons e limites um do outro. Há também a
necessidade de orientação e treinamento para manejo de conflitos em contexto transcultural. Adaptação transcultural e relacionamento com a liderança Entre os missionários entrevistados, 12,5% mencionaram os relacionamentos com líderes nacionais como possível razão para um retorno prematuro. Uma das razões é que os padrões de liderança e o significado de ser líder mudam de uma cultura para outra. Tanto os missionários quanto os líderes nacionais agem de acordo com sua própria cultura, e acabam se sentindo desrespeitados e criticados pelos outros. Parte necessária do treinamento pré-campo é preparar os missionários para respeitarem os líderes locais, se conterem para não falar ou agir de maneira diferente do contexto em que estão, deixarem mais iniciativas com os líderes locais, ouvi-los e estarem cientes de que a responsabilidade da adaptação transcultural está sobre aqueles que chegam para servir. Um erro que tanto os missionários quanto as agências cometem é pensar que os que investem financeiramente têm autoridade para tomar as decisões - um paternalismo que causa frustração e irritação aos líderes nacionais. Outro aspecto da mesma situação é quando os missionários pensam que precisam ajudar os nacionais, que são pobres, e continuam a fornecer os recursos. Os missionários que se adaptam bem e vivem de maneira mais semelhante ao estilo de vida dos cristãos nacionais podem encorajá-los a usar seus próprios recursos. Mas se o missionário aparenta ser muito rico e continua trazendo todo tipo de recursos, as pessoas ficam dependentes e não descobrem a alegria e a bênção de dar seus próprios recursos de forma generosa. Esses temas precisam ser discutidos durante os programas de treinamento missionário. O choque cultural e a adaptação transcultural são temas importantes na vida dos missionários. Mais da metade dos que responderam ao questionário escreveram que muitos de seus amigos locais parecem ser interesseiros, determinados a tirar o máximo proveito do relacionamento com os missionários. Isso é natural num contexto de grande pobreza, mas é também um problema transcultural Para alguns povos e culturas, pedir é considerado natural e um verdadeiro amigo, com boas condições, sempre ajudará. Dos missionários entrevistados, 34,8% reclamaram da dificuldade em satisfazer as expectativas das pessoas locais, que sempre esperam muito mais do que eles
podem oferecer. 31,2% disseram que têm dificuldade de comunicação, de compreender o que as pessoas querem dizer, e de saber se elas entenderam a mensagem e as implicações da fé cristã para suas vidas cotidianas. 17,8% sentiram dificuldades com o antagonismo das pessoas locais em relação aos estrangeiros e 14,2% tiveram problemas para se adaptar à comida local Todas essas respostas estão relacionadas a viver e servir numa cultura estrangeira e expressam o quanto as pessoas se sentem inseguras, sem saber como se relacionar com outras, como atender às suas necessidades, e como servi-las melhor. Os líderes também consideraram os relacionamentos transculturais, a adaptação à outra cultura e o aprendizado da língua como áreas de estresse para os missionários. Alguns percebem que essas seriam razões para alguns retornarem prematuramente do campo, apesar de outros afirmarem que seus missionários não retornariam por causa de problemas de relacionamento com o povo locaL Todas essas respostas indicam que o treinamento missionário transcultural é extremamente importante e que a área de relacionamento com pessoas de outras culturas deve ser parte fundamental do treinamento. Orientação no ministério Essa necessidade foi mencionada por 21,4% dos missionários, especialmente por aqueles enviados de maneira independente, isto é, sem o apoio de uma agência missionária. Nas questões sobre as reações a contextos de sofrimento, 34% se sentiram incapazes e inúteis, e 16% tiveram dificuldades em saber o limite da doação pessoal. 9% mencionaram o sentimento de incapacidade e de inutilidade como razões que podem levá-los a um retorno prematuro. Essas necessidades estão relacionadas ao preparo transcultural, e abrangem temas como: contextualização, vida missionária, estratégias missionárias, fenômenologia, antropologia missionária e outros; experiências práticas de viagens missionárias com orientações claras e avaliações, e o desenvolvimento de caráter e maturidade emocional e espiritual. O sentimento de incapacidade e inutilidade é uma resposta natural a contextos de sofrimento extremo, quando as pessoas sentem que o melhor que podem fazer, mesmo com todos os recursos desejados, parece insignificante comparado à tremenda necessidade. Pessoas que serviram às vítimas do tsunami na Indonésia manifestaram sentimentos semelhantes. Precisamos discutir esses desafios
e deixar claro que qualquer serviço feito com amor e sabedoria será significativo para as pessoas que servimos. Enviar pessoas para contextos de sofrimento extremo é uma grande responsabilidade. Não pode ser feito de maneira precipitada. Não podemos deixar de lado os feridos, os que não conseguem enfrentar as adversidades ou que estão enfrentando problemas pessoais. Com treinamento apropriado, pessoas que têm um chamado geralmente conseguem superar as dificuldades e são uma bênção; suas fraquezas não são obstáculos, se lidarem com elas de maneira apropriada. O desafio dos grupos não-alcançados e dos povos necessitados é grande. Somos responsáveis pelo cuidado daqueles que são enviados e temos de ajudá-los a perseverar durante todo o período em que precisarem permanecer no campo, para que, ao voltarem, tenham o mesmo compromisso missionário e continuem a servir em outras áreas. Seria útil pedir a futuros missionários que sirvam em sua terra natal, a comunidades carentes e a grupos de pessoas marginalizadas, para que possam começar a compreender o que significa servir pessoas vulneráveis, e para que possam desenvolver mais recursos e habilidade para suportar desgastes emocionais e físicos. Há várias oportunidades de servir crianças de rua, dependentes químicos, presos, refugiados, imigrantes e pacientes com aids ou câncer. Preparo adequado É urgente reavaliarmos o treinamento missionário oferecido. De acordo com o ReMAP 1,10 uma das razões para o retorno prematuro do campo entre missionários brasileiros foi a falta de treinamento apropriado. O ReMAP II mostrou que os missionários mais bem preparados são os que permanecem mais tempo no campo. Ainda existe a ideia de que os missionários que são enviados para servir entre povos tribais e entre pessoas muito pobres não precisam de treinamento, e a maior parte das igrejas não está disposta a apoiar seus candidatos em um programa de treinamento missionário adequado. Há uma multiplicação de cursos de treinamento missionário oferecidos por agências e igrejas locais, muitas vezes com professores sem experiência de campo, e sem treinamento missionário. Esses cursos oferecem programas muito curtos; às vezes os alunos escutam poucas palestras, algumas boas, outras nem tanto. Soube de um curso em que havia apenas uma noite para cada matéria. É claro que isso é insuficiente e a falta de treinamento continuará a causar o retorno prematuro dos missionários.
As respostas aos questionários não apresentaram diferenças evidentes dos problemas enfrentados por aqueles que receberam treinamento de quatro ou cinco meses ou por aqueles que foram treinados por dois anos. No Centro Evangélico de Missões ainda acreditamos que um programa de treinamento de dois anos não é um luxo, mas uma necessidade, e a maioria de nossos ex-alunos têm servido bem e por muitos anos no campo. Os missionários que participaram dessa pesquisa valorizam um treinamento sólido (veja a tabela 3 do Apêndice). O treinamento requerido para ajudar as pessoas a perseverar nos campos de serviço deve, necessariamente, incluir: Teologia bíblica de missões, estudos bíblicos gerais e específicos sobre o sofrimento no ministério de Jesus e suas advertências de que devemos estar prontos para sofrer quando abraçamos sua missão. Antropologia cultural, contextualização, fenomenologia, vida missionária, estratégias missionárias, aprendizado de línguas -matérias que vão ajudar os alunos a compreender pessoas de culturas e religiões diferentes e a se relacionar com elas de maneira respeitosa, com disposição para aprender. Investimento sólido no cultivo da vida devocional pessoal dos alunos, com oração, ensino sobre batalha espiritual (ensino bíblico equilibrado) e o desenvolvimento de um escudo de oração para sustentá-los durante o serviço missionário. Experiência prática de atividades missionárias, em grupo e em lugares onde os alunos podem aplicar o que aprenderam em sala de aula, se relacionar com pessoas que são diferentes, e com contextos de sofrimento. Preparo para trabalhar em equipes, aprender a desenvolver bons relacionamentos com os membros da equipe, a respeitar os outros membros e os líderes, crescendo em compromisso e humildade e estando abertos para avaliação mútua e correção. Ter mentores (líderes da igreja enviadora, da escola de missões, da agência missionária). Oferecer um discipulado pessoal, no qual assuntos específicos podem ser abordados e trabalhados. Contato com um psicólogo cristão, durante o programa de estudos, antes de serem enviados para o campo, durante a licença, no campo missionário e no
retorno à terra natal. Esse psicólogo deve estar familiarizado com as lutas que os missionários enfrentam. Quando chegarem ao campo, os missionários precisarão aprender a se integrar na cultura local, a desenvolver vínculos com o povo, e a ler livros que os ajudem a compreender temas sociais, religiosos e culturais daquele contexto. Missionários mais experientes podem oferecer um programa de treinamento, ajudando-os a compreender e a responder a situações locais. Esse programa deve ser bem planejado e não deve ser dado por missionários que não se adaptaram muito bem e que não têm bons relacionamentos com o povo local. Lazer A falta de oportunidades de lazer é uma fonte contínua de estresse. Em contextos onde há violência, guerra e pobreza, geralmente não há restaurantes, sorveterias ou piscinas. Ir ao cinema pode ser considerado inapropriado e as oportunidades de viajar a passeio talvez sejam raras. As pessoas precisam aprender a desenvolver formas alternativas de lazer e descanso para elas mesmas e para seus filhos, como levar consigo jogos, artesanato, filmes e livros, e pedir a amigos em sua terra natal que enviem recursos ocasionalmente. Por meio da amizade com outros missionários e com a comunidade local, as oportunidades de lazer podem começar a surgir. Algumas agências missionárias têm regras severas. Os missionários não podem retornar à terra natal antes de completar três anos de serviço, mas podem tirar férias anualmente - se houver alguma possibilidade local disponível. Seria bom se as igrejas e agências tivessem regras gerais, mas também fossem flexíveis de acordo com as necessidades dos missionários em situações específicas. Em alguns casos, é mais produtivo e econômico voltar ao país de origem a cada um ou dois anos. Literatura de apoio Com vistas a melhorar o serviço de nossas igrejas e agências na área de cuidado do missionário, uma de nossas preocupações é oferecer literatura que possa ajudá-los a compreender e discernir melhor essas necessidades. Embora não exista muitas publicações nessa área, algumas obras podem ser úteis:
Autores estrangeiros Valioso Demais para que se Perca, editado por William D. Taylor (Descoberta, 1998) Profissionais em Missões, de Jonathan Lewis (Vida Nova, 1993) A Missão de Enviar, de Neal Pirolo (Descoberta, 2001) Florescendo em Outra Cultura, de Jo Anne Dennett (Descoberta, 2004)
Autores nacionais A Igreja Apaixonada por Missões, de Antônio Nasser (Abba Press, 1995) Missionários, Preparando-os para Perseverar, de Margaretha Adiwardana (Descoberta, 1999) Do Chamado ao Campo, de Oswaldo Prado (Sepal, 2001) O MeUwr para Missões, de Edison Queiróz (Descoberta, 1998) Tropeços na Vida Missionária, de Jarbas Ferreira da Silva (Vida Nova, 2003) Serão como as Estrelas, de Márcia Tostes (Descoberta, 2003) Há alguns artigos sobre o assunto na revista Capacitando, da Associação Brasileira de Professores de Missões (APMB), e na revista Ultimato. Alguns desses artigos foram copiados e distribuídos nas igrejas. Em outubro de 2004, por ocasião da Consulta das Agências Missionárias, Professores de Missões e Grupo de Cuidado Integral do Missionário, foi lançado o livro O Cuidado Integral do Missionário. Nossa preocupação, entretanto, não deve ser apenas com os missionários, mas também com os povos que estão em situação de sofrimento, a quem eles são chamados a servir. No Brasil, há boa literatura sobre o tema de missão integral. A Editora Ultimato e a Fraternidade Teológica Latino-Americana se preocupam com esse tema e publicaram bons livros e artigos. Quando falamos de guerra e contextos de extrema violência, nossa experiência como brasileiros é limitada e quase não há literatura disponível. Talvez alguns brasileiros que serviram as vítimas do tsunami na Ásia, em 2004, possam escrever sobre o que aprenderam nesse contexto extremamente doloroso. A visão da mídia sobre essas questões geralmente é parcial e ela não aborda
de forma profunda o que significa viver nesses contextos e servir ao povo que mora ali. Quanto ao tema da perseguição por causa da fé cristã, a missão Portas Abertas publicou vários livros em português, e há alguns livros disponíveis sobre a vida em contexto islâmico. As diferentes sugestões práticas apresentadas são algumas possíveis soluções para os difíceis temas levantados pelos questionários. Visam contribuir para que o treinamento pré-campo, no campo e pós-campo e o cuidado oferecido pelas igrejas locais e agências missionárias sejam aperfeiçoados. Assim, quem sabe poderemos reduzir a taxa de retorno prematuro do campo entre missionários evangélicos brasileiros e encorajar esses obreiros a perseverar em meio a situações adversas e estressantes. A igreja evangélica no Brasil já não é uma minoria oprimida e a presente geração já não se lembra do preconceito e perseguição que seus pais sofreram. Com a influência da teologia da prosperidade, a ênfase em missão integral tem diminuído. As pessoas se acostumaram a esperar bênçãos imediatas, e não aprenderam sobre sua responsabilidade de serem testemunhas na sociedade. Em algumas igrejas, o sofrimento é visto como resultado de falta de fé ou como consequência de pecado. Assim, tornou-se difícil para os missionários que passam por dificuldades e lutas receberem apoio e compreensão. Jesus e Paulo estavam prontos a sofrer preconceito, incompreensão, perseguição e solidão porque sabiam que isso era necessário para atingir os objetivos de Deus para a humanidade. Eles sofreram pessoalmente e prepararam seus seguidores para o sofrimento que enfrentam aqueles que manifestam a luz da verdade em contextos de trevas e para compreender a batalha espiritual envolvida no projeto missionário de Deus. Se quisermos alcançar comunidades que sofrem, precisamos recuperar a perspectiva bíblica sobre o sofrimento, especialmente quando relacionada à tarefa missionária, e oferecer mais misericórdia e compreensão aos missionários. Aprender a ajudá-los não demanda planos sofisticados; está relacionado a uma atitude de preocupação e apoio, ajudando-os a buscar soluções para seus problemas. Vários serviços já são oferecidos aos missionários, e há uma crescente conscientização sobre a necessidade do cuidado integral em várias agências e igrejas. Outras, entretanto, ainda estão começando a perceber a importância do cuidado e que o missionário tem necessidades como todo ser humano. Há igrejas e agências
que continuam a enviar pessoas visando alcançar os campos, mas sem preocupação com os custos pessoais para os missionários. Muitos que enfrentam problemas e desistem têm sido abandonados. Como resultado, algumas igrejas perdem o interesse em investir na obra missionária, encarando-a como muito dispendiosa e arriscada. Quando as igrejas, agências, e institutos de treinamento aprenderem a preparar melhor os missionários, investindo não apenas na formação acadêmica, mas na formação do caráter e em um compromisso de discipulado continuo, haverá bons frutos. Quando os líderes aprenderem a ouvir seus missionários, compreendendo o contexto onde vivem, e oferecerem cuidado integral, apoio financeiro e orientações práticas, os resultados virão. Os missionários se sentirão apoiados e dispostos a continuar servindo de maneira sacrificial. Igrejas e agências verão que seus investimentos fortalecem os missionários e se envolverão cada vez mais. O povo local se sentirá mais respeitado, compreendido e apoiado. A taxa de retorno prematuro diminuirá, porque missionários, igrejas e agências terão aprendido a trabalhar juntos.
apêndice
PESQUISA ENTRE MISSIONÁRIOS QUE ATUAM EM CONTEXTOS DE SOFRIMENTO
OS CONTEXTOS DE SOFRIMENTO DISCUTIDOS NESTE LIVRO e o ensino bíblico sobre o sofrimento no ministério levam à conclusão de que o custo de fazer missão hoje é alto e, de acordo com as Escrituras, vai continuar assim. Como resultado, não são poucos os missionários que retornam dos campos prematuramente. Cada vez mais se percebe a necessidade de analisar o retomo prematuro dos missionários e encontrar soluções. Foi com esse propósito que a Aliança Evangélica Mundial (WEA) organizou uma força-tarefa especial, o Projeto de Redução da Taxa de Retorno Prematuro de Missionários - ReMAP. O primeiro estágio foi realizado entre os anos de 1994 e 1996. Mais recentemente, um segundo estágio de estudo foi realizado para avaliar as condições que estimulam os missionários a permanecer no campo. Outra força-tarefa da WEA é sobre o cuidado de missionários, em especial daqueles que atuam em regiões mais carentes e isoladas. Os dados desses estudos fornecem a base para esta pesquisa feita por meio de questionários e entrevistas entre missionários que servem em contextos de sofrimento, e entre líderes de agências missionárias e igrejas.
Propósito O objetivo principal desta pesquisa foi ouvir os próprios missionários. Foram também entrevistados líderes de algumas igrejas, agências e escolas de missões para ouvir suas preocupações e respostas. Buscaram-se respostas de missionários que servem em contextos de sofrimento (locais onde há guerra, violência, pobreza, epidemias e perseguição) para compreender como eles se relacionam com esse contexto específico, quais são as necessidades principais das pessoas a quem eles buscam servir, como o contexto de sua vida e ministério afetam o seu bem-estar físico e emocional, seus relacionamentos e sua capacidade de perseverar no ministério, e que tipo de apoio eles recebem ou gostariam de receber. A análise dessa pesquisa certamente foi influenciada por minha experiência como missionária por dez anos em Angola, um país assolado por uma longa guerra civil, com pobreza, muitos refugiados, muitas pessoas vitimadas pela guerra, fome, malária e aids. Durante esses anos (de 1985 a 1995), a maioria dos missionários naquela região recebeu pouco cuidado pastoral, e alguns retornaram para seus países de origem desgastados, enquanto outros permaneceram fiéis, mas muitas vezes a ponto de ter um colapso emocional. Participantes A pesquisa foi realizada no período de abril a junho de 2003, com 112 missionários que servem no Timor Leste, em Angola e Moçambique. Estes países foram escolhidos porque seus povos estão entre os mais pobres do mundo, têm passado por muito sofrimento e têm uma presença significativa de missionários brasileiros. Missionários que estavam no Brasil, após retornar do campo ou em licença, também participaram, assim como alguns que servem em áreas tribais ou em contextos urbanos muito pobres. Nos três países escolhidos para fazer a pesquisa, foi obtida a participação expressiva de 30% dos missionários brasileiros. Também participaram missionários de várias agências, tanto casados (com filhos pequenos ou adolescentes) como solteiros. O propósito era perceber se havia diferença nos padrões para lidar com situações difíceis entre os que receberam um treinamento mais prolongado e os que foram para o campo com pouco treinamento; entre os que recebem cuidado pastoral regular e os que enfrentam as dificuldades sozinhos; entre os que pertencem a uma agência missionária e os enviados direta-
mente pela sua igreja. Vários deles responderam à pergunta: "De quem vocês receberam apoio ou cuidado pastoral?" Com as palavras: "De ninguém!" Missionários brasileiros em alguns contextos de sofrimento A informação mais atualizada sobre missionários brasileiros e onde eles servem está disponível nos sites do COMIBAM e da SEPAL. Em 1989, havia 880 missionários transculturais brasileiros, e quarenta deles (5%) serviam na janela 10/40. Em 2005, havia 2.250 missionários brasileiros servindo no exterior. Atualmente, existem 3.195 missionários transculturais brasileiros. Destes, 1.560 servem na América Latina, 456 na África e 639 (20%) na janela 10/40. 70% de nossos missionários são casados, 17% são mulheres solteiras e 6% são homens solteiros. As agências missionárias O segundo estágio da pesquisa foi uma entrevista feita com líderes de agências missionárias, igrejas, instituições de ensino e pessoas envolvidas no cuidado do missionário. Nessa entrevista, eles relataram o que consideram as maiores necessidades de seus missionários e o apoio e cuidado pastoral que lhes oferecem. Foram entrevistados 27 líderes missionários e alguns líderes de campo das seguintes agências: Interserve, AMEM, JMM, JAMI, AMIDE, AME, Betel Brasileiro, Kairós, Missão Horizontes, Servant Partners e Missão Antioquia. Também foram entrevistados líderes de igrejas, professores de missões e pessoas do Grupo de Cuidado do Missionário. De acordo com dados da SEPAL, há 63 organizações missionárias servindo nos campos. Missionários de trinta agências (e líderes de mais quatro agências), além de pessoas de várias denominações, responderam aos questionários. Perfil dos participantes Em relação à idade dos participantes, 14,5% tinham menos de 30 anos, 15,5% entre 31 e 35 anos, 30,9% entre 36 e 40 anos, 22,7% entre 41 e 45 anos e 16,4% tinham mais de 45 anos. Quanto ao tempo de serviço dos missionários na localidade atual, 10,7% tinham servido menos de um ano, 36,7% de um a três anos, 22,3% de três a seis
anos e 31,3% mais de seis anos. Em relação ao tipo de agência representada, 27,6% serviram com agências denominacionais, 50% com agências interdenomincionais e 22,3% foram enviados independentemente (pelas suas igrejas locais). Quanto à formação profissional e serviço, 17% são da área de saúde, 30% são da área de educação, 7% são da área de administração, 5% são da área de agricultura, 4% são da área de serviços sociais, 12,5% se definiram como servindo em duas dessas áreas, e 34% não especificaram uma profissão (no gráfico 1 esse grupo está indicado como 'ministério'). Esses dados chamam nossa atenção, porque revelam que apesar da maior parte das agências brasileiras não ter ainda se comprometido a usar o grande potencial dos fazedores de tendas, na prática seus missionários servem em muitas áreas profissionais. A questão de missionários fazedores de tendas continua a ser uma fonte de tensões, pois há candidatos excelentes, com experiência profissional e bom testemunho, dispostos a servir em contextos de sofrimento, mas muitas agências não os aceitam, a menos que eles sejam treinados para se tornarem líderes de igrejas. Essas agências veem os missionários apenas como plantadores de igrejas, e não como pessoas testemunhando por meio de seu serviço profissional. Isso reflete a falta de compreensão dos desafios e necessidades de muitas nações de acesso restrito que têm suas portas abertas para profissionais.
NOTAS Capítulo I 1. MOLTMANN, Jürgen. Thecrucified God. 2 ed. New York: Harper e Row Publishers, 1973. p. 46. Capítulo 2 1. TON, Josef. Suffering, martyrdom and rewards in heaven. New York: The Romanian Missionary Society, 2000. p. 102. Capítulo 4 1. Ton, Ibídem, p. 212-213, 217. Capítulo 6 1. BOSCH, David J. Missão transformadora. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 26-27. 2. FLANNERY, Ausnn P. Documents of Vatican II. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1978. p. 903-909. 3. CNBB. Puebla: A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Texto Oficial da CNBB da III Conferência Geral de Bispos Latino-Americanos. 6. ed. Petrópolis. Vozes, 1985. p. 69, 275. 4. ESCOBAR, Samuel. O cenário global na virada do século. ln: TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 45. 5. BONK, [onathan. Comentando Escobar e indo um pouco além. ln: TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p.81-82. 6. D'SOUZA, Joseph. The lndian church and missions face the safronization challenge. ln: TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 554-555. 7. TAYLOR, William David. Missiologia global parao século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 37. 8. Taylor, Ibidern, p. 41.
Capítulo 7 1. ADEYEMO, Tokunboh. Traçando o perfil de uma missiologia global e evangélica. ln: TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 369. 2. Disponível em: <www.ohchr.orglenglish/law/religion.htm> OHCHR. Declaration on the elimination of al1 forms of inrolerance and of discrimination based on religion or belief, 1981. 3. Disponível em: <www.membercare.orglimages/wea_unreporc2001.pdf> WEA. WEF Report to the UN, 2001. 4. TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21.Londrina: Descoberta, 2001. p. 18-20. 5. ANYOMI, Seth. Comentários sobre a declaração de Foz de Iguaçu. ln: TAYLOR, Wil1iam David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p.719. 6. DOWSETT, Rose. The Great Commission. London: Monarch Books, 2001. p. 82. 7. DOWSETT, Ibidern, p. 83. 8. MARSHALL, Paul. Their blood cries out. Dallas: Word Publishing, 1997. p. 47. 9. SCHLOSSBERG, Herbert. A fragrance of oppression; the church and its persecutors. Wheaton: Crossway Books, 1991. p.125. 10. D'SOUZA, Joseph. The Indian church and missions face the safronization challenge. ln: TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 557. 11. HOLMES, Michael W. ed. The apostolic fathers. 2.ed. Leicester: Apollos, 1990. p.103. Capítulo 8 1. BENTLEY-TAYLOR, Felicirv. Felicity tells her story. ln: STACEY, Vivienne. Mission ventured. Leicester: Inter-Varsitv Press, 2001. p. 231. 2. STACEY, Vivienne. Mission ventured. Leicester: Inter-Varsity Press, 2001. p.169. 3. Idem, p. 172.
Capítulo 9 1. TOSTES, Márcia. Preparando para perseverar nas missoes brasileiras. ln: O'DONNELL, Kelly, Cuidado integral do missionário. Londrina: Descoberta, 2004. p.87-98. Capítulo 10 1. O'DONNELL, Kellv, o cuidado integral do missionário. Londrina: Descoberta, 2004. p. 17. 2. DANIEL, Yael. Sharing the front line and the back hills; international protection e providers; peacekeepers, humanitarian aid workers e the media in the midst of crisis. Amityville: Baywood Publishing Company, 2002. p. 1-3. 3. Idem, p. 381-384. 4. Idem, p. 385. 5. Palestra para a Consulta do Grupo de Cuidado Missionário no Brasil. Londrina, 2002. 6. CARVALHO, Eslv, Ficando com o que é bom; uma pequena experiência. ln: O DONNEL. Kellv, Cuidado integral do missionário. Londrina: Descoberta, 2004. p.99-100. 7. A experiência está relatada no artigo "Crisís and routine debriefing". ln: O'DONNELL, K., ed. Doing member care well. Pasadena, CA: William Carey Library, 2002. 8. Dezessete por cento dos missionários brasileiros são mulheres solteiras e 6% são homens solteiros (COMIBAM, 2005). 9. Ver WERNER, David. Onde não hámédico. 24ed. São Paulo: Paulus, 1997. 10. Ver o livro Valioso demais para que se Perca, de W. D. Taylor.