Teologia biblica do velho testamentocrabtree

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ÍNDICE INTRODUÇÃO Divisões da teologia do Velho testamento AS CIÊNCIAS BÍBLICAS E A TEOLOGIA DO VELHO TESTAMENTO

A Origem Histórica da Fé de Israel O Conceito Bíblico da História A Arqueologia e o Velho Testamento A Mudança de ênfase no Estudo do Velho Testamento A Ciência da Teologia do Velho Testamento A DOUTRINA BÍBLICA DA REVELAÇÃO DE DEUS

A Psicologia dos Hebreus A Revelação de Deus nas Obras da Criação Deus Se Revela Diretamente aos Escritores Bíblicos A Revelação da Pessoa de Deus no Velho Testamento É Incompleta A Distinção entre a Revelação e a Inspiração A Autoridade do Velho Testamento A DOUTRINA DE DEUS

O CONHECIMENTO DE DEUS SEGUNDO O VELHO TESTAMENTO O Nome de Deus O NOME DENOTA ESSÊNCIA

A invocação do nome O significado e a importância do nome do Deus de Israel A origem do nome O nome de Deus e sua presença O Espírito de Deus Atividades do Espírito A ESSÊNCIA E OS ATRIBUTOS NATURAIS DE DEUS

O DEUS VIVO Deus é Um A Personalidade de Deus OS ATRIBUTOS REDENTORES DE DEUS

A Santidade de Deus Idéias Primitivas de Santidade A Santidade de Iavé, o Deus de Israel A Justiça de Deus O Redentor (Go’el) de Israel O Amor de Deus O Amor Eletivo de Deus O Amor Fiel do Senhor no Cumprimento do Seu Concerto com Israel O Concerto do Senhor com Israel A Significação do Hesed do Senhor O PARENTE REMIDOR - GO’EL - O PARENTE VINGADOR QUEM É O GO’EL?

O Redentor de Israel (Goel) A ORIGEM, A NATUREZA E O DESTINO DO HOMEM A Criação do Homem A Natureza do Homem do Velho Testamento A Natureza Religiosa do Homem Características do Pensamento do Homem do velho Testamento O Homem criado à imagem e à semelhança A DOUTRINA DO PECADO

A Moralização do Conceito do Pecado Palavras Hebraicas que Descrevem a Natureza do Pecado Pecado Social

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A Origem do Pecado Conseqüências do Pecado Influências do Pecado O PROBLEMA DO MAL

O Pecado, a Culpa e a Punição O Ponto de Vista Sacerdotal do Sofrimento O Ensino dos Profetas O Problema do Sofrimento nos Salmos O Problema do Sofrimento na Literatura de Sabedoria A SALVAÇÃO NO VELHO TESTAMENTO

O Sistema Sacrificial dos Israelitas A Pessoa e a Função do Sacerdote A Fidelidade do Senhor no Perdão do Pecado O Motivo Divino em Perdoar A Operação da Santidade, da Justiça e do Amor do Senhor na Salvação O Mistério da Eleição de Israel Deus, como Pai, no Velho Testamento O REINO DE DEUS

O Povo de Israel e o Reino de Deus A Natureza do Reino de Israel Características Políticas e Religiosas do Reino de Judá O Restante Fiel do Povo Escolhido O Dia do Senhor hwf hy: -{Oy) O DIA DO SENHOR (h

O Novo Concerto A ESPERANÇA MESSIÂNICA O Juízo Divino - A Luta com o Pecado e a Esperança de Vitória A Redenção de Israel O Reino Messiânico O Messias Vindouro O Filho do Homem O Servo Sofredor Salmos do Servo do Senhor A VIDA FUTURA A Morte Física Sheol - lO):$ Novas Revelações sobre a Vida Futura A Doutrina da Ressurreição do Corpo I. SHEOL-HADES: O LUGAR DOS MORTOS II. SHEOL NO VELHO TESTAMENTO E A SUA LOCALIZAÇÃO III. DEPOIS DO SHEOL-HADES SEGUE-SE O GEENA CONCLUSÃO

As doutrinas Essenciais do Velho Testamento A Doutrina de Deus A Doutrina do Homem A Doutrina do Pecado A Esperança Eterna

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INTRODUÇÃO1 DEFINIÇÃO Teologia é a ciência que trata do nosso conhecimento de Deus, e das coisas divinas. A teologia abrange vários ramos, vejamos: Teologia exegética Exegética vem da palavra grega que significa extrair. Esta teologia procura descobrir o verdadeiro significado das Escrituras. Teologia Histórica Envolve o Estudo da História da Igreja e o desenvolvimento da interpretação doutrinária. Teologia Dogmática É o estudo das verdades fundamentais da fé como se nos apresentam nos credos da igreja. Teologia Bíblica Traça o progresso da verdade através dos diversos livros da Bíblia e descreve a maneira de cada escritor em apresentar as doutrinas mais importantes. Teologia Sistemática Neste ramo de estudo os ensinamentos concernentes a Deus e aos homens são agrupados em tópicos. INTRODUÇÃO Devido a vastidão de assuntos, e a profundidade dos mesmos, bem como o curto espaço de tempo para exposição, estaremos deparando com uma grande dificuldade. Outra dificuldade é a falta de familiaridade com o Velho Testamento, a negligência ao estudo do mesmo tem causado muitos embaraços aos leitores da Bíblia. Para facilitar o estudo, estaremos dando ênfase a introduções de apenas algumas doutrinas, visto que, serão abordados mais profundamente quando do estudo da referida doutrina. O Velho Testamento é a parte preparatória de Deus para revelações maiores e mais profundas ao homem. Por isso é especial. Deus providenciou uma revelação e mostrou seus diferentes métodos: Sonhos - Joel 2.28 E há de ser que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões. Jeremias 23.32 Eis que eu sou contra os que profetizam sonhos mentirosos, diz o SENHOR, e os contam, e fazem errar o meu povo com as suas mentiras e com as suas leviandades; pois eu não os enviei, nem lhes dei ordem; e não trouxeram proveito algum a este povo, diz o SENHOR. Visões - Atos 7.31Então Moisés, quando viu isto, se maravilhou da visão; e, aproximando-se para observar, foi-lhe dirigida a voz do Senhor, (Uma Visão espiritual). Aparições - Isaías 6.1 No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi também ao Senhor assentado sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo. 1

FERRAZ, José. E-mail jfkajo@uol.com.br.

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Histórico - A Melhor forma de revelação de Deus ao homem sem dúvida é através da história. Através da convivência com Deus, através das experiências adquiridas com Ele. Os Períodos Históricos da Teologia do Velho Testamento Assim como os apóstolos do NT com suas epístolas eram, de muitas maneiras, os intérpretes dos Atos e dos Evangelhos, assim também a teologia do AT poderia semelhantemente começar com os profetas por um motivo bem semelhante. No entanto, mesmo para o fenômeno da profecia bíblica, havia a realidade sempre presente da história de Israel. Toda a atividade salvífica de Deus em tempos anteriores tinha que ser reconhecida e confessada antes de alguém poder ver mais firme a revelação adicional de Deus. Devemos, portanto, começar onde começou: na história — história verdadeira e real. A Era Pré-patriarcal Sem dúvida, Abraão ocupou um lugar de destaque no auge da revelação. O texto avança da extensão desde a criação e descreve a tríplice tragédia do homem como resultado da queda, do Dilúvio e da fundação de Babel para a universalidade da nova provisão da salvação da parte de Deus para todos os homens, através da descendência de Abraão. A palavra principal é “Benção” repetida da parte Deus — que existia apenas no estado embrionário. No inicio, trata-se da “Bênção” da ordem criada. Depois, é a “Bênção” da família e da Nação, em Adão e Noé. O auge veio na quíntupla “Bênção” para Abraão em Gênesis 12.1-3, que incluía bênçãos materiais e espirituais. A Era Patriarcal Esta era foi tão significativa que Deus Se anunciava como “Deus dos patriarcas”, ou “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”. Além disto, os patriarcas eram considerados “profetas” (Gn 20.7; SI 105.15). Aparentemente era porque pessoalmente recebiam a palavra de Deus. Freqüentemente, a palavra do Senhor “veio” a eles de modo direto (Gn 12.1; 13.14; 21.12; 22.1) ou o Senhor “apareceu” a eles numa visão (12.7; 15.1; 17.1; 18.1) ou na personagem do Anjo do Senhor (22.11,15). Os períodos de vida de Abraão, Isaque e Jacó formam outro tempo distintivo no fluxo da história. Estes três privilegiados da revelação viram, experimentaram e ouviram tanto, ou mais, durante o conjunto de dois séculos representado pelas vidas combinadas deles, do que todos aqueles que viveram durante os milênios anteriores! Como conseqüência, podemos, com toda a segurança, delinear Gênesis 12-50 como nosso segundo período histórico no desdobrar da teologia do AT, exatamente como foi feito por gerações posteriores que tinham o registro escrito das Escrituras. A Era Mosaica Israel foi então chamado “reino de sacerdotes e nação santa” (Êxodo 19.6). Deus, com todo o amor, delineava os meios morais, cerimoniais e civis de se cumprir tão alta vocação. Viria no ato primário do Êxodo, com a graciosa libertação de Israel do Egito, operada por Deus, a subseqüente obediência de Israel, em fé, aos Dez mandamentos, a teologia do tabernáculo e dos sacrifícios, e semelhantes detalhes do código da aliança (Êxodo 21-23) para o governo civil. Toda a discussão quanto a ser um novo povo de Deus se derivava de Êxodo 1-40; Levítico 127; e Números 1-36. Durante esta era inteira, o profeta de Deus foi Moisés — um profeta sem igual entre os homens (Números 1-36). De fato, Moisés foi o padrão para aquele grande Profeta que estava para vir, o Messias. (Deuteronômio 16.15-18) 5


A Era Pré-Monárquica Uma das partes da promessa de Deus que recebeu uma descrição detalhada foi a conquista da terra de Canaã. Esta história se estende ao longo do período dos juizes para incluir a teologia das narrativas da arca da aliança em 1 Samuel 4-7 os tempos se tornaram tão distorcidos e tudo parecia estar em tantas mudanças subseqüentes devido ao declínio moral do homem e à falta da revelação da parte de Deus. De fato, a palavra de Deus se tornara “rara” naqueles dias em que Deus falou a Samuel (1 Samuel 3.1). Conseqüentemente, as linhas de demarcação não se escrevem tão nitidamente, embora os temas centrais da teologia e os eventos-chave sejam bem registrados historicamente. A história de Josué, Juízes e até Samuel e Reis, são momentos significantes na história da revelação deste período, são usualmente reconhecidos pela maioria dos teólogos bíblicos de hoje. O melhor que se pode dizer do período pré-monárquico é que era um tempo de transição. O surgimento de exigência de um rei para reinar sobre uma nação que se cansou da sua experiência em teocracia conforme ela era praticada por uma nação rebelde. Depois da Lei até Davi não há avanço teológico. Neste período, deus é revelado como Santo, como Espírito Santo, como Eterno. A vida de Cristo é mais precisamente predita, nos sacrifícios, e ofertas e no propiciatório. A Era Monárquica O pedido do povo no sentido de lhe ser dado um rei, quando Samuel era juiz (1 Sm 8-10). E até o reinado de Saul nos preparam negativamente para o grandioso reinado de Davi (1 Sm 11 —2 Sm 24.1 Reis l-2.). A história e a teologia se combinavam para enfatizar os temas de uma dinastia real continuada, e um reino perpétuo com um domínio e alcance que se tornaria universal na sua extensão e influência. Mesmo assim, cada um destes motivos régios foi cuidadosamente vinculado com idéias e palavras de tempos anteriores: uma “descendência” “um nome” que “habitava” num lugar de “descanso”, uma “bênção” para toda a humanidade, e um “rei” que agora reinava sobre um reino que duraria para sempre. Este período é caracterizado historicamente pela prática desenfreada do pecado e declínio de Israel. Os quarenta anos de Salomão foram marcados pela edificação do templo e por outro derramamento de revelação divina. A Sabedoria. Assim, a lei mosaica pressupunha a promessa patriarcal e edificava sobre ela, assim também a sabedoria salomônica pressupunha a promessa abraâmico-davídica como a lei mosaica. O conceito-chave era “o temor do Senhor” — uma idéia que já começou na era patriarcal (Gn 22.12; 42.18; Jó 1.1, 8-9; 2-2). Agora que a “casa” de Davi e o templo de Salomão tinham sido estabelecidos, sendo assim, os profetas poderiam agora focalizar sua atenção sobre o plano e reino de Deus no seu alcance mundial. Infelizmente, porém, o pecado de Israel também exigiu boa parte da atenção dos profeta. Com essas revelações o mundo deveria esperar até que chegasse a “Plenitude dos Tempos”, Gálatas 4.4; Pedro 1.10-12.

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Questões Importantes Sobre Revelação 1) Distinção entre revelação e apreensão: A compreensão vinha a medida que o homem ponderava a revelação feita. 2) Revelação Parcial: Algumas coisas foram reveladas, mas não foram explicadas. A explicação pode vir mais tarde, ou não vir jamais, Dt 29.29. Também no Novo Testamento há coisas reveladas, mas no explicadas: Nascimento virginal de Jesus, Trindade, Dupla Natureza de nosso Senhor. 3) Revelação Universal: A revelação foi feita com o objetivo de se estender a humanidade toda: “Em ti serão bendita todas as nações”, Deus disse a Abraão. (Gênesis 12.3)

Divisões da teologia do Velho testamento As divisões naturais incluem as grandes doutrinas a serem discutidas: 1.

A Doutrina da Criação;

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A Doutrina de Deus;

3.

A Doutrina do Homem;

4.

A Doutrina do Pecado;

5.

A Doutrina da Salvação.

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CAPÍTULO 1 AS CIÊNCIAS BÍBLICAS E A TEOLOGIA DO VELHO TESTAMENTO Com o novo conhecimento das ciências bíblicas, acumulado nos últimos anos, torna-se mais complicado, mais difícil e mais importante o trabalho do teólogo referente ao Velho Testamento. Investigações históricas, arqueológicas e literárias têm esclarecido a história do Oriente Próximo e a sua contribuição ao desenvolvimento da civilização moderna.2 O Velho Testamento foi produzido no ambiente histórico e cultural do Egito, da Mesopotâmia e das nações historicamente relacionadas com estas terras. Várias civilizações se levantaram no Oriente Próximo, séculos antes da origem dos hebreus, deixando elementos permanentes da sua cultura na vida dos povos subseqüentes. Os antigos sumerianos, acadianos e egípcios desenvolveram as suas civilizações, e as suas literaturas, que exerceram influências culturais nos povos sucessivos destas terras. Os hebreus tiveram a sua origem no meio de sociedades desenvolvidas, e herdaram elementos da cultura dos povos contemporâneos. Em todas as épocas da sua história o povo de Israel participou da cultural dos vizinhos e até dos conquistadores.3 Com a exceção do período de Davi e Salomão, os israelitas eram relativamente fracos entre as nações poderosas nos períodos sucessivos da sua história e, na maior parte desse tempo, ficaram sujeitos a outras nações. No período de mais de mil anos, Israel viu o levantamento e a queda de nações poderosas, enquanto Israel mesmo permaneceu relativamente fraco. A Origem Histórica da Fé de Israel Assim Israel nasceu no ambiente histórico de três mil anos da civilização. Os templos de Tepe Gawra e Egidu, descobertos na Mesopotâmia, pertencem ao período Obeide, cerca de 4000 a.C. As nações antigas haviam desenvolvido as suas culturas, com a produção de uma vasta literatura. Tinham progredido além do animismo,4 e outras formas primitivas da religião, ufanando-se dos sistemas elaborados de seu culto politeísta. Foi neste ambiente de politeísmo, e não de animismo, que a religião de Israel teve a sua origem. Sob a orientação de Moisés, como o profeta de Yahweh ou Iavé,5 a fé de Israel representa um rompimento definitivo com o politeísmo, e não um desenvolvimento que resultou finalmente no monoteísmo dos profetas. Depois de numerosas discussões e estudos críticos da narrativa bíblica sobre a libertação dos israelitas da escravidão do Egito, os historiadores em geral não têm mais dúvida quanto à verdade dos fatos fundamentais da narrativa.6 Ninguém pode entender o Velho Testamento, à luz do novo conhecimento das ciências bíblicas, sem reconhecer a mutação ou a revolução radical da religião que resultou das experiências dos israelitas com Iavé na sua libertação do poder do Egito, e a história da sua religião que resultou daquelas experiências. É difícil acreditar que Moisés fosse enganado quanto à ordem e à orientação que tinha recebido do Senhor, e que a libertação resultasse desse engano. Segundo a narrativa bíblica, não foi pela atuação de Moisés, nem pela sua cooperação, mas pelas forças da natureza, o vento e a maré, fora do 2

Cyrus H. Gordon, Old Testament Times, p. v: “A Bíblia, produto do Oriente Próximo, permanece como força viva no Ocidente Moderno. ... O estudo moderno do Velho Testamento se resolve no texto hebraico contra o fundo histórico das descobertas no Oriente Próximo”. 3 Millar Burrows, What Mean Thesc Stones? Em todos os capítulos desta obra o autor discute o fundo, e o ambiente histórico do desenvolvimento do Velho Testamento. A rica herança da cultura que Israel recebeu de outros povos é evidente na origem e desenvolvimento da língua hebraica e outras influências culturais que receberam dos vizinhos. 4 Animismo. Doutrina segundo a qual uma só e mesma alma é o princípio da vida e do pensamento; monodinamismo. 5 Yahweh é a transliteração do Tetragrámaton Hebraico, JHVH (ou JHWH, YHVH, YHWH), que representa o Nome inefável de Deus. Preferimos usar Javé, a simplificação do termo, de acordo com o português. 6 H. H. Rowley, The Authority of the Bible, p. 12: “Não pode haver razão de duvidar que Moisés conduziu o povo de Israel para fora do Egito, e que os israelitas experimentaram a libertação de que eram meros espectadores. A memória daquele livramento ficou profundamente estampada no povo para sempre. Nenhum povo podia ter inventado a história! de que tinha sido escravizado. Nenhum povo podia ter fabricado a narrativa de ter sido apenas testemunha da sua libertação, se não fosse a verdade. Nenhum povo podia ter inventado a história de que um Deus a quem não tinha o costume de adorar o tinha libertado, sem motivo e sem razão”.

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seu controle, que eles venceram os egípcios. A fé de Moisés e a confiança do seu povo também negam que a libertação fosse fortuita ou acidental. Desde o período patriarcal os hebreus tinham certeza das suas comunicações com o TodoPoderoso, EI Shaddai,7 que tomou a iniciativa na chamada de Abraão, prometendo engrandecer o seu nome e abençoar, por intermédio dele, todas as famílias da terra (Gn 12.1-3; 17.1-27). Os escritores bíblicos reconheceram o significado da fé de Abraão, mas deram mais importância ao concerto8 de Iavé com o povo de Israel no Monte Sinai, pois nesta ocasião Israel foi escolhido como o povo do seu Deus, e foi na base desta eleição que se desenvolveu a sua religião. Foi esta relação de confiança e dependência de Iavé, e não meramente as suas idéias acerca de Deus, que constituiu o princípio interno e permanente da sua fé. Esta fé, distintivamente bíblica, nas promessas do amor eterno do Senhor do concerto, não resultou de opiniões que os profetas formularam. Ao contrário, os israelitas creram em Deus, como resultado das experiências que os ligaram com o Senhor. Esta origem singular da fé de Israel distingue a religião do Antigo Testamento de todas as outras, e apresenta os fatos fundamentais da sua teologia. Para os escritores bíblicos a religião pertencia à vida inteira, e relacionava-se com todas as suas experiências. Deus não ficava isolado do homem e dos seus problemas. Era participante com o homem no drama da vida. Os autores do Velho Testamento reconheceram a mão de Deus em toda a sua história, e tentaram descobrir e entender o propósito divino nas atividades do Senhor. A libertação dos israelitas do poder do Egito, o êxodo, e a formação da vida nacional ficaram firmemente estabelecidos nas suas tradições. Guardavam a Páscoa como memorial de sua libertação. As suas doutrinas teológicas nasceram das suas comunicações com o Senhor, e nestas experiências religiosas era Deus quem tomava a iniciativa. Atrás da história de Moisés, como guia do seu povo, havia a orientação e o poder do Senhor. A escolha de Israel para ser o povo santo e sacerdotal do Senhor foi-lhe anunciada por Moisés, o mensageiro de Deus e o profeta do seu povo. O povo creu na verdade da mensagem, aceitou a incumbência divina, e as experiências subseqüentes com o seu Senhor justificaram a sua fé. A escolha de Israel não foi devida ao seu mérito, mas unicamente à graça divina, ao amor imerecido de Iavé. O Conceito Bíblico da História É no Velho Testamento que encontramos o primeiro conceito distintivo e coerente da história. A origem histórica da religião de Israel forneceu aos escritores bíblicos a chave para a interpretação da história. Os autores, os profetas, interpretaram a história do ponto de vista das atividades divinas na sua vida nacional. Assim entenderam o propósito do Senhor, não somente na sua própria história, como também na criação do mundo para o serviço e o desenvolvimento da humanidade inteira, debaixo da orientação de Deus, de acordo com a sua vontade soberana na direção da história para o alvo predeterminado. Há vários métodos de interpretar a história da civilização. Os sistemas filosóficos e as interpretações da história variam de uma civilização para outra, e de um período para outro, de acordo com a mudança dos ideais e característicos de culturas sucessivas. É por isso que poucos filósofos e 7

Declara-se em Êxodo 6.23: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó, como o Deus Todo-Poderoso (El Shaddai); mas pelo meu nome, Javé, não me fiz conhecido (Nifal) a eles”. O Senhor, então, era desconhecido pelos israelitas até que se lhes revelou por intermédio de Moisés. Assim se identifica Javé, o salvador dos israelitas, com El Shaddai, o Deus de Abraão. 8 Preferimos usar em nossa discussão teológica o termo concerto como a tradução mais adequada da: palavra hebraica berith, em vez de pacto ou aliança. O termo pacto significa ajuste ou contrato entre pessoas, com vantagens mútuas para os pactuantes. A palavra: aliança usa-se mais freqüentemente no sentido de um contrato entre povos, nações ou estados, com ênfase na idéia de reunir ou ajuntar as forças na proteção e no desenvolvimento de interesses mútuos. É claro que nenhum destes termos tem o sentido teológico de berith, quando se usa de acordos solenes entre o Senhor e o seu povo. O português ainda não desenvolveu um termo teológico que traduza o sentido de berith. Mas a palavra concerto, no sentido radical de ordem, arranjo, regularidade, transmite melhor o significado de berith. Indica a iniciativa e a condescendência de Deus no seu propósito de abençoar e dirigir o seu povo peculiar para servir como nação sacerdotal entre Deus e todos os povos do mundo. A palavra não consta neste sentido teológico nos dicionários de português, mas usada na Versão Almeida, a palavra adquiriu bastante significação para tomar o seu lugar em nosso vocabulário teológico. Discutiremos em outro lugar o significado teológico do berith do Velho Testamento. Derivam-se, os termos o Antigo e o Novo Testamento, de berith, por meio do latim.

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historiadores em geral têm as qualificações para pronunciar a última palavra sobre a verdade ou a falsidade das experiências religiosas de Israel e o valor histórico do Velho Testamento. Não se pode negar a importância do trabalho de historiadores, mas as suas obras são freqüentemente parciais e incompletas, com interpretações erradas, porque não vêem qualquer desígnio inteligente no desenrolar da história. Por isso, nesta época científica, muitos estudantes modernos estão perdendo o interesse no estudo da história. Outros reconhecem que há algum desígnio na história, mas quando se baseiam na teoria da evolução ateísta, ou confiam no ideal do progresso, a própria história oferece pouco, ou quase nada, para apoiar o seu ponto de vista.9 Se há desígnio de uma inteligência suprema na história da humanidade, ele tem que ser descoberto pela fé.10 Interpretando a história segundo o desígnio distinto e coerente que o seu Senhor lhes revelava, os israelitas apresentam os fatos e os eventos que lhes evidenciam a finalidade divina da sua história. Assim se explica por que o Velho Testamento é história teológica e ao mesmo tempo teleológica. Disse Agostinho que o raciocínio humano é capaz de discernir e entender o desígnio divino na história, mas “só quando é purificado e instruído por fé”. Mas esta idéia não se originou com Agostinho. Os profetas do Velho Testamento foram os primeiros a apresentar as evidências das atividades divinas na história, e a interpretarem o desígnio de tais atividades. É esta interpretação profética das atividades de Deus na história de Israel que produziu o Velho Testamento. Discutiremos em outro lugar o ensino bíblico sobre a revelação divina. Mas do ponto de vista puramente histórico, a religião hebraico-cristã se distingue de todas as outras pelo princípio interno da sua existência. Desde Moisés até o dia de hoje, o fator da religião bíblica, através de todas as modificações de formas exteriores, tem sido a sua fé persistente na justiça e na misericórdia de Deus. No estudo da religião de Israel, e dos princípios internos do seu desenvolvimento, nota-se que os mensageiros de Deus sempre Se firmaram nas circunstâncias peculiares do seu livramento da escravidão do Egito pelo poder do Senhor.11 A convicção da sua escolha para ser o povo separado para o serviço do seu Deus era bastante forte para suportar a disciplina rigorosa das vicissitudes da sua longa história e aprender, até nas aflições, cada vez mais da justiça, bem como do amor imutável do Senhor. Os profetas produziram as Escrituras Sagradas nos períodos críticos da vida nacional, e a sua fé brilhava mais quando tinham que enfrentar aflições e sofrimentos. Mesmo na derrota nacional e na humilhação do cativeiro, floresceram as esperanças áureas na vinda do reino eterno do Messias do Senhor. Os seus ensinos éticos e morais purificavam-se à medida do crescimento do seu conhecimento da santidade e justiça de Deus. O seu conceito de um só Deus, justo e misericordioso, lutava contra as formas sedutoras de politeísmo, e ganhou a vitória que vai influenciando e abençoando cada vez mais os povos do mundo. A Arqueologia e o Velho Testamento Não se podem justificar todas as declarações extravagantes de alguns arqueólogos quanto ao valor desta ciência na verificação dos pormenores de todas as narrativas bíblicas. Há problemas críticos e históricos que a arqueologia não pode resolver. Há enigmas históricos que ficam até mais complicados, à luz de descobertas arqueológicas. Mas todos os estudantes reconhecem agora o imenso valor desta ciência no esclarecimento do ambiente cultural da Bíblia. A arqueologia nos explica a rica herança que os hebreus receberam das civilizações antigas e a influência desta cultura na produção da literatura do Velho Testamento no período de progresso notável da humanidade. 9

John Bailie, The Belief in Progress, 1951. a autor proclama com coragem e confiança que a história nega a teoria de progresso no sentido moral, que a evangelização cristã e o trabalho missionário oferecem a única esperança para o verdadeiro progresso da humanidade. Ver discussão deste livro na Revista Teológica de julho, 1951, p. 112. 10 Alan Richardson, Christian Apologetics, p. 90: “A verdade é que o significado da história tem que ser buscado fora da história, e que o princípio da interpretação da história não será achado dentro dela. O historiador que não tem fé em coisa alguma não encontrará indicações de qualquer desígnio na história”. 11 H. H. Rowley, The Re-discovery of the Old Testament, p. 88. “Um exame crítico da narrativa talvez possa mostrar que o milagre teria sido acentuado, e que o número dos israelitas envolvidos teria sido aumentado na tradição. Mas nenhum exame crítico pode desacreditar a história de que Israel teve uma libertação assombrosa, uma salvação que nunca podia ser esquecida em toda a sua história, um livramento que nunca cessou de despertar admiração e ação de graças”.

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Desde a primeira guerra mundial as descobertas arqueológicas oferecem um acúmulo crescente de material que ainda não foi devidamente estudado e assimilado. Os textos de línguas antigas, descobertos e decifrados, oferecem uma vasta quantidade de material sobre os princípios de organizações sociais no Oriente Próximo. Estes grupos construíram cidades e organizaram governos, com o desenvolvimento gradual da arte, da religião e de outras formas de cultura. Nas lutas que resultaram da rivalidade entre os Estados Municipais, levantaram-se impérios que prosperaram por algum tempo, e então caíram perante outros, maiores. A religião, com os seus templos e deuses, exerceu uma influência extraordinária na vida dos povos antigos. As escavações em numerosas ruínas da Palestina e de outras terras em redor ajudam no esclarecimento da cronologia dos eventos da história dos povos contemporâneos dos judeus. Sabemos mais agora dos povos mencionados no Velho Testamento, como os horeus, das suas relações com os patriarcas, e das suas influências na vida nacional de Israel. Sabemos mais das condições históricas quando este povo se levantou e tomou o seu lugar na, história.12 Ficou esclarecido como conseguiu tornar-se independente do Egito e se estabeleceu na Palestina como pequena teocracia, sob o governo do Senhor, que lhes dera a sua liberdade. Não há nenhum período da história de Israel, desde Abraão13 até o período interbíblico, que não tenha ficado melhor conhecido como resultado das informações acumuladas pelo grande número de descobertas arqueológicas nas ruínas da Palestina. Sem discutir a contribuição dos arqueólogos, como Albright e outros, no estudo dos períodos sucessivos da história de Israel, podemos dizer que a ciência confirma, esclarece ou suplementa a informação histórica, política e religiosa do Velho Testamento em quase todas as suas partes. Além desta contribuição que acentua e reforça a importância histórica do Velho Testamento, a arqueologia oferece também, às vezes indiretamente, informação relevante para o teólogo bíblico. Na revelação própria de Iavé, e na sua obra de libertação do povo de Israel, uma nova fé foi introduzida no mundo, uma fé que desde o princípio tinha que lutar para manter o seu conceito distintivo do seu Deus no meio das religiões politeístas de seus vizinhos. Alguns estudantes da história das religiões acentuam as semelhanças existentes entre a religião de Israel e a de seus vizinhos, deixando a impressão de que não havia nada de distintivo na fé do povo do Antigo Testamento. Não há dúvida quanto às semelhanças entre as formas e cerimônias destas religiões. É reconhecido também que muitos israelitas, em todas as épocas da sua história até o cativeiro babilônico, foram seduzidos pela religião conveniente dos vizinhos e desprezaram as exigências rigorosas do Santo de Israel. Mas a arqueologia tem-nos demonstrado muito mais do que as semelhanças existentes entre as formas e cerimônias religiosas do povo de Israel e as de seus contemporâneos. Sabemos agora, à luz do novo conhecimento arqueológico, que havia uma diferença abismal entre o Deus justo e misericordioso de Israel e os deuses da fertilidade dos cananeus. Por exemplo, a literatura ugarítica, que é mais semelhante à da Bíblia hebraica do que qualquer outra, fala da bestialidade de Baal e da horrível imoralidade de seus sacerdotes e outros seguidores em seus atos religiosos.14 A pena para este pecado entre os israelitas era a de morte (Lv 20.15). O padrão de qualquer religião é determinado pelas crenças e pela vida dos fiéis, e não pela prática dos infiéis. Alguns teólogos pensam que os israelitas não chegaram a crer na existência de um só Deus até o sexto século a.C. Acreditam que os israelitas eram henoteístas, que adoravam a Iavé, mas criam também na existência dos deuses de seus vizinhos. O Velho Testamento nos declara que muitos dos reis de Judá e Israel, desde Salomão, com muitos de seus súditos, eram até politeístas e que alguns destes abandonaram o Senhor. Mas isto não prova que a religião fundada por Moisés era politeísta ou henoteísta. É difícil aceitar que os Dez Mandamentos, quase universalmente atribuídos a Moisés, reconheçam a existência de qualquer deus além de Iavé. Os arqueólogos mais informados sobre as 12

James Muilenburg, The History of the Religion of Israel, The Interpreter’s Bible, Vol. l, p. 295: “Nosso conhecimento recente deste povo oferece provas quase certas de que as origens dos patriarcas hebreus hão de ser traçadas entre este povo (os hurianos), que habitou a região do Eufrates superior”. 13 Ver a discussão na Revista Teológica, N.o 14, p. 8, sobre A Sociedade Patriarcal dos Hebreus à Luz de Novas Descobertas Arqueológicas. 14 Cyrus H. Gordon, op. cit., p. 88.

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religiões contemporâneas do Velho Testamento, como W. F. Albright e G. E. Wright, pensam que a religião de Israel, na sua norma, era monoteísta desde o tempo de Moisés. Diz Albright: “De várias fontes fragmentárias podemos reconstruir em traços largos a teologia de Yahwismo do século décimo primeiro a.C., depois que o processo de consolidação tinha chegado à estabilidade relativa. Períodos de choque violento de forças sociais e culturais geralmente produzem mudanças rápidas, seguidas por períodos mais longos quando mudanças são quase imperceptíveis para o observador cuidadoso. Começamos com o conceito de Yahweh mesmo, pressupondo o ponto de vista monoteísta, que consiste essencialmente nos seguintes elementos: A crença na existência de um só Deus, Criador do mundo e Doador de toda a vida; a crença de que Deus é santo e justo, sem sexualidade ou mitologia; a crença de que Deus é invisível ao homem, exceto sob condições especiais, e que nenhuma representação gráfica ou plástica dele é permissível; a crença de que Deus não é restrito a qualquer parte da sua criação, mas está igualmente presente na sua própria habitação nos céus, no deserto, ou na Palestina; a crença de que Deus é tão superior a todos os seres criados, quer sejam corpos celestiais, quer sejam mensageiros angélicos, demônios ou deuses falsos, que ele permanece absolutamente único; a crença de que Deus tinha escolhido Israel por um concerto formal para ser o seu povo favorecido, guiado exclusivamente por leis impostas por ele”. 15 Com o acúmulo de novos materiais e o novo conhecimento das diferenças entre a fé de Israel e as religiões politeístas, estão-se mudando as primeiras conclusões sobre a semelhança da fé de Israel com a das religiões de seus vizinhos. É geralmente reconhecido agora que as crenças religiosas de Israel, até nas suas formas antigas e básicas, são profundamente diferentes das de outras religiões semíticas. Muitos teólogos crêem agora que não é possível explicar a religião do Velho Testamento como desenvolvimento do politeísmo.16 A crítica do texto hebraico do Velho Testamento é importante para o teólogo. Temos muitas provas do cuidado carinhoso dos israelitas na transmissão dos textos dos seus livros sagrados, mas sabemos também que há diferenças entre o texto Massorético e o da Septuaginta. Estudantes da Bíblia sabem do vasto trabalho feito nos numerosos manuscritos do Novo Testamento, e de várias outras fontes, para restaurar, tanto quanto possível, o texto original do Novo Testamento. Devido à falta de manuscritos antigos, as fontes para o estudo do texto hebraico do Velho Testamento ficaram limitadas quase exclusivamente aos manuscritos do nono e décimo séculos cristãos, e às versões antigas. Agora, felizmente, temos uma vasta quantidade de literatura semítica que ajuda no entendimento de termos difíceis, da gramática e da sintaxe hebraica. A semelhança entre a poesia hebraica e a de outras línguas semíticas ajuda também no esclarecimento do paralelismo e de outros característicos da poesia do Antigo Testamento. Certos característicos literários da poesia semítica, que podem ser datados, ajudam também a datar alguns dos salmos bíblicos. Alguns destes são mais antigos do que a crítica, sem a nova luz, julgava. Mas a descoberta de manuscritos, e pedaços de manuscritos de quase todos os livros do Velho Testamento nas cavernas em redor do Mar Morto, desde 1947, oferece uma vasta quantidade de material para ajudar na verificação do melhor texto da Bíblia hebraica. Vai levar anos para se organizar, examinar e utilizar este material, mas a Revised Standard Version aceitou treze das variações do famoso manuscrito de Isaías, com o esclarecimento de alguns destes versículos. O estudo de pedaços de manuscritos antigos de Samuel está ajudando na solução de alguns enigmas destes livros históricos e esclarecendo algumas diferenças entre o texto Massorético e o da Septuaginta. Ora, seria fácil exagerar o valor destes novos estudos para a ciência da Teologia Bíblica, quando nos lembramos da fidelidade dos escribas que nos transmitiram as Escrituras. Por outro lado, é difícil exagerar o valor do estudo do ambiente histórico em que a Bíblia foi produzida, das lutas e dos triunfos dos seus ensinos na instrução do povo de Israel e da humanidade. Nenhum estudante sério pode escrever sobre a história e a teologia da religião de Israel sem estudá-las à luz do fundo histórico 15

W. F. Albright, Archaeology and the Religion of Israel, p. 116. G. Ernest Wright, The Old Testament Against Its Environment, p. 11. “O Deus vivo, diz a Bíblia, entra precipitadamente na vida do povo. Por seus atos poderosos, ele faz as suas maravilhas em favor do povo que vê, ouve, entende, obedece e se arrepende. Neste modo de proceder, Israel descobre cada vez mais claramente o significado da sua eleição, e do propósito de Deus. Este ponto de vista bíblico, das comunicações entre Deus e Israel, não se acomoda a uma só metáfora de crescimento.” 16

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e religioso do Oriente Próximo. Devemos estudar tudo que nos pode ajudar na interpretação das Escrituras, se quisermos salvaguardar o valor dos seus ensinos para o povo da nossa época. É inadequado este exame rápido da importância da arqueologia bíblica para um esclarecimento do ambiente cultural e religioso do Velho Testamento. Além de explicar a cultura que os hebreus receberam dos povos antigos, e de seus próprios contemporâneos, com o aproveitamento daquela cultura na produção do Antigo Testamento, a arqueologia nos mostra também a luta constante e prolongada de Israel com os perigosos ideais e práticas religiosas que prevaleceram entre os seus vizinhos. Mostra também como muitos israelitas abandonaram os ensinos rigorosos da justiça divina para seguir após os deuses dos vizinhos que praticavam a imoralidade nas suas cerimônias religiosas. Este estudo não diminui o apreço que temos pela Bíblia, antes aumenta a profunda admiração do estudante da providência divina na direção do povo escolhido, desde o seu princípio humilde, através de tantas vicissitudes da história, até as alturas sublimes dos grandes profetas. Os característicos peculiares da religião do povo de Israel ficam mais esclarecidos pela rejeição final das influências mais perniciosas das religiões dos povos contemporâneos. Os ensinos vitais de valor imperecível que Israel deu ao mundo não constavam da cultura que recebera de outros povos, mas das suas próprias verdades recebidas diretamente nas suas experiências históricas com o Deus vivo e sempiterno. A Mudança de ênfase no Estudo do Velho Testamento Nenhum livro do mundo tem sido estudado com tanto carinho, em tantas línguas e por tanto tempo como a Bíblia. Nenhum outro livro tem provocado a produção de tantas obras literárias. Vai se mudando o centro de interesse na Bíblia de acordo com as controvérsias teológicas de época em época. O Concílio de Trento decretou dogmaticamente a Bíblia Latina como o texto de autoridade para a Igreja Católica. Mas antes da Reforma alguns eruditos começaram o estudo dos textos hebraicos e gregos da Bíblia. Surgiram controvérsias sobre o verdadeiro texto da Bíblia e a sua interpretação, mas não havia discórdia quanto à natureza essencial da inspiração divina das Escrituras. Devido à concepção estática da inspiração da Bíblia antes da Reforma, todas as p.artes das Escrituras eram consideradas de igual valor, sem se tomar em consideração a data, o autor do livro ou as suas características literárias. Pouca ou nenhuma atenção se dava à diferença entre a prosa e a poesia, alegoria e narrativa, drama e história, cerimônias temporárias e verdades eternas, ou aos vários outros característicos literários. Surgiram no décimo oitavo século novos métodos de se estudar a Bíblia. Com a aplicação das teorias do racionalismo, levantaram-se dúvidas sobre as premissas fundamentais das doutrinas teológicas da religião cristã. Estes novos dogmas de racionalismo ameaçaram minar os fundamentos venerados dos teólogos ortodoxos da época. Os novos intérpretes deram ênfase à produção humana das Escrituras. Levantaram dúvidas sobre as datas e os autores tradicionais de vários livros do Velho Testamento. Os livros do Pentateuco, segundo a nova crítica, por exemplo, foram escritos muito tempo depois da época de Moisés, e representaram apenas tradições históricas. Com esta nova ênfase no processo humano que produziu as Escrituras da Bíblia, ficou quase perdida a convicção de que houvesse qualquer revelação de Deus no Velho Testamento. Para alguns a Bíblia era apenas um documento puramente humano. Mas nem todos os seguidores da nova escola crítica eram inimigos da fé, como afirmaram alguns de seus oponentes. Havia alguns que não tinham a mínima objeção em sujeitar a Bíblia à crítica mais severa possível, enquanto isto se fizesse com o desejo de descobrir e seguir a verdade. Mas infelizmente o novo método tornou-se para alguns apenas uma investigação friamente científica, sem o devido reconhecimento dos seus característicos peculiares e sem observarem devidamente a natureza da origem das suas verdades imperecíveis. Com o desenvolvimento da ciência no décimo nono século, e a promulgação da teoria Darwiniana da evolução, a Bíblia perdeu ainda mais da sua influência e prestígio. Ficou desacreditada, especialmente como livro científico, e muitos rejeitaram, nesta base, a sua origem e a sua autoridade divina. Mas os estudantes cuidadosos descobriram sua resposta, de fato evidente, nas páginas da própria Bíblia, e é que ela não foi escrita como obra científica, mas como uma revelação divina, que 13


se apresenta pelas comunicações de homens com Deus, de acordo com a cultura da época e a capacidade dos escritores de entendê-la. O novo conhecimento do fundo cultural da Bíblia, acumulado nos últimos anos, põe em relevo os característicos distintivos da religião e das Escrituras do Antigo Testamento. Com o novo conhecimento das ciências bíblicas, vai-se mudando a defesa da Bíblia como a mensagem de Deus. Entre os seus defensores criteriosos, perdeu-se o receio da crítica literária e histórica das Escrituras. Se Moisés não escrevesse os cinco livros do Pentateuco, na forma que têm em nossa Bíblia, por exemplo, e se fossem editados séculos depois do acontecimento dos eventos que recordam, sabe-se agora que isto não nega o valor histórico destas obras.17 À luz do novo conhecimento da história dos povos contemporâneos, verificaram-se os fatos mais importantes da história dos hebreus. É claramente verificado, e geralmente reconhecido, que a sociedade patriarcal apresentada no livro de Gênesis é semelhante à dos hurianos, um povo contemporâneo de Abraão, Isaque e Jacó. Até os costumes e as práticas dos dois povos eram semelhantes. A literatura dos hurianos, como os seus contratos de casamento e várias outras qualidades de documentos que descrevem os seus negócios e as suas atividades de dia em dia por alguns anos, demonstra as semelhanças entre a vida social dos hurianos e a dos patriarcas bíblicos. Já notamos neste capítulo a mudança das opiniões de historiadores a respeito das narrativas bíblicas da libertação dos israelitas da escravidão no Egito e dos princípios da vida nacional deste povo. Enfim, a crítica literária e histórica não modifica essencialmente a interpretação dos eventos históricos que deram origem ao culto de Iavé pelo povo de Israel. A crítica não pode modificar as evidências abundantes da certeza absoluta do povo de Israel de que Iavé tomou a iniciativa no estabelecimento da sua fé, e da sua vida como o povo escolhido do Senhor. A psicologia da religião e o estudo das religiões comparadas ajudam no entendimento dos característicos dos ideais distintivos do Antigo Testamento e o valor imperecível das suas verdades divinas. De interesse são as obras publicadas desde 1904 sobre a Teologia do Velho Testamento. A tarefa do teólogo do Antigo Testamento, segundo Davidson, é a de apresentar as verdades da religião de Israel organicamente, mostrando como uma verdade surgiu de outra que a precedeu. Assim Deus implantou as verdades de seu reino na vida religiosa de Israel, o seu povo. As verdades do reino de Deus se apresentam em termos da história, das instituições e da vida do povo de Israel. Há uma distinção definitiva entre a teologia do Velho Testamento e a do Novo Testamento. A teologia dos judeus baseia-se principalmente nos seus livros canônicos do Antigo Testamento. Os muçulmanos acrescentam ao Velho Testamento os ensinos de seu profeta. Ora, os cristãos reconhecem a conveniência de tratar a teologia de cada uma das duas partes da nossa Bíblia separadamente, cuidando de não ler no Antigo Testamento ensinos distintivos do Novo. Nem se deve obscurecer as diferenças entre os ensinos das duas partes. É necessário, todavia, do ponto de vista cristão, reconhecer que as doutrinas teológicas do Novo Testamento ficam enraizadas na teologia do Antigo, e que a teologia do Velho Testamento chega à plena fruição na teologia do Novo Testamento.18 Alguns teólogos cristãos preferem escrever sobre a teologia bíblica. Assim começam com as doutrinas do Antigo Testamento e mostram como se desenvolveram no Novo.19 É claro que este método tem algumas vantagens, mas tem a tendência de olvidar os característicos distintivos e as riquezas peculiares de cada uma das divisões. Não se deve ler o Velho Testamento como texto científico da história, pois que trata das experiências religiosas do povo de Israel com o seu Deus. Escritores bíblicos, de épocas diferentes, interpretaram os acontecimentos na sua vida nacional de pontos de vista diferentes. Um estudo cuidadoso mostra que há três fontes da teologia do Velho Testamento representadas no longo período de desenvolvimento que culminou nas doutrinas teológicas dos profetas canônicos. A corrente principal se originou da revelação de Iavé ao povo de Israel por intermédio de Moisés, a redenção e a escolha de Israel para o serviço de seu Deus. Depois Iavé identifica-se com EI Shaddai, o Deus de 17

John Bright, Early Israel in Recent History Writing, 1956. O autor discute a importância da história preservada nas tradições do povo de Israel. 18 H. H. Rowley, The Relevance of the Bible, p. 17, trata da relação entre os dois Testamentos. Ver também A Esperança Messiânica. de A. R. Crabtree, p. 3 e seg. 19 Ver Millar Burrows, An Outline of Biblical Theology, 1946.

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Abraão, e assim a fé patriarcal integrou-se com a teologia bíblica. A terceira fonte, a influência dos vizinhos na religião de Israel, é mais difícil avaliar. Os mensageiros do Senhor lutavam heroicamente para purificar a sua religião das influências piores dos povos contemporâneos, mas não há dúvida de que os Israelitas incorporaram algumas das festas e cerimônias religiosas dos povos cananeus no seu culto ao Senhor. Mas na teologia dos profetas esta influência foi reduzida ao mínimo, mais ou menos como o cristianismo livrou-se, em grande parte, das Influências do paganismo. Há sempre oposição aos novos métodos de estudar a Bíblia, e a mudança de ênfase na interpretação de seus ensinos. Escrito por muitos autores, através de um longo período, com psicologia e cultura peculiares, o Velho Testamento oferece dificuldades para o leitor moderno que não tem conhecimento do seu fundo cultural. Por isso a leitura da Bíblia está sendo muito negligenciada pelo povo em geral. Por outro lado, o estudo das ciências bíblicas por especialistas está tirando do tesouro das Escrituras coisas novas e velhas. A Ciência da Teologia do Velho Testamento A Teologia é a ciência que trata da natureza de Deus e da lua relação como universo. A Teologia do Velho Testamento é o estudo dos atributos de Deus e o propósito das suas atividades na história e na vida do povo de Israel, de acordo com a doutrina da revelação divina nos livros sagrados deste povo. Esta definição distingue a Teologia do Velho Testamento da História da Religião do povo de Israel. Convém manter esta distinção, reconhecendo que as duas ficam naturalmente entrelaçadas. A História da Religião de Israel é a matéria que trata do desenvolvimento religioso do povo de acordo com a seqüência cronológica dos seus períodos históricos e das influências religiosas recebidas dos vizinhos. A Bíblia não sistematiza os seus ensinos, mas a ciência teológica trata das doutrinas distintivas e persistentes das Escrituras na ordem lógica ou teológica que se julga mais conveniente. Discute a revelação de Deus aos profetas e procura determinar a relevância dela para a teologia cristã.20 A definição limita a fonte do material desta primeira divisão da Teologia Bíblica aos livros canônicos dos judeus e dos cristãos evangélicos, ao passo que alguns destes são superiores a outros no valor dos seus ensinos teológicos. As idéias teológicas dos Livros Apócrifos têm pouca importância para a ciência, e por outras razões, é melhor deixá-los fora, embora tenham valor no estudo de outros assuntos bíblicos. A ciência da Teologia do Velho Testamento propriamente se limita ao estudo dos ensinos característicos, distintivos e persistentes dos veículos da revelação divina. Deixa de lado as aberrações e os conceitos primitivos condenados pelos profetas e procura apresentar os ensinos teológicos dos escritores mais esclarecidos do Velho Testamento. Reconhece os novos conhecimentos, confirmados pelas ciências bíblicas, sem entrar na discussão formal destes estudos. Aproveita-se igualmente dos resultados estabelecidos pelo estudo da crítica literária, mas não procura fixar a data da origem de cada uma das doutrinas bíblicas. A cosmologia dos escritores tem pouca importância para o teólogo, mas a doutrina da criação do mundo e das atividades de Deus na direção da história tem importância especial, porque põe em relevo o poder e a autoridade do Senhor. A exegese das Escrituras é essencial na exposição dos seus ensinos teológicos, e deve acompanhar a discussão das doutrinas. O conhecimento do hebraico é indispensável para o teólogo que deseje aprofundar-se no estudo da teologia do Velho Testamento. É preciso estudar os ensinos dos escritores segundo a sua própria norma psicológica e religiosa, reconhecendo e interpretando as experiências religiosas que são distintivas e que se relacionam entranhadamente com as doutrinas bíblicas. Deve o estudioso aproximar-se do estudo desta ciência com simpatia e discernimento intelectual, reconhecendo sempre que são os ensinos distintivos do povo de Israel que constituem a teologia do Antigo Testamento. O teólogo segue o método histórico e crítico nos seus estudos como em qualquer ciência. É fácil desviar-se desta norma, especialmente quando se vai ao estudo com

18. Alguns teólogos insistem na separação absoluta das duas divisões da teologia bíblica.

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opiniões obstinadamente formadas, segundo preconceitos religiosos, filosóficos ou científicos. O amor da verdade é a qualificação imprescindível para o estudo de qualquer ciência. A fé também ajuda no discernimento intelectual nas investigações teológicas, como tem valor no estudo das ciências físicas. Todavia, o teólogo trata da religião, e tem que reconhecer alguns fatos e fenômenos que, em geral, são irrelevantes no estudo das ciências puramente físicas. De que valor é o estudo da teologia do Velho Testamento para o cristão? Sendo a primeira divisão da teologia bíblica, é um preparo importante para o ministério cristão. Os dois testamentos estão entrelaçados de tal modo que não se pode entender a fundo um, sem conhecimento básico do outro. O Novo Testamento surgiu do Antigo. O Velho Testamento era a Bíblia dos cristãos primitivos antes da produção do Novo. O pregador, ou qualquer outro estudante do Evangelho, pode estudar o Velho Testamento, a Bíblia do Mestre, não somente com proveito, mas com o coração enlevado (Lc 24.29-49). Os ensinos teológicos da primeira divisão da Bíblia constituem as verdades religiosas e básicas que produziram a segunda parte. O povo de Israel tinha a certeza inabalável de que o Senhor Iavé era o seu Salvador do poder cruel do Egito. Tinha experimentado aquela maravilhosa libertação de acordo com a promessa de Moisés, o mensageiro de Iavé, o Salvador. Aquele ato governou todo o pensamento subseqüente do povo sobre o seu Deus. Havendo-se revelado o seu caráter na história daquela libertação, os israelitas, desde então, o reconheceram como o Deus da história. Porque tinha usado as forças da natureza naquela maravilhosa obra, Israel julgava que o seu Senhor era o controlador da natureza. O livramento político ou nacional podia ter produzido uma religião apenas de patriotismo e arrogância, semelhante à dos assírios e outros. Os israelitas perceberam, imperfeitamente no princípio, mas cada vez mais claramente, que o mérito do espírito é melhor do que a glória política, que a justiça exalta a nação e o pecado é o opróbrio dos povos, e que só os puros de coração podem entrar em comunhão com o Santo de Israel. Assim os ensinos dos guias espirituais produziram entre o povo de Israel uma comunhão frutífera com Deus e uma piedade genuína. Muitos judeus, incluindo sacerdotes, no período apostólico, reconheceram que podiam aceitar o Evangelho de Cristo sem renunciar às verdades essenciais da sua própria religião. O seu próprio Messias lhes dava novo entendimento das Escrituras, rebrilhava a fé com novos motivos de gratidão ao Senhor e novas esperanças no cumprimento da missão do povo escolhido. Ao mesmo tempo, todos os cristãos, incluindo os gentios, podiam crescer no conhecimento da graça de Deus pela leitura do Velho Testamento, especialmente dos Salmos e dos Profetas. Todos os crentes podiam fortalecer a fé, e receber conforto e socorro divino na leitura das Escrituras para o desempenho da sua missão no mundo cruel de sofrimentos, perseguições e até de martírios da fé. “O espírito hebraico iluminou tudo que contemplou. Tendo a sua origem no ambiente semítico como os babilônios, o hebreu transformou a lei babilônica no reconhecimento rico dos princípios da associação humana. Saindo, como outros povos, do deserto para a terra fértil, recusou aceitar as divindades da fertilidade. O Senhor Iavé não somente não tinha outro deus além dele, mas também não tinha qualquer deusa. No período do antropomorfismo cru, viu que a verdadeira semelhança de Deus com o homem está na sua natureza moral e não na sua aparência física”. 21 Quando outros povos criavam os seus deuses à sua própria imagem e se prostravam perante divindades inacessíveis, o corajoso herói do Livro de Jó declara: “Eis, ele me matará; não tenho esperança; contudo, defenderei os meus caminhos diante dele” (Jó 13.15). Assim se nota um novo entendimento do valor do Velho Testamento, nos últimos trinta anos, apesar da influência crescente da crítica literária da Bíblia. No seu estudo da filologia e da história do Oriente Próximo, W. F. Albright acentua a necessidade do avivamento da fé no Deus do Monte Sinai e no Senhor da história do povo de Israel.

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A. Victor Murray, Personal Experience and the Historic Faith) p. 96.

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R. H. Pfeiffer, depois de um estudo profundo da crítica literária, discute o interesse histórico, literário e religioso do Velho Testamento, pondo ênfase nele como a Escritura inspirada, a última fonte da doutrina básica da Igreja e da Sinagoga, e a única história do progresso religioso. H. H. Rowley, numa série de livros, discute o novo interesse na religião de Israel e a relevância do Velho Testamento para os homens modernos. Dá ênfase ao fato de que os escritores bíblicos eram homens falíveis, com suas imperfeições humanas, que Deus podia se revelar perfeitamente somente na personalidade perfeita, e que a encarnação era necessária para a plena revelação do Senhor. Rowley discute elaboradamente passagens no Antigo Testamento que interpretam incorretamente o propósito de Deus. Para ele qualquer interpretação das atividades de Deus, pelos escritores, que não concorda com o seu caráter revelado na Pessoa e nas atividades e ensinos de Cristo é devido ao entendimento errado de homens sinceros, mas limitados por fraquezas humanas e pelas circunstâncias da época. Todavia, o Velho Testamento representa não somente o esforço da parte do homem de encontrar-se com Deus, mas mostra também como Deus se revela ao povo de Israel nas atividades divinas em seu favor. Portanto, o Antigo Testamento é a história das experiências de comunhão do povo de Israel com Deus, e a resposta progressiva de Deus à fome espiritual dos homens. Na sua preleção, The Authority of the Bible, 1946, Rowley apresenta argumentos que considera “válidos perante o tribunal da razão” para estabelecer a autoridade da Bíblia, reconhecendo fatos e fenômenos irrelevantes para os Cientistas físicos. Segundo o seu argumento, o Antigo Testamento é relevante à medida em que concorde com a revelação de Deus em Cristo. Contudo, os dois Testamentos são complementos um do outro e o cristianismo não pode abandonar a primeira parte da sua Bíblia sem grande prejuízo da fé cristã. “A experiência cristã assegura-se adequadamente em Cristo Jesus somente quando se instrui pelos profetas e sal mistas na inter-relação de eventos históricos e a intuição religiosa. Desligada do ambiente hebraico, a experiência cristã tem sido freqüentemente pouco mais de um vago misticismo, que não é histórico e que encontra afinidades igualmente com Yogi e Bhakti e o Cristo da fé cristã”. 22 Ora, a Teologia do Velho Testamento, propriamente entendida e interpretada, não ignora, mas transcende os problemas da crítica literária, com as suas doutrinas imperecíveis. O desenvolvimento da religião de Israel através de um longo período de tempo e a luta contra influências de religiões contemporâneas complicam o problema. O famoso discurso de J. P. Gabler em 1787, sobre a distinção entre a teologia bíblica e a teologia dogmática, marcou o princípio de uma nova época nos métodos de estudar o Velho Testamento. Na sua obra The Theology of lhe Old Testament, publicada em 1904, A. B. Davidson fez uma distinção clara entre a Teologia Sistemática e a Teologia Bíblica. Na Teologia do Velho Testamento estudam-se as operações de Deus na introdução do seu reino entre o povo escolhido, como se apresentam nas Escrituras deste povo. Em 1922 Eduard König, na sua obra Theologie des Alten Testaments, despertou novo interesse na Teologia do Antigo Testamento. Ele introduziu a interpretação realística do Velho Testamento baseada nos métodos gramaticais e históricos. Depois de fazer um exame da história da religião de Israel, ele oferece o seu sistema de fatores e idéias que determinaram a história, mas o seu método não é muito satisfatório. A obra de Otto Eissfeldt, 1926, trata do problema da tensão entre a história e a revelação. Podese tratar da religião de Israel do ponto de vista puramente histórico ou pode-se discuti-la como a revelação de Deus. Os dois métodos, diz ele, são legítimos, mas deve-se guardar claramente a distinção nítida entre os dois sistemas de tratar a matéria. Segundo Eissfeldt, é impossível provar a revelação divina dentro da esfera dos eventos históricos. Otto Procksch apresenta argumento de que há mistérios e paradoxos, nas Escrituras, que escapam à interpretação histórica, e que o mundo espiritual apresenta-se à fé, mas fica escondido às faculdades vulgares de cognição. Hermann Schultz concorda, pelo menos em parte, com a tese de Procksch. Diz ele que nenhum documento histórico divulga a sua significação, senão à pessoa de 22

. Victor Murray, Personal Experience and the Historic Faith, p. 97

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simpatia e de um gosto e afeição. É também necessário um entendimento interno para apreciar propriamente a significação das Escrituras do Antigo Testamento. Eissfeldt identifica a revelação com as verdades eternas, mas não reconhece o fato de que o Velho Testamento se apresenta como a revelação, ou a comunicação direta de Deus com o seu povo escolhido. Em 1929 Walther Eichrodt publicou um artigo em defesa da realidade da revelação divina. Reconhecendo que a história, como tal, não pode pronunciar a última palavra sobre a verdade ou a falsidade de qualquer tese. Eichrodt afirma que o historiador da religião do Velho Testamento deve fazer um estudo cuidadoso do processo histórico para determinar as verdades constantes e permanentes da fé dos escritores bíblicos. Depois elaborou a doutrina da revelação na sua obra, a Teologia do Velho Testamento.23 Teólogos como Ernest Sellin, H. Wheeler Robinson, H. H. Rowley, W.J. Pythian-Adams, C.H. Dodd, A.G. Herbert, H. Cunliffe-Jones e outros tratam do problema da revelação de Deus nas Escrituras que discutiremos no capítulo seguinte. Os teólogos modernos reconhecem que não é possível fazer uma exposição adequada da Teologia do Velho Testamento, segundo as divisões tradicionais de Teologia, Antropologia e Soteriologia. Não apresentamos o nosso método de tratar a matéria como o único, ou como o melhor, mas esperamos que as exposições, segundo as divisões apresentadas, embora imperfeitas, abranjam os ensinos mais importantes e ponham em relevo as verdades eternas para os estudantes da primeira parte da Bíblia cristã.

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Emil Kraeling, The Old Testament Since the Reformation, e H. H. Rowley, The Old Testament and Modern Study, discutem o desenvolvimento da Teologia do Antigo Testamento.

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CAPÍTULO 2 A DOUTRINA BÍBLICA DA REVELAÇÃO DE DEUS As ciências bíblicas e os estudos históricos relacionados com a origem e a produção dos livros do Velho Testamento ajudam no esclarecimento e na interpretação da sua mensagem. Este esforço de descobrir o ambiente cultural da origem do Antigo Testamento põe ênfase no elemento humano da sua produção, mas não nega a doutrina bíblica da revelação divina. O Velho Testamento apresenta-se como obra de homens inspirados e orientados por Deus na transmissão da mensagem de Deus. Não se pode defender mais a posição extremista segundo a qual o próprio Deus ditou, palavra por palavra, as Escrituras Sagradas aos seus agentes humanos, que ficaram inteiramente passivos no ato de recebê-las e escrevê-las. Para o leitor cuidadoso da Bíblia, é bem claro que Deus usou os dons, a vontade, a disposição e a capacidade intelectual dos escritores na transmissão da sua mensagem. A palavra revelar significa tirar o véu ou remover a coberta que esconde um objeto para o expor à vista. No Antigo Testamento, o conceito limita-se exclusivamente à revelação do próprio Deus e dos mistérios divinos que o homem é incapaz de descobrir. A Psicologia dos Hebreus Todos os povos primitivos sentiam-se bem perto dos poderes sobre-humanos e os hebreus, no período da sua história, freqüentemente sentiram-se cônscios da comunhão direta com Deus, como aconteceu com Abraão, Isaque, Jacó, os juízes, os salmistas e os profetas. É característico dos escritores bíblicos, que raramente apresentam argumentos para provar a sua comunicação pessoal com Deus. Não explicam como Deus pode ser conhecido. O israelita reconheceu-se a si mesmo como criatura de Deus. Como não levantou dúvidas sobre a sua própria existência, assim também não podia duvidar da existência e da realidade de Deus. O conceito de Deus era-lhe perfeitamente natural. Vinda de uma fonte transcendente, a revelação escapa à nossa plena compreensão. Mas podemos estudá-la no seu contato com a experiência humana. No estudo da revelação temos que reconhecer a sua contraparte, a inspiração. Podemos analisar e estudar as atividades divinas à medida que se revelam à inteligência dos agentes ou veículos da revelação. Ora, os profetas bíblicos sempre estiveram plenamente certos de que o Senhor falava por intermédio deles. O hebreu pensava que o espírito do homem podia ser invadido facilmente por algum espírito externo ou uma energia de fora. Portanto, a inspiração, do ponto de vista do profeta, era a invasão do seu espírito (ruah) pelo Espírito do Senhor. Os profetas freqüentemente declaram que o Espírito do Senhor apoderou-se deles, e lhes deu entendimento e poder. O conceito que o profeta tinha da inspiração pelo Espírito do Senhor é muito diferente do êxtase do grego. O grego ficava extasiado quando a psyche deixava o seu corpo e vagava longe dele. O Velho Testamento não apresenta nenhum exemplo de um espírito desincorporado. Os que falam dos profetas extasiados perpetuam uma idéia que o hebreu não podia ter entendido. Apesar da falta do conhecimento da psicologia dos povos antigos por parte do homem moderno, sabemos que os elementos essenciais da revelação divina se expressaram segundo a psicologia hebraica. Toda revelação começa com Deus. A mão irresistível de Deus descansava sobre o profeta. Na sua comunicação com o homem, Deus não fica limitado pela psicologia do homem moderno. Entendendo-se a psicologia dos profetas, pode-se compreender mais claramente a operação do Espírito do Senhor na vontade e na vida do profeta. O hebreu não fazia, como nós, distinção nítida entre os fenômenos físicos e os fatos do mundo espiritual. Assim, compreendia, mais claramente do que o homem moderno, o significado das atividades de Deus na vida humana e na história. Esta fé na revelação direta de Deus ao homem idôneo é básica e fundamental para os escritores bíblicos. As teofanias, os antropomorfismos e as conversas entre Deus e homens nas narrativas bíblicas constituem problemas para intérpretes modernos que não entendem a mentalidade dos escritores. Em vez de pôr de lado os antropomorfismos bíblicos, devemos procurar entender os seus efeitos religiosos para os escritores. Estudantes da Bíblia e homens de fé persistem em falar do coração de Deus, da vista de 19


Deus e da voz de Deus, sem que pensem estar cometendo algum erro. Nota-se também que nos seus antropomorfismos os hebreus nunca atribuíram ao Deus de Israel as fraquezas humanas, as rivalidades e as injustiças que os povos contemporâneos viam nos seus deuses. Para o escritor do primeiro capítulo de Gênesis, Deus era transcendente e espiritual, o homem não era réplica física do seu Criador. O escritor expressa antes a sua profunda convicção de que o homem, em virtude da criação, tem afinidade espiritual com Deus, e, como Dor espiritual, pode gozar comunhão com o seu Criador. A intensidade da pregação do profeta, bem como a sua profunda sensibilidade espiritual, surgia do seu conceito de Deus. A sua mensagem era sempre teocêntrica. Deus é o assunto por excelência da profecia. É a comunhão pessoal do profeta com o Senhor que produz a fé, a coragem e o entendimento da vontade divina. O profeta se interessava principalmente nos problemas religiosos do seu povo, mas a Palavra do Deus vivo representava para ele o passado, o presente e o futuro. Sendo prático, o profeta tratava de problemas existentes, interpretando e aplicando a palavra revelada do Senhor às condições políticas e religiosas de seus contemporâneos. Assim a mensagem da justiça divina, interpretada pelos profetas bíblicos, tem valor eterno e aplicação universal na solução dos problemas da injustiça das corações sucessivas da humanidade. “Quando Deus chama os homens à justiça, não é porque seja mero capricho dele que os homens sejam justos. É porque ele mesmo é justo, e havendo criado o homem à sua imagem, deseja que reflita a sua própria justiça. Quando pede que os homens manifestem o espírito compassivo para com os fracos, é porque ele mesmo revelou este espírito na libertação do povo de Israel da escravidão do Egito”.24 Há um elemento de intuição na profecia, um característico do todas as religiões. O sentido de responsabilidade (value-judgment), que surge desta instituição religiosa, pede uma resposta completa da personalidade emocional, intelectual e volitiva. Assim os hebreus, com a sua psicologia, sem qualquer embaraço científico da sua mentalidade, não ficavam perturbados, como os homens modernos, por dúvidas sobre as suas experiências pessoais com Deus. A Revelação de Deus nas Obras da Criação O Velho Testamento não faz distinção especial entre a revelação geral ou natural, e a revelação direta aos escritores da Bíblia. Os teólogos têm várias opiniões sobre a revelação de Deus na natureza. Karl Barth afirma dogmaticamente que não há uma revelação geral. Emil Brunner25 crê firmemente na revelação divina nas obras da natureza, mas pensa que não é veículo da graça salvadora. Na exposição do Evangelho da graça de Deus em Cristo, o apóstolo Paulo apela, em Atos 14.15-17, ao testemunho das obras do céu e da terra à revelação divina, e à providência divina em dar aos ouvintes estações frutíferas, enchendo os seus corações de mantimentos e alegria. Também em Romanos 1.18-23, o Apóstolo declara que os gentios, ignorando a revelação de Deus nas obras da criação, ficam inescusáveis, por se entregarem à idolatria. A revelação natural não é necessariamente comunicada à humanidade por intermédio de homens inspirados em situações especiais da história, ao passo que a revelação bíblica é histórica, relacionando-se com uma série de pessoas e eventos históricos. O exército de Israel reconheceu o auxílio divino na trovoada sobre os filisteus (1 Sm 7.10). Não há no hebraico a palavra natureza, mas as obras do mundo físico, segundo os escritores bíblicos, dependem absolutamente de Deus, o seu Criador e Sustentador. Os hebreus não pensavam, como nós, nas leis da natureza. As operações no mundo físico, por exemplo, eram obras de Deus. O 24

H. Rowley, The Re-Discovery of the Old Testament, p. 190. John Bailie, Our Knowledge of God, pp. 17-34, explica a diferença entre os pontos de vistas destes teólogos. Segundo Barth, a imagem divina no homem foi completamente obliterada pela queda do homem. Brunner mantém que a forma da imagem permanece, mas a substância foi completamente perdida. Esta linguagem obscura quer dizer que o homem como criatura fica responsável diante de Deus, e ao mesmo tempo é incapaz de dar uma resposta justa a Deus. Estas opiniões relacionam-se apenas indiretamente com a Teologia do Velho Testamento. Mas os israelitas, especialmente os profetas, viram freqüentemente a mão de Deus operando em seu favor, através das obras da natureza (Js 10.10). 25

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trovão era a voz de Deus. Algumas religiões antigas personificaram o sol, a lua, as estrelas e o vento, e seus adeptos os adoraram. Alguns israelitas caíram nesta forma de idolatria, mas foram condenados (2 Reis 17.16). Como o controlador do mundo, Deus usa a natureza para revelar o seu poder, a sua sabedoria, a sua glória e a sua benignidade. “Aquele que faz as Plêiades e Oriom, Que torna as densas trevas em manhã, E escurece o dia como a noite; que chama as águas do mar, e as derrama sobre a terra; o Senhor é o seu nome” (Am 5.8). Também o capítulo 38 de Jó, Isaías 40.12 e 26, e os capítulos 8 e 9 de Provérbios apresentam em linguagem brilhante as maravilhas do poder e da sabedoria do Senhor da natureza. O Salmo 104 e outros explicam a revelação da glória e da benignidade do Senhor nas obras da criação. Assim, estas passagens e outras nos declaram que Deus se revela pelas obras do mundo físico. Outras religiões reconheceram elementos e forças da natureza como deuses. Mas os israelitas fiéis sempre viram atrás do mundo físico o Criador e Controlador dos céus e da terra. Ora, devemos lembrar que esta revelação de Deus nas Suas operações através das forças naturais, bem como nas suas atividades nos eventos da história, é-nos interpretada nas Escrituras por homens vocacionados e inspirados por Deus. Devido à psicologia dos hebreus, é difícil encontrar no Velho Testamento qualquer apoio do conceito moderno da revelação natural ou geral, no sentido de que o homem, sem qualquer orientação divina, é capaz de descobrir, nas obras da natureza, provas satisfatórias da existência de Deus. Deus Se Revela Diretamente aos Escritores Bíblicos Deus é conhecido, segundo o Velho Testamento, não porque os homens, nos seus esforços intelectuais, o descobriram, mas somente porque o próprio Deus se revelou. Homens de outras religiões falam das comunicações diretas com os seus deuses e das mensagens que deles receberam e transmitiram ao seu povo, mas é só na Bíblia que se apresenta a revelação no sentido restrito, persistente e coerente que apela cada vez mais poderosamente à razão e à natureza espiritual do homem. A fé e a razão caracterizam as experiências humanas, incluindo a religião bíblica, mas o conceito da revelação, no sentido restrito, pertence unicamente à Bíblia. Quanto ao problema de harmonizar a revelação bíblica com o conhecimento racional, queremos explicar de vez a nossa posição. Não temos dúvida nenhuma de que o processo da revelação transcende os poderes racionais do homem. Essencialmente a revelação bíblica é a comunicação de conhecimento da Pessoa de Deus (ou melhor, tripessoal de Deus). Ora, estas verdades a respeito da Pessoa, da vontade e dos planos de Deus que o homem não tem a capacidade de descobrir, mas uma vez comunicadas por Deus, no intercurso com homens idôneos, concordam perfeitamente com o conhecimento racional da humanidade. [Em sentido bíblico, “o conhecimento de Deus” não significa simplesmente o fato de possuir “informações a respeito de Deus”, mas sim uma auto-revelação de Deus em Cristo Jesus, que é capaz de proporcionar vida e trazer salvação].26 Este ponto de vista explica perfeitamente a necessidade da revelação bíblica. Evita também o erro dos teólogos que põem toda a revelação fora do alcance das categorias da razão humana. O problema surge por não se fazer distinção entre os dois sentidos do termo “revelação”. Quando se refere à revelação como a obra de Deus, o pleno sentido da palavra transcende o entendimento racional do homem. Quando, porém, a revelação se refere às verdades comunicadas, estas se tornam elementos do conhecimento que mais enriquecem a vida humana. Diz Reinhold Niebuhr: “Este é o enigma final da existência humana, para o qual não há resposta, exceto pela fé e esperança; pois todas as respostas transcendem às categorias da razão humana. Todavia, sem estas

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McGrath, E. Alister. Teologia, Histórica e Filosófica. Shedd Publicações

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respostas, a vida humana fica ameaçada por ceticismo e niilismo de um lado, e por fanatismo e orgulho de outro”. 27 Pergunta-se ao Professor Niebuhr: Em que sentido a resposta bíblica ao enigma da vida transcende as categorias da razão humana? A posição de Brunner, quanto ao problema da revelação, é mais extremista do que a de Niebuhr: “Como a fé cristã entende a revelação, ela é, de fato, pela sua própria natureza, um assunto além de todos os argumentos racionais. O argumento que ela apresenta em sua defesa não se acha na esfera de conhecimento racional, mas na esfera daquela verdade divina que pode ser alcançada somente pela própria comunicação divina, e não por pesquisa de qualquer espécie”.28 Nota-se também aqui o fato de não ser feita distinção entre a obra divina da comunicação e as verdades comunicadas. Segundo o conceito bíblico, o homem não recebe, no processo da revelação, doutrinas teológicas acerca de Deus, mas recebe conhecimento pessoal do Senhor, da sua majestade, santidade e glória. Recebe também conhecimento da justiça do Senhor, do seu propósito e da sua vontade para com o seu povo. A essência da revelação bíblica é o intercurso de inteligências. Para os escritores bíblicos, a revelação não era um ensaio filosófico ou uma experiência intelectual. Era uma experiência profundamente religiosa, plenamente confirmada pela inteligência. Para os profetas, a matéria da revelação não era o conhecimento sobrenatural ou além do entendimento humano, nem mesmo a divulgação de eventos futuros, mas o conhecimento pessoal de Deus. Coisas secundárias acompanhavam, ou se deduziam da revelação, mas a Pessoa e o propósito do Senhor eram sempre fundamentais. Deus se revela por suas atividades na vida e na história do seu povo, escolhido para ser a sua possessão peculiar dentre todos os povos do mundo (Êx 19.4,5; 20.2). Um fato básico para todos os escritores do Velho Testamento é a libertação de Israel da escravidão no Egito (Êx 19.4). Em toda a história subseqüente, os escritores do Velho Testamento mantiveram a firme o inabalável convicção de que o Senhor Iavé tinha concedido a salvação a Israel escravizado, e no seu amor eletivo o tinha escolhido para ser o seu povo peculiar. Pelas atividades constantes do Senhor, em favor de Israel, através de todas as vicissitudes da história, ele revelou o seu hesed (desex), 29 o seu amor firme, fiel, constante e imutável. Na sua cegueira e obstinação, Israel nem sempre reconheceu o propósito divino nas atividades misericordiosas de Deus na sua vida nacional. “A história de Israel tinha muitos dos mesmos característicos da nossa história contemporânea, a mesma qualidade de nossas experiências pessoais, nos acontecimentos diários da nossa vida. Mas apresenta-se de tal modo que se vê nela profunda significação. Segundo o nosso poder de entender, a nossa vida e a nossa história contemporânea não têm tanto significado. A história bíblica é de tanta importância porque em toda parte ela se relaciona com a realidade fundamental, que é a base de toda a história e da toda a experiência humana, o Deus Vivo no seu reino”. 30 Na orientação persistente de Israel, Deus levantou os seus mensageiros para interpretar a sua vontade e o seu propósito na escolha deste povo. Os profetas apresentavam ao povo as suas credenciais pela convicção inabalável de que eram portadores da palavra (dabar - rfbfD)31 de Deus, e pela qualidade da mensagem que lhe transmitiam. O fato essencial da revelação é a verdadeira atividade de Deus na vida do povo através de seus agentes, os profetas. O mais alto conceito da 27

Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, Vol. II, p. 149. Emil Brunner, Revelation and reason, p. 206. 29 Hesed. Não se pode traduzir nitidamente a palavra hesed. A tradução comum das versões em português é misericórdia, bondade, benignidade, mas estas palavras todas são inadequadas para dar o pleno sentido do termo. A palavra relaciona-se intimamente com o fator de Deus nas suas atividades providenciais na história de Israel. A Palavra significa o amor firme, persistente, imutável, no cumprimento das promessas do seu concerto com Israel, mesmo quando o povo falhava e se mostrava indigno. A palavra sempre acentua a: fidelidade de Deus para com o seu concerto com Israel. Os hasidim são os piedosos, os fiéis, os santos que responderam com confiança ao amor fiel do Senhor. O hesed divino sempre buscava a comunhão espiritual com Israel para criar nele o amor fiel a Deus. Assim se vê que é quase o equivalente da graça divina. 30 C. H. Dodd, The Bible To-day, p. 14. 31 Dabar significa comunicação do Senhor, mensagem, mandamento, ordem ou promessa. O Logos do Novo Testamento relaciona-se com Dabar do Senhor. 28

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religião é a fraternidade entre Deus e o homem, mas não pode haver fraternidade quando a comunicação se limita ao homem. Se Deus ficasse eternamente silencioso, a religião seria a mais triste de todas as decepções humanas, e esta experiência espiritual da personalidade humana seria a mais cruel ilusão do universo irracional. O profeta confiava absolutamente na fidelidade do Senhor quanto ao cumprimento de suas promessas, e a realização de seus propósitos, não obstante a infidelidade do povo. Estes propósitos, segundo os escritores bíblicos, sempre representaram a justiça e a misericórdia de Deus, em contraste notável com os caprichos dos deuses dos povos contemporâneos de Israel. “O que dá à profecia do Velho Testamento a sua qualidade singular é a riqueza da revelação divina por intermédio dos seus maiores vultos. Os profetas não eram homens perfeitos, e não precisamos idealizá-las para aumentar a sua glória. Eram homens que conheciam a sua íntima fraternidade com Deus, aos quais era transmitido algo do espírito do Senhor. Eram homens que contemplavam o mundo à luz do que tinham visto no coração de Deus, homens que falavam porque eram constrangidos, e não porque queriam falar, aos quais Deus impusera a obrigação de transmitir a sua mensagem. Entregavam a palavra relevante não somente às necessidades da hora, mas de importância permanente para os homens”. 32 Os escritores do Antigo Testamento não faziam uma distinção formal entre a revelação geral e a revelação especial. Deus é conhecido em parte por todas as suas operações no mundo físico e na consciência do homem. Dotado para reconhecer a mão de Deus nas obras da criação, o homem não tem a capacidade de adquirir, no seu estudo das maravilhas da natureza, o conhecimento de Deus que o seu coração pede. Na revelação especial, por intermédio de seus agentes vocacionados e inspirados, Deus confirma e aumenta o conhecimento que constantemente transmite na manutenção do mundo físico em condições de preservar a vida humana e satisfazer às suas necessidades. Deus é a fonte da vida, e o conhecimento dele introduz o homem a uma vida cada vez mais perfeita (Sl 19). Para reforçar o que já notamos, não se encontra no Antigo Testamento a mínima justificação da idéia de que o homem possa alcançar, por seus próprios esforços, sem o auxílio divino, qualquer conhecimento do. Senhor. O Criador opera, a criatura contempla; o Senhor se apresenta, o homem percebe; o Senhor fala, o homem ouve; o Senhor se revela, e o homem entende algo da sua majestade, da sua santidade, da sua justiça e da sua glória. Deus chega aos homens por meio das suas ações benignas o por intermédio dos seus mensageiros. No seu concerto Deus entra em relações pessoais com Israel. Assim a revelação própria de Deus é reconhecida em todas as páginas do Velho Testamento. O Criador do homem não fica escondido, nem tão preocupado com a grandeza das suas obras que não possa reconhecer e atender às necessidades das ovelhas de seu pasto (Jr 23.1). O seu Espírito opera constantemente em favor da humanidade. O seu cuidado se estende a todas as obras da criação (Sl 145). Há cegos e obstinados que não reconhecem a autoridade de Deus. Os profetas e salmistas explicam como as dúvidas quanto no poder de Deus devem ser corrigidas pela observação das suas maravilhosas obras (Is 40.25,26). No Salmo 94.3 e seg., o salmista corrige as idéias falsas dos ímpios de Israel. “Ó Senhor, até quando os ímpios, até quando os perversos exultarão? Derramam as suas palavras arrogantes, todos os malfeitores se vangloriam. Esmigalham o teu povo, Senhor, e afligem a tua herança. Matam a viúva e o peregrino, e tiram a vida do órfão; Então dizem: O Senhor não vê; não percebe o Deus de Jacó. Entendei, insensatos dentre o povo! Néscios, quando sereis sábios? Quem plantou os ouvidos, não ouve? Quem formou os olhos, não vê? Quem disciplina as gentes, não castiga?”. A Revelação da Pessoa de Deus no Velho Testamento É Incompleta Não há em qualquer parte do Antigo Testamento a mínima sugestão de que Deus tenha revelado aos profetas o conhecimento completo da sua Pessoa. A mensagem de cada um dos escritores era limitada pela capacidade do autor, e pelas circunstâncias religiosas do povo da época. Mas todos 32

H. H. Rowley, The Faith of Israel, p. 39

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os mensageiros de Deus concordam na exposição das verdades eternas da revelação divina. É evidente que apresentaram alguns ensinos de valor temporário para o seu povo contemporâneo, e que têm Importância apenas histórica tanto para judeus como para cristãos. Há, todavia, verdades teológicas no Velho Testamento que Deus revelou progressivamente por intermédio de seus mensageiros. São estas doutrinas que prendem especialmente o nosso interesse neste estudo. A revelação se fez “em muitas partes e de muitas maneiras”. Um profeta, por exemplo, estava preparado, nas circunstâncias em que se achava, para entender, receber e transmitir, embora imperfeitamente, a santidade do Senhor. Outro estava preparado para entender e receber, em parte, a revelação da justiça divina. A outros foi revelado, “em muitas partes e de muitas maneiras”, o amor fiel de Deus. A todos os profetas foi revelada alguma coisa dos propósitos de Deus para com o povo escolhido, de acordo com as condições políticas e religiosas da época. Mas é claro que nenhum profeta, nem todos juntos puderam dar uma revelação exaustiva da Pessoa de Deus e dos mistérios de todos os seus propósitos. Quanto ao modo de comunicar-se, Deus podia falar a Moisés “Como qualquer um fala com o seu amigo”, ou nos relâmpagos e trovões do Sinai , ou na voz mansa e delicada dirigida ao profeta Elias, ou na nuvem de fumaça sobre a arca do tabernáculo. Todos estes símbolos, e outros meios usados, significam a presença de Deus, indicando ao mesmo tempo que, na plenitude da sua Pessoa. Deus não pode ser conhecido perfeitamente pelos poderes intelectuais do homem. Os meios técnicos usados por outros povos primitivos, no esforço de descobrir a vontade de seus deuses, como a sorte, sonhos e augúrios, usavam-se também pelos israelitas em certos períodos e circunstâncias da sua história, mas são condenados ou abandonados mais tarde pelos profetas, como incompatíveis com a fé espiritual da profecia (Am 3.7; Jr 23.27). Assim o conteúdo da revelação é o Deus verdadeiro, o Deus vivo, o rei sempiterno (Jr 10.10). Deus se revela como o Senhor cujos caminhos são mais altos do que os nossos caminhos, e cujos pensamentos são mais altos do que os nossos pensamentos (Is 55.8). Na linguagem bíblica, o caráter pessoal do Senhor revela-se em seu Nome. No Antigo Testamento, o nome significa o que nós designamos por personalidade. Assim, na revelação do seu Nome a Moisés, Deus lhe comunicou conhecimento da sua Pessoa (Êx 3.11-15). Deus então veio a ser notavelmente acessível a Moisés. Falou com ele “como qualquer fala com o seu amigo” (Êx 33.11), e fez passar por diante dele toda a sua bondade (Êx 33.19). Na comunicação do seu Nome, Deus estabelece comunhão pessoal com o seu povo (1 Reis 1.29; Sl 9.9 e seg.). Ao passo que o Antigo Testamento reconhece claramente a impossibilidade de uma revelação perfeita de Deus ao entendimento limitado do homem, não concorda com o conceito filosóficoteológico de que Deus é “completamente outro”. Estritamente falando, o Velho Testamento apresenta um modo de pensar sobre a relação de Deus com a humanidade, antes que uma doutrina formal de Deus. A afinidade espiritual entre Deus e o homem é plenamente confirmada pelo descanso do espírito do homem na comunhão com o Espírito do Senhor. “Quanto a mim, como justiça, verei a tua face; Satisfar-me-ei quando acordar na tua semelhança” (Sl 17.15). Embora não seja possível a comunicação completa da natureza do Senhor ao homem, a revelação concedida aos escritores do Antigo Testamento é de Deus mesmo. É real, é verdadeira, é necessária, é aproveitável para o homem, embora seja incompleta. Os israelitas entenderam, talvez melhor do que o homem moderno, a verdade da transcendência de Deus, reconhecendo que não é físico, mas Espírito pessoal, justo e benigno, e sempre coerente em falar e atuar de acordo com a sua natureza santa. A Distinção entre a Revelação e a Inspiração Como se faz distinção entre a teologia do Velho Testamento e a história da religião do povo de Israel, assim se faz distinção também entre a revelação e a inspiração. A revelação é obra exclusiva de Deus. É a comunicação do conhecimento da sua Pessoa, de seus propósitos e da sua vontade ao homem incapaz de descobrir, pelos poderes do seu próprio intelecto, estas verdades divinas. É o processo pelo qual Deus se faz conhecido ao homem.

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A inspiração é o termo que descreve, no sentido bíblico, a habilitação dos escritores que produziram os livros da Bíblia. A inspiração significa a atuação do Espírito de Deus no espírito de homens idôneos, escolhidos para receberem e transmitirem as mensagens da revelação divina. Ora, com o estudo cuidadoso do estilo literário e do assunto dos livros do Velho Testamento, escritos através de um longo período da história de Israel, torna-se bem claro que a inspiração foi condicionada ou limitada pela experiência, cultura e capacidade intelectual dos escritores, ou pelos seus dons. Deus não podia usar homens voluntariosos e rebeldes contra a vontade divina, mas podia constranger homens retos e bons, como Jeremias, contra a sua preferência pessoal, para receber e transmitir, ao povo obstinado e rebelde, a mensagem do Senhor, mesmo quando tinham que enfrentar os perigos da perseguição e da morte. Os escritores ficaram habilitados para receber e transmitir tanto da verdade quanto o povo podia entender e aproveitar. Quando reconhecemos que a inspiração não anulou a personalidade dos escritores bíblicos, mas que fatores humanos e divinos operam juntos na produção dos livros do Velho Testamento, através de longos períodos históricos, não podemos deixar de reconhecer mudanças no ponto de vista dos escritores. Quando encontramos conceitos imperfeitos de Deus nos livros históricos, podemos reconhecer o desenvolvimento destes conceitos nos livros proféticos, não porque Deus mudou, mas porque, com amor fiel, hesed,33 amparou o povo através das crises da sua história, e, com as suas profundas experiências religiosas, os profetas ficaram habilitados para entender mais perfeitamente a santidade, a justiça e a benignidade do Senhor. Não devemos ficar perturbados com os dois pontos de vista quanto à fundação da monarquia. Há valores religiosos nos dois, como se vê na leitura cuidadosa de Samuel. Quando notamos que a Babilônia não foi destruída pelos medos, segundo as predições de Is 13.17 e Jr 51.11, mas pelos persas, sob a liderança de Ciro, não ficamos desconfiados da inspiração destes mensageiros de Deus, porque na sua essência a predição foi cumprida. Os problemas morais, bem como as discrepâncias literárias do Velho Testamento, resolvem-se à luz das limitações humanas dos escritores, embora inspirados pelo Espírito do Senhor. À luz destes fatos, entende-se claramente a unidade da revelação de Deus nas Escrituras. A declaração dogmática de que a Bíblia é a palavra de Deus, e deve ser aceita pela fé, é suficiente para muitas pessoas, mas pode ter o efeito de afastar outros que querem saber de provas razoáveis em sua defesa. Deve-se notar, todavia, que a Bíblia não foi escrita meramente para satisfazer à curiosidade intelectual do homem, mas para lhe revelar a vontade e o propósito do Senhor na salvação. A pregação da mensagem da Bíblia é uma poderosa defesa da sua verdade. Mas a fé tem que acompanhar a convicção intelectual da verdade da revelação divina. A finalidade ou o propósito de Deus na revelação é mais do que o esclarecimento intelectual ou a instrução do povo em doutrinas teológicas. Tem por fim o estabelecimento de uma relação pessoal entre Deus e os homens. “Andarei no meio de vós, e eu vos serei por Deus, e vós me sereis por povo” (Lv 26.12). Deus revelou o seu amor (‘ahabah - hfbAha))34 no concerto que fez com os patriarcas (Gn 17.1-6), e mais tarde com Israel no Monte Sinai (Êx 19.4-6). Demonstrou o seu amor imutável (hesed) nas atividades persistentes em favor de Israel através da sua história, e especialmente em períodos de crise e calamidade.35 Alguns profetas interpretaram o significado do concerto pela figura do 33

Hesed significa o amor firme, persistente, imutável, no cumprimento das promessas de seu concerto com Israel, mesmo quando o povo falhava. 34 ‘ahabah. O substantivo descreve o amor do marido pela esposa (Gn 29.20). O amor de Deus por seu povo é designado pela mesma palavra (Dt 7.8; 2Cr 2.11). A afeição de Jonas por Davi (1 Sm 18.3; 20.17; 2 Sm 1.16). 35 Norman H. Snaith, The Distinctive Ideas of the Old Testament, p. 102. “Maravilhoso como é o amor de Deus para com o seu povo do concerto, a sua persistência resoluta neste amor é ainda mais extraordinária. A mais importante de todas as idéias distintivas do Velho Testamento é esta persistência resoluta e maravilhosa em continuar a amar a Israel errante, apesar da sua obstinação insistente”.

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casamento (Os 2.19; Jr 3.14). A frase “a palavra de Deus” descreve a orientação divina que Israel recebia constantemente por intermédio dos profetas. Todas as atividades divinas em favor de Israel são coerentes e harmoniosas no testemunho da fidelidade do Senhor no cumprimento fiel dos seus planos e das suas promessas em favor do povo escolhido. Não obstante a desobediência obstinada, e as freqüentes revoltas de Israel contra “a palavra de Deus”, o Senhor, pelos maravilhosos recursos do seu hesed, disciplinou e guiou o seu povo escolhido, segundo a justiça divina, no desempenho da sua missão sacerdotal no mundo (Êx 19.6; Is 2.1-3; 49.6). A Autoridade do Velho Testamento Pode-se dizer em resumo que a autoridade do Velho Testamento é a autoridade da verdade, da verdade moral e religiosa que transcende a esfera científica. Não se pode negar que certas partes de seus livros não têm autoridade universal, mas serviram para orientar o povo do concerto na sua vida no meio de outras nações, no período formativo de treinamento para receber a revelação divina, livre das influências das superstições e da idolatria dos vizinhos. Mas estas partes do Velho Testamento tiveram a sua função, e conseguiram a sua finalidade. Como o andaime não constitui uma parte permanente do edifício, assim há certas leis e ritos cerimoniais que tiveram o seu lugar no preparo do povo escolhido para o desempenho da sua missão, mas não fazem parte das verdades eternas e imutáveis das Escrituras Sagradas. Estas partes tiveram apenas autoridade limitada e temporária. Se é verdade que o homem depende forçosamente de poderes sobre-humanos, o único poder que satisfaz à sua necessidade espiritual é o Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra. Os ensinos bíblicos do Deus pessoal, santo, justo e misericordioso, Autor da vida, com autoridade absoluta sobre todos os corpos celestes e todas as criaturas nos céus e na terra não se submetem às provas científicas, à parte da fé. Mas é poderoso o apelo de Deus ao espírito faminto do homem.36 Como os problemas intelectuais de Já foram resolvidos pelo restabelecimento da comunhão pessoal com o Senhor, assim o homem que aceita pela fé o Deus da Bíblia descobre que o Autor da vida está sempre com ele, operando em tudo para o bem espiritual da sua vida. A lei moral apresentada no Velho Testamento é tacitamente aceita por todos os povos civilizados do mundo moderno. No exercício do seu livre arbítrio, o homem pode pisar os Dez Mandamentos, mas não pode mudá-las, nem apagá-las da consciência humana. Como Sócrates exclamou ao seu amigo: “Diga antes, amado Agatom, que não podes refutar a verdade, pois é fácil refutar as opiniões de Sócrates”. A continuidade, a coerência, a unidade e a harmonia de todas as partes dos ensinos fundamentais do Antigo Testamento, nas várias épocas da história, representam a orientação dos profetas por uma inteligência superior. Ora, a verdade da revelação de Deus37 nas escrituras bíblicas, como a verdade de proposições comuns, deve ser julgada pelo conjunto de todas as provas. Seguindo este modo de julgar, o caráter de Deus apresentado no Velho Testamento não pode ser explicado, senão de acordo com o próprio testemunho coerente, persistente e unânime de escritores que tiveram a firme convicção de que tinham recebido do Senhor as suas mensagens. 36

John Bailie, OUT Knowledge of God, p. 3: “Nenhum de nós jamais foi abandonado por Deus. A nenhum de nós é permitida uma vida puramente humana, em paz perfeita .... Nunca podemos alcançar a suficiência própria que tão impiedosamente desejamos. Podemos viver no esquecimento de Deus, mas não com a paz intelectual ou espiritual. Podemos viver sem a bênção do Senhor, mas não sem o juízo dele”.

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Christopher R. North, The Thought of the Ola Testament, p. 48: “Os Dez Mandamentos no Velho Testamento correspondem ao Sermão do Monte no Novo. É: uma comparação inadequada, talvez, mas o princípio básico é o mesmo. Hoje em dia, põe-se ênfase nos estudos do Novo Testamento, como nele se apresentam, e não como em um código superior de ensinos morais. Assim se estuda o Novo Testamento com a história das Boas-Novas do que Deus fez cm Cristo para salvar os homens dos seus pecados. É porque Deus se encontrou com o homem na história, na Cruz e na Ressurreição de Cristo, que o homem deve agora amar a Deus e o seu próximo. A religião do Velho Testamento representa o mesmo princípio. Deus, na sua graça, entrou no concerto com Israel na ocasião do êxodo, um evento na história; portanto ... a lei é apenas corolário”.

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CAPÍTULO 3 A DOUTRINA DE DEUS O CONHECIMENTO DE DEUS SEGUNDO O VELHO TESTAMENTO Para os escritores do Velho Testamento não surgiram dúvidas sobre a existência de Deus. Não julgaram necessária a apresentação de argumentos para estabelecer a prova da existência de Deus. 38 O autor do livro de Jó levantou questões sobre a injustiça aparente das operações de Deus na sociedade humana, e especialmente na prova severa da fidelidade do grande sofredor. O livro, porém, em vez de levantar dúvidas sobre a realidade de Deus, apresenta argumentos para provar aos teólogos da época e aos incrédulos do mundo que Já representa as pessoas religiosas que amam e servem desinteressadamente o Senhor da justiça. A declaração do insensato, “Não há Deus” (Sl 14.1), significa apenas que Deus não se manifesta. Este insensato representa aquela classe de pessoas que se esquecem de Deus, ou pensam “que a sua iniqüidade não há de ser descoberta e detestada” (Sl 36.2). Nas suas múltiplas atividades pecaminosas esquecem-se de Deus, banindo-o de seus pensamentos, como o criminoso se esquece da existência da lei, ou espera que seja possível evitar as conseqüências da justiça. Note-se o contraste entre o ponto de vista dos escritores bíblicos e o dos homens modernos. Os cientistas da civilização moderna, com raras exceções, focalizam os seus interesses nos benefícios e nos confortos físicos oferecidos pelo estudo da ciência. Para estes a realidade de Deus é uma questão de pouca importância. Mas até o cientista, despertado pelo fato de “que o homem não vive só de pão” (Dt 8.3), pode reconhecer que a sua felicidade depende finalmente da sua relação com o Senhor da vida. Ora, está sendo cada vez mais claramente reconhecida a importância de entender a psicologia dos escritores bíblicos, a fim de compreender e apreciar o valor dos seus ensinos teológicos.39 No Antigo Testamento Deus se apresenta nas experiências religiosas dos homens, e não nas suas especulações filosóficas. Os profetas baseiam todos os seus ensinos na certeza inabalável do conhecimento que Deus lhes transmitiu nas suas comunicações diretas com eles. O Senhor, cuja realidade é plenamente reconhecida, pode ser conhecido quando ele toma a iniciativa nas comunicações com o homem.' A premissa básica de todos os escritores da Bíblia é que Deus pode ser conhecido. Mas eles ensinam também como Deus pode ser conhecido, reconhecendo sempre que é conhecido à medida que se revela a si mesmo nas suas comunicações aos homens. Os profetas oferecem ensinos importantes não somente sobre a possibilidade de conhecer a Deus, mas também explicam os meios pelos quais Deus transmite aos homens o conhecimento da sua Pessoa e da sua vontade. A certeza de que Deus pode ser conhecido não se refere à questão da existência de Deus, que é sempre reconhecida e nunca posta em dúvida. As Escrituras pressupõem não somente que Deus pode ser conhecido, mas que realmente é conhecido, porque ele se revela a si mesmo. Ora, Deus não se revela aos espíritos que não querem conhecê-lo, mas, na abundância da sua graça, ele se faz conhecido às pessoas sensíveis que almejam receber conhecimento da pessoa e da vontade do seu Criador. O conhecimento de Deus revelado aos homens é justamente aquele que satisfaz à fome da sua natureza espiritual. A palavra hebraica Yāda‘ ((adfy) significa “conhecer pessoalmente” (Gn 12.11; Êx 33.17; Dt 34.10); “conhecer por experiência” (Js 23.14); “ganhar conhecimento” (Sl 119:152); “conhecer o caráter de uma pessoa” (2 Sm 3.25); “ter relações amistosas com alguém” (Gn 29.5; Êx 1.8; Jó 42.11); “conhecer a Deus” (Êx 5.2). A palavra também descreve o profundo conhecimento que Deus tem de pessoas (Os 5.3; Jó 11.11; 1 Reis 8.30; 2 Sm 7.30; Sl 1.6). O conhecimento de Deus resulta em 38

Millar Burrows, An Outline of Biblical Theology, p. 55, “Para a teologia bíblica não há o problema da existência: de Deus. É antes a teologia natural e não a teologia revelada, que se interessa por este assunto”. Ver também H. H. Rowley, The Faith of Israel, p. 48. 39 H. Wheeler Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testament, 1946. Nesta obra o autor discute amplamente a psicologia dos hebreus.

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adoração e obediência inteligente à sua vontade (Jz 2.10; 1 Sm 2.12; Os 8.2; Sl 79.6). Segundo os profetas, o conhecimento de Deus é o discernimento da natureza divina por parte do conhecedor que fica habilitado a reconhecer as verdadeiras manifestações ou revelações da natureza e da vontade do Senhor. O vocabulário da revelação: 40 Essas passagens (Sl 103.7; Ex 6.3; Nm 12.6-8; Ez 20.5) usam as formas passivas ou reflexiva do verbo Yada‘ ((adfy), “conhecer”, ra’â, “ver”, e a forma intensiva do verbo dabar – rfbfD, “falar”. Todos esses verbos são palavras cognitivas. O hebraico não possui um substantivo que signifique “revelação”; possui o verbo galâ – hflfG, “revelar”. A raiz ocorre cerca de 180 vezes no Antigo Testamento. Ela contém dois conceitos básicos: “desvendar”, “revelar”, e “ir embora”, “ser aberto” (Jr 32.11,14). Em alguns casos refere-se à revelação do próprio Iavé. É usada em Gn 35.7 () em referência à ocasião em que Deus apareceu a Jacó em Betel, quando este fugia de Esaú. “E edificou ali um altar e ao lugar chamou El-Betel; porque ali Deus se lhe revelou (Ul:gin) [perf. Nifal] quando fugia da presença de seu irmão”. A forma participial nifal de gālâ é usada em Dt 29.29 () em referência à Tora como “as[coisas] reveladas”: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas (tol:giNh a : w) pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei”. Esse versículo indica que algumas coisas são reveladas e eles eram responsáveis por executá-las, enquanto algumas eram secretas (não reveladas). Eles não tinham conhecimento delas. Eles não tinham responsabilidade por coisas não reveladas. Os versículos 21-27 de Dt 29 referem-se a uma época em que Israel quebraria a aliança, cultuando outros deuses, e isso os levaria ao exílio. Eles tinham sido alertados que isso ocorreria se não obedecessem às palavras reveladas da lei. Peter Craigie disse que seria pretensão supor que essa revelação lhes dava conhecimento total de Deus. “Talvez jamais seja possível conhecer todas as coisas, as coisas encobertas, pois a mente humana é restrita pelos limites de sua infinitude [...] e é possível conhecer a Deus de um modo profundo e vivo, por meio de sua graça, sem jamais ter captado ou compreendido as coisas encobertas”. A palavra gālâ é usada em referência a uma época em que Samuel não conhecia o Senhor. “Porém Samuel ainda não conhecia [helGf iy] o Senhor, e ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do SENHOR” (1Sm 3.7). Conhecia (helfGiy) [imperf. Nifal]. Usa-se gālâ em 2Sm 7.27 quando Davi alegou que o Senhor dos Exércitos “descobriu seus ouvidos”, revelando-lhe que Deus lhe construiria uma casa – ou seja, uma dinastia. Isaías afirmou que Deus “desvendou-se” ou “revelou-se” aos ouvidos de Isaías, dizendo que o pecado que o profeta havia identificado não seria perdoado (Is 22.24). O termo gālâ é usado para falar da revelação da palavra de Iavé (1Sm 2.27), de sua glória (Is 40.5), de seu braço (Is 53.1), de sua salvação (Is 56.1), das coisas secretas Dt 29.29; Am 3.7) e do mistério (Dn 2.19,22,28,29,30,47). O povo no Antigo Testamento cria que Deus havia se revelado muitas vezes, mas em modos, lugares e momentos escolhidos por ele.

O significado da revelação: 41 O Antigo Testamento fala com freqüência em “conhecer” (Yada‘) ou “não conhecer” Iavé (compare Is 1.3; Jr 2.8; 4.22; 31.34; Os 2.20; 4.1,6; 5.3,4; 6.6; 13.4). O conhecimento no Antigo Testamento é bem diferente de nosso entendimento do termo. Para nós, conhecimento implica compreender coisas pela razão, analisar e buscar relações de causa e efeito. No Antigo Testamento, conhecimento significa “comunhão”, “familiaridade íntima com alguém ou algo”. Falando em Nome de Deus a Israel, Amós disse: de todas as famílias da terra a vós somente conheci; portanto, todas as vossas injustiças visitarei sobre vós. (Am 3.2, ARC).

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Ralph L. Smith. Teologia do Antigo Testamento. p. 94-95. Ralph L. Smith. Op. Cit., p. 95-96.

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Vriezen disse que o Antigo Testamento faz do “conhecimento de Deus” a primeira exigência da vida, jamais explica o significado do termo. O propósito da revelação divina não é declarado especificamente no Antigo Testamento. A revelação não se baseia em alguma necessidade de Deus. Deus não criou o mundo nem revela a si mesmo para ter alguém que guarde o sábado, como diziam alguns rabinos antigos. O conhecimento de Deus é mais que um mero conhecimento intelectual; diz respeito à vida humana como um todo. É essencialmente uma comunhão com Deus e é também fé; é um conhecimento do coração que exige o amor do homem (Dt 4); sua exigência vital é que o homem aja de acordo com a vontade de Deus e ande humildemente nos caminhos do Senhor (Mq 6.8). É o reconhecimento de Deus como Deus, a rendição total a Deus como Senhor. Gerhard Von Rad entende que “o conhecimento de Deus” significa “compromisso”, “confiança”, obediência à vontade divina”. O conhecimento efetivo de Deus é a única coisa que coloca uma pessoa num relacionamento correto com os objetos de sua percepção. “A fé – como é comum crer hoje – não obstrui o conhecimento; pelo contrário, ela o libera”. Assim, “conhecer a Iavé” é ser obediente a ele, ter um compromisso com ele. “Não conhecer a Deus” significa “rebelar-se contra ele”, “negar o compromisso com ele”. Em Oséias, o significado do termo “conhecimento de Deus” é ampliado para incluir a moralidade do israelita como indivíduo. O conhecimento de Deus pode ser identificado como a prática da moralidade hebraica tradicional, integridade moral (Os 4.1,2). A expressão hebraica “o conhecimento de Deus” traz assim pelo menos três conotações: (1) o sentido intelectual, (2) o sentido emocional e (3) o sentido volitivo. O verbo “conhecer” (yada’) refere-se basicamente ao que chamamos atividade intelectual, cognitiva; mas a psicologia hebraica não conhecia uma faculdade específica que compreendesse o intelecto ou a razão. O hebraico não possui uma palavra que signifique “cérebro”. A palavra mais comum usada em lugar de “mente” em hebraico é “coração”, LEB (b”l) e LEBAB (bfb”l) (1 Sm 9.20; Is 46.8). O coração considerado sede do intelecto, bem como da vontade e das emoções. O hebraico antigo não supunha que as pessoas pensavam com a mente, sentiam com as emoções e tomavam decisões com a vontade. Todas essas atividades eram desempenhadas pela pessoa como um todo. No sentido metafórico, leb é a sede da vida espiritual e intelectual do homem, a natureza íntima da pessoa. Aqui se vê com clareza especial a conexão estreita entre os processos espirituais e intelectuais, e as reações funcionais da atividade do coração. Explica-se, assim o contato, estreito de Leb e de Nefesh (alma) que podem ser até intercambiados (Js 22.5; 1 Sm 2.35; Dt 6.5). No Antigo Testamento leb também é a sede do sentir, pensar e desejar do homem. “Conhecer a Deus” significava ter um entendimento intelectual de quem ele era, ter um relacionamento pessoal e emocional com ele e ser obediente sua aliança e mandamentos. Um verdadeiro conhecimento de Deus sempre resultava numa conduta ética Jeremias disse ao perverso rei Jeoiaquim a respeito de seu pai justo: Acaso, teu pai não comeu, e bebeu, e não exercitou o juízo e a justiça? Por isso, tudo lhe sucedeu bem. Julgou a causa do aflito e do necessitado; por isso, tudo lhe ia bem...Porventura, não é isso conhecer-me? — diz o SENHOR. (Jr 22.15-16). “Não conhecer a Deus” no Antigo Testamento não significa necessariamente ignorância acerca de Deus; às vezes significa falta de disposição para obedecer a ele. Este conhecimento de Deus, da parte do homem, é o seu intercurso com Deus. É tão real, tão verdadeiro como o seu intercurso pessoal com qualquer outra pessoa. É a qualidade de conhecimento que resulta de relações intelectuais da consciência de uma pessoa com qualquer outra consciência pessoal. É independente do mundo físico justamente como é independente o conhecimento do leitor destas linhas dos seus próprios pensamentos. Assim entendem e assim interpretam as suas experiências com Deus, não somente os escritores da Bíblia, como também as pessoas que nos tempos modernos têm tido experiências profundamente religiosas. “As relações mútuas de pessoas parecem ser justamente aquelas que exibem mais perfeitamente a relação do espírito pessoal com a Realidade

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Suprema, com a experiência que chamamos Religião”.42 Diz Baillie, por outro lado: “É no esforço prolongado de entender a nossa relação com Deus que chegamos a entender melhor as nossas relações uns com os outros”.43 A experiência de Isaías com Deus transformou a sua vida, e determinou o caráter do seu serviço na direção da história cio seu povo. “No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor; estava assentado sobre um alto e elevado trono... Então disse eu: Ai de mim! porque estou perdido; pois sou homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de lábios impuros; pois os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos. Então voou para mim um dos serafins, tendo na mão uma brasa viva, que tinha tomado do altar com uma tenaz. Tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; a tua culpa é tirada, o teu pecado é perdoado” (Is 6.1,5-7). “Moisés e Arão, Nadabe e Abiú e setenta dos anciãos de Israel subiram, e viram o Deus de Israel, e debaixo de seus pés havia como uma obra de pedra de safira, como o próprio céu na sua claridade” (Êx 24.10). As Escrituras ensinam também que Deus não pode ser conhecido.Estas várias declarações contraditórias entendem-se facilmente como antinomias. Apresentadas juntas, explicam-se a si mesmas. Quando Moisés pediu que Deus lhe mostrasse a sua glória, o Senhor lhe concedeu, em parte, o pedido, com a explicação: “Não podes ver a minha face, porque o homem não pode ver a minha face e viver” (Êx 33.20). O salmista conforta-se com a esperança de ver a face de Deus na vida além” (Salmos 17.15). Pergunta Jó: “Poderás descobrir as coisas profundas “de Deus?” (Jó 11.7). Subentende-se em toda parte do Velho Testamento a impossibilidade de descobrir e entender todos os mistérios da natureza de Deus. A Bíblia não nos explica em que sentido Deus pode ou não ser visto; como pode ou não ser conhecido. Mas é perfeitamente claro que os homens do Velho Testamento entenderam a impossibilidade de conhecer a Deus na glória da sua transcendência. Porém é o conhecimento da Pessoa de Deus, com o discernimento da parte do conhecedor que o habilita a reconhecer o Criador de todas as coisas, o Senhor dos céus e da terra. Para os hebreus o conhecimento de Deus não era a especulação sobre o Ser Eterno ou o Princípio Transcendente, mas era o reconhecimento e o entendimento do Senhor, que atua sabiamente, com plano e propósitos, e exige obediência aos seus mandamentos por causa da sua própria natureza, como o Santo de Israel (Dt 11.2-7; Is 41.20). É o dever principal do homem receber e desenvolver seu conhecimento de Deus. “Sabe, pois, hoje, e reflete no teu coração, que o Senhor é Deus em cima nos céus, e embaixo na terra; não há nenhum outro” (Dt 4.39). “Vós sois as minhas testemunhas, diz o Senhor. “Meu servo, a quem escolhi, Para que saibais e me creiais, E entendais que sou eu mesmo. Antes de mim não se formou deus nenhum, E além de mim não haverá nenhum outro” (Is 43.10). “Pois eu desejo amor fiel e não sacrifício; o conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6.6). A finalidade da Bíblia é a de fazer Deus conhecido por suas atividades na história e nas experiências que homens fiéis tenham com ele. Pois o conhecimento mais importante de Deus, segundo a Bíblia, é esta comunhão pessoal com ele. O intercurso pessoal com o Senhor resolveu para Jó as suas dúvidas e os seus problemas, não porque Deus lhe tivesse oferecido uma explicação intelectual dos mistérios da sua providência na vida dos justos, mas porque inspirou nele a confiança na bondade e na justiça divina. “Com o ouvir do ouvido tinha ouvido de ti, mas agora o meu olho te vê; Por isso me desprezo a mim mesmo, e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42.5, 6). O homem pode receber conhecimento de Deus por vários meios. Encontrar-se com Deus no exercício da sua inteligência, no estudo das maravilhas da natureza, na atividade direta de Deus na sua consciência, na experiência da providência de Deus, na profecia, no milagre e até nos sonhos e nas meditações. 42 43

C. C. J. Webb, Divine Personality and Human Life, p. 192. John Baillie, Our Knowledge of God, p. 219.

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O Nome de Deus No mundo antigo o nome de uma pessoa usava-se não somente para distingui-Ia de outras pessoas, mas também para indicar ou descrever a sua própria natureza.44 Os hebreus, como os seus vizinhos, tinham este conceito do significado do nome. Quando um homem tinha uma nova experiência de significação especial ele recebia um novo nome. Assim Abrão recebeu o novo nome Abraão, e Jacó (suplantador) recebeu o nome Israel (Príncipe de Deus). Entre os politeístas o nome de qualquer um de seus deuses expressava o seu caráter, o seu poder especial, ou o grau e a função da sua divindade em relação com os outros deuses. Usa-se freqüentemente no Velho Testamento a frase “O Nome do Senhor” (}Odf) {“$ shem adonai) ou “o Nome de Deus” ({yiholE)

{“$

shem Elohim). “Em todo lugar em que eu fizer

lembrado o meu Nome (yim:$ te) Et shemi), virei ter contigo e te abençoarei” (Êx. 20.24). Refere-se freqüentemente ao santuário, o lugar do culto, onde habita o Nome do Senhor (Dt 12.11). A bênção sacerdotal é mais do que uma prece a Deus em favor de Israel. “É um meio de comunicar ao povo o poder ou a influência do Nome do Senhor” (Nm 6.24-27). “Assim porão o meu Nome [yim$ : -te) Et shemi] sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei”. Usa-se também “O Nome de Iavé” (hfwh:y-{“$ = SHEM YAHWEH) para indicar o próprio Senhor. “Exultem em ti os que amam o teu Nome” (Sl 5.11). “Cantarei louvores ao Nome do Senhor Altíssimo” (Sl 7.17). “Os que conhecem o teu Nome confiam em ti” (Sl 9.10). “O Nome do Senhor (hfwh:y-{“$) é uma torre forte, o homem justo corre para ela e está seguro” (Pv 18.10). “O Nome do Senhor” associa-se também com o conceito da soberania e da glória de Deus. Os trabalhos e os objetivos do homem devem ficar subordinados à vontade do Senhor, porque a sua vontade é superior aos maiores interesses humanos. A soberania do Senhor é absoluta, e a sua vontade não se limita apenas ao homem. A Bíblia põe em relevo a glória de Deus. Ó fim principal do homem é glorificar a Deus, exaltando e santificando o seu Nome. “Mas deveras esta é a razão porque te poupei, para te mostrar o meu poder, e para que o meu Nome seja anunciado em toda a terra” (Êx. 9.16). No Velho Testamento, como também no Novo, “a santificação do Nome do Senhor” acompanha o progresso do reino de Deus no mundo. Por outro lado, a idolatria profana o Nome de Deus. (Lv 18.21). Nos Salmos e na profecia de Ezequiel encontra-se freqüentemente a frase “por amor do meu Nome”. Em alguns destes lugares o escritor está pensando no Senhor como o único Deus. Mas o Senhor é conhecido pelas nações apenas como o Deus de Israel que libertou o seu povo da escravidão do Egito, ministrou as suas necessidades no deserto, e o conduziu à terra que tinha prometido por juramento aos pais. Assim o único Deus é conhecido entre as nações como um dos deuses nacionais. Ora, é o propósito do Senhor, “por amor do seu Nome”, revelar-se a todas as nações do mundo como o único e o verdadeiro Deus. Os Nomes Particulares de Deus O conceito de Deus, sem dúvida nenhuma, é o mais acentuado e o mais importante no Antigo Testamento. O termo Nome refere-se principalmente à natureza de Deus, ou, para usar uma palavra moderna, à personalidade de Deus, no sentido do conjunto de seus característicos ou atributos distintivos. Encontram-se no Velho Testamento muitos termos usados como nomes de Deus, de acordo com o estilo dos escritores, em parte, e com variações nas épocas diferentes da história. Os teólogos têm escrito muito sobre a origem e a significação dos nomes particulares de Deus. Não podemos deixar de reconhecer a importância da interpretação correta destes nomes para o estudante da teologia, mas são interpretados, às vezes, para apoiar ou reforçar certas interpretações prediletas dos teólogos.

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A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 37. “O nome tinha a mesma relação com o significado da coisa ou da pessoa designada. como a palavra tem com o pensamento”.

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Os nomes Elohim e Iavé (Yahweh) são os mais usados pelos escritores bíblicos. Elohim ({yihol) E ) é o nome mais usado no Velho Testamento para expressar o conceito de divindade. Usa-se Elohim como o nome do Criador de todas as coisas. Quando se refere às relações do Senhor com as nações, ou às suas relações cósmicas, usa-se em quase todas as partes do Velho Testamento o nome Elohim. Mas quando se trata das relações do Senhor com o povo de Israel, ou quando se refere às atividades do Senhor na história deste povo do seu concerto, usa-se o nome Iavé. Entre os povos semíticos o nome de antiguidade remota de Deus é EL. Segundo a opinião de muitos, a palavra deriva-se de uma raiz que significa “ser forte”, “ser poderoso”, ou talvez “ligar”, mas ainda não há certeza quanto a estas derivações. Desde tempos remotos EL e Elohim eram os nomes usados nas línguas semíticas para designar os espíritos ou demônios que, na crença popular, se associavam com objetos, tais como árvores, pedras e lugares. Em Gn 33.2 usa-se EL como o nome de Deus, bem como o nome do altar levantado por Jacó. “Levantou ali um altar, e chamou-lhe El-elohe-Israel (l”)fr:&iy y”holE) l”) EL, o Deus de Israel)”. Em Gn 28.18 e seg., o nome é associado com a pedra do altar, que é designada por Betel (casa de Deus). Elohim, sinônimo, ou plural, da forma irregular, de EL, é o nome de Deus mais usado no Velho Testamento, e dá ênfase ao conceito de divindade. É o plural de majestade, sempre usado com o verbo no singular, quando se refere ao Deus de Israel, e não há no Antigo Testamento qualquer evidência de que este nome represente o politeísmo dos hebreus, em qualquer período da sua história. Encontram-se vários outros nomes de Deus relacionados com EL ou Elohim, como Eloach, Elyon e El Shaddai. O termo Eloach emprega-se principalmente na poesia, mas também de vez em quando na prosa do último período do Velho Testamento. Parece ser uma forma singular, aumentada de EL, pois a forma no aramaico é Élah, e flah no arábico. Expressa a idéia de força ou poder. Elyon é termo descritivo de Deus. EL Elyon (;}Oy:le( l”)) é o Deus Altíssimo, possuidor dos céus e da terra, a quem Abraão pagou o dízimo de tudo (Gn 14.20). Mais tarde Iavé é reconhecido como o Altíssimo. Entre as nações o termo Elyon é freqüentemente usado com referência aos seus monarcas. Em Salmos 82.6 os juizes ou príncipes, condenados por causa da sua injustiça, são chamados “filhos do Altíssimo”. O Deus de Israel é conhecido também como EL SHADDAI. Houve, porém, um período, segundo Êxodo 13.3, quando os israelitas conheceram o seu Deus Iavé como EL SHADDAI. “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó, como EL SHADDAI, mas pelo meu nome Iavé, não me fiz conhecido a eles”. É claro, então, segundo este versículo, que depois do Sinai os israelitas identificaram o seu Libertador Iavé como o Deus Altíssimo e o Todo-Poderoso dos patriarcas. Há várias teorias incertas sobre a origem e o sentido, de Shaddai.45 Millar Burrows diz que a palavra significa “Deus da montanha”.46 Esta explicação baseia-se no termo assírio shadu, alto ou montanha. É possível que seja apenas uma palavra epitética para intensificar o sentido de EL. Mas não há dúvida sobre o significado da palavra no Velho Testamento. O Nome Especial de Deus Iavé O nome especial de Deus é Iavé – IAHWEH47 – hwhy. Baseando-se na associação de Iavé com trovões e relâmpagos (Êx 19.16; 20.18; 1 Rs 18.38; Jó 37.5; Am 1.2; Sl 18.14), alguns julgam que ele era o deus do firmamento. Convém notar, porém, que estes trechos descritivos podem ser poéticos ou figurativos. Os inimigos de Israel pensaram que os seus deuses eram “deuses dos montes” (1Rs 20.23). Mas Iavé manifestava-se também no fogo, na sarça (Ex 3.2) e na coluna guiadora de nuvem e de fogo (Êx 13.21). Falou com Elias, não no vento poderoso, nem no terremoto, nem no fogo, mas na 45

Brown, Driver and Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, p. 993-4. An Outline of Biblical Theology, p. 55. 47 Para um estudo profundo do Nome de Deus ver o Dic. Int. de Teologia do Velho Testamento (484a, b), PÁG. 345-349. 46

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voz “mansa e delicada” (1Rs 19.12). Há uma teoria de que Iavé tinha recebido culto da parte dos gueneus antes que se revelasse a Moisés na sarça ardente. Segundo Êx 18.1 e Jz 4.11, o sogro de Moisés era queneu. É declarado em Êx 3.1 que Jetro era sacerdote em Midiã. Se fosse sacerdote de Iavé, como crêem alguns, é possível que Moisés tivesse aprendido alguma coisa sobre o Senhor nas suas conversas com Jetro, mas disto não há certeza. Eruditos modernos levantam dúvidas sobre a origem e o significado do nome, segundo Ex 3.14, onde o escritor liga o nome com o verbo hebraico hava (hfwh f ),48 ser ou haver. O substantivo Jeveh, formado da primeira pessoa do singular do imperfeito do verbo ser, significa Eu Sou. Assim o Senhor disse a Moisés: “Eu sou o que sou”. É claro que os israelitas não puderam usar esta forma do nome, derivado da primeira pessoa do verbo. Então disse Deus a Moisés: “Assim dirás aos filhos de Israel: Iaveh hfwh:y (Iavé)” Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é o nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração” (Ex 3.15). Argumentam que no capítulo 40 de Isaías o nome Iavé não é usado como tendo qualquer significação etimológica, mas isto não quer dizer que o profeta ignorava a origem ou a etimologia do nome, segundo Êx 3.14. É certo que o nome tinha esta significação no período da história quando este versículo foi escrito. É claro também que o profeta Oséias está pensando no significado do nome quando o Senhor lhe diz: “Põe-lhe o nome de Lo-Ruama, porque vós não sois meu povo, e Lo-Ieveh [hey:he)-)ol] (EU não SOU) para vós” (Os 1.9). Todos os estudantes do assunto reconhecem agora que Jeová não pode ser a pronúncia certa do tetragrama IHVH. A palavra Jeová resultou no uso das vogais de Adonai - }Odf) (Senhor) com as quatro consoantes do nome sagrado, e foi introduzida no tempo da reforma, cerca de 1520. Não se sabe como foi pronunciado antes do tempo, quando os israelitas, por reverência, deixaram de mencionar o Nome Inefável. A opinião de que era pronunciado Yahweh (Iavé ou Iavé em português) prevaleceu, e este é o termo geralmente usado pelos teólogos modernos. Há, todavia, algumas evidências históricas do que Yahweh era a pronúncia antiga. Há uma tradição que os samaritanos pronunciaram o Nome como Iabe, e Clemente de Alexandria escreveu o nome místico de quatro letras como Jaoue. Não se sabe se Iavé (Iavé) é uma forma aumentada do Jah (Êx 15.2; Sl 68.4), e Jahu nos nomes pessoais, como Jesha-jahu, o nome hebraico de Isaías. Se o nome se originou Êxodo 3.41, é provável que as formas breves surgiram depois, como nomes poéticos. tO)fb:c hfwh:y - Iavé Sabaoth, ou Iavé Elohe Sabaoth, o Senhor dos Exércitos, é um título especial de Iavé. A teoria, ou a interpretação, provavelmente errada, é que Sabaoth refere-se aos exércitos militares de Israel. Esta interpretação baseia-se nas referências em 1Sm 4.4; 17.45; 2Sm 6.2. Mas a única passagem que dá esta interpretação definitiva é 1Sm 17.45. Mesmo neste versículo, parece apenas um comentário, ou uma interpretação secundária. Diz: “Eu, porém, venho a ti em nome do senhor dos exércitos, o Deus das linhas da batalha de Israel, a quem tens afrontado”. O título é mais usado pelos profetas, e a interpretação que concorda melhor com todas as passagens é que Zeba’oth significa a totalidade de todos os seres do céu e da terra. Este é o sentido da tradução da Septuaginta, Kurios ton dunameon [ku/rioj ton dunameon] (Senhor dos poderes). Quando os israelitas deixaram de pronunciar o nome indizível IHVH, eles o substituíram pelo nome Adonai, Senhor. A Septuaginta traduziu as quatro letras místicas com as vogais de Adonai por Kúrios. E quase todas as modernas da Bíblia, nas muitas línguas, traduzem o nome do Deus de Israel pelo termo que significa Senhor.

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Em todas as formas desta palavra tenho usado a letra v, ao invés de y, como a transliteração do hebraico yodh, seguindo o espanhol e o português.

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O NOME DENOTA ESSÊNCIA49 O conhecimento de Deus no Antigo Testamento brota não só da história, palavra, criação e teofania, mas também da revelação do nome Iavé. Concorda-se em geral que “entre povos primitivos e em todo o antigo Oriente, o nome denota a essência de algo: chamar algo pelo nome é conhecê-lo e, por conseguinte, possuir poder sobre ele”. Os israelitas não eram exceção a essa regra geral entre os povos primitivos. Eles supunham que a essência total da pessoa concentrava-se em seu nome. O nome estava relacionado à natureza do caráter da pessoa. O nome de Eva, “vida”, ligava-a ao homem (Gn 2.18-23). Esaú disse que as ações de Jacó refletiam seu nome (Gn 27.36). Nabal era como seu nome, “um tolo” (l Sm 25.25). Von Rad e Jacob argumentaram que o nome de um deus no mundo antigo encerrava poder e podia ser ou perigoso ou beneficente. Era, assim, importante conhecer o nome do Deus. A invocação do nome No Antigo Testamento, era necessário invocar o nome de Iavé para aproximar-se dele. A primeira palavra de muitas das orações nos salmos é uma invocação, “Iavé” (3.1; 6.1; 7.1; 8.1; 12.1). Entretanto, em algumas orações, Elohim, “Deus”, é usado em seu lugar. A doxologia de Davi começa com a palavra Iavé (1Cr 29.10-11). A invocação do nome era ainda importante na época do Novo Testamento. Jesus ensinou seus discípulos a começar assim suas orações: “Pai nosso [...] santificado seja o teu nome” (Mt 6.9). Quando Deus tomou a iniciativa de revelar-se, começou pronunciando o próprio nome: “Eu sou Iavé” (Gn 35.11; Êx 6.2; 20.1; 34.5-6). Mas a revelação do nome não tornou Iavé acessível e familiar. Israel considerava o nome de Iavé santo e insistia que ele não devia ser profanado (Lv 22.2, 32; S1 103.1; 105.3; 111.9; 145.21; Ez 20.39; 36.20-23; 39.7; 43.7; Am 2.7). O nome de Iavé substituía o próprio Deus, representando toda sua presença santa. A invocação do nome era parte importante do culto. Se Iavé não tivesse revelado seu nome, o adorador não poderia invocá-lo e não haveria culto. Childs reconheceu que a ligação entre o nome e o culto é válida. Mas quando Deus deu seu nome a Moisés (Êx 3.14), a questão era mais de relacionar o chamado de Moisés ao nome pela autoridade de Deus que pelo culto. O significado e a importância do nome do Deus de Israel O nome Iavé parece vir de uma forma imperfeita do verbo hebraico hayâ (hfwfh), “ser” ou “tornar-se”. Albright argumentou que o nome vem da forma hifil (causativa) do verbo, de modo que significa “aquele que causa a existência” e, portanto, “o criador”. Muitos dos alunos de Albright apresentam propostas semelhantes. David Noel Freedman entende que o tetragrama YHWH deve ser traduzido “ele cria”. Frank Cross pensava que Iavé era originariamente um nome cultual de El. A frase cultual “El que cria” tornou-se mais tarde “Iavé, o criador”. Philip Hyatt afirmou que em lugar de ver Iavé como uma divindade originariamente criadora, devia-se entendê-lo como a divindade padroeira de um dos ancestrais de Moisés. Seu nome poderia ter significado “ele causa a existência (do ancestral)” ou “ele sustenta (o ancestral)”. William Brownlee, especialista no material de Qumran, entende com base no uso que o Manual de Disciplina faz de 1 Samuel 2.3 e em outros indícios que o significado de Iavé deve ser “aquele que faz acontecer”. Brownlee disse que esse nome combina com o anúncio de que Iavé livraria os hebreus da escravidão. A situação deles parecia desesperadora. O que eles precisavam era a garantia de que o Deus deles, Iavé, podia fazer as coisas acontecerem e cumprir as promessas que lhes havia feito por intermédio de Moisés. A idéia de que Iavé significa “o criador” pode ser questionada seriamente porque se baseia na pressuposição de que o nome Iavé vem da forma hifil (causativa) do verbo “ser”. A forma hifil desse 49

(transcrição do livro Teologia do Velho Testamento de Ralph Smith, PÁG. 111-116)

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verbo jamais ocorre no Antigo Testamento. Tanto Jacob como Von Rad criam que o significado básico de Iavé é “presença”, “estarei convosco” (Êx 3.12; cf. Gn 28.20; Js 3.7; Jz 6.12). Terrien disse: “Ao vacilante Moisés, Iavé primeiro deu segurança ao afirmar: ‘Estarei contigo’”. Pela revelação de seu nome, Iavé, “Eu sou” ou “Eu serei”, Deus estava prometendo sua presença a Moisés. Deus estaria com ele. Na Grande Comissão, Jesus prometeu estar com os discípulos sempre, até o fim dos tempos (Mt 28.20). Deus estava se revelando quando deu seu nome a Moisés? Ou estava sendo evasivo, recusando-se a dar uma resposta a Moisés, quando disse: “EU SOU O QUE SOU” (Êx 3.14)? Deus recusou-se a dar o nome a Jacó (Gn 32.30) e a Manoá (Jz 13.17-18). A. M. Dubarle concluiu que Deus recusa-se a revelar o nome a Moisés em Êxodo 3.14 porque isso comprometeria sua liberdade de ser Deus. Dubarle entendia que Deus estava dizendo: “Meu nome não lhe diz respeito”. Ludwig Kóhler também interpretou Êxodo 3.14 como uma resposta evasiva à pergunta. Deus é o Deus absconditus.50 Alguma ambivalência aparece no texto, mas o propósito principal é revelar o que Deus fará, e não a essência de seu ser. Assim, embora Iavé tenha revelado seu nome a Moisés e a Israel e se tenha permitido ser “invocado” por eles, ou “se entregado” em compromisso e confiança só a Israel, ele ainda manteve sua liberdade. Zimmerli disse que a liberdade de Iavé significa que ele jamais é um simples objeto. Ainda que se tenha revelado liberalmente, ele deu o Terceiro Mandamento do Decálogo para proteger essa liberdade contra “abusos religiosos”. A origem do nome O nome Iavé é mais antigo que Moisés? Iavé aparece como nome de Deus a partir do segundo capítulo de Gênesis. Entretanto, Êxodo 6.3 diz: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR [Iavé], não lhes fui conhecido”. Por indícios bíblicos e extrabíblicos, é provável que o nome divino Iavé existisse fora de Israel antes de Moisés; mas ainda não temos prova conclusiva disso. O elemento “Jo” em Joquebede, nome da mãe de Moisés, dá a entender um uso bíblico de Ja (Yah) antes de Moisés. A respeito de indícios extrabíblicos, PÁG. D. Miller disse: “O nome ‘Iavé’ em si é agora amplamente confirmado em inscrições na Judéia (mais de trinta casos) e não há referências a outras divindades”. Childs disse que devemos reconhecer os cognatos do nome divino encontrados no antigo Oriente Próximo e até contar com uma longa pré-história do nome antes de sua entrada em Israel, mas o autor permaneceu aberto à possibilidade de Israel ter atribuído um significado totalmente novo ao nome. Walter Harrelson admitia que o aparecimento da crença em Deus sob “o nome pessoal Iavé é anterior ao período mosaico”. W. H. Schmidt chegou a dizer: “O nome Iavé não se restringe a Israel e, além disso, é anterior ao Antigo Testamento, ou seja, é bem possível que não seja israelita de origem”. R. W. L. Moberly alegou recentemente com veemência que o nome Iavé foi primeiro revelado a Moisés e que empregos anteriores em Gênesis são anacronismos. Podemos concluir apenas que a questão da origem do nome Iavé ainda não tem resposta. O nome de Deus e sua presença Deuteronômio fala com freqüência de fazer o nome de Deus “habitar” ou “morar” em certo lugar (Dt 12.5,11). Obviamente, Israel não podia contar demais com a presença de Deus na adoração. Só Deus podia garantir sua presença. O nome de Iavé representa sua presença, poder e autoridade. Talvez esse seja o motivo pelo qual o nome Iavé ocorre com tanta freqüência (cerca de 6.700 vezes) no Antigo Testamento, enquanto Elohim só ocorre 2.500 vezes. Iavé, não Elohim, era o nome do Deus a ser cultuado. Durante boa parte da história do Antigo Testamento o nome Iavé parece ter sido usado 50

O Deus abscôndito. Embora o Antigo Testamento reconheça que, em certo sentido, todo o mundo está ciente do divino ou do “sagrado”, ele se refere com freqüência ao Deus abscôndito. Jó cria em Deus, mas não conseguia encontrá-lo (transcrição do Livro: Teologia do Velho Testamento de Ralph Smith, PÁG. 98.

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livremente por todo e qualquer israelita. Mas no período pós-exílico o nome foi retirado do uso geral, provavelmente por temor do julgamento divino, caso o nome fosse pronunciado em vão. Na época de Jesus o nome era usado só em certas ocasiões no Templo, mas não mais nos cultos em sinagogas. Essa hesitação em pronunciar o nome reflete-se na maneira pela qual o nome aparece no texto massorético. Em geral ele aparece como quatro consoantes, YHWH, junto com as vogais da palavra adonay, criando uma combinação (“Jeová”) que nenhum israelita jamais pronunciava. Em Israel, no pré-exílio, é provável que o nome fosse pronunciado Iavé. A palavra Jeová reflete a pronúncia alemã, uma vez que o J alemão é usado em lugar do Y, e o W é pronunciado V em alemão. A pronúncia de Jeová jamais foi usada pelos judeus. Eles liam e pronunciavam a palavra como “adonay”. Entretanto, quando a palavra aparece antes do tetragrama na Bíblia Hebraica (310 vezes), as vogais da palavra elohim são usadas com as quatro consoantes, e a palavra é pronunciada “Elohim”. Resumo Iavé era o nome especial de Israel para seu Deus. Ao revelar seu nome a Moisés e, por sua vez, a Israel, Deus escolhe ser descrito como “o definível, o distintivo, o indivíduo. Desse modo a fé israelita opõe-se ao conceito abstrato de divindade e também contra uma ‘base de existência’ sem nome. Tanto os equívocos intelectualistas de Deus como os místicos são rejeitados”. Isso é bem diferente da descrição abstrata de Deus dada por Paulo Tillich, como aquele que é o mistério último, a profundeza infinita, a base, o poder e a fonte de todo ser. Essa definição não chega perto do Definido, o Deus Vivo, o Salvador Vindouro do Antigo Testamento. O nome Iavé é um nome pessoal, não abstrato. Baseado numa forma do verbo “ser”, relaciona-se de algum modo idéia de existência: passada, presente e futura. Ele está ligado ao passado no que diz respeito a Moisés. Iavé é o mesmo nome do Deus dos pais Abraão, Isaque e Jacó (Ex 3.16). Ele é também o Deus do futuro: “Este o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração” (Ex 3.15b). O nome também possui urna dimensão escatológica no Antigo Testamento. Pode haver uma ligação entre o nome Iavé e a origem da escatologia, “pois um Deus que se define como “eu sou” não descansa até que esse ser e essa presença sejam concretizados em sua perfeição”. O profeta do exílio podia referir-se a Iavé como “O primeiro e o último Criador, Senhor da história e único Salvador” (Is 41.4; 43.10; 44.6; 48.12-13; 49.6, 26; cf. Ap 22.13). Pelos atos poderosos de Iavé na história, o faraó, os egípcios, as nações e Israel saberiam que Iavé era Deus (“Eu sou Iavé Ex 7.5; 8.10, 22; 9.1 10.2; Ez 20.26, 38; 24.24, 27; 34.27; 35.9, 15; 36.11, 23, 38; 38.23; 39.6, 28). Esse único Deus definível e distinto Iavé escolheu um homem (Abraão) e um povo (Israel) e firmou urna aliança especial com eles. Por meio deles Deus abençoaria todas as nações.

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NOMES DE DEUS NOMES Iavé – IAHWEH Jeová Campos: 86

YHWH - hyh Iavé Jireh Campos: 87

SENTIDO/SIGNIFICADO

REFERÊNCIAS BÍBLICAS

O auto-existente. Alguns acham que ele destaca a natureza ontológica de Deus: “EU SOU O QUE SOU”; outros crêem que apresenta a fidelidade de Deus: “Eu sou [ou serei] quem eu tenho sido,” ou “Eu serei quem eu serei.” Esse nome é o nome próprio e pessoal de Deus. O Senhor proverá

Êx 3.14,15; cf. Gn 12.8; 13.4; 26.25; Êx 6.3; 7; 20.2; 33.19; 34.5-7; Sl 68.4;76.1; Jr 31.31-34

Gn 22.8-14

;he)fr”y hfwh:y

Iavé Nissi Campos: 87

O Senhor é minha bandeira

Iavé Shalom Campos: 88

O Senhor é paz

Iavé Sabaoth

O Senhor dos Exércitos

Êx 17.15

yiSin hfwh:y Jz 6.24

{Olf$ hfwh:y 1Sm 1.3; 17.45; Sl 24.10; 46.7,11

tO)fb:c hfwh:y Iavé Macadeshém O Senhor é o vosso Santificador Campos: 87 ;{ek:$iDaq:m hfwh:y = $dq hwhy Iavé Raah (Rohi) Campos: 87

O Senhor é meu pastor = yi(or

Iavé Tsidkênu Campos: 88

O Senhor é nossa justiça

Iavé el Gemolah

O Senhor é o Deus da retribuição

Jr.51.56

Iavé Nakeh

O Senhor que fere

Ez 7.9

hkn hwhy

;heKam hfwh:y

Iavé Shamá

O Senhor que está presente/ou está ali

Ez 48.35

Iavé Rafá

O Senhor que sara = !e):por

Êx 15.26

Adonai

El Roi

Senhor, Mestre; o nome de Deus usado em lugar de Iavé quando o nome próprio de Deus passou a ser considerado muito sagrado para ser pronunciado Poderoso; termo plural aplicado a Deus, que geralmente se refere à sua majestade ou à sua plenitude. Campos: 81 Altíssimo (literalmente, o poderoso mais forte).É usado com referência aos seus monarcas. Campos: 82 O Poderoso que vê = yi)or l”)

Gn 1.1,26,27; 3.5; 31.13; Dt 5.9; 6.4; Sl 5.7; 86.15; 100.3 Gn 14.18, 20; Nm 24.16; Is 14.13,14; Sl 82.6 Gn 16.13

El Shadai

Deus Todo-Poderoso ou Deus Todo-Suficiente

Gn 17.1-20

Deus Eterno ou Deus da Eternidade

Gn 21.33; Is 40.28

}Odf) Elohim

{yiholE) El Elion

;}Oy:l(e l”)

hfwh:y

Êx 31.13 Sl 23.1

h(r hwhy

wnqdc hwhy

=

Jr 23.6; 33.16

hfqfd:cU hfwh:y

hfMf$ ;hfwh:y

hfwh:y

Êx 4.10-12; Js 7.8-11 Campos: 84,85

yaDa$ l”) El Olam Campos: 83 El Elohe Israel

Gn 21.33:;{flO( l”) hfwh:y

Is 40.28: hfwh:y {flO( y”holE)

Deus, o Deus de Israel = l”)fr:&iy

y”holE) l”)

Gn 33.20

Era tanto o Parente Remidor como também o Parente Is 44.6; 48.17; 59.20; Rt Goel – l”)oG 3.6-9; Remidor/Redentor Vingador (Nm 35.12-19; Lv 25) 37


O Espírito de Deus A palavra ruah – axUr (vento, espírito) é empregada no Velho Testamento de tantas maneiras que é difícil analisar os seus vários sentidos. Aqui a discussão é limitada principalmente ao estudo do Espírito de Deus Estudaremos em outro lugar o espírito do homem. Quando a palavra significa vento é geralmente sinônimo de poder. Significa também respiração violenta pelo nariz ou pela boca. Mas a frase diverê-ruah (Jó 16.3) significa palavras de vento ou de força vazia. O conceito do Espírito do Senhor aparentemente passou por um processo de desenvolvimento no Velho Testamento. A palavra ruah usa-se no sentido do poder, da vida e do Espírito de Deus. Diz Davi, no seu cântico de louvor: “Então apareceram as profundezas do mar; os fundamentos do mundo se descobriram, pela repreensão do Senhor, pelo assopro do vento das suas narinas” (2 Sm 22.16). Geralmente se aprsenta a idéia de violência nos trechos onde se usa a palavra no sentido do assopro de Deus (Jó 4.9; Sl 18.15). A idéia de violência é especialmente acentuada em Is 30.28. Emprega-se a palavra ruah – axUr oitenta e sete vezes no Velho Testamento no sentido de vento. Em trinta e sete desses casos o vento é o agente de Deus, sempre forte e violento, e às vezes destrutivo. Nota-se que Deus cria o vento (Am 4.13) e o controla (Jó 28.25). Em Os 13.15 e Is 40.7 ruah-adonai (o vento do Senhor) tem quase o mesmo sentido de Espírito do Senhor. As atividades do vento são representadas como a atividade direta do Senhor em Ez 8.3; 11.24. Ezequiel declara em 37.1: “Veio sobre mim a mão do Senhor; e ele me levou no ruahIavé (vento ou Espírito do Senhor), e me pôs no meio do vale que estava cheio de ossos”. O ruah-Iavé inspira e controla os profetas. O que habilitou o profeta Ezequiel para falar a palavra profética foi o Espírito do Senhor. É geralmente o Espírito do Senhor (Iavé) que inspira e orienta os profetas, mas em 2 Cr 15.1 e 24.20 é o Espírito de Deus que veio sobre Azarias; e o Espírito de Deus que “se apoderou” do profeta Zacarias. Neemias usa a frase “teu Espírito” (9.30), e “teu bom Espírito” (9.20). Ajudados pelo Espírito do Senhor, os homens ficaram habilitados para fazer a vontade de Deus, às vezes contra a Sua própria preferência, como no caso de Jeremias (1.6; 20.9-12). O profeta, dirigido pelo Espírito do Senhor, sabia reconhecer a mensagem divina e distingui-la dos seus próprios pensamentos (Is 1.2; Jr 4.27). Há certas atividades do Espírito do Senhor que parecem estranhas aos teólogos modernos. O Espírito do Senhor habilitou os juízes para conseguir vitórias militares que, pelos seus próprios recursos, teriam sido impossíveis. Este poder sobre-humano manifestou-se na libertação de Israel do poder dos inimigos, por homens rudes, no período dos juízes (Jz 3.10; 6.34; 11.29). O poder físico de Sansão é atribuído, em parte, à magia do cabelo, e em parte ao poder do Senhor. A melancolia de Saul resultou da vinda do Espírito de Deus sobre ele (1 Sm 16.23). Devemos lembrar que houve um período quando os hebreus ainda Se achavam sob influências de crenças religiosas de seus vizinhos, especialmente no período dos juízes, e por algum tempo no período da monarquia. São os grandes profetas que se livraram destas influências. Segundo, os hebreus atribuíam a Deus tudo que acontecia. Parece que devido a este modo de pensar é que julgaram necessário atribuir ao Senhor o arrependimento de certas escolhas ou atos que não produziram os resultados almejados, como, por exemplo, a escolha de Saul (1 Sm 15.11; ver também Êx 32.14 e outras declarações semelhantes). Terceiro, em todos os tempos Deus tem que dirigir as suas atividades na história por intermédio de homens limitados no entendimento da sua vontade. “Pois o Senhor é o nosso Juiz; o Senhor é o nosso Legislador; o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará” (Is 33.22). Como é, então, que o Senhor exerceu o seu governo e a sua direção em Israel? Manifestou-se, às vezes, como o Anjo do Senhor, apresentando-se sempre como o mesmo e identificando-se com ele, ou por palavra ou por ato. Estas teofanias não eram tão misteriosas para os hebreus que não distinguiram, como nós, tão nitidamente entre o natural e o sobrenatural. O Espírito do Senhor podia “vestir-se de Gideão” ou “apoderar-se de Sansão”. O Anjo do Senhor era mensageiro divino que sempre se distinguia dos outros anjos, e do Senhor, identificando-se, ao mesmo tempo, 38


com o Senhor no seu propósito e na mensagem que entregava. Diz Jacó: “E disse-me o Anjo de Deus... Eu sou o Deus de Betel” (Gn 31.11,12). “Eis que envio um anjo adiante de ti ... O meu Nome está nele” (Êx 23.20, 21). O Anjo do Senhor conduziu a Israel para a terra de Canaã, e dirigiu os seus exércitos na luta com Sísera. Mais tarde o Senhor dirigiu o seu povo principalmente por agentes humanos, orientados pelo seu Espírito. Como diz Davidson: “O Espírito do Senhor é o próprio Senhor dentro dos homens, como o Anjo do Senhor é o próprio Senhor fora dos homens”.51 O Espírito do Senhor designou e ajudou os juízes no cumprimento da sua missão; levantou nazireus e outras pessoas para prestarem serviços especiais no desenvolvimento de Israel; vocacionou e inspirou profetas para ensinar, orientar e dirigir o povo de Israel no desempenho da sua incumbência de acordo com a eleição, o concerto do Sinai e o plano predeterminado do Senhor. E fez tudo isto apesar do egoísmo, da obstinação e da rebeldia da maior parte do povo contra a vontade revelada do Senhor. Como a palavra ruah freqüentemente significa vento forte e poderoso, quando a mesma palavra quer dizer espírito leva também o sentido de poder. “Ora os egípcios são homens, e não Deus; e os seus cavalos carne, e não espírito” (Is 31.3). O profeta está combatendo a confiança fútil dos politiqueiros no socorro que pensavam receber do Egito. Com a palavra carne, símbolo de fraqueza e perdição, ele põe ênfase na impotência dos egípcios e de seus cavalos, em contraste com o Espírito, que lhes daria a vida e o poder. O Espírito do Senhor representa a sua energia vital e poderosa em todas as suas atividades. Refere-se, às vezes, ao Propósito ou ao plano de Deus. “Ai dos filhos rebeldes, diz o Senhor, Que executam um Propósito que não vem de mim, que formam uma afiança que não é segundo o meu propósito (ruah), para acrescentarem pecado sobre pecado” (Is 30.1). A palavra também significa o poder da ética e da justiça da mensagem profética. “Mas quanto a mim, estou cheio de poder, O Espírito do Senhor, justiça e força, para declarar a Jacó a sua transgressão, E a Israel o seu pecado” (Mq 3.8). Cheio do Espírito do Senhor, o profeta tem a coragem e o poder de enfrentar a nação pecaminosa com a mensagem divina da justiça e condenação. “Quem dirige o Espírito do Senhor, ou, como seu conselheiro, o ensina?” (Is 40.13). O tempo presente traduz melhor o sentido dos verbos neste versículo. O sentido do nifal do verbo thakan é absoluto. “Quem tem dirigido, quem jamais dirigiu, quem pode dirigir, regular, medir ou estimar o Espírito do Senhor?”. Como o espírito do homem representa o seu caráter, determina os seus motivos, e expressa as atividades e energias da sua vida, da sua inteligência, assim também o Espírito do Senhor expressa a sua disposição ética, especialmente quando se refere aos Propósitos de Deus na escolha de Israel. Atividades do Espírito O Velho Testamento não trata de causas secundárias. Em todas as suas atividades, Deus atua diretamente e não por intermédio de causas secundárias. Até as atividades de seus agentes humanos são reconhecidas como a atuação do próprio Senhor. É Deus quem governa todos os movimentos da história, incluindo as vicissitudes na vida das nações e até na vida dos homens. Nos dias críticos do cativeiro de muitos israelitas na Babilônia, o mensageiro de Deus reconheceu o levantamento de Ciro como a manifestação da grandeza do Senhor na direção da história humana. Foi Deus quem chamou Giro e o incumbiu da restauração dos cativos judeus para o cumprimento da sua missão que visava o futuro do reino universal do Senhor. “Eu mesmo falei, e o chamei; Eu o trouxe, e fiz prosperar o seu caminho. Chegai-vos a mim, ouvi isto: Desde o princípio não falei em segredo, desde o tempo em que aconteceu, e agora o Senhor Deus o enviou, dotado de seu Espírito” (Is 48.15,16). 51

The Theology of the Old Testament, p. 116.

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Na obra da criação o Espírito de Deus movia-se suavemente sobre a face das águas, no processo de transformar o caos na ordem cósmica, segundo o propósito preconcebido do Senhor. São raras as referências à operação do Espírito de Deus no mundo material, mas são significantes na representação do poder soberano do Senhor (Jó 26.13; Is 40.7; Ez 37.9). Na esfera da vida, o Espírito de Deus opera a fim de dar ao homem a vitalidade e a força. “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2.7). A imagem do fôlego (nishmath hayim = {yiYax tam:$in) nos declara que Deus é a fonte da vida. É a presença do Espírito de Deus no homem que produz e sustenta a vida. Jó declara: “O Espírito de Deus está nas minhas narinas” (27.3). Diz Eliú: “O Espírito de Deus me fez, e o fôlego do Todo-Poderoso me dá vida” (Jó 33.4). O espírito do homem lhe é transmitido pelo Espírito de Deus, a fonte da vida; e quando Deus lhe tira o espírito, ele morre. “Escondes o teu rosto, eles ficam perturbados; tiras-lhes o Espírito, eles morrem, e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados; e tu renovas a face da terra” (Sl 104.29,30). “Se ele retirasse para si mesmo o seu Espírito, Se recolhesse a si o seu Fôlego, toda a carne expiraria duma só vez, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14,15). “Se ele retirasse para si o seu espírito, e recolhesse para si o seu fôlego, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14,15). No Velho Testamento há duas outras palavras empregadas para se referir ao espírito, que são NISHMAT - tam:$in (Gn 2.7) e NESHAMA - hfmf$:n (Is 57.16). Ambas as palavras têm a raiz NESH ou NISH que quer dizer vento, sopro, hálito, respiração, (Portanto têm basicamente o mesmo significado de RUAH), e os sufixos MAT e AMA que pode ser usado para designar vida biológica. Por esta razão, essas duas palavras são em geral traduzidas por fôlego da vida e espírito da vida respectivamente.52 Os profetas canônicos livraram-se do frenesi que caracterizava alguns dos profetas primitivos, e confiavam no seu intercurso direto com o Espírito do Senhor. Jeremias repudiou os sonhos e as manhas dos profetas de mentiras. Reconheceu que a profecia verdadeira é recebida de Deus para o povo, embora fosse uma mensagem dura, de instrução ou de condenação. É o ensino recebido por homens idôneos, homens de confiança absoluta no seu intercurso com o Espírito do Senhor. Para o conforto de Jeremias, no sofrimento da luta com os profetas falsos, o Senhor lhes disse: “Tenho ouvido o que dizem os profetas, que em meu nome profetizam mentiras, dizendo: Sonhei, sonhei” (Jr 23.25). A vitalidade espiritual do homem, as suas emoções do amor e gratidão a Deus são resultados da operação do Espírito do Senhor no seu coração. Pede o salmista: “Não me lances fora da tua presença, e não tires de mim o teu Santo Espírito” (Sl 51.11). Deus é especialmente ativo nas forças históricas e nas atividades humanas que operam em favor do seu reino na terra. Nestas atividades não há distinção entre o próprio Deus e o seu Espírito. Homens de fé oram e trabalham em harmonia com o propósito do Senhor. “Ensina-me a fazer a tua vontade, porque tu és o meu Deus; Guie-me o teu bom Espírito na vereda de retidão” (Sl 143.10). O Espírito opera de uma maneira excepcional na vida e na obra do seu Ungido. “Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, O espírito de sabedoria e de entendimento, O espírito de conselho e de fortaleza, O espírito de conhecimento e de temor do Senhor” (Is 11.2). “Eis o meu servo a quem sustenho; O meu escolhido no qual a minha alma se agrada. Tenho posto sobre ele o meu Espírito, Ele trará justiça às nações” (Is 42.1). O Espírito do Senhor é o próprio Senhor em atividade. Não, há, porém, no Velho Testamento, o desenvolvimento do conceito da personalidade distintiva do Espírito do Senhor. Mas através da história de Israel, o Espírito do Senhor limitava as suas atividades cada vez mais à esfera ética, e na época dos grandes profetas, põe em relevo a santidade e a justiça absoluta de Deus. Há, também, alguns poucos versículos que indicam a tendência de pensar no Espírito do Senhor como Pessoa. “É a promessa do meu concerto convosco quando saístes do Egito, o meu Espírito está habitando entre vós, não temais” (Ageu 2.5). “Esta é a palavra do Senhor a 52

BENTES, A. Carlos G. ANTROPOLOGIA. Apostila. 1ª ed. Lagoa Santa – MG, 2007, p. 28.

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Zorobabel: Não por força nem por poder, mas por meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Outra passagem que aparentemente indica a personalidade do Espírito encontra-se em Isaías 48.16: “E agora o Senhor Iavé enviou-me, e o seu Espírito”. Há, porém, alguma dúvida sobre a pureza do texto massorético, seguido, aliás, pela Septuaginta. O sentido da frase talvez seja “dotado de seu Espírito”, como traduzi em outro lugar neste capítulo. A frase “o Espírito Santo”, literalmente “o Espírito da sua santidade”, o modo regular de falar por falta de adjetivos, encontra-se no Salmo 51.11 e em Isaías 63.10 e 11. É certo que a frase não tem o mesmo sentido no Velho Testamento que tem no Novo. A doutrina do Espírito Santo, como a terceira Pessoa da Trindade, é um desenvolvimento no Novo Testamento, de acordo com a experiência cristã. Tem as suas raízes nas experiências religiosas do povo de Israel, sem ser assim entendida pelos escritores do Velho Testamento. Textos do V. T. que falam do Espírito de Deus como personalidade: Ag 2.5; Zc 4.6; Is 48.16. O texto a seguir é transcrição do livro: A Fé do Antigo Testamento” de Werner H. Schmidt (PÁG. 175-177) da Editora Sinodal: 1. Espírito de Iavé sobrevém a uma pessoa que, diante da ameaça inimiga, é vocacionada para ser um líder carismático e trazer a salvação (Jz 3.10; 6.34; 11.29; 1Sm 11.6). Evidentemente se trata de um acontecimento relacionado a uma determinada situação e restrita à mesma. Por isso o Espírito dificilmente é experimentado como uma força que repousa de forma permanente sobre aquele que é chamado; pelo contrário, ele o impele “somente” à respectiva ação (cf. a respeito das façanhas de Sansão, Jz 13.25; 14.6,19; 15.14). Diz-se expressamente, por primeiro, de Davi que o Espírito de Iavé atuou nele “daquele dia em diante” (1Sm 16.13; cf. 2Sm 23.2; também Is 11.2), mesmo que não se diga que o Espírito novamente se retirou dele (como se diz de Saul, 1 Sm 16.14). Assim, o ser do Espírito não é preponderantemente um existir, mas um tornar-se ativo; ele é poder à medida que se torna poderoso. Ele é movimento que põe em movimento. O Espírito é o que faz do herói um herói — e do profeta um profeta. 2. Do mesmo modo como o Espírito desce sobre aqueles juízes, assim ele também toma os — primeiros — profetas, deixando grupos em êxtase, arrebatamento e delírio (1 Sm 10.6ss.; 19.20ss.; cf. sobre o espírito de Moisés Nm 11.16s.,24ss.). A condição é transferível: “Tu serás mudado em outro homem” (1 Sm 10.6 acerca de Saul). Teria Israel conhecido esta manifestação do Espírito somente na terra de cultivo? Seria o fenômeno da profecia extática de origem Cananéia um fenômeno que primeiro teve que ser permeado pela fé em Iavé? Contudo, ele é atribuído ao “Espírito de Iavé” (10.6 em comparação com “Espírito de Deus” em 10.10 e outras). Logo ele é experimentado também como poder que concede a palavra compreensível e transmissível (Nm 24.2ss.; 2 Sm 23.2; 1 Rs 22.24). O Espírito não realiza, com isso, nenhuma unidade mística entre Deus e ser humano, mas ele é experimentado de modo diferente pelas pessoas precisamente pelo modo como ele as “acomete” e dota. Talvez em algumas afirmações ainda ecoem idéias naturalistas sobre um poder impessoal do Espírito. Mas decisivo é que o dom do Espírito é uma maneira através da qual Deus se torna ativo entre as pessoas no mundo — não mais de forma “direta”, mas “indireta”. O Espírito pode criar o bem e o mal (1Sm 16.13s.; 1 Rs 22.21). Contudo, digno de nota é que os profetas literários dos séculos 7 e 8 não se reportam ao “Espírito”, se bem que Oséias (9.7) seja censurado: “O homem de espírito é um louco” (cf. 2 Rs 9.11; Jr 29.26; também Mc 3.30; Jo 10.20). E possível que eles evitem aproximar-se demais da profecia extática (cf. Ez 13.3); em todo caso, eles experimentaram o poder e a revelação de Deus na palavra. Uma exceção constitui Ezequiel, que — retomando o antigo profetismo (1 Rs 18.12,46; 2 Rs 2.9,15s. e outras) — testemunha ser possuído pelo Espírito: “O Espírito me levantou e me levou” (Ez 41


3.14; cf. 3.12; 8.3; 11.1,5,24; 37.1 e outras). Assim, no período exílico e pós-exílico, o poder pleno dos profetas novamente pode ser entendido como atividade do Espírito: O Espírito do Senhor Iavé está sobre mim [...] Ele me enviou para pregar boas novas aos pobres (Is 61.1; cf. 42.1; Zc 7.12; 2 Cr 15.1; 24.20). Visto que somente indivíduos tornam-se capazes de receber a inspiração profética, Moisés expressa, segundo Nm 11.29,0 desejo: “Oxalá todo o povo de Iavé fosse profeta, que Iavé lhes desse o seu Espírito!” Este desejo se realiza na promessa: Depois disso, derramarei o meu Espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões. Até sobre os servos e as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias (Jl 3.1s. ou 2.28s.; Cf. Ez 39.29; Is 32.15ss.; 44.3 e outras). Essa esperança futura não conhece “mais indivíduos privilegiados” (Hans Walter Wolff, sobre a passagem); desigualdades existentes no presente serão abolidas. Através do derramamento do Espírito, cada pessoa, sem distinção de gênero, idade e posição social (cf. Jr 31.34: “dos menores aos maiores”) encontrar-se-á “diante de Deus sem intermediários”. 3. Quão pouco o “Espírito” entendido a partir do antagonismo entre espírito e corpo ou natureza, quão pouco ele é um princípio superior ou autoconsciência, mostra-se na dimensão do significado do termo (ruah). O termo significa “expirar, soprar” (originalmente onomatopéico?). Explicar-se-ia, assim, a transição do significado para “fôlego”, “vento”, “tempestade”, de um lado, e para “espírito” e “sentido”, de outro lado. A variedade de significados parte de uma atividade ou movimento e consegue, com isso, unir o físico e o psíquico, o corporal e o anímico, o material e o espiritual. Como, aqui, interior e exterior, ser e agir, são concebidos como uma unidade, assim, no acontecimento do Espírito, o ser de Deus é entendido como um agir. 4. Se verdade que o Espírito pode realizar o extraordinário, milagroso, então também pode realizar a vida “natural” em suas manifestações cotidianas. A essência do Espírito é, então, estabilidade; não uma atividade única e singular, mas uma ação continua. A base destas afirmações está uma idéia completamente diferente, que em sua origem dificilmente está relacionada com a experiência do Espírito que distingue certas pessoas de outras. Paralelos do Antigo Oriente falam do fôlego de vida; de modo semelhante, no AT, o Espírito a força doadora e renovadora da vida. O “Deus dos espíritos de toda carne” (Nm 16.22; 27.16) concede ao povo na terra “o fôlego e o espírito aos que nela andam” (Is 42.5). Retirá-los significa morte: Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes tiras o “Espírito”, morrem e voltam ao pó. Se envias o teu “Espírito”, eles são criados (Sl 104.29s.; cf. 33.6; 146.4; Gn 2.7; 6.3; Ec 12.7). O Espírito me fez e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida (Jó 33.4; cf. 34.14s.; Ez 37.9ss.; Zc 12.1). Também sobre o “espírito”, como força de vida, a pessoa não pode dispor; ele justamente a faz experimentar sua dependência. A pessoa não “tem” o que lhe proporciona vida. Deste modo, ela não pode dispor justamente daquilo que constitui a sua vida. Às vezes, “espírito” é contraposto a “carne” para caracterizar a diferença entre Deus e ser humano como sendo uma diferença entre poder e impotência (Is 31.3; cf. 40.6s.; Gn 6.3); também espírito e poder podem ser contrapostos (Zc 4.6). Embora o AT não afirme que Deus seja espírito (cf. Is 40.13), Espírito de Deus pode ser sinônimo da presença de Deus (Sl 139.7 e outras). Ídolos não têm fôlego, espírito e força vital (Jr 10.14). 5. Por fim, na esperança profética, o dom único do Espírito pode se tornar um bem permanente, que não se perde. Ele será concedido a certos indivíduos — ao Messias (Is 11), ao Servo de Deus (Is 42) — bem como a todos: o “novo coração” e o “novo espírito”, através de uma profunda mudança interior da pessoa, inauguram um novo futuro (Ez 36.26s.; cf. 11.19; 18.3). A pessoa que ora o Sl 51 42


(v. 1 2s.; cf. 143.10) retoma a promessa de uma pessoa não mais afastada de Deus, mas dedicada a ele. Ela combina o conhecimento da profundeza do pecado com o pedido por renovação que abrange o pensar, o querer e a força para agir: Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova dentro em mim um espírito inabalável! Nesta oração encontra-se também a expressão “Espírito Santo”, muito rara no AT (somente atestada ainda em Is 63.10s.): Não retires de mim o teu Santo Espírito! Como quer que o Espírito seja entendido — como um acontecimento pontual ou constante, particular ou geral —, em cada caso ele que capacita para algo, é ele que possibilita a realização.

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CAPÍTULO 4 A ESSÊNCIA E OS ATRIBUTOS NATURAIS DE DEUS Em partes dos capítulos II e III, discutimos o intercurso espiritual entre Deus e o homem, como também as atividades do Espírito do Senhor na história da humanidade e nas obras da criação. Não encontramos no Antigo Testamento qualquer declaração que defina a essência do Senhor. Mas o Novo Testamento ensina diretamente que Deus é Espírito. A declaração de Jesus: “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”, concorda perfeitamente com o pensamento dos profetas do Velho Testamento. A espiritualidade de Deus é subentendida, é verdade básica, em toda as experiências religiosas dos hebreus com ele (Is 31.3). Em Êx 20.4 é proibida a representação do Senhor por qualquer imagem material. Na narrativa da criação do homem, em Gênesis 2.7, é declarado que o seu corpo foi formado da terra, mas que a sua vida espiritual veio de Deus. O escritor assim entendeu claramente que o Deus espiritual é a fonte da vida. O piedoso salmista descrevendo a sua experiência espiritual com Deus, declara: “Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde fugirei da tua presença? Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Sheol a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar,ainda ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá” (Sl 139.7-10). Assim a presença do Espírito de Deus é a presença dele mesmo. Tudo que Deus é, e tudo que possa significar para o homem é representado pelo ministério do seu Espírito que é vida e poder. É o Espírito de Deus, operando no espírito do homem piedoso do Velho Testamento, como no espírito do crente do Novo Testamento, que produz a vida de justiça, retidão, felicidade, e paz. Qualquer conhecimento que o hebreu tenha recebido dos atributos de Deus foi-lhe comunicado diretamente no intercurso do seu espírito com o Espírito Supremo, o Senhor Deus de Israel. “O Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável. Não me expulses da tua presença, nem tires de mim o teu Santo Espírito. Devolve-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito pronto a obedecer. Então ensinarei os teus caminhos aos transgressores, para que os pecadores se voltem para ti” (Sl 51.10-13). O DEUS VIVO O Deus Espiritual da Bíblia apresenta-se como Deus Vivo. O conceito bíblico do caráter de Deus tem muitos elementos claramente apresentados em todos os livros do Velho Testamento, especialmente nas obras dos profetas. Nos ensinos religiosos dirigidos ao povo de Israel, em todas as grandes épocas da sua história, desde Moisés até Malaquias, os profetas falaram no Senhor de Israel como o Deus Vivo.53 Deus tem características semelhantes aos nossas, mas são infinitamente superiores. É um instinto verdadeiro no homem que atribui a Deus as características da personalidade, pois é na sua natureza pessoal que o homem leva a imagem divina. Encontra-se o conceito do Deus Vivo em todas as partes da revelação divina. Subentende-se a idéia em todas as atividades de Deus. Ele é a fonte de todas as formas da vida. Criou todos os seres viventes segundo as suas espécies. A vida pessoal concedida ao homem testifica poderosamente da existência do Deus Vivo. Temos falado, em outros lugares, sobre as atividades de Deus na história. Todos estes atos são do Deus Vivo. As manifestações do seu poder entre os homens são provas de que ele é o Deus Vivo. Disse Josué: “Nisto conhecereis que o Deus vivo está no meio de vós, e que certamente expulsará de diante de vós os cananeus” (Js 3.10). Este livramento de Israel do poder do inimigo que ameaçava exterminá-lo é uma das numerosas demonstrações históricas de que o Santo de Israel é o Deus Vivo. É o Deus vivo que liberta, escolhe e dirige o povo de Israel como a nação sacerdotal, de acordo com os princípios da justiça divina, no cumprimento da missão de transmitir aos povos do mundo as verdades e os propósitos eternos do reino universal do Rei dos Reis, e Senhor dos senhores. 53

Não se pode negar a existência de idéias primitivas na religião de Israel em todos os períodos da sua história até o cativeiro babilônico. A maravilha da fé de Israel é que o Deus Vivo está se introduzindo freqüentemente na história e na vida do povo para fazer as suas maravilhas em favor dele.

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O Deus Vivo revela a sua sabedoria inescrutável pela disciplina do povo quando está revoltoso, pelo socorro quando está em perigo, pelo conforto quando está abatido, e sempre pela orientação profética, com demonstrações do seu amor imutável. Em um dos eventos na vida do povo escolhido, de importância especial para o futuro, o Deus Vivo demonstrou a sua direção de Israel de acordo com o seu propósito revelado na eleição deste povo como a nação sacerdotal para as outras nações da terra. Tinha chegado o tempo quando parecia que o Senhor não se interessava mais na vida de Israel, nem na causa da justiça. Mas para tal tempo Deus tinha levantado o seu mensageiro, Isaías, para aconselhar e orientar o Rei Ezequias e o povo de Judá. As forças da injustiça ganham vitórias temporárias, mas os triunfos do Deus Vivo são de maior alcance na história. O livramento de Jerusalém do poder de Senaqueribe (Is 36 e 37) visava não somente a salvação política da capital de Judá. O futuro do reino de Deus estava em jogo. Se Judá fosse completamente destruído, como o reino do norte tinha sido aniquilado, o propósito do Senhor na escolha de Israel teria sido frustrado. Por amor do seu Nome, o Santo de Israel, por intermédio de Isaías e outros homens de fé, salvou Judá do genocídio cruel da Assíria para que pudesse, mais tarde, desempenharse da missão de conservar, recolher e transmitir as suas Escrituras Sagradas ao mundo e estabelecer o reino mundial do seu Messias. As forças da justiça se achavam em luta de vida e morte com o inimigo. Do lado da justiça havia a fé inabalável de Isaías, fé no Deus Vivo como o Salvador do seu povo; do lado do inimigo, uma confiança arrogante na força brutal do exército militar, na astúcia humana, com desprezo da compaixão e da justiça divina. O poderoso e arrogante Senaqueribe, conquistador e governador do império mundial da época, tinha subjugado o território e as cidades de Judá, menos Jerusalém. Exigindo um tributo enorme de Ezequias, tinha prometido abandonar o sítio, deixando Ezequias com o seu pequeno domínio da cidade de Jerusalém. Mas, violando sua promessa, Senaqueribe resolveu tomar a cidade. Nada seria mais fácil! Precisava apenas mandar o seu astuto e eficiente oficial, Rabsaqué, para exigir a entrega da cidade. Seria uma loucura ridícula para a cidade, na miséria da fome, resistir ao exército invencível do grande império da Assíria. Rabsaqué, chefe dos oficiais de Senaqueribe, usou de arrogância, astúcia, promessas, duplicidade, sarcasmo, blasfêmia e ameaças, no esforço de persuadir os mensageiros de Ezequias de que era fútil confiar em Iavé, e resistir às forças da maior civilização do mundo. Com o orgulho e a sensualidade do seu povo, e com os recursos do exército ao seu dispor, Rabsaqué confiava que pudesse torcer estas pobres tribos provincianas à vontade. Com o conhecimento da língua judaica, o apelo direto ao povo abalado, desprezo do rei e das falhas de Iavé na defesa do povo, o oficial pensava em prestar um serviço que dispensaria as forças militares. Com agonia, o povo ouviu em silêncio este terrível discurso. Havia algo misterioso no coração deste povo humilhado que Rabsaqué, com toda a sua sabedoria mundana, não podia entender. É o profundo mistério de Deus no coração de Sião, que ainda havia de resplandecer quando a soberba da Assíria seria sepultada no pó. Ezequias rasgo:J os seus vestidos e se cobriu de saco. Disse: “Este dia é dia de angústia, de vitupérios e de desonra, pois chegados são os filhos ao parto e força não há para os dar à luz. Talvez o Senhor teu Deus ouviu as palavras de Rabsaqué, a quem o seu amo, o rei da Assíria, enviou para afrontar o Deus Vivo, e repreenderá as palavras que Iavé teu Deus ouviu; levanta, pois, a tua oração a favor dos que ainda restam” (Is 37.3, 4). Rabsaqué fracassou, e Ezequias recebeu uma carta insultuosa de Senaqueribe, exigindo de novo a entrega da cidade. Ezequias subiu ao templo, estendeu a carta perante o Senhor, e orou: “Ó Senhor dos Exércitos, Deus de Israel assentado sobre querubins, tu, só tu, és o Rei de todos os reinos da terra; tu fizeste o céu e a terra. Inclina, ó Senhor, o teu ouvido e ouve; abre, ó Senhor, os teus olhos e vê. Ouve todas as palavras de Senaqueribe, as quais ele mandou para afrontar o Deus Vivo. Verdade é, Senhor, que os reis da Assíria têm assolado todas as nações e suas terras, e têm lançado no fogo os seus deuses, pois deuses não eram, senão obra de mãos de homens, madeira e pedra; por isso os destruíram. Agora, pois, Iavé, nosso Deus, salva-nos da sua mão, para que todos os reinos da terra saibam que tu, só tu, és o Senhor” (Is 37.15-20). 45


Depois de fazer esta oração, Ezequias recebeu a mensagem do profeta e amigo: “Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Porquanto me fizeste a tua súplica concernente a senaqueribe, rei da Assíria, esta é a palavra que o Senhor falou a respeito dele: “A filha de Sião te despreza e te escarnece! A filha de Jerusalém meneia a cabeça por detrás de ti. A quem afrontaste, e de quem blasfemaste? Contra quem levantaste a tua voz, E ergueste os teus olhos ao alto? Contra o Santo de Israel! ... Eu conheço o teu assentar, O teu sair e o teu entrar, E o teu furor contra mim. Por causa da tua raiva contra mim, E porque a tua arrogância subiu aos meus ouvidos, Portanto, porei o meu anzol no teu nariz E o meu freio nos teus beiços E te farei voltar no caminho pelo qual vieste” (Is 37.22, 23, 28, 29). Assim Deus respondeu à oração de Ezequias e à fé de Isaías, e salvou o seu povo do genocídio às mãos da Assíria. Depois de Ezequias veio o impiedoso Manassés que tanto desviou o povo do concerto do Senhor que nem o piedoso Josias e o sensível profeta, Jeremias, puderam orientar o povo no caminho da fidelidade ao Senhor, e Deus o entregou ao cativeiro babilônico. Assim foram disciplinados, purificados e preparados para desempenhar-se da sua responsabilidade perante os povos do mundo como a nação sacerdotal de Deus, libertado, separado e vocacionado para esta missão. Assim, à luz da história de Israel, depois da época de Ezequias e Isaías, podemos entender o significado da salvação de Jerusalém do poder de Senaqueribe pelo Deus Vivo. Os santos do Velho Testamento regozijaram-se na comunhão espiritual com o Deus Vivo. Em contraste com os ídolos impotentes, o Deus de Israel é o Deus Vivo, “a fonte das águas vivas” (Jr 2.13). Quando o salmista se achava abatido e desalentado, o seu espírito suspirava por Deus. “Como uma corça suspira pelas correntes das águas, Assim suspira a minha alma por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Sl 42.1, 2). “Ó Senhor, esperança de Israel, Todos os que te abandonarem serão envergonhados; Os que se desviarem de ti serão escritos na terra, Porque abandonaram o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr 17.13). Este nome, O Deus Vivo, significa mais do que um contraste com os deuses das nações. Explica a razão dos desejos ardentes dos homens de Deus. Nada mais do que a Pessoa Suprema pode satisfazer à fome e à sede do espírito do homem mortal, que fica desassossegado até que descanse em Deus. O regozijo do salmista é característico das experiências dos homens em comunhão com Deus. “Quão amáveis são os teus tabernáculos, ó Senhor dos exércitos! A minha alma almeja, sim, desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne cantam de alegria ao Deus Vivo” (Sl 84.1,2). Quando Davi enfrenta Golias, ele se fortalece, lembrando-se de que o seu Senhor é o Deus Vivo (1 Sm 17.26,36). Um versículo de Jeremias explica o significado do termo “vivo” quando se refere a Deus. “Porém o Senhor é o verdadeiro Deus; Ele é o Deus Vivo e o Rei sempiterno” (Jr 10.10). O Deus Vivo, Criador dos céus e da terra, tem o poder de salvar, ao passo que os ídolos, feitos pelas mãos dos homens, não têm poder nenhum. Os profetas falsos pervertem a palavra do Deus Vivo (Jr 23.36), e trazem sobre si “o opróbrio sempiterno, e a perpétua vergonha que jamais será esquecida” (23.40). Quando Oséias contemplava o futuro do povo de Israel, em contraste com as circunstâncias do tempo, ele os viu como a areia do mar, que não se pode medir, nem contar, e continua: “No lugar onde se lhes disse: Vós não sais o meu povo, se lhes dirá: Vós sais os filhos do Deus Vivo” (1.10). É assim o Deus Vivo que acompanha o seu povoem todas as peripécias da sua história, mostrando-lhe sempre o seu amor imutável. O conceito do Deus Vivo apresenta-se em várias formas no Velho Testamento. No cântico de Davi que comemora o seu livramento de todos os seus inimigos, ele declara: 46


“O Senhor vive, e bendita seja a minha rocha; exaltado seja o meu Deus, a rocha da minha salvação” (2 Sm 22.47). Além destes títulos, há no Velho Testamento numerosas repetições do juramento solene dos israelitas: “Como vive o Senhor” ou “Pela vida do Senhor”. É uma súplica para que o Senhor Vivo estabeleça o compromisso ou castigue a quem assim profanar o nome sagrado pela violação do juramento. O Deus Vivo, como conceito bíblico, é compreensivo e frutífero no estudo da teologia. O Deus Vivo é a fonte da vida, Criador de todas as formas da vida, das plantas e dos animais, bem como da vida dos homens. “O deserto e a terra sedenta se regozijarão, o ermo exultará e florescerá como o narciso” (Is 35.1). “Plantarei no deserto o cedro, a acácia, a murta e a oliveira” (Is 41.19). Esta vida que o Senhor produz no deserto é simbólica da nova vida que ele dará ao seu povo disciplinado e remido do cativeiro. “Mas tu, Israel, servo meu, Jacó, a quem escolhi, Descendentes de Abraão, meu amigo; a quem tomei desde os fins da terra, e te chamei dos seus cantos, a quem disse: Tu és o meu servo; Eu te escolhi, e não te rejeitei; não temas, porque eu sou contigo; não te desanimes, porque sou teu Deus! e sustentar-te-ei com a destra da minha justiça” (Is 41.8-10). Na figura de ossos secos, Ezequiel viu os israelitas no cativeiro, mas o Senhor lhe disse: “Profetiza sobre estes ossos e dize-lhe: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis” (37.4,5). Também Jeremias tem muito a dizer sobre a nova vida espiritual que o Senhor dará ao seu povo: “Naquele tempo, diz o Senhor, serei o Deus de todas as famílias de Israel, e elas serão o meu povo” (31.1). “Com amor eterno te amei; portanto, com amor imutável (hesed) te atrairei a mim” (31.3). “Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que farei um novo concerto com a casa de Israel, e com a casa de Judá, não segundo o concerto que fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mão para os tirar da terra do Egito, meu concerto que eles invalidaram, apesar de eu os haver desposado, diz o Senhor. Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Imprimirei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração; eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (31.31-33). Estas passagens típicas dos grandes profetas esclarecem os característicos fundamentais da religião de Israel no processo de disciplina e purificação. Como diz George Adam Smith: “Nunca, em toda a história, saíram os pobres deste mundo mais ricamente carregados dos tesouros do céu”. Tinham aprendido de novo, da Torah, descoberta havia pouco tempo no templo, e a solenemente aceito como a mensagem do seu Senhor: “Ouve, ó Israel, Iavé, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua força” (Dt 6.4, 5). Desde o livramento do Egito, e o concerto do Sinai, a consciência do povo de Israel testificava a unidade de Deus, mas os profetas Isaías e Jeremias reforçaram a consciência com argumentos baseados nas atividades do Deus Vivo na história, os quais apelaram à inteligência e à imaginação do seu povo. O Deus Vivo É o Deus Eterno Alguns teólogos pensam que o Dr. James Moffatt, na sua boa versão inglesa da Bíblia, errou em traduzir o nome Iavé, por Eterno. Não é uma tradução feliz, mas não há dúvida de que Iavé, o Deus Vivo, é também o Deus Eterno. Falando das suas ricas experiências com Deus, os escritores bíblicos não pensavam em termos teológicos, mas as declarações das suas experiências com Deus são carregadas de palavras que descrevem os característicos da natureza de Deus. Este conceito da eternidade de Deus subentende-se em toda parte da Bíblia. Como o Deus Vivo, a fonte e o Criador de todas as formas da vida, o Senhor não teve princípio, e nunca terá fim. A 47


existência própria de Deus subentende-se no nome Iavé, “Eu Sou”. A Essência de Deus, tudo que ele é em si mesmo, é o Ser não causado. Jeremias entendeu isto quando disse que Deus Vivo “é o Rei sempiterno” (10.10). No seu louvor a Deus, o salmista declara: “Senhor, tu tens sido a nossa morada De geração em geração. Antes que nascessem os montes ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de eternidade à eternidade tu és Deus” (Sl 90.1,2). O fato de que o Velho Testamento apresenta o Senhor como Criador do mundo e como o dirigente da história da humanidade indica, pelo menos, que ele é supratemporal. Se os escritores bíblicos não fazem especulações filosóficas sobre a eternidade de Deus, é porque eles se interessavam principalmente nas relações de Deus com o homem e com o mundo. Entenderam perfeitamente que a existência de Deus não é contingente, ou dependente de qualquer causa anterior. Na mensagem de conforto para os cativos de Babilônia, o profeta apresenta-lhes a seguinte mensagem que realmente define a eternidade do Senhor. “Vós sois as minhas testemunhas, diz o Senhor, E o meu servo a quem escolhi, para que saibais, e me creiais, e entendais que eu sou o Senhor. Antes de mim não se formou deus nenhum, E depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou o Senhor; e fora de mim não há salvador” (Is 43.10,11). “Eu sou o primeiro e eu sou o último, Fora de mim não há Deus” (44.6).54 Assim as testemunhas do Senhor experimentaram o poder redentor da sua soberania eterna no mundo e na história da humanidade. Verdadeiramente, “O Deus da antiguidade é um refúgio. E por baixo estão os braços eternos” (Dt 33.27). O Deus Vivo É imutável Há várias declarações no Antigo Testamento que, isoladas do seu contexto, aparentemente indicam a mutabilidade de Deus. É representado, às vezes, como arrependido de certos atos que deviam ser modificados para melhor. Mas, nas suas experiências religiosas, através da sua longa história, os profetas, salmistas e homens piedosos aprenderam que o Senhor, na sua própria natureza, não muda. Sendo perfeito nos seus atributos e na sua vontade, a mudança da sua natureza para a menos perfeita contradiria a sua perfeição. Seria também impossível a mudança da natureza perfeita de Deus para melhor. As fundações da terra e dos céus, obras de Deus, perecerão, “mas tu és o mesmo, e os teus anos nunca terão fim” (Sl 102.25-27). “Pois eu, Iavé, não mudo” (Ml 3.6). Todas as declarações sobre a consciência e a fidelidade do Senhor, no cumprimento dos seus eternos propósitos, testificam de sua imutabilidade. Com imutabilidade55 queremos dizer que em essência, atributos, consciência e vontade, Deus é Imutável. Deus só tem uma substância, por isso é imutável. Todas as mudanças têm que ser para melhor ou para pior. Mas Deus não pode mudar para melhor, pois é absolutamente perfeito; nem tão pouco mudar para pior, pela mesma razão. Ele nunca poderá ser mais sábio, mais santo, mais misericordioso, mais verdadeiro. Tampouco mudam seus planos e propósitos. As Escrituras ensinam a Imutabilidade de Deus: Tg 1.17; Ml 3.6; Sl 33.1; 102.26,27; Hb 1.12; Rm 4.20,21; Is 46.10; Rm 11.29; 1 Rs 8.56; 2 Co 1.20; Sl 103.17; Gn 18.25; Is 28.17. Como harmonizar as Escrituras que dizem que Deus não se arrepende (Nm 23.19; 1 Sm 15.29; Sl 110.4) com outras passagens que O mostram se arrependendo (Gn 6.6; Êx 32.14; 2 Sm 24.16)? Da seguinte maneira: A Imutabilidade de Deus não é como a pedra que não reage às mudanças à sua volta, mas como a de uma coluna de mercúrio que sobe e desce conforme as mudanças de temperatura. Sua Imutabilidade consiste em sempre fazer o que é certo e em adaptar o tratamento de suas criaturas às variações de seu caráter e conduta. Deus diz: “se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe” (Jr 18.8): “Rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque ele é 54

A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 165: “Esta não é meramente uma declaração de que javé era desde o princípio e será até o fim. É um nome que indica a sua relação com a história e com a vida dos homens. Iniciou a história, e termina-la-á. Está presente em todos os seus movimentos. Até o último livro do Novo Testamento não tem nada mais sublime a dizer de Javé do que a declaração de que 'ele é o primeiro e o último'“. 55 Transcrição da apostila do Pr. Bentes: A Doutrina de Deus, Pág. 21.

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misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal” (Jl 2.13). Em outras palavras, as ameaças de Deus são às vezes de natureza condicional, como quando Ele ameaçou destruir Israel (Êx 32.9,10,14) e Nínive (Jn 1.2; 3.4,10). Deus é Imutável no Seu Ser: Tg 1.17; Sl 102.25-27; Deus é Imutável nos Seus Decretos: Jó 23.13,14; 42.2; Pv 19.21; Is 14.24-27; 43.13; Deus é Imutável nas Suas Promessas: 2Tm 2.13; Gn 12.1-3; Gl 3.14-22; Deus é Imutável nos Seus Atributos; Deus é Imutável na Concessão dos Seus Dons: Tg 1.17; Ml 3.6; Rm 11.29; Deus é Imutável em Sua Verdade: Lc 21.33; Sl 119.89; Deus é Imutável em Sua Misericórdia: Ml 3.6; Sl 103.10; 100. 5; Is 54.10. As passagens que aparentemente atribuem mudanças na natureza de Deus podem ser explicadas de várias maneiras. A imutabilidade de Deus não significa uniformidade fixa nas atividades do Senhor na história. Na sua perfeita justiça, e na sua infinita sabedoria, ele vê e entende perfeitamente, em contraste com as limitações das faculdades humanas. A justiça de Deus', por exemplo, opera no ambiente complicado das injustiças humanas. Se poupa a cidade de Jerusalém no tempo de Isaías, e permite a sua destruição no tempo de Jeremias, é porque as condições espirituais do povo de Jerusalém mudaram-se, enquanto a justiça de Deus permanecia imutável. Os casos do arrependimento de Deus são antropopatias, ou atribuições de sentimentos humanos a Deus. Como os antropomorfismos ficam esclarecidos à luz dos ensinos bíblicos sobre a espiritualidade de Deus, assim as antropopatias se entendem à luz das Escrituras, que ensinam a imutabilidade de Deus, e à luz da psicologia dos israelitas. O amor de Deus adapta-se às circunstâncias e à vontade do seu povo. O homem tem a liberdade, que lhe é divinamente concedida, de desprezar o amor de Deus e de rejeitar a revelação divina da vontade do Senhor. Mas os atributos de Deus, incluindo o amor, não mudam. O amor e a justiça divina operam eternamente de acordo com as condições morais das gerações sucessivas, que mudam segundo as influências do ambiente social, enquanto estes atributos naturais de Deus permanecem imutáveis. Podemos entender melhor a imutabilidade de Deus lembrando o grau da fidelidade de profetas como Isaías e Jeremias e de todos os homens dedicados e fiéis no esforço de seguir a vontade revelada de Deus. Quanto mais firme é a imutabilidade do Senhor no exercício do seu amor e justiça! Aparentemente Jacó venceu na sua luta com o anjo de Deus, mas realmente foi o Senhor quem venceu na sua luta prolongada com Jacó. Esta vitória de Deus é típica do triunfo do seu amor imutável na regeneração de pecadores. A imutabilidade do Senhor não se confunde com a inatividade (Deus não é estático, Ele é dinâmico). A criação, os milagres, a encarnação, a atividade do Espírito de Deus na consciência dos homens são atividades de Deus que concordam perfeitamente com a imutabilidade da sua natureza. Reconhecemos a imutabilidade do Senhor quando cantamos: “Ao Deus de Abraão louvai, do vasto céu Senhor; Eterno e poderoso Pai, o Deus de Amor”. O Deus vivo está ativo na história humana e profundamente interessado nos processos espirituais e sociais do seu povo. Em síntese, trata-se do Deus que age e não de um mero “motor imóvel”. Nas palavras de Justo Gonzáles: A fé do Novo Testamento é um monoteísmo dinâmico. [...] O Deus da Bíblia não é o primeiro motor imóvel da filosofia aristotélica. Quando os autores bíblicos falam sobre Deus, eles não o fazem em termos estáticos, como se Deus fosse um ser impassível e imutável, mas falam dele em termos dinâmicos e de relação.

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O Conhecimento do Deus Vivo 56 Os escritores do Velho Testamento usam as palavras perceber (bin - }yiB), conhecer (Yada‘ ((adfy) e ser sábio (hakam - {fkfx), com os seus respectivos substantivos, para descreverem o conhecimento do Senhor. Deus é a fonte, o doador de todo o conhecimento, todo o entendimento e toda a sabedoria humana. O Senhor deu a sabedoria ou a habilidade aos homens escolhidos para fazer as obras artísticas do santuário (Êx 31.6; 35.35; 36.1,2). Deus deu a Salomão sabedoria, entendimento em alto grau e largos conhecimentos (1 Reis 4.29). “Pois o Senhor dá sabedoria, da sua boca procedem o conhecimento e o entendimento” (Pv 2.6). O entendimento e o conhecimento são característicos que quase todos os escritores da Bíblia atribuem ao Criador. A criação é a obra que revela a suprema sabedoria de Deus. “O Senhor por sabedoria fundou a terra, pelo entendimento estabeleceu os céus” (Pv 3.19). Esta idéia repete-se muitas vezes na literatura de sabedoria, nos Salmos e nas profecias. Segundo a linda poesia de Provérbios 8.22-31, Deus possuiu a sabedoria antes de fazer as suas obras da antiguidade, antes de fazer a terra e antes de estabelecer os céus, sim, desde a eternidade. Assim também na poesia de Jó 28.23-28, Deus é o único que entende perfeitamente a sabedoria. “Ele conta (determina) o número das estrelas, Chamando todas elas por nome” (Sl 147.4). Ele é o Senhor que faz todas as coisas (Is 45.7). Ele estendeu os céus, e dá ordens a todas as hostes celestes (45.12). Deus revela a sua sabedoria na finalidade da criação. “Não a criou para ser um caos, mas formou-a para ser habitada” (Is 45.18). Assim a criação seguiu o plano preconcebido pelo Senhor. Todas as evidências de desígnio na natureza e no homem testificam da sabedoria do Senhor. O Deus que vê (Gn 16.13) plantou o ouvido para ouvir, e formou o olho para ver (Sl 94.9). Olhando do céu, o Senhor vê todos os habitantes do mundo e observa todas as suas obras (Sl 33.13-15). O Senhor dirige a história de Israel, fazendo promessas aos seus servos Abraão, Jacó, Moisés, Davi e outros; promessas que se cumprem fielmente séculos depois. Escolheu Israel para servir ao seu pia·· no de fundar e estender o reino de Deus entre todos os povos do mundo. Sabe dirigir a história das nações hostis para conseguir os seus planos. Diz de Ciro: “É meu pastor, e cumprirá todo o meu propósito”. Deus conhece também o futuro, e, na controvérsia com os ídolos (Is 41.21,22), este fato é reconhecido como prova da sua Divindade. Deus conhece os homens. O salmista (Sl 139) sente-se na presença do Senhor que o conhece perfeitamente. “Senhor, tu me sondas e conheces. Tu conheces o meu sentar e o meu levantar, De longe entendes o meu pensamento. Esquadrinhas a minha vereda e o meu pouso, Estás ciente de todos os meus caminhos. Pois antes que a palavra esteja na minha língua, Eis tu, Senhor, a conheces completamente” (139.1-4). O salmista fica encantado com este sentido da presença do Senhor com ele, e não pode deixar de pensar neste maravilhoso conhecimento de seus pensamentos. Fica acabrunhado com a certeza de que o Senhor o cerca constantemente por diante e por detrás. Quando acorda de manhã ainda se sente na presença de Deus, e, atraído irresistivelmente ao Senhor, termina a sua meditação com uma súplica fervorosa. “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Prova-me, e conhece os meus pensamentos! Vê se há em mim algum caminho perverso, e guia-me pelo caminho eterno” (139.23,24). 57

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Ver A. Strong, Systematic Theology, “Omniscience”, p. 282-286. O Velho Testamento não define a doutrina, mas ensina os seus princípios fundamentais. 57 Usa-se yāda para designar o conhecimento que Deus tem do homem (Gn 18.19; Dt 34.10) e de seus caminhos (Is 48.8; Sl 1.6; 37.18), conhecimento este que principia antes mesmo do nascimento (Jr 1.5).

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O Poder do Deus Vivo As atividades do Senhor testificam do seu poder, bem como da sua sabedoria. Os israelitas experimentaram a operação do poder do Senhor na sua vida pessoal, na vida das suas famílias e na sua vida nacional. Alguns teólogos exageram o aspecto terrível do poder de Deus no período primitivo da história de Israel. Em todos os períodos do Antigo Testamento, a majestade divina despertou no homem o temor do Senhor, que é sempre o princípio da sabedoria. O profeta Isaías sentiu-se perdido quando, na sua visão da santidade e majestade do Senhor, compreendeu o significado da glória de Deus em relação com o povo pecaminoso de Israel. Os primeiros onze capítulos de Gênesis explicam a atividade de Deus na criação do mundo, na direção dos povos primitivos, focalizando a atenção em Israel, no fato de que no processo do desenvolvimento da história, este povo se separa das nações e aparece na pessoa do seu pai, Abraão. No período patriarcal, Deus é o Todo-Poderoso, que chama Abraão em Ur dos caldeus, dando início ao plano de usar o povo de Israel como vaso de bênção para todas as famílias da terra.58 A chamada de Moisés, e a salvação de Israel do poder do Egito, com o triunfo sobre tantas forças poderosas da natureza, foi uma demonstração do poder do Senhor que tem sido lembrado e comemorado através de toda a história de Israel. Um dos exemplos mais significativos do poder de Deus na vida de Israel é a vitória no conflito com o baalismo, juntamente com os ensinos dos profetas de que Iavé é o único Deus, o dirigente e o controlador da história humana. O escritor de Jó reconhece o Senhor como o controlador de todas as forças da natureza e da vida do homem. Usam-se termos como “força”, “potência”, “poder”, e “domínio” para expressar o conceito do poder divino. Os próprios nomes de Deus, bem como os títulos e epítetos, “Rocha”, “Fortaleza” e “Torre”, põem ênfase no poder do Altíssimo. Na literatura devota, os poetas e salmistas louvam o poder do Senhor. “Eis que estas coisas são apenas as orlas do seu caminho; E quão, pequeno é o sussurro que dele ouvimos! Mas o trovão do seu poder, quem o poderá atender?” (Jó 26.14). “Sê exaltado, Senhor, na tua força; cantaremos e louvaremos o teu poder” (Sl 21.13). “Ele governa pelo seu poder para sempre; os seus olhos estão de vigia sobre as nações” (Sl 66.7). São numerosas as expressões de gratidão e louvor a Deus pelas manifestações do seu poder de salvar, socorrer e abençoar o seu povo. Citamos apenas exemplos. “O anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que o temem, e os livra” (Sl 34.7). “Pois tu livraste a minha alma da morte, das lágrimas, os meus olhos, da queda, os meus pés” (Sl 116.8). “O meu socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra” (Sl 121.2). “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará” (Sl 23.1). Nos períodos da história de Israel, quando a fé do povo no poder salvador do Senhor foi posta à prova, os profetas apresentaram as suas mensagens sobre o poder soberano do Santo de Israel. Nos capítulos 40 a 48 de Isaías, o profeta dirige a sua mensagem aos judeus na Babilônia, desiludidos, abatidos e desanimados, na década de 540 a 530 a.C. Este povo desterrado já começara a prosperar, como cultivadores do solo, administradores, negociantes e até como banqueiros. Mas, apesar da sua liberdade relativa e da sua prosperidade material, não se sentiam felizes. 58

Se a história de Abraão não foi escrita em sua forma final até alguns séculos depois da época patriarcal, segundo a crítica literária, este fato, por si só, não negaria: em absoluto as verdades básicas das tradições. Seja qual for a data da última redação de Gênesis, o livro representa as convicções religiosas e a teologia dos redatores, firmemente estabelecidas, e evidentemente por muito tempo. Os Textos de Nuzu foram escritos pelos horeus (Gn 14.8), contemporâneos dos patriarcas bíblicos. Os documentos foram escritos na época, e descrevem vários hábitos e costumes praticados pelos horeus através de algum tempo, e estes correspondem perfeitamente com a sociedade representada no livro de Gênesis. Estes documentos constituem um testemunho poderoso em favor da autenticidade das narrativas de Gênesis. A obra de John Bright, Early Israel in Recent History Writing, representa a notável mudança de opiniões de estudantes do Antigo Testamento sobre a autenticidade das tradições do povo de Israel.

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Tinham saudades da sua terra natal (Sl 137). A queda da nação, a destruição do Templo, a dispersão do povo indicaram, para muitos, fracasso completo, sem esperança para o renascimento nacional e religioso de Israel. Não foi esta grande calamidade uma humilhação para o seu Deus? Não mostrou que Iavé tinha menos poder do que os deuses da Babilônia? Podia ele arrebatar o seu povo da mão poderosa dos caldeus? (Is 49.24). Se Iavé é poderoso, não se esquecerá do seu povo. O profeta fala ao espírito assim desanimado do seu povo. Nunca foi proferida uma mensagem mais poderosa e mais carregada de importância do que esta que o profeta simpatizante dirigiu ao seu povo no cativeiro, pois o futuro da congregação religiosa de Israel dependia principalmente deste grupo. “Por que dizes, Ó Jacó, e falas, ó Israel: Meu caminho está escondido do Senhor, e o meu direito está desatendido por meu Deus?” (Is 40.27). Alguns entre os desterrados confessaram a justiça do seu castigo (42.24; 43.22-28), mas julgavam que o Senhor devia ter apagado a sua transgressão para vindicar a sua honra (43.25; 48.9). O profeta, poeta e teólogo foi levantado por Deus para confrontar o desânimo, e as tristes circunstâncias do seu povo, com a mensagem confortadora do Senhor. Então lhe abriu o entendimento para perceber o significado da disciplina e conhecer o poder do Senhor. Como o Senhor havia demonstrado o seu poder no socorro de Israel através das vicissitudes da história, e apesar das suas freqüentes infidelidades, não abandonará o povo da sua escolha, no período mais crítico da sua história. Israel ia aprendendo, mas com dificuldade, que o poder de Deus opera de acordo com a sua santidade e justiça e em harmonia com a fé e as responsabilidades do seu povo escolhido. É o poder do Deus Vivo. “Quem mediu as águas na concavidade da mão, Ou tomou a medida dos céus aos palmos? Quem recolheu numa medida o pó da terra, ou pesou os montes com um peso, e os outeiros na balança?” (40.12). “Eis, as nações são como uma gota de água suspensa dum balde, e reputadas como o pó miúdo nas balanças” (40.15). “Todas as nações são como nada diante dele; são para ele como menos do que nada, coisa vã” (40.17). “É ele o que está sentado sobre o círculo da terra, Cujos habitantes são como gafanhotos” (40.22). “É ele o que reduz a nada os príncipes, e faz como nada os governadores da terra” (40.23). Assim o Senhor é soberano na esfera da natureza, e na autoridade sobre as nações e os povos do mundo. O que se pode dizer, então, sobre os deuses dos caldeus? O profeta descreve o cuidado e a destreza do carpinteiro e o ourives na fábrica de ídolos, de imagens esculpidas. Da árvore escolhida, o trabalhador toma lenha para queimar, e com isso se aquenta e coze o pão. De madeira da mesma árvore, ele faz uma imagem esculpida, e prostra-se diante dela com reverência e adoração. Presta culto ao ídolo que não tem vida, nem poder de salvar-se a si mesmo na crise. “Bel encurva-se, Nebo abaixa-se; os seus ídolos estão consignados às bestas, Deitados como cargas nos animais cansados. Abaixam-se, encurvam-se juntamente; eles não podem salvar a carga, pois eles mesmos se vão para o cativeiro” (Is 46.1,2). Na universalidade da sua soberania, o Senhor domina a natureza, os homens e as nações, fazendo com que todos sirvam os seus planos. “Porque tu és precioso à minha vista, Tu és honrado, e eu te amo, Portanto, dou homens por ti, E povos pela tua vida. Não temas, pois sou contigo, Trarei do Oriente os teus descendentes, E do Oriente te ajuntarei. Direi ao Norte: Dá! E ao Sul: Não retenhas! Traze os meus filhos de longe, E as minhas filhas das extremidades da terra” (Is 43.4-6). 52


Por amor do seu Nome (48:9), ou por amor de si mesmo, o Senhor apagará as transgressões do seu povo (43.25), e no seu poder soberano trará de longe os seus filhos e as suas filhas. O Deus Criador A doutrina da criação apresenta-se no Velho Testamento, especialmente na segunda divisão de Isaías, como parte integrante da revelação do poder de Deus. Sem pensar em oferecer uma exposição teológica, o profeta apresenta discussões sobre as maravilhas da criação, da sabedoria e do poder imensurável do Senhor, para confortar o seu povo desanimado, fortalecer a sua fé e levá-lo ao arrependimento e restabelecimento da comunhão com Deus, no preparo para a restauração do cativeiro. O profeta não pensa em fazer uma exposição científica da criação, mas discute a sua importância do ponto de vista da religião, declarando que o mundo não foi criado como caos, mas para ser habitado (45.18). Os ensinos do Velho Testamento sobre Deus como Criador do universo constituem uma parte indispensável da teologia bíblica. As duas explicações da criação em Gênesis não concordam quanto aos fatos mencionados, nem na ordem dos pormenores apresentados. Mas apresentam-se, em cada uma das narrativas, ensinos importantes. A segunda história, embora de importância secundária, mostra que o fôlego (neshama hfmf$:n)59 do homem vem da fonte de todas as formas de vida, o Criador que produz e sustenta a vida. A explicação no primeiro capítulo de Gênesis, sendo a mais elevada, prevalece entre os escritores bíblicos, especialmente quanto à idéia do homem criado à imagem de Deus, como também no conceito da soberania de Deus. Todas as Escrituras do Antigo Testamento baseiam-se na premissa de que Deus é o Criador de todas as coisas. Deus se apresenta como inteiramente independente da sua obra da criação. Quando disse: “Haja luz, e houve luz”, Deus revela que, como Criador, ele transcende à luz criada, como também a todos os limites do poder humano. Todos os passos no processo da criação revelam que o plano e o propósito de cada coisa criada foram preconcebidos por Deus antes de dar ordem para que ela aparecesse. Em Isaías 40 a 45, o profeta trata da soberania de Iavé, em contraste com a impotência absoluta dos ídolos dos babilônios. Esta soberania do Senhor na ordem natural e social é a base da confiança do profeta de que Deus há de cumprir o seu propósito na escolha de Israel. “Porventura não sabeis? Não ouvistes? Não vos foi anunciado desde o princípio? Não tendes entendido desde as fundações da terra? É ele que se assenta sobre o círculo da terra, E os seus habitantes são como gafanhotos; É ele o que estende os céus como cortina, E os desenrola como uma tenda para nele habitar” (40.21, 22). O Criador preserva as obras da criação e dirige as estrelas nos seus movimentos. “Levantai ao alto os vossos olhos, E vede! Quem criou estes corpos celestes? Aquele que faz sair a sua haste por número. Chamando todos eles por nome; Pela grandeza da sua força, E porque é forte em seu poder, Não falta nenhum deles” (40.26). Como nunca fica fatigado ou cansado na preservação da ordem do mundo físico, o Criador do homem dará poder ao seu povo e ajudará todos aqueles que nele confiam. “Aqueles que esperam no Senhor renovarão a sua força, Subirão com asas de águia; Correrão, e não se cansarão, Andarão, e não desfalecerão” (40.31). O mesmo poder Que criou o universo é também o poder que criou o homem. O mesmo poder que dirige o mundo físico dirige também o homem. A diferença está no mundo inanimado e o homem criado à imagem de Deus, com a prerrogativa de exercer a sua própria vontade até o ponto de impedir, em parte pela menos, a direção divina. Os babilônios tinham que carregar os seus deuses, mas o Senhor carregava o seu povo. Os caldeus carregaram os seus deuses nas costas de animais; o Senhor carrega o seu povo, elevando e dirigindo o seu desejo e a sua vontade. A palavra hebraica nassa, em 59

No Velho Testamento há duas outras palavras empregadas para se referir ao espírito, que são NISHMAT - tam$ : ni (Gn 2.7) e NESHAMA - hfm$ f n: (Is 57.16). Ambas as palavras têm a raiz NESH ou NISH que quer dizer vento, sopro, hálito, respiração, (Portanto têm basicamente o mesmo significado de RUAH), e os sufixos MAT e AMA que pode ser usado para designar vida biológica. Por esta razão, essas duas palavras são em geral traduzidas por fôlego da vida e espírito da vida respectivamente.

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Isaías 46.3, indica como o Senhor tinha carregado o seu povo desde a madre. O salmista (25.1) usa a palavra no mesmo sentido: “A ti, Senhor, elevo o meu desejo”. Deus carrega o seu povo como o pai bondoso carrega o seu filho, elevando o seu desejo e atraindo-o com o ímã do amor constante (hesed). Em 43.6,7, o profeta explica o supremo propósito de Deus na obra da criação. Como tinha amado e guardado o seu povo através da história, ele vai restaurá-lo do cativeiro, e restabelecê-lo na terra prometida por amor da Sua glória.60 O livro de Jó reconhece que o poder de Deus como Criador e Controlador do mundo é tão incompreensível que a inteligência humana é incapaz de compreendê-lo (Jó 9.5-6). Tão grande é poder de Deus sobre a natureza, diz Bildade, amigo de Jó, que o mero homem não deve tentar entendê-lo. Jó, por sua parte, se queixa que o homem mortal, embora inocente, não pode contender com Deus, nem responder-lhe uma de mil vezes. Mas a ordem da natureza do mundo físico é apenas uma indicação parcial da atividade do Criador (Jó 26.14). Pela criação Deus revela atributos da sua natureza, e a sua relação com o mundo físico e com a humanidade. Nem o universo, nem o homem, é suficiente por si. Mas Deus reconhece o lugar singular do homem na criação (Gn 1.26). E o mundo é preservado e dirigido por Deus para o bem-estar da humanidade e a glória divina. “Enquanto durar a terra, sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite, não cessarão” (Gn 8.22). Os escritores bíblicos não se interessavam na ciência da cosmologia, mas para eles a criação era de profunda importância no entendimento da relação do homem com o mundo físico, e especialmente com o Criador. Deus é Um Não se levantam dúvidas sobre a realidade e a personalidade de Deus entre os autores do Velho Testamento. A religião primitiva dos hebreus evidentemente aceitava algumas das crenças, e tinha outros característicos da religião de semitas que eram politeístas.61 É difícil determinar quando os escritores chegaram a crer que o seu Deus, Iavé, era o único Deus. O redator final de Gênesis62 pensou que Abrão rompeu definitivamente com o politeísmo dos semitas. Entre os povos semíticos, a significação fundamental do nome do seu deus, Elohim, era poder. Ora, na época patriarcal dos hebreus, o nome de Deus, EI Shaddai, o Todo-poderoso, aparentemente indica a exclusão de outros poderes e o conceito de um só Deus. A idolatria, a imoralidade e a injustiça mostram o lado negativo da influência da religião na época patriarcal, como nos tempos modernos, enquanto o desenvolvimento da fé e do caráter de Abraão, Isaque, Jacó e José, serve de exemplo do novo poder da religião, que resultou do novo conceito de Deus como o Todo-Poderoso.63 Mais tarde os israelitas, depois de experimentar a crueldade da escravidão, e logo em seguida receber do Senhor a liberdade, sabiam que esta fortaleza que era Deus não era uma força qualquer, mas um Poder peculiar, único, Supremo. Esta nova experiência religiosa do povo de Israel era tão miraculosa que produziu resultados que não se explicam como apenas um novo passo no 60

Otto J. Baab, The Theology of the Old Testament, p. 47. “A escolha divina de Israel, o estabelecimento do concerto, a violação do concerto pelo povo, com a devida punição, bem como a esperança de um futuro glorioso preocuparam os escritores bíblicos. O conceito da Criação aprofundou seu sentido de dependência de Deus vivificou a consciência de modo a reconhecer que todos os pecados são cometidos contra o Criador de todas as coisas, e nasceu-lhes a esperança de que o poder do Criador poderia redimi-lo de todo mal”. 61 Otto J. Baab, The Theology of the Old Testament, p. 48. “Devemos rejeitar o evolucionismo fácil (da religião de Israel), que separa os documentos em grupos nítidos, classificados de acordo com a opinião particular quanto às datas e assim encontrar logo uma ilustração do desenvolvimento desde o animismo até o monoteísmo absoluto, com todos os estágios intermediários desde o polidemonismo até o henoteísmo”. 62 John Bright, Early Israel in Recent History Writing, p. 13. “Poucos críticos de hoje questionariam que muitas das tradições, poesias e leis do Hexateuco tiveram a sua origem no período da conquista, ou antes. Mas temos estas tradições em documentos datados do décimo século, ou depois”. 63 A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 98. “Assim é certo que pela própria revelação de Deus mesmo a Abraão, uma grande purificação e elevação resultou do seu conceito de Deus. O pensamento fundamental de Deus não se mudou, mas foi mais firmemente abraçado e mais perfeitamente concebido, e provavelmente clarificado até o ponto de compreender ao menos a unidade de Deus, e talvez a sua espiritualidade também”.

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desenvolvimento da sua fé. Foi urna revelação tão maravilhosa da misericórdia e do poder de Iavé que resultou no princípio de uma nova nação, um concerto solene com o seu Deus, a aceitação dos Dez Mandamentos, e leis cerimoniais designadas para manter a sua separação de outros povos a fim de desempenhar-se da sua vocação como o povo sacerdotal do Senhor. Ora, estas experiências que produziram a luta moral e prolongada com o baalismo poderosamente firmado na vida, nos hábitos e nos ideais dos cananeus, indicam que Israel, este povo humilde, tinha experimentado uma revolução na sua fé e na sua vida religiosa. W. F. Albright e G. E. Wright, arqueólogos bem informados sobre os contrastes entre a fé de Israel e as religiões de seus vizinhos, dizem que não é mais possível explicar a religião do Velho Testamento corno um desenvolvimento do politeísmo. Albright apresenta argumentos ponderados para mostrar que a religião de Israel, desde o Monte Sinai, era monoteísta. Os hebreus chegaram ao seu conceito da unidade de Deus pelas experiências religiosas, e não por um processo de análise lógica. Por isso, podemos dizer que, do ponto de vista prático, os israelitas eram monoteístas desde a sua aceitação do concerto do Senhor no Monte Sinai Não obstante as suas falhas e fraquezas, Israel se apresenta através do Velho Testamento como dependente de um só Deus, cujo nome inefável era Iavé. Não deviam ter outros deuses além dele, nem fazer ou adorar qualquer imagem dele. Os ídolos de Raquel (Gn 31.34), o éfode e os terafins de Mica (Jz 17.4,5) são provas da prática do politeísmo naqueles períodos, mas eram exceções e não representavam a religião do povo em geral. A idolatria de Salomão, Acaz e Manassés põe em relevo a luta forte e persistente de Israel contra as influências da religião de seus vizinhos, mas não se julga a fé dos fiéis pela vida dos infiéis. Quando Israel caiu diante da Assíria, e Judá foi subjugado por Babilônia, houve uma diferença característica no modo de interpretar esses eventos. O insensato Acaz, derrotado pelos sírios, declarou: “Porque os deuses dos reis da Síria os ajudam, eu lhas sacrificarei para que me ajudem a mim” (2 Cr 28.23). Esta, sem dúvida, foi a inferência também de Manassés e os fracos na fé que adoravam os deuses de seus conquistadores. Mas os profetas, conhecendo a santidade e a justiça do Senhor, explicaram a derrota política de acordo com o propósito e plano de Deus. Estas nações não eram mais poderosas do que Iavé, o Deus de Israel, mas eram instrumentos na sua mão para castigar o seu povo. O Senhor Santo entregou o seu povo pecaminoso ao conquistador para ser disciplinado e preparado para servir o plano do seu Deus. A luta com o baalismo, para manter a pureza da fé de Israel, continuou por muito tempo. O profeta Oséias explicou ao seu povo que era Iavé, e não os baalins que lhes deu o grão, o vinho e o óleo (2.4). Isaías declarou a Acaz que só pela fé Judá podia ser salvo dos resultados desastrosos das intrigas políticas e das derrotas militares. “Se não crerdes, certamente não ficareis estabelecidos” (7.9). O profeta da segunda divisão da profecia de Isaías, geralmente conhecido corno o Segundo Isaías, é monoteísta no sentido mais estrito da palavra. No uso de argumentos lógicos, este profeta tem alguns dos característicos dos teólogos gregos. Mas para ele, o monoteísmo não é meramente uma doutrina teológica; é uma verdade viva, prática e poderosa. O profeta é também poeta e profundo pensador. Sendo o único Deus, o Senhor faz conhecida esta verdade, não somente em termos claros, mas também revela, por intermédio do profeta, a significação e a importância da verdade. “Eu sou o Senhor, este é o meu nome; A minha glória não a darei a outrem, nem o meu louvor a imagens esculpidas” (42.8). Há um só Deus em todo o universo, ele é o Senhor, o verdadeiro Deus. Esta verdade é freqüentemente declarada explicitamente e reforçada por argumentos. “Eu sou o Senhor, e não há outro” (45.18). No capítulo 41.21-24, o profeta desafia os idólatras a defender a sua causa, por anunciar coisas passadas, ou coisas que hão de vir, “para que saibamos que sois deuses”. “Fazei o bem ou o mal, para que, espantadas, o contemplemos juntamente”. Os ídolos são nada, e menos do que nada a sua obra. Os idólatras são abominação. É difícil exagerar a importância desta declaração. É o augúrio funesto da idolatria. Mais importante ainda, aquele que é o Santo de Israel é o Deus de todas as nações. A graça 55


de Deus, oferecida primeiro a Israel, estende-se também, por intermédio de Israel, a todos os povos do mundo. “Virai para mim e sede salvos, todos os fins da terra! Pois eu sou Deus, e não há outro, por mim mesmo jurei, Da minha boca saiu, em justiça, a palavra que não voltará: A mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (45.22,23). UNIDADE Este atributo salienta a unidade e a unicidade de Deus, isto é, Deus é um e único. Implica que existe um só Deus, soberano; tudo mais depende dEle. O politeísmo não cabe no conceito bíblico de Deus. “A idéia de dois ou mais deuses em si é contraditória, porque cada qual limita o outro e assim cada qual destrói a divindade do outro”. A unidade de Deus implica também em que não há divisão ou conflito no Ser ou na natureza de Deus. Trata-se de uma unidade interior e qualitativa do Ser divino. A unidade de Deus, entre outras passagens, é ensinada em Dt 6.4; 1Rs 8.60; Is 44.6; 1Co 8.6; Ef 4.5,6; 1Tm 2.5.

dfxe) hfwh:y Uny”holE) hfwh:y l”)fr:&iy (am$ : :Dt 6.4. Dt 6.4 em hebraico diz: “Ximah Israel Iahweh Eloheinu Iahweh Errad”, que traduzido fielmente significa: “Escuta Israel: O eterno é nosso Deus, O Eterno é um” (Tradução do rabino Meir Masliah Melamed). “Deus é um. Esta afirmação do texto bíblico, mais do que um algoritmo 64 ou hierarquia, é uma expressão metafísica com grandes implicações. O Gênesis, a Criação, só foi possível através da geração de dualidade e de diversidade. Separa-se a luz da escuridão, os céus da terra, o homem da mulher e ramificam-se espécies ampliando a biodiversidade, e assim se cria. O UM, entretanto, não se inclui seja na diversidade, seja na Criação. O “UM” é uma grave afirmação que ressoa de canto a canto de nossa consciência. Nele há informações preciosas sobre a natureza e o ocultamento de Deus” - (Nilton Bonder – SOBRE DEUS E O SEMPRE). A Personalidade de Deus Muitas das citações bíblicas sobre outros atributos de Deus falam também da sua Pessoa. Deus é vivo, poderoso, sábio e ativo; tem propósitos e planos. A Bíblia menciona os atributos de Deus na discussão das suas relações com o mundo físico e com a humanidade, mas não os descreve sistematicamente. Os escritores inspirados percebem que Deus tem os atributos que caracterizam as pessoas humanas, e que os tem em medida suprema, sem as imperfeições 11umanas. Deus, como Pessoa, tem outros atributos pessoais que não pertencem ao homem. O atributo de Deus que é mais distintivo e mais acentuado no Velho Testamento é a sua personalidade. Qualquer identificação de Deus com as forças operativas no mundo físico é um desvio radical dos ensinos do Antigo Testamento. Não se encontra em qualquer parte da Bíblia o Deus que se manifesta somente através das forças cegas da natureza. No primeiro capítulo de Gênesis Deus se apresenta como o criador de todas as coisas. E ele percebe que a sua criação é boa. Dá ordens ao homem criado à sua imagem (Gn 1.28-30; 2.17). Desde as mais antigas referências, os escritores bíblicos pensavam de Deus como Pessoa, e não há nenhuma evidência de que houvesse qualquer desenvolvimento deste conceito.

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al.go.rit.mo. s. m. Sistema particular de disposição que se dá a uma sucessão de cálculos numéricos: Algoritmo de cálculo diferencial.

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Os numerosos antropomorfismos põem tanta ênfase na personalidade de Deus que alguns teólogos pensam que isto infringiu outros atributos do verdadeiro Deus, como a transcendência e a espiritual idade do Senhor.65 Todos os livros da Bíblia ensinam a direção própria e a determinação racional do Senhor. Deus dirigiu a história do seu povo desde a escolha de Abraão, através de todas as crises, até o desempenho da sua missão sacerdotal, de acordo com o seu plano predeterminado e conseguido pela força da sua vontade. Deus é freqüentemente o maior obstáculo no caminho almejado de Israel, censurando a sua insensatez e repreendendo severamente as suas intrigas políticas e as suas falsas esperanças. Assim Jeremias fala a um dos reis de Judá: “Pois os teus olhos e o teu coração Atentam tão-somente para a ganância, para derramar sangue inocente, e praticar a opressão e a violência” (22.17). Mas quando o povo desterrado ficou desanimado, Deus lhe falou com ternura e compaixão: “Não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque sou o teu Deus. Fortalecer-te-ei, sim, ajudar-te-ei, e sustentar-te-ei com a destra da minha justiça” (Is 11.10). É poderoso e persistente o Senhor em conseguir o seu propósito. Mas, às vezes os seus caminhos parecem estranhos, até para os profetas piedosos como Habacuque. “Tu que és de olhos puros demais para ver o mal; E não podes olhar para a perversidade; por que razão olhas tu para os que procedem traiçoeiramente, E te conservas em silêncio quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele?” (1.13). O Senhor lhe responde, e explica que embora tarde a chegada da justiça, certamente virá, e “O justo viverá pela sua fé” (2.4). O Deus Vivo, que escolheu a Israel com um propósito em mira, sempre exigiu que ele praticasse a justiça e amasse a misericórdia.

Espírito como Pessoa 66 Discussões sobre a deidade e personalidade do Espírito, em livros de teologia, giram principalmente em torno de textos do Novo Testamento e do diálogo filosófico. Embora a deidade do Espírito de Deus no Antigo Testamento geralmente não seja negada, a personalidade do Espírito geralmente posta em dúvida. O Espírito de Deus, em ambos os testamentos, parece preferir um papel velado. Tudo isto dificulta mostrar a obra do Espírito como ama pessoa mais do que somente um indicador da obra de Deus, de sua vontade, poder e atividade. Além disso, o argumento de J. B. Payne de que o Antigo Testamento enfatiza a unidade de Deus e assim evita a revelação do trinitarianismo para resguardar-se do politeísmo pode ser válida. Mas a principal dificuldade em apresentar a personalidade do Espírito Santo no Antigo Testamento devido ao foco do mesmo sobre os atos do Espírito em relação à humanidade. Assim, palavras e frases não pessoais são usadas para descrever o Espírito como a energia divina, como vento e fogo, como luz e espaço. Referências para o ruah em relação a Deus, na concepção Hebraica são entendidas como a extensão da personalidade Deus, por meio da qual os planos divinos são efetuados. Assim, o pensamento hebreu normalmente associou o rûah com poder, habilidade, criatividade e o viu como uma extensão da presença de Deus. O rûah foi entendido descritivamente para indicar a atividade de Deus e sua presença de alguma forma. Isto passa longe de afirmar que o Antigo Testamento apresenta um entendimento ontológico do rûah como uma pessoa ao longo do cânon hebraico. Embora A. B. Davidson afirme que a linguagem usada sobre o Espírito expresse a concepção do Espírito como uma soa distinta, ele colocas que a idéia de personalidade não a que podemos esperar encontrar no Antigo

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A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 107: “Não é fato que Israel pensava tanto em Deus como pessoa que ele chegou a ser para este povo uma mera pessoa humana magnificada e sujeita às limitações da personalidade entre os homens, de sorte que os verdadeiros atributos da Deidade eram obscurecidos?”. 66

Transcrição do livro: Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, Wilf Hildebrant, Pág. 106-108.

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Testamento. O termo rûah em várias traduções, concebido como uma força impessoal. Contudo, o resumo de PÁG. K. Jewett é de ajuda aqui: Parece que os hebreus, falam de Deus deste modo porque eles o concebem em seu ser essencial, como o Poder (Energia) atrás de tudo que há o fôlego criativo pelo qual as criaturas viventes, de fato, todo o universo, é animado. Ainda no contexto do Antigo Testamento como um todo é evidente que este Poder animador, este Fôlego criativo, não é entendido como uma força impessoal, mas mais do que isso como um sujeito vivo. A energia pessoal que está em Deus mesmo, o fôlego pelo qual Ele chama os mundos à existência (Sl 33.6) é em primeira instância, a Energia pela qual Deus será o que Ele é. Ele é quem é pelo seu próprio atuar; que é seu ser de forma pessoal, ser que pode ser entendido somente como um “ego autodeterminado”, um Eu.

Dos muitos sufixos possessivos e estados construtos com rûah e o divino, fica evidente que os hebreus percebiam o rûah como sendo uma personalidade independente em alguns exemplos (cf. 1Rs 2.21-22; Is 63.11; Sl 51.11). Atividades pessoais e algumas disposições atribuídas ao rûah (Gn 6.3; 2 Sm 23.2; Is 4.4; 63.10; Ne 9.20). Tem sido argumentado que três pessoas divinas são referidas em Is 48.16, o profeta registra: “E agora o Soberano, o Senhor, enviou-me, com seu Espírito”, contudo, isto aparenta mais que seja um líder real profeta) que clama ser comissionado e enviado por Yahweh e pelo rito. Outros afirmam que, em Is 61.1, a divindade está trabalha nem conjunto de uma forma tríplice “O Espírito do Soberano Senhor sobre mim, porque o Senhor tem me ungido para pregar as boas as para o pobre”. Nesta passagem, o Senhor unge o Messias com Espírito. Está implícito que o rûah não era somente um mensageiro divino que tinha o poder de efetuar a vontade divina, mas também se cria que era uma pessoa. Talvez a tentativa de J. Moltmann de desenvolver uma “pneumatologia trinitariana” fora da experiência e teologia do Espírito Santo providencia a mais frutífera discussão recente sobre a questão da personalidade. Sua metodologia envolve uma investigação dedutiva nas metáforas que expressam a operação do Espírito. Ele afirma que “Na operação do Espírito nós experimentamos a operação do próprio Deus, e todas as metáforas usadas para o Espírito Santo são metáforas para Deus em sua vinda até nós, e, em sua presença conosco”. Assim, esta forma de revelação ajuda-nos a entender Deus em geral, e como Deus relaciona-se com a humanidade em particular. O estudo de Moltmann sobre as metáforas para a experiência do Espírito no Antigo Testamento levam-no para esta definição: “A personalidade de Deus, o Espírito Santo, amável, auto-comunicativa, fortalecedora e derramadora da presença da vida eterna do Deus trino”.’78 Para dizer mais do que isso nos levará a uma intrusão especulativa nas referências do Antigo Testamento. O Novo Testamento desenvolve a concepção ontológica do Espírito como uma pessoa em muitos e maiores detalhes que alguém poderia esperar na revelação progressiva das Escrituras. A revelação do Novo Testamento sobre o Espírito como a terceira pessoa da Trindade necessária para apreciar totalmente a pneumatologia do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, a concepção neotestamentária do Espírito Santo como uma pessoa está baseada sobre e desenvolvida das Escrituras do Antigo Testamento.

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CAPÍTULO 5 OS ATRIBUTOS REDENTORES DE DEUS Pensamos na santidade, na justiça e no amor do Senhor como atributos redentores. A verdade é que o âmago da teologia bíblica se encerra no pleno sentido destas palavras nas Escrituras do Velho Testamento. Estudantes do Antigo Testamento, nos últimos vinte e cinco anos, vêm fazendo progresso no estudo do hebraico, à luz do novo conhecimento de outras línguas semíticas, como também no estudo da religião bíblica, à luz dos novos conhecimentos das religiões contemporâneas. Convém fazermos um estudo do desenvolvimento das palavras hebraicas que descrevem o caráter de Deus, lembrando sempre que Deus é Um, e que há perfeita harmonia em todos os seus atributos. O estudo desses termos nos ajuda no entendimento mais claro dos ensinos bíblicos sobre os propósitos e atividades do Senhor na redenção da humanidade. A Santidade de Deus Não há outra palavra que, no seu pleno sentido bíblico, descreva mais perfeitamente a natureza de Deus do que o termo santidade. É a tradução da palavra hebraica qodesh ($edoq), que tem uma longa e complicada história, e que tem sido usada em vários outros sentidos, mas exclusivamente para expressar idéias religiosas. Como as palavras que tratam das experiências importantes da vida, a palavra desenvolveu o sentido distintivamente bíblico dentro do Velho Testamento. A palavra tem sido usada na língua popular desde o período mais antigo da história dos hebreus, e não há certeza quanto à sua origem etimológica. Era usada entre os povos semíticos antes da origem histórica dos hebreus. A explicação etimológica de palavras usadas por muito tempo, em várias línguas, serve apenas como guia geral no estudo do seu significado nos períodos sucessivos do seu desenvolvimento histórico. Há duas teorias quanto à origem etimológica de qodesh. Gesenius67 e outros pensaram que se originou da palavra babilônica quiddushu, com a significação de claridade ou resplendor. Davidson68, depois de vacilar na sua opinião, concluiu que originalmente a palavra significava ser separado ou ser sublime. Nas línguas semíticas os substantivos geralmente se derivam de verbos, mas o verbo qadash $aadfq (= ser consagrado, ser santo) significa ser qodesh, e assim indica que o verbo se derivou do substantivo. As duas formas, do verbo, intensivo (qiddesh), e causativo (hiqdish), significam fazer santo ou santificar. As três palavras, santidade (qodesh), anátema ou devotado (cherem - {er”x), profano ou comum (chol - lox), têm uma história entrelaçada e significativa no estudo da santidade de Deus. Na inscrição da Pedra Moabitas, a palavra cherem tem o mesmo sentido para os moabitas que tem para os hebreus. Declara-se nesta inscrição que o rei de Moabe, Messa, matou sete mil cativos de Israel, devotados ao seu deus Quemós. Assim os semitas antigos devotavam ao seu próprio deus a propriedade que capturavam de povos que adoravam qualquer outro deus (Js 6.17). O que era santo para os deuses de outras nações era anátema para os israelitas, e o que era santo para o Deus de Israel era anátema para as outras nações. Procksch mantém que cherem é a primitiva raiz hebraica que significa santidade69, e que os hebreus trouxeram consigo esta palavra quando entraram em Canaã. É claro que entre os semitas qodesh e cherem sempre se referem às coisas que pertencem aos deuses. Alguns semitas evidentemente tiveram um certo receio ou temor das coisas que pertenciam a deuses estranhos, e por esta razão devotaram tais coisas que caíram no seu poder ao seu próprio deus.

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G. Gesenius, Tesaurus. Brown, Driver e Briggs rejeitam a explicação de Gesenius. A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 150. 69 Otto Procksch, citado por Norman H. Snaith, The Distinctive Ideas of the Old Testament, pp. 26 e 32. Snaith considera: que a opinião de Procksch não tem base substancial. Contudo, é interessante a relação entre as duas palavras. 68

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Ora, o profano (chol) era a antítese, ou o oposto de qodesh e cherem. O santo e o anátema referem-se ao sobrenatural, enquanto o profano se refere ao natural. A palavra chol usa-se nos dois sentidos de profano e comum. Quando o chol (profano) é abominação, ou impuro, o seu uso pelo homem é proibido. O verbo chalal usa-se no sentido de profanar ou contaminar (Lv 21.4,9; 19.29; Gn 29.4). Convém lembrar que uma coisa pode ser comum sem ser profana. Quando uma coisa é comum, o seu uso pelo homem não é proibido. Ao vinhateiro, depois de apresentar ao Senhor as primícias da vinha, com o reconhecimento de que toda ela pertencia a Deus, era permitido reter o resto da vinha para seu uso. Esta parte deixou de ser separada, ou santa, tornando-se comum para o uso do homem. Assim podemos concluir que, do ponto de vista geral dos semitas, qodesh e cherem referem-se às coisas que pertencem aos deuses. Mas o qodesh para um deus pode ser cherem para outros deuses. O chol é sempre antítese de qodesh e cherem. Estas três palavras tratam das coisas que envolviam os semitas antigos com os seus deuses. Idéias Primitivas de Santidade A história do conceito de santidade é longa e complicada, variando na sua significação entre as nações antigas.70 Originalmente a santificação não tinha qualquer significação moral. Entre os hebreus a santidade se referia primeiramente ao mysterium tremendum, ao numinous,71 ou aos característicos da Divindade que a separa de tudo que é comum, tudo que é do mundo físico ou da humanidade. Com esta idéia de “otherness”, separação de Deus, o termo santo aplicava-se às coisas e aos homens separados para o Senhor. A mana que, entre alguns povos primitivos, significa as forças sobrenaturais, e o tabu que atribui caráter sagrado a pessoas e objetos, evidentemente tinham, como a idolatria, alguma influência entre os hebreus, nos primeiros períodos da sua história. A mana é poderosa e pode destruir ou salvar. Portanto, tinha que ser tratada com cuidado para que não destruísse o inocente juntamente com o culpado. Para alguns hebreus, antes do período dos grandes profetas, qodesh era também poderosa e perigosa, e podia destruir, como no caso de Uzá (2 Sm 6.6 e seg.), ou no caso de Nadabe e Abiú (Lv 10.2). Nestas manifestações da mentalidade primitiva, quanto aos poderes sobrenaturais, havia o conceito daquilo que é distintivamente sagrado e inteiramente separado da vida secular. Na variedade de experiências religiosas os homens ficavam cheios de medo e temor, enquanto se sentiam atraídos aos deuses para receberem, nas suas fraquezas, o socorro sobre-humano que só eles lhes poderiam oferecer quando devidamente apaziguados. Assim eles distinguiam claramente entre a esfera do homem e a dos poderes sobrenaturais. Na religião dos hebreus a diferença entre o homem e Deus ficava cada vez mais claramente apreendida. Embora influenciados pelas cerimônias religiosas de seus vizinhos, os hebreus progrediam na distinção entre o sagrado e o secular. Com proibições e leis cerimoniais, eles governavam a vida religiosa do povo santo, ou separado, no esforço de orientá-lo no cumprimento das responsabilidades sagradas e seculares. A Santidade de Iavé, o Deus de Israel Havendo examinado como os semitas em geral tiveram por algum tempo o mesmo conceito de santidade de seus deuses, podemos agora esclarecer melhor o desenvolvimento distintivo da santidade de Iavé no Velho Testamento. Na base dó conceito da separação de Iavé, o seu Libertador, de tudo que é do homem e da terra, o desenvolvimento distintivamente hebraico da santidade do Senhor começa com o uso da palavra santa no sentido pessoal, com referência ao Senhor. Em 1 Samuel 6.20 encontramos a pergunta: “Quem poderia estar em pé perante o Senhor, este Deus Santo?” Em Isaías 40.25 o termo qodesh é usado no sentido do Nome de Deus: “A quem, pois, me assemelhareis, para 70

James Hastings, Encyclopedia of Religion and Ethics, in loco. Numinous. 1.Filos. Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento. 71

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que eu lhe seja igual? diz o Santo”. Em Oséias 11.9, Deus promete não executar o furor da sua ira, “porque sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti”.72 No livro de Isaías a frase “o Santo de Israel” é usada vinte e quatro vezes em vez do nome Iavé. Estas passagens constituem um comentário importante sobre a santidade do Senhor. Em Isaías 5.19,24 os “sábios aos seus próprios olhos” desafiam o propósito do “Senhor dos exércitos, e desprezam a palavra do Santo de Israel”. O Santo de Israel é poderoso no meio do seu povo (Is 12.6). Em Provérbios 9.10 e 30.3, é usado o plural de majestade, qedoshim ({yi$od:q), o Santo, ao invés do nome do Senhor. O profeta Amós declara, em 4:2, que “o Senhor Iavé jurou pela sua santidade”. Em 6.8, diz o mesmo profeta: “O Senhor Iavé jurou por si mesmo”. É claro que, desde Amós em diante, os profetas identificaram a Santidade com a Divindade.73 A Santidade não é propriamente um atributo de Deus. Descreve antes a própria natureza de Deus. Assim, a Santidade abrange, ou compreende, todos os atributos de Deus.74 É na santidade que Deus é transcendente, ficando, na sua Divindade, por cima de tudo e independente de toda a sua criação. Tomando este conceito da santidade do Senhor como o seu ponto de partida, os escritores bíblicos chegaram a reconhecer a claridade e a pureza da Deidade que exclui a comunhão com tudo que é mau ou perverso. Gomo a representação e o testemunho da natureza divina, a santidade é relacionada com a glória de Deus. A glória do Senhor revela-se na sua santidade. “O Deus Santo (há’el haqqadosh = $OdfQah l”)fhw: ) é santificado (niqdash = $fDq : in) em justiça” (Is 5.16). Entre os semitas em geral, incluindo os hebreus primitivos, o termo santo, no seu sentido, não descreve uma qualidade moral quando se refere a Deus ou ao homem. Quando se refere aos homens e às coisas, a palavra significa que estes pertencem a Deus. Quando se refere ao Senhor, descreve a sua transcendência ou tudo em que Deus é a antítese do homem. Quando Isaías recebeu a visão da santidade do Senhor (Is 6.1-5), foi-lhe revelado o terrível abismo que o separava, juntamente com o seu povo, de Deus. O abismo separador foi o pecado de Israel, manifestado pela ignorância, ingratidão, injustiça, formalismo e rebelião (Is 1.1-23). Com o desenvolvimento do conceito da santidade do Senhor, os profetas entenderam cada vez mais claramente a pureza moral do seu caráter, a justiça absoluta em todos os seus pensamentos, propósitos e planos, e em todas as suas relações com o povo de Israel, e com os povos das outras nações. Portanto, homens separados para o serviço do Senhor deviam ser aptos e idôneos, santificados para servir ao Deus Santo. Como a justiça divina é um elemento integrante da santidade, assim também o povo que pertence a Deus tem que ser um povo justo. Entre os profetas e escritores bíblicos o conceito da ética e justiça entre os homens fica enraizado na sua relação com Deus, “O Santo de Israel”. Os homens que pertencem a Deus devem ter o mesmo caráter ético e a mesma pureza moral do Senhor, tanto quanto fossem capazes, com o socorro da graça divina, de desenvolver tais qualidades morais. Antes de deixar a discussão da santidade do Senhor, convém chamar a atenção a duas posições extremistas entre teólogos modernos. Alguns dão muita ênfase ao elemento divino no homem, e falam da eminência (excelência) de Deus. É verdade que o Velho Testamento põe em relevo a dignidade do homem na obra da criação, mas reconhece em toda parte a sua fraqueza. A imagem divina nele ficou quase apagada pelo pecado, e perante a Divindade ele é um pecador miserável. Não há nada no Velho Testamento sobre a eminência de Deus no homem, segundo o ensino desses teólogos. O seu conceito de Deus é mais panteísta do que bíblico. É completamente contrário ao pensamento dos escritores do Antigo Testamento de que Deus reside na natureza ou no homem. Eles apresentam Deus como Pai, e os homens como seus filhos. O Senhor é compassivo e benigno e grande no seu amor imutável (hesed). “O Senhor é bom para todos, e sua compaixão é sobre tudo que ele fez” (Sl 145.9).

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Otto J. Baab, The Theology of the old Testament, p. 34: “Quando este termo (santo) é usado para descrever Deus, qualquer pensamento de um Deus criado por homem é impossível”. 73 Otto J. Baab, op.cit., p. 36: “Assim se pode afirmar de novo que a Santidade é o caráter essencial da Deidade que estabelece o conceito de Deus em uma categoria completamente exclusiva, e vivamente distinguível de tudo que é natural ou humano”. 74 A. B. Davidson, op. cit., p. 145: “Nenhum dos atributos é estritamente sinônimo da santidade; antes todos eles são elementos da santidade. Mas Javé se revela como santo quando manifesta qualquer um de seus atributos”.

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Outros teólogos acentuam a transcendência de Deus até o ponto de afastá-lo do homem e da natureza. Dizem que Deus é “Wholly Other” (Totalmente Outro) em relação com o homem. Já discutimos a verdade de que Deus é outro em relação com o homem. Mas esta teoria de que Deus é Totalmente Outro coloca um abismo entre Deus e o homem, não podendo ser atravessado nem por Deus. Nenhum ensino do Velho Testamento é mais claro, ou mais persistente, do que a atividade do Senhor na vida do seu povo, como testificam o seu amor constante e os seus recursos inexauríveis na direção de Israel no cumprimento da sua missão predeterminada. As experiências religiosas, no intercurso pessoal dos fiéis com Deus, testificam que Deus está perto de todos os que o invocam. “Pois tu, Senhor, és bom, e pronto a perdoar, e abundante em amor imutável (hesed - desex) para com todos os que te invocam” (Sl 86.5). O valor supremo do Velho Testamento é o seu testemunho irrefutável quanto à comunhão dos homens fiéis com o Senhor e as bênçãos supremas desta fraternidade. Há muita discussão sobre a santidade de pessoas, lugares e coisas. Basta dizer que em todos estes casos a santidade é apenas relativa e bem diferente da Santidade do Senhor. Tudo que pertence a Deus é santo, como o sacerdote e sua vestimenta; a nação de Israel; o Templo, com todas as suas dependências e utensílios; vários lugares, como o Monte de Sião; os céus, os sábados e muitas outras coisas. Felizmente para a religião de Israel, o Templo foi destruído, e muitas destas coisas foram secularizadas. A Santidade de Deus significa a sua separação do universo, no sentido de que ele é absolutamente superior e independente de tudo que criou. É, portanto, impossível fazer uma imagem de Deus. É absoluta a proibição de representar Deus por qualquer figura ou imagem. Não se pode fazer argumentos na base dos antropomorfismos bíblicos, em favor de imagens, sem violar diretamente os preceitos do Senhor, claros e absolutos, e ao mesmo tempo profanar a Santidade de Deus. Os escritores do Velho Testamento não podiam dispensar os antropomorfismos quando tratavam de pensamento representativo ou ilustrativo. A interpretação literal de tais expressões é corrigida dentro da Bíblia pelo alto conceito de Deus como Espírito. A proibição de fazer qualquer imagem de Deus (Êx 20.4) é logo seguida pela declaração: “Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus sou Deus zeloso” (Êx 20.5). Ora, esta palavra zeloso é a tradução da palavra hebraica, qanna’. Nos seus vários derivados, esta palavra é usada em dois sentidos gerais. Usa-se no hebraico bíblico para expressar profundas emoções pessoais. Assim, em Números 11.29, Moisés diz: “Tens tu ciúmes por mim?” O salmista diz: “Quando homens no acampamento tiveram inveja de Moisés” (106.16). As versões em português geralmente distinguem os dois sentidos da palavra hebraica, traduzindo-a de acordo com o seu sentido no contexto. Quando é traduzida por inveja ou ciúme, entende-se logo que significa ressentimento e ódio contra um rival, receio, suspeitas e dúvidas de um espírito perturbado. Quando é traduzida por uma forma da palavra zelar, o termo geralmente significa um sentimento bom, representando o espírito ardoroso que vigia o que é sagrado e precioso. Os dois sentimentos resultam do amor caloroso e se fundem, às vezes, quando se referem às experiências de pessoas. Ora, o zelo do Senhor opera em defesa da sua santidade, de tudo que lhe pertence, especialmente de seu povo. O seu zelo é despertado principalmente pelo culto que o seu povo presta a deuses falsos (1 Reis 14.22; Dt 32.21). O Senhor tem zelo pelo seu santo Nome (Ez 39.25); pela sua terra (Joel 2.18); por Jerusalém e por Sião (Zc 1.14); e por seu povo (Ez 36.6-15). As poucas atribuições de zelos humanos ao Senhor são antropopatias, e assim devem ser interpretadas. A Justiça de Deus A justiça do Senhor é o atributo de perfeição moral que caracteriza a sua Santidade, a sua própria Natureza, a sua Divindade. Os seus pensamentos, os seus propósitos, os seus motivos e todos os seus atos são absolutamente retos e perfeitos. O padrão divino da justiça é tão eterno como o próprio Deus. Um ato de Deus é justo simplesmente porque ele o praticou. Tudo que ele faz é de 62


perfeito acordo com o eterno padrão da justiça. Ele não pode mentir, nem fazer qualquer outra injustiça. A Santidade designa a divindade, que pertence somente ao Senhor. 75 Antes do tempo dos grandes profetas do século oitavo antes de Cristo, o povo de Israel identificou a Santidade com a Natureza Divina, mas, começando com Amós, os profetas deram um novo sentido, uma nova interpretação da Santidade, por associá-la com o seu novo entendimento da revelação divina da justiça. As duas palavras hebraicas, tsedeq e tsedaqah, são traduzidas em inglês quase sempre por righteousness, e raramente por justice. O português não tem uma palavra que seja o equivalente exato do termo righteousness. Em inglês, a palavra righteousness é sempre reservada para designar a justiça segundo a norma ou o padrão divino da justiça, que é o caráter do próprio Deus. Portanto, quando estas palavras hebraicas da Bíblia são traduzidas em português por justiça, o sentido (desta palavra) deve ser entendido como a justiça de acordo com o padrão bíblico, e não meramente no sentido secular. Pois há uma distinção entre a justiça bíblica e a justiça secular, e esta distinção é designada em inglês pelas palavras righteousness e justice. Com o desenvolvimento da justiça filosófica em termos bíblicos, e a justiça em termos de ética, quase desaparece a distinção entre a justiça divina e a justiça secular. Convêm lembrar a distinção, porque é importante no estudo da teologia do Velho Testamento. Teólogos que não reconhecem esta distinção cometem o erro de igualar a ética dos profetas com a dos gregos. 76 Quem é que não fica entusiasmado com o desenvolvimento filosófico da ética de Sócrates, Platão e Aristóteles? As ciências físicas de Aristóteles não têm mais valor, mas o valor dos seus princípios éticos permanece. Mas importa lembrar que a ética dos profetas Amós, Oséias, Miquéias e Isaías foi desenvolvida três séculos antes do tempo de Sócrates. Também a ética bíblica deriva-se do caráter de Deus. Por sua própria Divindade, o Santo de Israel exige, primeiro do seu povo, e logo da humanidade inteira, a prática da justiça por parte de todos os homens nas suas relações pessoais. Como diz o profeta Isaías, 5.16: “Mas o Senhor dos Exércitos é exaltado pela justiça [+fP:$im - mishpat] (juízo), E o Deus Santo mostra-se santo pela justiça [hfqfd:ciB - qyiDac] (righteousness)”. O apelo filosófico da justiça, por si só, é limitado, e humanamente fraco, mas reforça a ética bíblica que, no seu apelo divino é universal e eterno. Nota-se, especialmente em Isaías 6.1-5, como a visão da Santidade do Senhor produziu no profeta a convicção do seu pecado pessoal e da natureza pecaminosa do seu povo. Há várias outras palavras hebraicas, tsadiq (qyiDc a ), mishpat (+fP:$im), yashar (rf$fy) e outras, que designam ou descrevem a significação da justiça. O adjetivo tsadiq (qyiDac) descreve o que é reto e justo em Deus ou no homem. A palavra é usada poucas vezes com referência a Deus, mas sempre no sentido de que ele faz tudo no governo do seu povo de acordo com a sua Natureza. O Deus justo sempre visa o alvo final das suas atividades na história. “Declarai e apresentai as razões, tomem conselho todos juntos! Quem mostrou estas coisas desde os tempos antigos? Quem as anunciou desde então? Não fui eu, o Senhor? Não há outro Deus fora de mim, Deus justo (qyiDc a -l”) – El Tsadiq) e Salvador” (Is 45.21). A palavra tsadiq [qyiDac] freqüentemente descreve o homem de fé, quase no mesmo sentido de dikaiosunē [dikaiosu/nh] (justiça) na Epístola aos Romanos. “O tsadiq (qyiDac:w) viverá pela sua fé” (‘emuna, fidelidade) (Hc 2.4). 75

Norman H. Snaith, The Distinctive Ideas of the Old Testament, p. 51: “É a glória de Israel que lhes foi revelado primeiro o entendimento profundo da Natureza de Deus”. 76 Israel Isaac Taslit, Richmond Times Dispatch, 4 de outubro de 1957: “A obediência em amor para com Deus, antes que pelo medo dos homens, é o que distingue a lei judaica da lei romana, e este é o tema que ressoa constantemente na jurisprudência judaica.”

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As atividades judiciais do Senhor são geralmente representadas pela palavra mishpat (juízo, justiça, retidão, ordenança). Como as atividades judiciais do Senhor apresentaram problemas difíceis para os profetas, a palavra mishpat é difícil para os tradutores. A raiz de mishpat, em várias línguas semíticas, refere-se ao julgamento do juiz (sophet). É, portanto um termo legal, e significa, assim, ordenança, justiça ou direito legal. No desenvolvimento do significado da palavra no Velho Testamento, ela chegou a significar mais do que o direito legal, ou o julgamento do juiz. Em geral, mishpat significava a exigência da Lei (Torah, revelação) de Deus, e assim a justiça de Deus. As atividades judiciais de Deus, no castigo de Israel, por exemplo, concordam perfeitamente com a Santidade do Senhor, e neste sentido mishpat é sinônimo de tsedeq ou tsedaqah. 77 Portanto, Deus é justo na punição do seu povo, segundo Isaías 28.17: “Farei justiça (mishpat - +fP:$im) a regra, e justiça [righteousness] (tsedaqah - hfqfd:c) o prumo”. Os profetas tinham que aprender, pela revelação divina, que a escolha ou eleição de Israel como o povo do Senhor não podia invalidar a operação da sua justiça no tratamento de todos os povos. Para escândalo de Israel, que vivia sossegado em Sião, sentindo-se seguro na sua escolha como o povo de Deus, Amós lhe declarou: “De todas as famílias da terra só a vós tenho conhecido; Portanto, castigarei todas as vossas iniqüidades” (3.2). Mas, quando o castigo produz o arrependimento, Deus é igualmente justo em perdoar os pecados de seu povo, e restaurá-lo à comunhão com ele. Estes princípios da justiça, o castigo dos pecadores, e o perdão dos arrependidos aplicam-se igualmente à nação como tal e às pessoas dentro da nação, como no caso de Davi. Quando Deus usava qualquer outra nação como vara na sua mão para punir Israel, o povo aprendia que não ficava isento da opressão pelas nações em virtude de ser o povo escolhido como nação sacerdotal do Senhor. O profeta de Jerusalém, Isaías, explicou ao seu povo como o Senhor é sempre exaltado pelas suas atividades judiciais (mishpat) (5.16). Mais uma palavra deste grupo, yashar (reto), merece uma palavra de explicação. Pode ser observada a sua significação no grande versículo de Deuteronômio 32.4: “A Rocha, perfeita é a sua obra; todos os seus caminhos são (mishpat) JUÍZO. Deus de fidelidade (‘emuna - hfnUmE)) e sem iniqüidade, justo (tsadiq) e reto (yashar - rf$fy) é ele”. Esta palavra yashar, quando se refere a Deus, significa reto, justo, perfeito. O reto é sempre agradável à vista de Deus, em perfeita harmonia com a sua Santidade (Êx 15.26; Dt 21.19; 1 Reis 13.33; Jr 34.15). Mas, às vezes, o caminho que é agradável à vista do homem pode levá-lo à morte (Pv 15.25). Temos que reconhecer, todavia, que levou algum tempo para os israelitas chegarem ao pleno entendimento da justiça do Senhor. No livro de Gênesis, capo 18.25, encontramos a nobre pergunta de Abraão: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” Mas por alguns séculos os israelitas podiam atribuir ao Senhor motivos e ordens que não concordam com a sua Natureza, ou a sua justiça perfeita, como se apresenta nas profecias, desde o tempo de Amós. É fato que os hebreus trouxeram consigo do Sinai os seus nobres ideais de justiça, que profetas, como Natã e Elias, defendiam com coragem e fidelidade. Mas, no período dos juízes e por algum tempo depois, nos princípios da revelação bíblica, quando o povo lutava pela vida no conflito com os vizinhos e com o perigo terrível do baalismo, não. podia ter o mesmo conhecimento da justiça de Deus que os profetas tiveram séculos depois. A comparação de 2 Sm 24.1 e seg. com 1 Cr 21.1 e seg. revela o problema psicológico de Israel em atribuir ao Senhor motivos que não concordam com a perfeita justiça divina. O profeta Oséias (1.4) condena a brutalidade de Jeú que tinha recebido o apoio dos profetas, e até a bênção atribuída ao Senhor em “2 Reis 10.30. Os profetas se houveram vigorosamente no esforço de entender a solução do problema da infidelidade do povo escolhido e a fidelidade do Senhor; a disciplina da nação pecadora que não vivia de acordo com os seus altos privilégios divinos; a direção do povo rebelde no cumprimento do propósito do Senhor, segundo a sua santidade e justiça. Pela figura do barro na mão do oleiro (Is 45.977

Idem, p. 76: “É necessário, portanto, pensar em fazer mishpat (Mq 6.8), como fazendo a vontade revelada de Deus”.

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12; Jr 18.1-6), explicam que o Senhor, com os seus recursos espirituais, sabe dirigir e orientar a história do seu povo e determinar até o destino da humanidade sem violar os princípios da justiça. “Ai daquele que contende com o seu Formador! O vaso de barro com o oleiro! Pergunta o barro ao seu oleiro: Que estás fazendo? Ou a sua obra: Ele não tem mãos? Ai daquele que diz ao pai: Que estás gerando? Ou à mulher: Que dás tu à luz? Assim diz o Senhor, O Santo de Israel, e o seu Formador: Perguntai-me sobre os meus filhos: Demandai-me acerca da obra das minhas mãos. Eu fiz a terra, e criei o homem sobre ela; As minhas mãos estenderam os céus, E a todo o seu exército dei as minhas ordens” (Is 45.9-12). Nestes versículos, dirigidos aos cativos na Babilônia, Deus evidentemente está respondendo ao ressentimento dos israelitas que contendiam contra a sua libertação pelo monarca Ciro. Como criador dos céus, da terra e do homem sobre a terra, Deus afirma o poder superior do seu plano, e a sua profunda sabedoria no propósito de usar Ciro como seu servo para efetuar o livramento. Como o Santo de Israel, e formador do povo escolhido, ele merece a confiança de seus filhos no seu acolhimento da parte do Pai, com poder, sabedoria e justiça. O versículo 13 do mesmo trecho reforça a justiça do Libertador, no uso de Ciro: “Eu o despertei em justiça, e todos os seus caminhos endireitarei; Ele edificará a minha cidade, e soltará os meus cativos, Nem por preço, nem por presentes, diz o Senhor dos exércitos” (45.13). Com a mesma figura do barro e o oleiro, Jeremias ensina que o Senhor, na direção do povo escolhido, opera de acordo com os princípios da justiça. Devido a qualquer defeito no barro, o oleiro não podia fazer o vaso que tencionava fazer. Portanto, tornou a fazer outro vaso, conforme o que pareceu bem ao oleiro fazer. O ensino é claro. Deus é paciente, e, quando limitado na realização imediata dos seus projetos, pela perversidade ou pela indocilidade do seu povo, ele lhe dará, em outras circunstâncias, uma nova oportunidade para responder à sua vontade. Como o oleiro tinha que fazer outro vaso, diferente do vaso que tencionava fazer, assim Deus, com outros recursos, modifica o modo de tratar com o seu povo, para assim conseguir o seu desígnio. No caso de Israel obstinado e revoltoso contra a vontade divina, o Senhor castigou o seu povo pelo cativeiro, destruiu a nação política e levantou o restante espiritual para cumprir a missão messiânica do povo escolhido, e fez tudo isso segundo a suprema justiça das suas atividades na vida do povo. Assim Israel aprendeu a verdade profunda de que a justiça do Senhor opera através de todos os mistérios da sua providência na história. Para nações e para pessoas, esta é a verdade mais difícil de aprender, e a mais fácil de esquecer. A justiça significa direitos iguais para todos. Este é o significado da palavra mishpat, que quase sempre é traduzida em português por juízo. Como temos observado, a significação básica desta palavra é direito legal, mas é o julgamento que se enraíza no amor de Deus e representa a vontade divina, quando administrado pelos agentes do Senhor que são fiéis no desempenho da sua função. O julgamento do senhor sobre as nações em geral, e sobre Israel em particular, resulta dos princípios morais da sua própria Santidade. O Redentor (Go’el) de Israel Discute-se em outro capítulo a doutrina da salvação no Velho Testamento, mas importa uma breve explicação aqui da salvação que resulta das atividades da justiça divina na vida de Israel. Os profetas dão ênfase à justiça de Deus, no livramento de Israel, do cativeiro babilônico, por causa da sua importância na história do reino de Deus. Mas o Senhor vitorioso não limitou as suas atividades redentoras à salvação do seu povo dos perigos da opressão social e política, como alguns teólogos querem entender. Quando alguns dos profetas e salmistas pleiteiam a sua justiça nas petições que dirigem a Deus, eles não querem dizer que são perfeitamente justos, mas apenas relativamente justos em comparação com os seus opressores. Geralmente acompanham tais petições com a confissão de pecados, arrependimento e desejo ardente de receber perdão e restauração à comunhão com seu Deus (Sl 51). A luz da santidade do Senhor, Israel certamente não era justo, e não podia justificar-se, ou salvar-se a si mesmo. Os profetas Jeremias, Ezequiel e Isaías reconheceram a necessidade imperiosa da transformação espiritual do seu povo. Jeremias pergunta: “Pode o etíope mudar a sua pele, ou o 65


leopardo as suas malhas?” (13.23). Estes profetas chegaram a reconhecer que a natureza humana é pecaminosa, e que o pecador não pode mudar a sua natureza, sem o auxílio da graça poderosa de Deus. Um ato pecaminoso contra Deus não tem tanta significação como o fato de que todos os pecados de Israel resultam da sua perversidade moral, da sua natureza pecaminosa. Jeremias apresentou o novo conceito da religião espiritual que justifica o homem. É a Torah do Senhor, escrita no corarão, a natureza humana purificada pela graça de Deus. Assim a justiça do Senhor é vitoriosa na luta espiritual com o seu povo. Em Êxodo 9.27, Faraó usa a palavra justo apenas no sentido de que o Senhor é vitorioso na luta da.s pragas. Em Zacarias 9.9, o Rei Messiânico apresenta-se como justo, ou triunfante (tsadiq), e vitorioso (particípio Nifal de yasha’). “O teu caminho, ó Deus, é santo” (Sl 77.13). A justiça é elemento integrante da Santidade, que é a natureza essencial do Senhor. A salvação espiritual de Israel, bem como o seu livramento político, são conseguidos pela justiça de Deus. Os termos justiça e salvação não são exatamente equivalentes, mas nos Salmos e na Profecia chegaram a ser usados freqüentemente como sinônimos. “Eu me regozijo plenamente no Senhor, A minha alma exulta em meu Deus; porque me vestiu dos vestidos de salvação, Cobriu-me com o manto de justiça” (Is 61.10). Mas, na Profecia e nos Salmos, o livramento do medo e perigo, a restauração do cativeiro, a vitória sobre o opressor e a purificação da natureza pecaminosa são apresentados como partes integrantes da justiça do Senhor. “Destilai, ó céus, do alto, e chovam as nuvens a justiça; abra-se a terra, e produza-se a salvação, E faça brotar também a justiça; Eu, o Senhor, as criei” (Is 45.8). “Da minha boca saiu, em justiça, a palavra que não voltará: a mim se dobrará todo joelho, e por mim jurará toda língua” (Is 45.23). “Faço aproximar a minha justiça, e a minha salvação não tardará; Estabelecerei em Sião a salvação, Para Israel a minha glória” (Is 46.13). Nos Salmos a justiça opera em favor dos necessitados e aflitos que levantam as suas preces ao Senhor. São numerosas estas passagens, mas citamos apenas uma. Lembrando-se dos livramentos passados, o povo, no clamor ao Senhor pela salvação das suas aflições, relaciona o amor imutável hesed (desex), e a fidelidade (‘emeth) do Senhor com a sua justiça (Sl 85, especialmente os versículos 9 e 10): “A salvação está perto dos que o temem, Para que a glória habite em nossa terra. O amor e a fidelidade se encontram, e beijam-se a justiça e a paz”. Assim a justiça de Deus salva, justifica o seu povo. Não é apenas uma justificação judicial. É o livre perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão entre Deus e o homem justificado, a felicidade que resulta do favor divino. O Amor de Deus Aqueles que fazem um estudo cuidadoso do amor de Deus no Velho Testamento, baseado no conhecimento do hebraico, ficam impressionados com a profundeza deste ensino bíblico, e podem entender melhor a plena revelação deste amor na Pessoa e nos ensinos de Cristo. Há muitas palavras hebraicas que significam qualidades diferentes do amor humano e divino, mas o amor de Deus exemplificado nas suas atividades e relações é supremo. É a fonte do amor humano nas suas mais nobres manifestações. A palavra hebraica ‘aheb é muito usada, e, como verbo, pode significar todas as qualidades de amor e de gosto, mas o que mais nos interessa é o seu LISO no sentido religioso. É usada trinta e duas vezes expressando o amor de Deus: duas vezes o seu amor a Jerusalém, sete vezes o seu amor à justiça e vinte e três vezes o seu amor a Israel, ou a pessoas em particular. O substantivo é usado quatro vezes expressando o amor de Deus para com o seu povo e uma vez quanto ao seu amor para com Jerusalém. Em resumo, a raiz da palavra é usada vinte e sete vezes para expressar o amor de Deus para com o homem, e vinte e quatro vezes quanto ao amor do homem para com Deus. A palavra hashaq (qa$fx) (Dt 7.7; 10.15) refere-se ao amor de Deus, no sentido de ter afeição a Israel, ou assentar o seu amor nele. Assim, é sinônimo de ‘ahabah (hfbAha)), ou o amor que escolheu 66


a Israel. Ezequias declara, na sua ação de graças (Is 38.17), que o Senhor amou a sua alma e assim a livrou da cova da corrução.78 Moisés declara (Dt 33.3) que Deus ama, habab, os povos, todos os santos de Israel. Há várias passagens (Dt 33.12, Sl 60.5 e outras) que falam do amado, yadid, do Senhor. A palavra raham é traduzida poucas vezes como amor, mas freqüentemente significa a compaixão, a piedade, a misericórdia do Senhor. Há duas palavras que se referem a pessoas ou atos de pessoas que agradam ao Senhor. Estes termos, haphets e ratsah, talvez sejam do vocabulário técnico dos sacrifícios ou de atos generosos de espíritos nobres. Mais adiante descreve-se a importância do amar persistente do Senhor, hesed, condicionado pelo Concerto entre ele e o povo da sua escolha. Na sua obra de profunda erudição, The Distinctive Ideas of the Old Testament, Snaith faz uma distinção entre o amor eletivo do Senhor, ‘ahabah, e o seu amor persistente (hesed) pelo povo eleito. Reconhecemos que o amor de Deus é um só, e que se revelam muitas das suas facetas nas relações do Senhor com Israel. Com as muitas discussões do problema da eleição de Israel, uma coisa é clara: Deus assentou a sua afeição em Israel, e amou ('aheb) esta tribo tão necessitada. A justiça de Deus sempre tem pendor para os fracos e desamparados, incapazes de se defenderem contra as injustiças do mundo. Também os aflitos, em geral, têm mais pendor para Deus. O Amor Eletivo de Deus Alguns estudantes da Bíblia ficam perturbados com as declarações sobre o ódio do Senhor a Edom ou Esaú. Em Malaquias 1.4, o ódio de Deus a Edom é representado como sendo ativo e violento, em contraste com o amor a Jacó. Os sentimentos do escritor são atribuídos a Deus, o que é antropopatia. Ora, as palavras hebraicas, como as portuguesas, podem ser usadas em sentidos variados. O verbo hebraico sane’ ()”nf&) nem sempre representa o ódio ativo e violento. Diz o autor de Gênesis 29.31 que “Léia era odiada”. Esta passagem, como a de Dt 21.15-17, mostra claramente que a pessoa amada é simplesmente a preferida, enquanto a “odiada” é a não preferida. A palavra grega, miseō (mise/ mise/w), em Lucas 14.26, tem este sentido abrandado de odiar. Os escritores bíblicos maravilhavam-se da eleição de Israel, mas não tentavam explicar por que Deus escolheu o seu povo, ao invés de qualquer outro, para ser a nação sacerdotal entre as nações do mundo. Mas reconheceram que o amor de Deus para com Israel era soberano e irrevogável. O amor de Israel para com Deus é o amor condicionado, submisso, demonstrando-se no cumprimento 'das exigências apresentadas no berith (concerto). Israel deve obedecer ao Senhor motivado pelo seu próprio amor. “Ouve, 6 Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma (desejo) e de todo o teu poder”(Dt 6.4,5). Os motivos divinos que determinaram a escolha de Israel como o povo do concerto encerram-se no seu eterno propósito revelado em Efésios 3.1-6. A eleição encaminhava, através de Israel, o amor do Senhor a todas as famílias da terra (Gn 12.3). O amor do Senhor para com Israel não foi devido a qualquer mérito deste povo. Em Ezequiel 16.4-6 são apresentados os pormenores desagradáveis da origem e da vida de Israel, mostrando que não havia nada de bom, desejável ou atraente no povo, que merecesse a compaixão do Senhor. Esta linguagem figurativa nos mostra que é difícil qualquer povo merecer o amor de Deus. Mas os estudantes se esforçam por descobrir alguma coisa no homem que seja digna do amor do Senhor. É difícil para o homem amar sem achar no amado uma coisa digna de seu amor. Podemos crer que Deus viu possibilidade no povo de Israel para o desenvolvimento do seu reino no mundo, mas devia ter havido característicos aproveitáveis em outras nações também. 78

O texto, neste caso, não é certo. Os críticos, em geral, preferem hashak (reter) em vez de hashaq. Põem de lado a palavra mais rica e mais significativa.

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Dizem alguns que o amor de Deus era assim irracional ou arbitrário na escolha de Israel. Se o homem não pode descobrir o motivo racional do amor de Deus, isto não quer dizer que tal motivo não exista. Se o amor de Deus se baseia nas relações misteriosas entre Deus e a finalidade da criação que nós não podemos entender, nas limitações do nosso conhecimento, não podemos dizer que tal amor é irracional. Há muitas coisas em nossas relações pessoais que não podemos entender. E os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos, e os seus caminhos não são os nossos caminhos. Como Já finalmente chegou a compreender, há coisas tão maravilhosas, na providência de Deus, que não podemos entendê-las (Jó 42.3). A exclusividade do amor eletivo de Deus tem sido “ofensa” para alguns, mas as palavras “eleger” e “escolher” são encaixadas nas Escrituras, como característicos do amor soberano do Senhor, que escolhe este porque o ama, e rejeita àquele porque persiste na iniqüidade e na rebelião contra Deus. Os profetas tinham que lutar para distinguir entre o seu conceito de Deus como Rei, e o conceito de outros povos semíticos de seus reis como deuses. O Senhor Iavé é Rei soberano em virtude da sua natureza e em virtude de ser ele o Criador de todas as coisas. Sendo Santo, Justo e Soberano, Deus exige a retidão e a justiça do homem. Ele se interessa em ver que a justiça seja feita entre os homens de toda a terra. A justiça deriva-se dele. Portanto, não pode haver justiça à parte dele. Na sua soberania, ele é o único que pode decidir o que é, ou não, justo de acordo com a norma da verdadeira justiça. O amor de Deus é a força operativa no estabelecimento da justiça no mundo. O Deus do Velho Testamento é o Deus de amor, o mesmo que se apresenta no Novo Testamento. “O Senhor não assentou (hashaq) a sua afeição em vós, e vos escolheu, porque éreis mais numerosos do que outros povos '“ mas porque o Senhor vos amava” (Dt 7.7,8). “Com amor [‘ahabah - hfbAha)] eterno te amei, com amorável benignidade [hesed – desex] te atraí” (Jr 31.3). O amor de Deus exigia de Israel obediência fiel, e a responsabilidade de cumprir as condições do concerto generoso que Deus fez com ele, “Ele te fez conhecer, ó homem, o que é bom; O que é que o Senhor requer de ti, senão fazer a justiça, e amar a beneficência, e andar humildemente com o teu Deus?” (Mq 6.8). O salmista reconheceu que Israel tinha que fazer o que Deus requeria no espírito humilde e na obediência voluntária. “A ti levanto os meus olhos, ó tu que estás entronizado nos céus. Como os olhos dos servos estão fitos na mão do seu senhor, E os olhos da serva para as mãos da sua senhora, assim os nossos olhos estão fitos na mão do Senhor, nosso Deus, até que ele se compadeça de nós” (Sl 123.1,2). O Amor Fiel do Senhor no Cumprimento do Seu Concerto com Israel A palavra hebraica hesed é um dos termos mais importantes no estudo da teologia bíblica. Encerra um conceito fecundo que produz novos pensamentos, quando usada com outras palavras. É usado, principalmente no Antigo Testamento, com referência à fidelidade de Deus e dos homens, na realização dos seus compromissos. Quando se refere a Deus, a palavra designa o seu amor fiel no cumprimento absoluto do concerto que fez com o seu povo escolhido. Tão importante é este ensino que alguns teólogos, como Eichrodt, organizam e relacionam os ensinos do Velho Testamento ao conceito central do concerto.

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O Concerto do Senhor com Israel Antes de definir e estudar o significado de hesed convém apresentar um breve resumo da importância do concerto que é discutido mais amplamente em outra conexão. Ora, a tradução de berith por pacto ou aliança enfraquece o ensino fundamental do Velho Testamento. Os títulos das duas divisões da Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento, têm a sua origem na palavra berith do hebraico, e diatheke (não suntheke, pacto) do grego. Estas duas palavras são traduzidas no latim por testamentum. Consta a palavra berith nas partes mais antigas do Velho Testamento (Êx 19.5; 24.7,8; 34.10, 27,28), com referência ao concerto que Deus fez com Moisés no Monte Sinai. É usada também referente ao concerto de Deus com Abraão, mas alguns pensam que esta tradição surgiu algum tempo depois da época patriarcal. Mas é persistente em toda parte da Bíblia, e assim faz parte significativa na teologia. Quase ninguém duvida agora da antiguidade das referências citadas sobre o concerto do Sinai. Apresenta-se no Livro do Concerto, Êxodo 20.22 a 23.33, a idéia do concerto que prevaleceu antes do período dos profetas do oitavo século. Depois do tempo de Josias, o Deuteronômio foi reconhecido como o Livro do Concerto (2 Reis 23.2 e seg.). Os elementos fundamentais do concerto foram preservados desde o tempo de Moisés, mas os grandes profetas, à luz de Deuteronômio, esclareceram a sua importância na vida e na história de Israel, e na amorável beneficência (hesed) de Deus, eles fundaram e firmaram as esperanças para o futuro do povo escolhido do Senhor. No estudo da história de Israel, os profetas entenderam cada vez mais claramente as fraquezas, a desobediência, e as vacilações do seu povo, em contraste com o hesed, ou o amor firme, fiel, constante e persistente do Senhor, “o Santo de Israel”. A Significação do Hesed do Senhor Não é fácil traduzir o sentido exato desta palavra hebraica, usada tão freqüentemente com referência ao concerto entre Deus e o seu povo escolhido. Nas versões da Bíblia em português é traduzi da por bondade, beleza, glória, benevolência, beneficência, benignidade, amorável benignidade, misericórdia e compaixão. Na versão inglesa, que precedeu a famosa King James, Miles Coverdale traduziu a palavra por loving kindness, que significa mais ou menos a amorável benignidade de Almeida, em Jeremias 31.2. Snaith traduz o termo por covenant love, e a nova versão em inglês, The Revised Standard verteu-a por steadfast love. Outras versões trazem os termos amor eterno. Lutera usou a palavra Gnade, a mesma que usou no Novo Testamento para traduzir a palavra grega, charis (graça). Quando hesed é usada referindo-se à relação de Deus com o povo do concerto, tem o sentido cada vez mais perto de graça. Quando o plural do substantivo hasidim é usado referindo-se aos homens fiéis, especialmente nos Salmos (30.4; 37.28, e muitos outros versículos), é traduzido em português por santos (ver 2 Pedro 1.6). Parecem infrutíferas as discussões sobre a etimologia de hesed. Segundo a opinião de Brown, Driver e Briggs, o sentido radical da palavra é avidez, vivacidade, zelo intenso, e zelo geralmente caracteriza o significado do termo no Velho Testamento. A palavra era usada primeiro para designar a fidelidade dos contratantes de qualquer pacto. Por exemplo, no pacto entre Davi e Jônatas (1 Sm 20.14-16), eles prometem usar, um para com o outro, o amor fiel (hesed) do Senhor. Um pacto assim selado pelo hesed do Senhor nunca podia ser desfeito. Até o revoltoso Absalão ficou espantado quando Husai veio aderir ao seu partido (2 Sm 16.17) contra Davi. Perguntou-lhe: “É esta a tua fidelidade (hesed) para com o teu amigo?” Mas foi a astúcia de Husai para com Absalão, e o seu amor fiel a Davi, que salvou o rei da morte. Estes exemplos nos ajudam a entender a força da palavra, quando usada no sentido da fidelidade do Senhor em manter e observar as condições do seu concerto com o povo de Israel. W. F. Lofthouse, W. Eichrodt e Norman H. Snaith têm demonstrado que a palavra hesed representa o amor fiel e imutável de Deus no cumprimento das suas promessas feitas a Israel no concerto. 69


A fidelidade de Israel em observar as condições do concerto foi vacilante (Os 6.1), e a experiência demonstrou que, sem o auxílio do Senhor, não podia satisfazer aos compromissos que aceitara voluntariamente. Os profetas lutaram com o problema misterioso do amor fiel do Senhor para com o seu povo obstinado e desobediente. A experiência de Oséias com a esposa infiel ensinou-lhe que o amor do Senhor para com o seu povo era tão forte e tão persistente como o seu próprio amor para com a sua esposa. O problema da infidelidade de Israel ameaçava a dissolução do casamento do Senhor com o seu povo. O Senhor, no seu amor constante, tinha tirado Israel do Egito, tinha ensinado ao menino a andar e o tinha levado nos braços, curando-lhe as feridas, e atraindo-o com cordas de compaixão e com laços de amor (Os 11.3,4). Quando Israel resolveu desviar-se, e tinha que ser entregue ao jugo da Assíria, o Senhor lhe revelou de novo o seu amor, nas palavras do profeta: “Como te posso deixar, ó Efraim? Como te posso entregar, ó Israel? Como te posso fazer como Admá? Como te posso tratar como Zeboim? O meu coração se comove dentro de mim, As minhas compaixões acaloram-se. Não executarei o furor da minha ira, não tornarei a destruir a Efraim, pois eu sou Deus, e não homem; O Santo no meio de ti, e não entrarei na cidade” (Os 11.8, 9).79 Jeremias também entendeu o amor imorredouro do Senhor, mas a infidelidade vergonhosa do povo na sua época levou o profeta a enfrentá-la com a mensagem divina de que os infiéis tinham que sofrer o castigo dos seus pecados. Mas o profeta olhou além do cativeiro para a restauração dos fiéis. O Senhor revelou a Jeremias a promessa para o futuro de Israel. “Eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. E lhas darei um novo coração e um novo caminho para que me temam para sempre, para o seu próprio bem, e para o bem de seus filhos, depois deles. Farei com eles um concerto eterno, e não me desviarei de lhes fazer bem; e lhes porei o temor de mim nos corações, para que não se apartem de mim. Eu me regozijarei por causa deles, fazendo-lhes bem, e com toda a fidelidade (‘emeth) do meu coração e da minha alma, plantá-los-ei nesta terra” (Jr 32.38-40). A palavra hesed é usada, às vezes, como sinônimo de ‘emeth. É claro que, no versículo 40, a fidelidade refere-se ao amor fiel do Senhor. Jeremias creu firmemente na indestrutibilidade do povo escolhido, reconhecendo, todavia, a necessidade imperiosa da sua regeneração. O capítulo 31 descreve as esperanças e as maravilhosas promessas oferecidas ao povo pelo amor fiel do Senhor. A profunda significação do amor do Senhor é indicada pela associação do seu amor inabalável (hesed) com o amor eletivo (‘ahabah), com o favor divino (hen), com a fidelidade (‘emeth, ‘emuna), com a justiça (tsedeq, tsedaqah), e com a compaixão (rehum) de Deus. “Lembro-me da devoção (hesed) da tua mocidade, Do amor (‘ahabah) dos teus desposórios” (Jr 2.2). “O Senhor é misericordioso (rahum - {Uxar) e compassivo (hanun - }Unax), Tardio (longânimo) em irar-se, e grande em amor fiel (hesed - desex) (Sl 103.8). “A minha fidelidade ('emuna), e o meu amor constante (hesed) serão com ele, e em meu nome será exaltado o seu poder” (Sl 89.24). “Continua o teu amor fiel (hesed) aos que te conhecem, e a tua justiça (tsedaqah) aos retos de coração” (Sl 36.10). O profeta Oséias estava meditando no seu amor inalterável à esposa infiel, quando lhe veio a mensagem de Deus sobre o Seu amor inabalável à Sua esposa, Israel. Apesar da infidelidade vergonhosa do povo escolhido, o. eterno propósito divino será realizado através do arrependimento e da restauração de Israel pelo poder redentor do amor persistente do Senhor. “E desposar-te-ei comigo para sempre; sim, desposar-te-ei comigo em retidão (tsedeq), e em justiça (mishpat), em amor inabalável (hesed), e em misericórdias (rahamim, pl., terna compaixão). Desposar-te-ei comigo em

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Norman H. Snaith, op. cit., p. 102. “Maravilhoso como é o amor de Deus para com o seu povo do concerto, a sua persistência resoluta neste amor é ainda mais extraordinária. A mais importante de todas as idéias distintivas do Velho Testamento é esta persistência resoluta e maravilhosa em continuar Deus a amar a Israel errante apesar da sua obstinação insistente”.

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fidelidade (‘emuna - hfnUmE)), e conhecerás (no íntimo) o Senhor” (Os 2.19, 20). “Pois no amor fiel (hesed) tenho prazer, e não no sacrifício; e no conhecimento de Deus mais do que nos holocaustos” (Os 6.6). Esta é uma das citações prediletas de Cristo. A verdade é que o amor de Deus, segundo as profecias de Oséias, Jeremias e Isaías, tem quase a mesma significação do amor no Novo Testamento. O salmista entendeu a operação do amor do Senhor na vida do seu povo, quando disse: “Ele não deixará vacilar o teu pé; Não dormitará o teu guardador. Eis que não dormitará nem dormirá Aquele que guarda a Israel” (Sl 121.3,4). A providência carinhosa do Senhor nos períodos de angústia na história de Israel justificou a confiança do salmista. Nos tempos de perigo, quando a fé de Israel vacilava, Deus mandava os seus profetas para ensinar e guiar o povo. Nos períodos de desânimo e sofrimento, Deus nunca desamparou o seu povo. Deu aos profetas o espírito de coragem para reconhecer e enfrentar os perigos que os disciplinaram e os prepararam para cumprir as condições pelas quais o amor de Deus pudesse conseguir a sua finalidade. “Pode uma mulher esquecer-se do seu filho que ainda mama, De sorte que ela não se compadeça do filho das suas entranhas? Mas, ainda que esta se esquecesse, contudo, Eu não me esquecerei de ti” (Is 49.15). 80 Este amor, mais duradouro do que o amor materno, nunca poderia abandonar o povo, mas Israel tinha que cumprir as condições do concerto, embora com o espírito que Deus mesmo tinha que implantar no seu coração. Muito mais podia ser escrito sobre o amor de Deus no Velho Testamento, mas as discussões sobre a santidade, a justiça e o amor de Deus neste capítulo ajudarão a entender da graça de Deus no capítulo sobre A Salvação no Velho Testamento.

O PARENTE REMIDOR - GO’EL - O PARENTE VINGADOR81

l”)oG Disse, pois, Jeremias: Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Eis que Hanameel, filho de teu tio Salum, virá a ti, dizendo: Compra o meu campo que está em Anatote, pois a ti, a quem pertence o direito de resgate, compete comprá-lo. Veio, pois, a mim, segundo a palavra do Senhor, Hanameel, filho de meu tio, ao pátio da guarda, e me disse: Compra agora o meu campo que está em Anatote, na terra de Benjamim; porque teu é o direito de posse e de resgate; compra-o Então entendi que isto era a palavra do Senhor. Comprei, pois, de Hanameel, filho de meu tio, o campo que está em Anatote; e lhe pesei o dinheiro, dezessete siclos de prata. Assinei a escritura, fechei-a com selo, chamei testemunhas e pesei-lhe o dinheiro numa balança. Tomei a escritura da compra, tanto a selada, segundo mandam a lei e os estatutos, como a cópia aberta; Dei-a a Baruque, filho de Nerias, filho de Maaséias, na presença de Hanameel, filho de meu tio, e perante as testemunhas, que assinaram a escritura da compra, e na presença de todos os judeus que se assentavam no pátio da guarda”. E dei ordem a Baruque, na presença deles, dizendo: Assim diz o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel: Toma estas escrituras de compra, tanto a selada, como a aberta, e mete-as num vaso de barro, para que se possam conservar muitos dias; pois assim diz o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel: Ainda se comprarão casas, e campos, e vinhas nesta terra. E depois que dei a escritura da compra a Baruque, filho de Nerias, orei ao Senhor, dizendo: Ah! Senhor 80

Norman H. Snaith, op. cit., p. 142: “Em tempos de fracasso completo, Deus lhes deu um coração novo, e pôs um espírito reto dentro deles, tirando-lhes o coração carnal. Pois o amor de Deus, que os escolheu na primeira instância, é também o amor pelo qual o próprio Deus os habilita a cumprir as condições pelas quais o amor se tornaria efetivo neles.” 81

BENTES, A. Carlos G. O DIA DO SENHOR.2ª ed. Rio de Janeiro: Editora A Raiz, 2009, p. 29-34.

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Deus! És tu que fizeste os céus e a terra com o teu grande poder, e com o teu braço estendido! Nada há que te seja demasiado difícil! (Jr 32.6-17). A doutrina das Últimas Coisas – ESCATOLOGIA está fundamentada na doutrina da Redenção. Esta por sua vez está alicerçada na doutrina do Parente Remidor, que em hebraico é GO’EL (l”)oG). QUEM É O GO’EL? Era tanto o Parente Remidor como também o Parente Vingador (Nm 35.12-19). A Bíblia Vida Nova82 traz o seguinte comentário: “Era o costume do parente próximo de um injustiçado reivindicar justiça por este: isto era uma garantia de que sempre haveria alguém interessado em trazer o malfeitor à punição. A lei do refúgio era a maneira de Deus preservar este costume contra o Vingador (Go’el) injusto e cruel”. O Senhor providenciou seis (06) cidades de refúgio nas quais, as pessoas culpadas de homicídio acidental, podiam buscar proteção com segurança, protegendo-se do Vingador do Sangue até serem julgadas (Nm 35.11,12). “Se o Vingador do Sangue (Go’el) achar o homicida fora dos termos da cidade de refúgio e matá-lo, não será culpado do sangue” (Nm 35.27). A palavra GO’EL – Vingador do sangue vem do verbo “retribuir” que também significa “redimir” no sentido de comprar algo de volta pelo preço do resgate. Jesus tanto é o Parente Remidor como também é o Parente Vingador. la)fg = ga’al = redimir, vingar, resgatar, livrar, cumprir o papel de resgatador.83 Lemos em Lucas 4.16-21 que Jesus entrou na sinagoga, na cidade de Nazaré, e tomando o livro do profeta Isaías, leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me UNGIU para EVANGELIZAR aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar O ANO ACEITÁVEL DO SENHOR” (Is 61.1,2). Jesus parou de ler exatamente neste ponto e afirmou: “Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir”. Ele deixou de ler a última parte do versículo 2. Por quê? Porque hoje é o dia da Graça, é o Ano Aceitável do Senhor, e Ele é o nosso Go’el, o Parente Remidor, o Resgatador. Porém virá o “Dia da Vingança”, quando o mesmo Parente Remidor virá como Parente Vingador para trazer juízo sobre Satanás, juízo sobre a terra. A abertura dos selos em Apocalipse capítulo 5 é a vingança do Parente Vingador. “Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que deram. E clamaram com grande voz, dizendo: Até quando, ó Soberano, santo e verdadeiro, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6.10). “Porque verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande prostituta, que havia corrompido a terra com a sua prostituição, e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos” (Ap 19.2). “Pois o Senhor tem um dia de vingança, um ano de retribuições pela causa de Sião”. “Porque o dia da vingança estava no meu coração, e o ano dos meus remidos é chegado” (Is 34.8; 63.4). O Ano Aceitável – É o período da Graça; Um dia para Vingança – É o período da Grande Tribulação; Um ano para Retribuição dos meus remidos – É o período do Milênio. GO’EL é o protetor do oprimido e libertador de seu povo.

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SHEDD, Dr. Russel P. Bíblia Vida Nova. São Paulo: Edições Vida Nova, 1976, p.189. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Jr., Bruce K. Waltke. Editora Vida Nova.

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“Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor (Go’el), o Senhor dos Exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e além de mim não há Deus” (Is 44.6). “Quanto ao nosso Redentor (Go’el), o Senhor dos Exércitos é o seu nome, o Santo de Israel”. “Assim diz o Senhor, o teu Redentor (Go’el), o Santo de Israel: Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te ensina o que é útil, e te guia pelo caminho em que deves andar” (Is 48.17). “Virá o Redentor (Go’el) a Sião e aos de Jacó que se converterem, diz o Senhor” (Is 59.20). O Parente-Remidor tinha a função de resgatar uma propriedade familiar (Lv 25.23-28). R. de Vaux no seu livro: “Instituições de Israel no Velho Testamento”, nos diz: A SOLIDARIEDADE FAMILIAR. O GO’EL.84 “Os membros da família em sentido amplo devem uns aos outros ajuda e proteção. A Prática particular desse dever é regulado por uma instituição da qual se encontram análogas em outros povos, por exemplo, entre os árabes, mas que, em Israel, toma uma forma particular, com um vocábulo especial. É a instituição do Go’el, palavra procedente de uma raiz que significa “resgatar”, “reivindicar”, e mais fundamentalmente, “proteger”. O Go’el é um redentor, um defensor, um protetor dos interesses do indivíduo e do grupo. Ele intervém em certo número de casos. Se um israelita precisou se vender como escravo para pagar uma dívida, deverá ser resgatado por um de seus parentes próximos, Lv 25.47-49. Quando um israelita precisa vender seu patrimônio, o Go’el tem direito preferencial na compra, pois é muito importante evitar a alienação dos bens da família. A lei está codificada em Lv 25.25. É como Go’el que Jeremias adquire o campo de seu primo Hanameel, Jr 32.6-17. O costume é ilustrado também na história de Rute, mesmo que aí a compra se complique por um caso de levirato. Noemi tem uma posse que a pobreza a obriga a vender; sua nora Rute é viúva e sem filhos. Boaz é um Go’el de Noemi e de Rute, Rt 2.20; mas há um parente mais próximo que pode exercer o direito de Go’el antes de Boaz, Rt 3.12; 4.4. Esse primeiro Go’el estaria disposto a comprar a terra, mas não aceita a dupla obrigação de comprar a terra e casar com Rute, pois o filho que nascesse dessa união levaria o nome do defunto e herdaria a terra, Rt 4.4-6. Boaz adquire então a posse da família e se casa com Rute, Rt 4.9,10. O relato mostra que o direito do Go’el era exercido segundo certa ordem de parentesco; esta é detalhada em Lv 25.49: primeiro o tio paterno, depois o filho deste, finalmente outros parentes. Além disso, o Go’el pode ser por isto censurado, renunciar a seu direito ou fugir de seu dever: o ato de descalçar-se, Rt 4.7,8, significa o abandono de um direito, como o gesto análogo na lei do levirato, Dt 25.9. Contudo, nesse último caso, o procedimento tem um caráter infamante. A comparação dessa lei com a história de Rute parece indicar que a obrigação do levirato era assumida, no início, pelo clã, assim como o resgate do patrimônio, e que foi mais tarde restrito ao cunhado. Uma das obrigações mais graves do Go’el era a vingança de sangue, estudada com a organização tribal por causa de sua relação com os costumes do deserto. O termo GO’EL passou à linguagem religiosa. Assim, Iavé, vingador dos oprimidos e Salvador de seu povo, é chamado GO’EL em Jó 19.25; Sl 19.15; 78.35; Jr 50.34, etc., e freqüentemente na segunda parte de Isaías: 41.14; 43.14; 44.6,24; 49.7; 59.20, etc.” O Redentor de Israel (Goel) 85 “Resgate” Is 44.6: “Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor (Go’el), o Senhor dos Exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e além de mim não há Deus”. Textos mais antigos descrevem a libertação do Egito como “fazer subir” ou “fazer sair” ou “salvar” (Êx 3.8,10; Am 9.7 e outras); os mais recentes interpretam-na como “livrar, remir” (ga’al: Êx

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VAUX, R. Instituições de Israel no Velho Testamento. São Paulo: Editora Teológica, 2002, p. 43,44. Transcrição do livro: A Fé no Antigo Testamento (Werner H. Schmidt) Pág. 75-77.

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6.6; Sl 74.2; 77.15 e outras). Em retrospectiva, a vinculação à escravidão parece ao povo ter sido tão forte, “que ele próprio não poderia ter se libertado”. O “resgate” um costume jurídico sumamente significativo para o AT, que também foi regulamentado em lei (Lv 25.24ss.). Um israelita tem o direito e também o dever de socorrer um membro da família que se encontra em necessidade: se devido sua situação econômica precária alguém obrigado a alienar sua casa e propriedade, seu parente mais próximo — este então o “resgatador” — tem a prioridade de compra (Jr 32.7) e, com isso, a incumbência de manter a terra nas mãos da família. Pois propriedade de terra herdada, por ser meio de sobrevivência, não deve ser alienada (cf. 1 Rs 21). Mas se um israelita livre estiver tão empobrecido que precisa vender-se como escravo (a um estranho), então um parente seu tem a obrigação de comprá-lo de volta. O “resgate”, i. e., a re-aquisição, pressupõe, portanto, vínculos familiais. O livrinho de Rute (2.2Oss.) e a compra do campo em Anatote por parte de Jeremias (Jr 32.6ss.) atestam que o costume do resgate era realmente praticado. Sempre “o patrimônio de um clã, em forma de terra e pessoas, deve ser preservado intacto” (J. J. Stamm, Pág. 28). Caso um membro da família tenha sido assassinado, o parente recebe a incumbência de “resgatar” ou “vingar” a morte. Quem se tornou assassino acidentalmente pode encontrar asilo nas cidades de refúgio (Nm 35.10ss.; cf. Êx 21.13; Dt 19.4ss.; 2 Sm 3.27). Se um membro da família morre sem deixar filhos, seu irmão é obrigado a casar-se com a viúva O primogênito é considerado herdeiro do falecido (é o chamado dever do levirato ou do cunhado: Dt 25.5ss.; Gn 38.8; Rt 4.5,10). Por outro lado, padah (que também significa resgate) não pressupõe necessariamente relações de parentesco e parece ser de cunho menos rigoroso: “libertar, resgatar” de escravidão (Ex 21.7-11; Lv 19.20; Jó 6.23), “resgatar” o primogênito pertencente a Deus por meio de uma indenização (Êx 34.19s.; 13.11s.; Lv 27.26ss.; cf. 1 Sm 14.45 e outras). Como um parente intervém em favor de um necessitado de ajuda, assim Deus “resgata ou livra” o ser humano da aflição, seja ela inimizade ou doença (Gn 48.16; 2 Sm 4.9; 1 Rs 1.29; Jr 15.21 e outras). Cada indivíduo pode pedir para ser libertado da dificuldade (Sl 26.11; 69.19; 119.154), bem como agradecer por um salvamento experimentado: ‘Tu me remiste/resgataste, Deus fiel” (31.5; 107.1s.; Lm 3.58). Quem não tiver resgatador por causa de sua situação social, encontra-lo-á no próprio Deus. Este assume a incumbência do parente mais próximo: Não removas os marcos da “viúva”, nem entres nos campos dos órfãos Porque seu Redentor (Go’el) é forte, e lhes pleiteará a causa contra ti! (Pv 23.10,11; cf. 22.23; Jr 50.34). Por Deus proteger os socialmente fracos e ter libertado Israel, a fé tem conseqüências Éticas (Dt 24. 17s; 15. 12ss). A libertação de Deus se refere tanto ao indivíduo quanto ao povo todo. No exílio, o profeta Dêutero-Isaías dirige a palavra aos desterrados como se estes fossem um indivíduo, anunciando-lhes a salvação iminente e inclusive já presente: “Não temas, porque eu te remi!” (Is 43.1). Os que saem do cativeiro babilônico devem confessar: “Iavé remiu/resgatou seu servo Jacó” (48.20; cf. 52.9); mais ainda: “Redentor” toma-se um cognome fixo de Deus (44.6,24; cf. 63.16; também 1.27 e outras). Um acréscimo ao Salmo 130 insere a seguinte lamentação de um individuo no culto da comunidade: Espere Israel em Iavé, pois em Iavé há misericórdia, nele, copiosa redenção. Por isso ele redimirá/resgatará Israel de todas as suas iniqüidades. (Sl 130.7s.; cf. 25.22; 34.23).

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Enquanto que aqui redenção significa - uma única vez no AT – perdão de pecados, por fim ela significa salvamento da morte (Sl 103.4) ou na morte (49.16; 73.24; cf. Jó 19.25). Com isso, a fé na “redenção” de Deus transcende o âmbito da história e da experiência humana. Jesus é o nosso Go’el, Ele já pagou o resgate com o seu sangue. Ele pagou o resgate da terra e irá casar-se com sua Igreja. Ele também é o Resgatador de Israel. Stanley M. Horton diz:86 A Bíblia emprega a metáfora do resgate ou da redenção para descrever a obra salvífica de Cristo. O tema aparece muito mais freqüentemente no Antigo Testamento que no Novo. O tema aparece muitas vezes no Antigo Testamento, referindo-se aos ritos da “redenção”! No tocante às pessoas ou bens (cf. Lv 25; Rt 3 e 4, que empregam a palavra hebraica ga’al). O “Parente redentor” funciona como um go’el. O próprio YAHWEH é o Redentor (heb. Go’el) do seu povo (Is 41.14; 43.140, e eles são os redimidos (heb. ge’ulim, Is 35.9; 62.12). O Senhor tomou medidas para redimir (heb. padhah) os primogênitos (Êx 13.13-15). Ele redimiu Israel do Egito (Êx 6.6; Dt 7.8; 13.5) e também os remirá do exílio (Jr 31.11). Às vezes Deus redime um indivíduo (Sl 49.15; 71.23); ou um indivíduo ora, pedindo a redenção divina (Sl 26.11; 69.18). Mas a obra divina na redenção é primariamente moral no seu escopo. Em alguns textos bíblicos, a redenção claramente diz respeito aos assuntos morais. Salmos 103.8 diz: “Ele remirá a Israel de todas as suas iniqüidades”. Isaías diz que somente os “remidos”, os “resgatados”, andarão pelo chamado “O Caminho Santo” (Is 35.8-10). Diz ainda que a “filha de Sião” será chamada “povo santo, os remidos do Senhor” (Is 62.11,12). No Novo Testamento, Jesus é tanto o “Resgatador” quanto o “Resgate”; os pecadores perdidos são os “resgatados”. Ele declara que veio “para dar a sua vida em resgate (gr. Lutron) de muitos” (Mt 20.28; Mc 10.45). Era um “livramento [gr. Apolutrosis] efetivado mediante a morte de Cristo, que libertou da ira retribuitiva de Deus e da penalidade merecida do pecado”. Paulo liga a nossa justificação e o perdão dos pecados à redenção que há em Cristo (Rm 3.24; Cl 1.14, apolutrosis nestes dois textos). Diz que Cristo “para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1 Co 1.30). Diz também que Cristo “se deu a si mesmo em preço de redenção [gr. Antilutron] por todos” (1Tm 2.6). O Novo Testamento demonstra claramente que Ele proporcionou a redenção mediante o seu sangue (Ef 1.7; Hb 9.12; 1Pe 1.18,19; Ap 5.9), pois era impossível que o sangue dos touros e dos bodes tirasse os pecados (Hb 10.4). Cristo nos comprou (1 Co 6.20; 7.23, gr. Agorazo) de volta para Deus, e o preço foi o seu sangue (Ap 5.9). hfLu):G REDENÇÃO Ge’ullâ “O cristianismo não é um circulo, com um só centro, mas, sim, uma elipse, que tem dois focos – as doutrinas da Redenção e do Reino de Deus” (Albrecht Ritschl). A redenção consiste do processo de RESTAURAR, ao proprietário original, algo que ele perdeu ou vendeu. Apokatástasis. Em o Novo Testamento, a forma nominal da palavra grega “apokathistemi” (restaurar) é usada apenas uma vez em Atos 3.21 (a)pokata/stasij-Apokatástasis). A palavra significa literalmente estabelecer algo novo em sua ordem original. Esta palavra era usada no mundo secular grego para indicar a volta do legítimo proprietário à posse de sua casa ou fazenda. Quando a alma é redimida, é então restaurada a Deus. O corpo será redimido: “... aguardando a adoção de filhos, a REDENÇÃO do nosso corpo” (Rm 8.23). A terra será redimida: “... até ao RESGATE da sua propriedade...” (Ef 1.14). Toda a redenção envolve purificação. A Bíblia reconhece apenas dois agentes purificadores: um é o sangue, e o outro é o fogo.

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Stanley M. Horton. Teologia Sistemática. 1ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1996, p.356,357.

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Os pecadores arrependidos podem ser redimidos pelo sangue de Cristo, mas a terra terá que ser redimida pelo fogo: “Mas quem pode suportar o Dia da sua Vinda? E quem pode subsistir quando Ele aparecer? Porque Ele é como fogo do ourives e como a potassa (sabão) dos lavandeiros” (Ml 3.2). “Pois eis que vem o Dia, e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que cometem perversidade serão como o restolho; o Dia que vem os abrasará diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo” (Ml 4.1). “Ora, os céus que agora existem, e a terra, pela mesma palavra têm sido entesourados para o FOGO, estando reservados para o Dia do Juízo e destruição dos homens ímpios”. Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas” (2 Pe 3.7,10). “O primeiro anjo tocou a trombeta, e houve saraiva e fogo de mistura com sangue, e foram atirados à terra. Foi, então, queimada a Terça parte da terra, e das árvores e também toda erva verde” (Ap 8.7). Os acontecimentos narrados no livro de Apocalipse do capítulo 6 ao 19 é o juízo de fogo sobre a terra e a expulsão de Satanás do céu e da terra (Ap 12.7-9; 20.1-3,7-10). “E o quarto anjo derramou a sua taça sobre o sol, e foi-lhe permitido que abrasasse os homens com fogo. E os homens foram abrasados com grande calor” (Ap 16.8,9). “E será a luz da lua como a luz do sol, e a luz do sol sete (7) vezes maior, como a luz de sete dias, no dia em o Senhor atar a ferida do seu povo (Israel), e curar a chaga do golpe que ele deu” (Is 30.26). Quão terrível é o Dia do Senhor! )frOn:w hfwh:y-{Oy

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CAPÍTULO 5 A ORIGEM, A NATUREZA E O DESTINO DO HOMEM Não há, em toda a literatura, uma obra tão rica como o Velho Testamento quanto à exposição da natureza paradoxal do homem. Não há uma fonte mais importante do que a Bíblia que nos ajude no entendimento da natureza e das necessidades do homem, tão desconhecido, até nesta época de tanto progresso no estudo das ciências e da humanidade. Tão variados e complicados são os ensinos bíblicos do Velho Testamento sobre o homem que não é fácil recolher e sistematizar todo o material que facilite o entendimento do assunto. O Velho Testamento ensina a unidade da raça. Como o povo de Israel se originou de Abraão e se multiplicou por Isaque e Jacó, e as suas gerações sucessivas, assim também todas as nações do mundo são de um só sangue. Mais do que uma nação se originou de Abraão, como também do seu filho Isaque, mas todos os descendentes de Jacó constituem o povo de Israel. Todos os povos, raças e nações são descendentes de Noé. As famílias dos três filhos de Noé se separaram, e assim começaram o desenvolvimento de todos os povos que estão na face da terra. Os benefícios do concerto que Deus fez com Noé, as promessas divinas e as obrigações humanas, se estendem a todos os povos do mundo (Gn 9.1-17). Com a confusão e a multiplicação das línguas, os homens iam-se separando cada vez mais uns dos outros (Gn 11.4-9), criando, assim, problemas de desentendimento, desconfiança, e até de inimizades e guerras. 87 Todas as pessoas são dependentes das suas respectivas unidades sociais, nações, tribos, clãs e famílias. A variedade de nações é devida às línguas diferentes, lutas e guerras, migrações, e adaptações às condições geográficas é históricas. A Criação do Homem O livro de Gênesis apresenta duas explicações da criação do homem (1.26-30; 2.4-7,18-22). De acordo com a segunda, que é geralmente considerada a mais antiga, Deus formou o corpo do homem do pó da terra e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida, “e o homem se tornou alma vivente”. Os animais também são denominados almas viventes (Gn 2.19). Mas, nesta narrativa, o homem se distingue dos animais pela sua natureza moral. O Senhor o pôs no Jardim do Éden para o lavrar e o guardar, e lhe deu uma ordem que elevou e encareceu a sua dignidade. Até a proibição de não comer da árvore da ciência do bem e do mal visava o seu bem-estar, e o desenvolvimento da sua natureza moral, em obediência ao seu Criador. Deus lhe criou uma companheira digna de tomar o seu lugar ao lado dele, a única criatura capaz de entendê-lo, amá-lo, e de esforçar-se com ele no desenvolvimento recíproco da vida boa, no gozo das bênçãos da camaradagem. “Portanto, deixa o homem a seu pai e a sua mãe e se une à sua mulher, e se tornam uma só carne” (Gn 2.24). É claro que esta narrativa é simples e antropomórfica, e inferior à do primeiro capítulo, que apresenta o elevado conceito do homem criado à imagem e à semelhança de Deus, mas teve influência nas escrituras da Bíblia, e não fica sem alguma importância teológica. Há diferenças nos pormenores das duas narrativas, mas concordam na verdade essencial de que o homem foi criado por Deus, e de que é superior às outras criaturas na sua natureza moral e na sua responsabilidade perante o seu Criador, com a liberdade evidente de obedecer ou desobedecer às ordens divinas.

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Otto J. Baab, The Theology of the Old Testament, p. 54: “Esta coleção de escritos antigos conta a história da marcha do tempo. Esta história. é dramática e altamente pessoal, pois devota a sua atenção a muitos indivíduos de ambos os sexos, que ocuparam posições de importância na nação, ou que responderam à chamada feita ao seu coração e seguiram a visão de Deus. A procissão da humanidade é resumida nesta história. Reis e povos, santos e pecadores, estadistas e sacerdotes, profetas e prostitutas, patriotas e traidores, grandes e pequenos aparecem neste panorama: em marcha”.

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Alguns teólogos exageram as diferenças entre as duas narrativas até o ponto de tirar conclusões infundadas, como esta: “Não foi de maneira alguma a intenção de Deus que este Adão e esta Eva fossem os pais da humanidade”. 88 A narrativa não diz, nem indica isto. É presunçoso especificar, na base da narrativa, qual foi a intenção do Criador quanto a este casal. A interpretação de Koehler baseia-se no mito, que é a fonte original da narrativa bíblica, segundo a sua opinião. Para o redator final de Gênesis, não havia contradição essencial nas duas narrativas. Para ele, este Adão e esta Eva são evidentemente o macho e a fêmea, ou o homem e a mulher, de Gênesis 1.27. O conceito de casamento de 2.24 está em perfeita harmonia com 1.28. C. R. North reconhece o valor teológico da antiga narrativa da criação, na seguinte observação: “Esta explicação, muito antropomórfica, não foi feita exatamente obsoleta quando foi escrita a narrativa que evita o uso de antropomorfismos”. 89 O teólogo não pode desprezar esta narrativa da criação do homem, segundo Gênesis 2:7, porque a sua importância é largamente reconhecida na Bíblia. A ênfase bíblica concorda com a ciência moderna quanto à relação do homem com a natureza. “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; pois tu és pó, e em pó te tornarás” (Gn 3.19). “Assim o Senhor Deus o expulsou do Jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado” (Gn 3.23). A Bíblia é realista nos seus ensinos sobre o homem, e fala francamente das suas fraquezas, da sua ignorância, das suas imperfeições, dos seus sofrimentos e da sua mortalidade. “Pois o homem nasce para o sofrimento, Gomo as faíscas voam para cima” (Jó 5.7). “Os homens de classe baixa são vaidade, os homens de ordem elevada uma ilusão” (Sl 62.9). “Os dias do homem são como relva. Como flor do campo, ele floresce; pois passa o vento sobre ele, e desaparece” (Sl 103.15, 16). Há muitos outros trechos que descrevem as limitações do homem na sua ignorância e fraqueza, e da sua dependência do Criador. Muitas destas passagens se acham ao lado de declarações de agradecimento pelas maravilhosas bênçãos do amparo divino. A relação do homem com as outras criaturas determina muitas das suas frustrações e fracassos, e a incapacidade de vencer as restrições do seu ambiente físico. Ele tem que sofrer as conseqüências das calamidades da natureza física, a doença e a morte, como os animais. Mas apesar de todas as fraquezas de que o homem e os animais compartilham, o homem se distingue deles pelo fôlego de vida, que o habilita a receber a ordem divina e aceitar a responsabilidade de obedecer à voz do Criador. As limitações do homem, segundo esta narrativa primitiva, são experimentadas pelas gerações sucessivas da humanidade, e assim têm sido um meio efetivo de despertar nas criaturas humanas o sentido das suas necessidades espirituais, e o desejo de correr ao Criador para receber o socorro divino. A outra narrativa da criação (Gn 1.26-30) é livre de antropomorfismos, e apresenta o alto conceito do homem criado à imagem e à semelhança de Deus. Nesta passagem, o termo homem, ou Adão, abrange o homem e a mulher. A mulher foi criada juntamente com o homem, como seu igual, e não depois dele, para ser a sua adjutora. Embora não haja contradição essencial entre as duas narrativas, é claro que o casal desta narrativa representa o homem ideal, nas suas potencialidades espirituais, e na sua nobreza como o alvo e a coroa da criação.91 Não se contradizem estes dois pontos de vista acerca do homem, nem representam dois tipos de homem, como dizem alguns. O Velho Testamento, em todos os seus ensinos, reconhece a natureza complexa do homem indicada nestas duas narrativas. Ele representa o mais alto grau, ou o clímax, no processo da criação divina, a única das criaturas que atinge o nível moral e espiritual. É o seu caráter moral, com a liberdade e a responsabilidade de escolher entre o bem e o mal que determina a complexidade da sua natureza. Esta narrativa (Gn 1.26-31), juntamente com as escrituras diretamente

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Ludwig Koehler, Old Testament Theology, traduzida por A. S. Todd, p. 131. C. R. North, The Thought of the Old Testament, p. 27. 90 Gn 6.3; Jó 8.9; 11.12; 28.12 e seg.; Sl 39.4 e seg.; 49.12; 62.9; 78.39; 89.48; 90:7-9; 144.4; Pv 16.25; Ec 8.17; Is. 40.6-8; Jr 17. 5. 91 A. R. Crabtree, A Esperança Messiânica, p. 24: É incompreensível que a glória de Deus possa ser realizada no mundo sem uma criatura suficientemente semelhante a Deus para compreender a apreciar a sua glória.” 89

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relacionadas com ela, visa o homem no seu aperfeiçoamento espiritual, enquanto a outra antecipa as conseqüências do abuso da sua liberdade. Não é difícil reconhecer as referências e as alusões das Escrituras a esta passagem, quando se observa como os escritores interpretam as atividades de Deus na história de acordo com o seu propósito na criação do homem. A Bíblia visa a natureza do homem em relação com o propósito do seu Criador. Feito “pouco abaixo de Deus” (Elohim), coroado com “glória e honra”, o homem, abaixo do Senhor, tem domínio sobre os animais e sobre todas as obras da natureza (Sl 8.4-8). “Assim criou Deus o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e lhes disse: “Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se move sobre a terra ... E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1.27, 28,31). 92 Assim a Bíblia apresenta o homem como a mais honrada das criaturas da terra, dotado com característicos morais que o habilitam para a vida feliz de comunhão com o seu Criador, segundo a orientação divina. O autor do Salmo 16 descreve como ele, no meio da idolatria, venceu as tentações e os empecilhos, e chegou a confiar em Deus. Pela dependência de Deus, e a firmeza da sua fé, o salmista devoto chegou ao pleno gozo da fraternidade com os fiéis, e à comunhão sublime com o Senhor. A sua satisfação traduz-se em louvor. Encontrava mais do que o suficiente para satisfazer os desejos do seu espírito. A voz do Senhor na sua consciência, nas horas silenciosas da noite, instruía e guiava o servo fie no caminho da vida, e desenvolvia nele o desejo ardente de viver sempre na presença do Senhor, e na segurança do seu amor. “Portanto, está alegre o meu coração, e se regozija o meu espírito; também a minha carne habitará em segurança, Pois não me abandonarás ao Sheol, nem permitirás que o teu santo veja a corrução. Tu me fazes conhecer a vereda da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra há prazeres para sempre” (Sl 16.9-11). Este conceito do homem, criado à imagem de Deus, com a ordem importante recebida do Criador, não podia ficar limitado ao homem de Israel. São discutidos em outro lugar assuntos como a missão do povo escolhido, e o reino messiânico, mas é preciso observar aqui como estas doutrinas se relacionam ao ensino bíblico sobre o Criador. No seu livrinho, Man in lhe Old Testament, Eichrodt tem um capítulo sobre a influência que a crença no Criador tem nas Escrituras. 93 Não convém prolongar esta investigação para mostrar que a doutrina do reino de Deus no mundo também se baseia nesta crença do Criador, nas potencialidades espirituais do homem, e na unidade dos homens de todas as raças. A soberania do Senhor, e o seu propósito de estabelecer o seu reino entre todos os povos do mundo são verdades básicas que determinaram a escolha de Israel como a nação sacerdotal do Senhor. Apesar das forças políticas que operavam no desenvolvimento do espírito nacional de Israel, e impediam o pleno reconhecimento da sua responsabilidade missionária, israelitas fiéis não se podiam esquecer do propósito divino na sua escolha. O egoísmo e a influência do pecado em geral mostraram

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A. R. Crabtree, op. cit., p. 24: “Se Deus não tivesse criado o homem, não haveria nenhuma criatura para utilizar os bens infinitos escondidos na terra; não haveria ninguém para contemplar a manifestação maravilhosa do poder e da sabedoria no universo; não haveria ser algum, fora da - Divindade, -para sentir no coração o infinito amor de Deus, e bendizer o seu santíssimo nome pelas inescrutáveis riquezas dá sua graça; e assim todo o universo (aparentemente) teria sido sem propósito e sem fim inteligente.” 93 Walther Eichrodt, Das Menschenverstandnis des Alten Testaments, Tradução de K. e R. Gregor Smith, p. 40. Sob o título, A extensão cósmica e o rico conteúdo da relação do homem com Deus, na base da crença no Criador, o autor mostra como a crença no Criador revela a dependência e a dignidade do homem. Esta crença no Criador é também a base do pensamento social no Antigo Testamento. Na contemplação da vida humana, a dignidade do homem atingiu largura e plenitude, em virtude de ser ele criado à imagem de Deus. A crença no Criador de todos os homens restringe o poder perigoso da divisão e da hostilidade destrutiva inerentes nas divisões raciais.

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ao profeta Isaías que o plano de Deus na escolha de Israel havia de ser realizado por intermédio do Restante fiel do povo escolhido. Desde Jeremias os profetas reconheceram que o propósito de Deus na criação do homem tinha que ser efetuado por uma nova criação. 94 A força desta renovação atrairá as nações, e produzirá uma nova humanidade, que será fiel e feliz no serviço de Deus. 95 A Relação do Homem com o Seu Grupo A palavra Adão significava originalmente o homem na sua coletividade (Gn 1.26), ou um ser humano (Gn 2.5). Os sociólogos falam do organismo social, ou de grupos de pessoas que têm característicos pessoais. Todas as sociedades primitivas dão muita ênfase à solidariedade social do grupo. A personalidade corporal é conhecida entre todos os povos, com característicos variados, como pessoa jurídica, maçonaria ou igreja. A entidade social, como a família, a tribo e a nação, tem um lugar importante no pensamento dos escritores do Velho Testamento. A significação da entidade social verifica-se, segundo o Velho Testamento, na íntima relação do homem com o seu grupo. O seu caráter é estimado pelo caráter da família (Gn 7.1), e até da sua geração (Jz 2.10). O homem está ligado não somente aos contemporâneos do seu grupo, mas também aos seus antepassados e à sua semente96 após ele. Deus fez o seu concerto no Monte Sinai, com o povo de Israel, que desde então chamava-se o povo de Deus, seu povo ou teu povo, e assembléia ou a congregação de Israel. Este povo assim se distingue de todos os outros povos do mundo, por sua relação especial com Deus. Na discussão da relação do homem com o seu grupo, muitos se esquecem da natureza complexa e paradoxal do homem, e Julgam que a sua dependência, e a sua solidariedade com o grupo lhe tenham roubado a individualidade. Diz Raab, por exemplo: “A pura individualidade não se encontra no Velho Testamento”, 97 e isto depois da mais importante declaração no segundo parágrafo do capítulo: “Esta história é altamente pessoal, pois devota a sua atenção a muitos indivíduos de ambos os sexos, que ocuparam posições de importância na nação”. A verdade é que havia uma tensão no espírito do homem do Velho Testamento entre os seus sentimentos de dependência e de independência do grupo. Os exemplos numerosos de apostasia religiosa, bem como o personalismo que resultaram nas rivalidades e revoltas políticas, testificam amplamente das renúncias da dependência absoluta do grupo, e até, em alguns casos, da própria família. No período primitivo da história de Israel, quando as tribos lutavam com os cananeus, pela sua própria sobrevivência, a solidariedade do povo era mais necessária, mais importante para o grupo inteiro, e recebeu mais ênfase, mas erram aqueles que dizem que Jeremias e Ezequiel descobriram o indivíduo. A verdade é que o homem nunca foi considerado apenas como membro do seu grupo sem qualquer responsabilidade pessoal. Nem se livrou da dependência do grupo desde Jeremias e Ezequiel. Como foi observado em outro lugar, a psicologia do povo de Israel apresenta problemas para o intérprete do homem bíblico, mas é fácil exagerar e interpretar erradamente a psicologia dos escritores do Velho Testamento. 98 Apresenta-se em Êxodo 20.5,6, um princípio que não se limitou aos israelitas no período do Velho Testamento, mas que onera eternamente na vida da humanidade. “Eu, o Senhor, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até Ia terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, mas mostro amor constante e fiel (hesed) aos milhares que me amam e guardam os meus 94

Jr 31.33; Ez 36.26 e seg. Is 2.2-5; 11.6-9; 29.17; 32.15; Os 2.20,23 e seg.; Am 9.11; Zc 14.6,8,10. 96 A palavra descendência não traduz nitidamente o sentido da palavra hebraica zerá (semente). Sem usar a palavra hebraica, a declaração de Hebreus 7.10 explica a sua significação quando fala a respeito do sacerdócio levítico. Levi pagou dízimos, mesmos antes de nascer, “Porque ainda ele estava nos lombos do seu pai (seu ancestral Abraão) quando Melquisedeque lhe saiu ao encontro”. 97 Otto J. Raab, op cit., p. 56. 98 C. R. North, op. cit., p. 29: “A natureza humana tem-se modificado pouco desde os tempos do Velho Testamento, e se nos esforçamos bastante para aprender os característicos da psicologia hebraica, e então os traduzimos em termos da nossa psicologia moderna, seremos bem recompensados; porque os hebreus entenderam bem o caráter humano, e os seus motivos, elementar como fosse a sua psicologia”. 95

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mandamentos”. Diz-se, às vezes, que este princípio representa uma injustiça para a raça humana. Citam-se as conseqüências da iniqüidade dos homens maus que se estabelecem em posições de poder e, com a sua autoridade e influência, praticam todas as qualidades de opressão e injustiça contra pessoas inocentes. O livre arbítrio do homem opera de acordo com este princípio da unidade da raça. “O Senhor, o Senhor é Deus misericordioso (rahum), e compassivo (hanun), tardio em irar-se, grande em amor constante e fiel (hesed) e verdade (‘ameth), que guarda a amorável benignidade (hesed) em milhares, perdoando a iniqüidade (‘avon), a transgressão (pesha’) e o pecado (hata’), mas de maneira alguma terá por inocente o culpado” (Êx 34.6,7). É a lei da herança moral. Quem pode, ou quem deseja escapar dela? O enredamento dos filhos nas conseqüências dos atos e das obras dos pais é um exemplo do amor e da justiça de Deus. O mesmo princípio que traz sobre os filhos as más conseqüências dos pecados dos pais, também transmite a herança preciosa de pais piedosos e justos às gerações sucessivas. Se pudesse haver um homem inteiramente desunido e desassociado de sua raça, então seria injusto que ele participasse das conseqüências das obras boas ou más das gerações passadas. Mas não há ninguém sem o umbigo, que testifica de sua relação com os seus inumeráveis antepassados. Não é menos desassociado da raça na sua vida intelectual e espiritual. Somos herdeiros da cultura de todas as gerações que nos precederam. Que seria do mundo habitado por indivíduos absolutamente independentes uns dos outros? Todos que se regozijam na herança recebida dos antepassados têm amplos motivos de gratidão por este princípio, com os resultados maus e bons na sua vida. A sociedade moderna sofre por causa dos pecados de seus membros, e em muitos casos tem que aceitar uma medida da culpa de seus delinqüentes. Este princípio da solidariedade do grupo é mais acentuado no Velho Testamento. Mas Baab exagera, por exemplo, na interpretação do castigo dos filhos de Coré,99 indicando que apenas os quatro líderes eram os culpados, e que todos os outros castigados eram inocentes. É claro, porém, que todos os castigados tinham participado ativamente na revolta (Nm 16.5-7,16,24). Está-se manifestando na sociedade moderna uma forte tensão entre o indivíduo e a sociedade. A filosofia comunista vai mais longe do que o Velho Testamento na importância que dá ao grupo, com desprezo dos direitos do homem individual. 100 Israel se distingue das outras nações, na defesa dos direitos pessoais que nem o rei tinha o direito de lhe roubar. Na ocasião de estabelecer a monarquia, o profeta Samuel admoestou o povo contra o perigo da opressão dos reis. Natã repreendeu o rei Davi pelo pecado de adultério e pelo homicídio de Urias. O profeta Elias censurou severamente Acabe por ter acedido ao conselho da esposa Jezabel, a fenícia, e matado o seu vizinho Nabote, a fim de tomar a sua vinha. Todos os profetas insistiram na sua chamada pessoal da parte de Deus, com a missão de transmitir e defender a revelação da vontade de Deus, com responsabilidade direta e pessoal perante Deus. Eles defenderam os direitos dos fracos contra a opressão dos fortes, os direitos do povo contra os reis tirânicos, das viúvas, dos órfãos e dos desamparados contra os ricos. Ana, a mãe de Samuel, orou fervorosamente ao Senhor no Tabernáculo, e quando foi repreendida pelo sacerdote Eli, ganhou o apoio dele peia sinceridade da sua fé pessoal. Seu lindo cântico (1 Sm 2.1-10), citado em parte pela mãe de Jesus, concorda perfeitamente com o seu retrato literário, apresentado no livro de Samuel. Esta questão de dependência do homem do Velho Testamento do seu grupo é complicada, como é também complicada, com variações, a relação do homem moderno com o povo da sua nação e com o seu governo. Os grandes profetas do Antigo Testamento têm mensagens de valor prático na solução destes problemas. 99

Otto J. Baab, ap. cit., p. 57. H. H. Rowley, The Re-Discovery of the Old Testament, p. 214: “Em nossos dias estamos testemunhando um debate prolongado entre os que mantêm o ponto de vista do homem individual e os que insistem no conceito social do homem. Reagindo contra um individualismo que reservou o direito de ratificar as afirmações sobre as suas responsabilidades sociais, há uma tendência agora para ir ao outro extremo e insistir em que as responsabilidades sociais do homem são absolutas, assim privando o homem de todos os direitos pessoais, com a exceção apenas daqueles que a sociedade lhe concede. Israel tinha um ponto de vista mais justo, dando ênfase, ao mesmo tempo, aos direitos pessoais e às responsabilidades sociais, - uma mensagem vital para o mundo moderno”.

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A Natureza do Homem do Velho Testamento No estudo deste assunto encontram-se vários termos hebraicos de interesse especial. As palavras bassar - rf&fB (corpo, carne), leb (b”l), lebab (bfb”l) (coração), kelyâ (hfy:liK) (rins) referem-se a órgãos do corpo. Os termos em hebraico, BASAR - rf&fB (carne), em Lv 14.9; 15.2; NEBELA - hfl”b:n (cadáver), em 1 Rs 13.22, 24; e GEWYA - hfYiw:G, em 1 Sm 31.10, 12 estão entre os mais freqüentes traduzidos por SŌMA, na LXX, e por corpo, em algumas traduções em português. Nephesh (alma) e ruah (espírito) referem-se a elementos invisíveis do homem. A relação entre a mente e o corpo do homem é um estudo de interesse perene para o psicólogo moderno, como o é para o estudante e o teólogo do Velho Testamento. Foi examinada a etimologia da palavra ruah (espírito) no estudo do Espírito do Senhor, notando-se como a palavra é usada em tantos sentidos diferentes. Quando se refere ao espírito do homem, pode designar o temperamento, o impulso ou a disposição, como “o espírito de ciúmes” (Nm 5.14-30); “angústia do espírito” (Jó 7.11,14); “espírito quebrantado” (Sl 51.17); “espírito arrogante” (Pv 16.18); “ânimo precipitado” (Pv 14.29); “ardor do espírito” (Ez 3.14); “espírito fiel” (Pv 11.13); “o espírito contrito e humilde” (Is 57.15); “espírito perturbador” (Dn 2.1); “espírito imundo” (Zc 13.2); “espírito mentiroso” (2 Cr 18.21); “espírito mau” (1 Sm 16.14); “poder do espírito” (Mq 3.8), e com vários outros sentidos. Em Eclesiastes 3.18-21, ruah tem quase o mesmo sentido de nephesh (alma). Em Isaías 26.9 e Já 7.11, ruah e nephesh são sinônimos. A palavra nephesh, como ruah, é usada em vários sentidos, mas não é o equivalente geral de ruah. Deus forma o espírito no homem (Zc 12.1), e o preserva (Jó 10.12). Quando o homem morre, o espírito volta a Deus (Ec 12.7). Assim o espírito é geralmente reconhecido como o elemento mais importante do homem, o qual ele recebe de Deus. O espírito de juízo (Is 28.6); o espírito de sabedoria (Êx 28.3), e o espírito profético (Is 61.1) são todos manifestações do Espírito do Senhor. Os hebreus faziam uma distinção clara entre o espírito e a carne (bassar) do homem. O homem é carne (bassar), animado pelo espírito (ruah), assim se tornando uma alma ou ser vivente (nephesh). O espírito que o homem recebe de Deus é o fôlego de vida (nishmath hayim). Quando o ruah do homem volta a Deus, a carne (bassar) volta à terra como era (Ec 12.7; Sl 146.4). Assim o ruah é o fôlego da vida (nishmath hayim) pelo qual o homem se torna vivo Ez 37.10). Em Jeremias 15.9 a mulher exalou a sua nephesh, o espírito, a alma, a vida. Assim nephesh também tem uma variedade de sentidos, como ser vivente, vida, alma, pessoa, paixão, emoção, desejo, apetite. Pode também significar a vida de qualquer animal (Dt 12.23-24). A palavra leb ou lebab significa coração, mente, inteligência, vontade, consciência, íntimo. Depois a consciência (leb) doeu a Davi, por ter cortado a orla do manto de Saul” (1 Sm 24.5). O coração é geralmente considerado como a sede da inteligência e da vontade (Is 10.7). É difícil fazer uma distinção exata entre nephesh, ruah e leb do homem. O pensamento pode representar a atividade de qualquer um destes três órgãos, mas isto não quer dizer que as palavras são sinônimos, a não ser em sentido muito limitado. Na totalidade do seu ser, o homem pode ser designado por nephesh, mas ele tem um ruah e um leb. Convém lembrar que nephesh tem vários outros sentidos. O ruah (espírito) é geralmente considerado o elemento mais importante do homem. É de Deus que o homem recebe o espírito. A mesma palavra refere-se ao Espírito de Deus e ao espírito do homem. É o Espírito do Senhor que inspira e controla os profetas. É o Espírito do Senhor que habilitou o profeta para falar ao povo de Israel no cativeiro (Is 61.1). Habilitado pelo Espírito do Senhor (2 Cr 15.1; 24.20; Ne 9.30; Mq 3.8), o profeta podia entender e falar a mensagem de Deus. Os profetas conscienciosos insistiam em que, com apenas os seus próprios recursos humanos, eles não podiam profetizar. Habilitados pelo espírito profético, que lhes vinha de Deus, eles não podiam deixar de profetizar. O Servo do Senhor, na segunda parte de Isaías, sempre se orientava pelo Espírito de Deus (Isaías 42.1; 49.1-13; 50.1; 52.13-15). É o Espírito do Senhor Deus que produzirá o novo espírito de Israel, e o corarão revivificado (Ez. 36.26, 27; 37.14). 82


O poder, a força e a vida são característicos do espírito do homem, mas todos os poderes do homem vêm de Deus. O Espírito do Senhor é representado como o poder especial que desperta e habilita o homem para fazer a vontade de Deus. Com auxílio do Espírito do Senhor o homem fica habilitado para fazer coisas que ele na sua própria força é completamente incapaz de fazer. Os rins (kelayoth), as entranhas (mayim), e uma vez o fígado (kabad) são representados como órgãos da emoção ou dos sentimentos. O coração é o órgão de todas as qualidades de pensamento e de emoções que revelam o caráter do homem. Enquanto a psicologia do Velho Testamento se apresenta em termos diferentes dos da psicologia dos cientistas modernos, não há diferença essencial entre os resultados dos dois sistemas. Não se encontra no Antigo Testamento a palavra cérebro, mas os processos de pensar, raciocinar, meditar, distinguir, julgar e escolher são bem conhecidos. São os elementos básicos da personalidade do homem do Antigo Testamento, o corpo, o espírito e a alma, ou apenas o corpo e o espírito? O Velho Testamento não tem uma palavra que seja o equivalente exato de corpo no sentido moderno da palavra, mas a palavra carne é usada quase no mesmo sentido de corpo. Por falta de distinções nítidas no sentido dos termos hebraicos, e o uso da palavra nephesh (alma) em tantos sentidos diferentes, não é fácil provar que o homem bíblico é apenas corpo e espírito. Mas, considerando que a alma (nephesh) é a vida, o resultado da união do espírito (nishmath hayim) e o corpo, os nossos termos modernos corpo e espírito abrangem os elementos integrantes do homem bíblico. Porém, com o uso da palavra grega psique (alma, vida, coração), no Novo Testamento, e especialmente por Jesus (Mt 10.28; 11.29), é difícil para os crentes, na prática, deixarem de pensar no corpo, espírito e alma - a tricotomia da personalidade. Não há diferença essencial entre a alma e o espírito do homem. Como diz Davidson: “O espírito do homem e a alma do homem não são coisas diferentes, mas a mesma coisa sob aspectos diferentes”. 101 A Natureza Religiosa do Homem Com este estudo dos elementos essenciais do homem bíblico, foram observados alguns característicos do seu espírito, ou da sua vida. O espírito é o elemento humano que está mais aliado com Deus, e que tem o poder ou a capacidade de receber a orientação divina e as influências benéficas do Espírito do Senhor. A Bíblia foi escrita na linguagem popular da época, e, não obstante a dificuldade de seus antropomorfismos e a diferença entre a sua psicologia e a dos eruditos modernos, a natureza espiritual do homem do Velho Testamento não é essencialmente diferente da do homem moderno. Apesar da sua ignorância científica do corpo do homem, é inegável que os escritores bíblicos tinham profundo conhecimento da sua natureza espiritual. Descrevem em traços largos a covardia e a coragem, a vacilação e a persistência, a arrogância e a humildade, o desânimo e o vigor, as dúvidas e a fé, dos filhos de Israel. Os livros históricos, poéticos e proféticos tratam largamente das necessidades e aspirações religiosas do povo e testificam freqüentemente do seu regozijo pessoal na comunhão com Deus. O Espírito de Deus, que é Deus mesmo, transmitido ao homem, dá-lhe a vida intelectual, moral e religiosa. É este espírito invisível que distingue o homem das outras criaturas de Deus. O antropomorfismo do escritor bíblico representa Deus como possuindo fôlego, o princípio da vida, que soprou nas narinas do homem, com o resultado de que este se tornou alma vivente (Gn 2.7). É este espírito vital do homem, recebido de Deus, que determina a sua natureza religiosa. “Enquanto o meu fôlego (nishmati) está em mim, e o espírito (ruah) está em meus narizes” (Jó 27.3). “Quando tiras o seu espírito, eles morrem e voltam ao seu pó. Quando envias o teu Espírito, eles são criados” (Sl 184.29,30). Assim o homem do Antigo Testamento fica habilitado para entender e fazer a vontade de Deus, com o auxílio que recebe de Deus por intermédio dos profetas. Deus honrou e exaltou o homem com o 101

A. B. Davidson, op. cit., p. 202.

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privilégio de gozar comunhão espiritual com ele, e distinguir-se como o seu servo na terra, ao lado dos anjos que o servem nos céus. “Mas serei contigo; e isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres trazido o povo do Egito, servireis a Deus neste monte” (Êx 3.12). “Deixa ir o meu povo, para que me sirva” (Êx 8.1, 20; 9.1,13; 10.3,7). Ao lado deste propósito divino, que o homem foi feito para servir ao seu Criador, é a fome espiritual do homem, e o desejo de achar paz, descanso e regozijo em harmonia com a vontade e o amor do seu Deus. Na sua natureza espiritual o homem é muito diferente de Deus, e está muito longe de Deus, mas como criatura espiritual, ele é capaz de gozar comunhão com Deus, porque o seu espírito tem afinidade com o Espírito do Criador, a afinidade que lhe foi concedida no ato da criação. Portanto, ele tem o privilégio e a sagrada obrigação de manter esta comunhão, e assim cumprir o propósito divino na sua criação. É o homem religioso que sente mais profundamente a sua dependência de Deus. A sua confiança, a sua gratidão, e o seu sentido de dependência de Deus é especialmente notável no livro dos Salmos. Neste livro de culto dos homens piedosos de Israel, nota-se a paz espiritual dos homens que descansam em Deus. “Em paz me deitarei e também dormirei, porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança” (4.8). “O Senhor dá força ao seu povo; O Senhor abençoa o seu povo com paz” (29.11). “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, Não receio mal algum, porque tu és comigo” (23.4). O Senhor é o refúgio dos pobres (14.6), o auxílio sem falta em tribulações (46:1), o salvador e sustentador dos doentes (38.5,6,21; 41.3), a salvação, a glória, a força e o refúgio dos aflitos, que nele confiam (62.7). Deus é o alvo da fé e da esperança, o bem supremo do homem piedoso. “Disse ao Senhor: Tu és Senhor meu, Além de ti não tenho outro bem” (16.2). “á Deus, tu és o meu Deus; eu te busco, a minha alma tem sede de ti, a minha carne te anseia” (63.1). “O teu amor constante é melhor do que a vida” (63:3). “A quem tenho eu nos céus senão a ti, e na terra não há quem eu deseje' além de ti” (73.25). “Quanto a mim, a proximidade de Deus é a minha felicidade” (73.28). Assim o Velho Testamento reconhece que o homem foi criado para Deus, e que não pode ser feliz sem achar descanso no seu Senhor. Características do Pensamento do Homem do velho Testamento Em outros lugares foram discutidos a psicologia dos hebreus, e os antropomorfismos de seus escritores. Crendo na afinidade do seu espírito com o Espírito do Senhor e que forças de fora podiam invadir o espírito humano, o hebreu julgava-se capaz de reconhecer a operação do Espírito de Deus no seu coração e na sua vida. Ligado com o seu reconhecimento da justiça do Senhor, o hebreu pensava segundo as formas da justiça na sociedade humana. 102 102

Ludwig Koehler, Der Hebraische Mensch (Hebrew Man), tradução de Peter R. Ackroyd, p. 149: “O homem ideal dos hebreus é o homem justo. Isto significa primeiramente o homem que está em posição de provar a sua inocência quando acusado de qualquer crime. Então, chega a significar aquele que executa com justiça todas as exigências da vida comuna! Significa também aquele que presta obediência às exigências de Deus mesmo. O homem justo é o homem piedoso. Para os hebreus, a piedade não é uma questão de sentimento, nem das próprias formas. 'É uma questão da prova moral à vista do mais alto juiz. Pois Deus mesmo é o Deus da justiça. Lindos, bondosos, amistosos e alegres que sejam os deuses da Grécia, e das outras terras, o Deus do Velho Testamento é o Deus justo. A Assembléia legal dos hebreus fez isto para Israel, e de fato para a humanidade inteira. Preparou a Israel para acolher e apropriar a revelação de Deus, que é o Deus de paz, de fraternidade, de justiça, o qual exige obediência à prova constante do procedimento que ajusta ir própria vontade e os desejos do homem com as condições e os direitos de outros. Desde que nascemos para a justiça, e desde que não há nada mais nobre para o homem do que desejar somente os seus próprios direitos, sem diminuir os direitos de qualquer outro; e desde que todas as vidas, nos grupos pequenos e grandes,

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O modo de pensar do hebreu era notavelmente teocêntrico. Não tinha a mentalidade científica no sentido moderno da ciência. Não pensava em causas secundárias. Ligado com o seu reconhecimento das atividades diretas do Espírito do Senhor no seu espírito, o hebreu acreditava que Deus é o Causador direto de tudo que acontece no mundo. Há, todavia, uma modificação gradual desta idéia de que Deus faz tudo, com o desenvolvimento do ensino sobre Satanás como o adversário do Senhor e o promotor das forças do mal no mundo. Pensando que Deus é o Causador direto de tudo que acontece, sem o reconhecimento de causas secundárias, não distinguiam nitidamente entre as operações da natureza física e as atividades diretas de Deus ou o milagre. Os israelitas reconheceram os sinais (othoth) e as maravilhas (mophet e pala) do Senhor, mas nem todos estes eram milagres, segundo a definição estrita do milagre bíblico. As operações de Deus através da natureza física eram maravilhosas para o povo de Israel (Sl 145.16). Mas o maior de todos os milagres, segundo alguns dos profetas, foi o amor persistente (hesed) do Senhor que preservou o povo escolhido e o guiou através de todos os sucessos imprevistos da sua história. Não obstante os antropomorfismos dos escritores do Velho Testamento, o conceito de Deus que se apresenta no Decálogo, e através dos seus escritos, é que o Senhor é Espírito puro. Reconheciam que Deus podia assumir forma de anjo ou de homem, e assim se apresentar aos patriarcas e outros, todavia, não era a forma, mas a mensagem transmitida que tinha importância. Com todas as suas experiências de comunhão direta com Deus, e as comunicações ou revelações transmitidas ao seu entendimento, eles reconheciam a impossibilidade de adquirir ou receber conhecimento perfeito ou completo da natureza de Deus. Para os israelitas, a verdadeira justiça (righteousness) é de Deus. O conceito hebraico de justiça é mais antigo e está mais firmemente baseado do que o conceito grego, que foi desenvolvido na base filosófica. A Assembléia Legal dos israelitas, composta de príncipes, anciãos ou oficiais reconhecidos, podia reunir-se em qualquer lugar quando havia necessidade de seu serviço. Há um incidente na vida do profeta Jeremias que oferece uma ilustração da presteza e eficiência da Assembléia. 103 Apresentando-se., no átrio da casa do Senhor, o profeta declarou que tinha recebido do Senhor a seguinte mensagem: Se o povo não se arrependesse e se não se convertesse de seu mau caminho, e se não andasse na lei do Senhor, o templo seria destruído como fora destruído o tabernáculo em Siló, e a cidade seria uma maldição para todas as nações da terra. Quando, a multidão acabou de ouvir a palavra de Jeremias, os sacerdotes. os profetas e o povo pegaram nele, dizendo: “Certamente morrerás.” Os príncipes, juízes da Assembléia, se reuniram e se assentaram à entrada da porta nova da casa do Senhor. Ouviram primeiro as queixas dos sacerdotes e profetas. Depois Jeremias, em poucas palavras, apresentou dignamente a sua defesa. Então os juízes pronunciaram o seu veredicto: “Este homem não é réu de morte, porque nos falou em nome do Senhor nosso Deus” (Jr 26.16). Alguns dos profetas nos declaram que nem sempre prevalecia a justiça, mas o ideal, reforçado pela pregação dos profetas, exerceu uma influência poderosa e permanente na vida de Israel. Não se pode identificar o homem do Velho Testamento com qualquer elemento do seu corpo ou do seu espírito. É um ser vivente, uma realidade. Não se esforçava para analisar a sua natureza, mas reconhecia a interdependência do corpo e da inteligência, sem se envolver em problemas de psicologia. Não entrava no seu pensamento a idéia de que o pecado residisse na matéria ou na carne do homem. A interdependência do corpo e do espírito também complicava, para ele, o problema do seu destino depois da morte. A prática da justiça nos seus negócios com o próximo e na vida social, segundo os mensageiros do Senhor, é a obrigação ética do homem, que é sempre reconhecido como capaz de fazer escolhas desde a família até a civilidade das nações, não podem repousar em qualquer fundação, senão a da justiça, a Assembléia hebraica legal tem uma significação que vai muito além da mera história cultural, uma significação que atinge a cada um de nós”. 103 Ludwig Koehler, op. cit., p. 126: “Há algo mais aqui do que se encontra no Egito, na Babilônia ou em Ugarite. Aqui há um povo ao qual foi concedido o privilégio de entender a santidade de Deus. Aqui há um povo, pequeno e insignificante que seja entre as nações, chamado e escolhido para proclamar ao mundo a mensagem do Deus que falará a justiça entre as nações e reprovará muitos povos (Is 2.4 )”.

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morais. Ele podia desprezar os mestres da ética e desafiar o padrão da justiça divina e a consciência do seu grupo social, mas não podia escapar à condenação dos profetas do Senhor. Não obstante qualquer influência dos malfeitores ricos e poderosos, os mensageiros de Deus proclamaram com insistência e devoção os princípios eternos das exigências do Senhor justo, exigências sempre apoiadas pela consciência esclarecida da humanidade. 104 As denúncias da opressão dos pobres, da avareza, da hipocrisia e de muitos outros pecados do povo, pelos mensageiros do Senhor, enaltecem os motivos e os característicos da ética bíblica. Por causa de seus privilégios especiais de conhecer o Senhor da justiça, as iniqüidades dos israelitas serão castigadas mais severamente (Am 3.2; Is 5.1-7). Oséias, Amós, Miquéias e Isaías são designados, às vezes, como os profetas éticos, mas eram primeiramente mensageiros do Senhor da justiça, que requer o amor da beneficência. Nascido no forno da aflição, Israel recebeu do seu Salvador a revelação das verdades básicas da lei moral nos Dez Mandamentos. Os profetas trovejam contra o abuso da lei moral. “Ouvi esta palavra, vós, vacas de Basã, ... Que oprimis os pobres, e esmagais os necessitados” (Am 4.1). “Ai daqueles que maquinam a iniqüidade E planejam o mal nas suas camas! Quando raiar o dia, o praticam, porque está no poder da sua mão. Cobiçam campos, e apoderam-se deles; 'Cobiçam casas, e arrebatam-nas” (Mq 2.1-3). Isaías também condena a avareza dos ricos na aquisição dos campos dos pobres. “Ai dos que ajuntam casa a casa, E achegam campo a campo, até que não haja mais lugar, e habitam sós no meio da terra!” (Is 5.8). O Homem criado à imagem e à semelhança Teólogos modernos do Antigo Testamento têm pouco a dizer sobre a imagem divina no homem. Dizem que a idéia aparece apenas na narrativa sacerdotal, ou P, e que a outra narrativa, ou J, nada sabe da semelhança divina em Adão e Eva (Gn 2.7,22,23). Assim “a imagem” ou “a semelhança de Deus” é mencionada apenas em Gênesis 1.26,27; 5.1 e 9.6. É claro que o redator final de Gênesis preservou as duas narrativas da criação porque julgava que ambas eram importantes. São complementares e harmoniosas, e não contraditórias. Não se pode negar a significação dos pontos de vista diferentes dos escritores do Antigo ou do Novo Testamento. Cada escritor apresenta a sua própria contribuição, que geralmente tem valor especial. É inegável que a doutrina da criação é de importância especial, com ramificações nos ensinos dos escritores bíblicos, e que as duas narrativas da criação têm a sua influência na literatura bíblica, e por isso têm valor no estudo da teologia do Velho Testamento. Embora mencionado poucas vezes, este conceito do homem criado à imagem de Deus concorda perfeitamente com o teor dos ensinos bíblicos sobre a dignidade e a responsabilidade do homem. A segunda narrativa da criação, com ênfase no fato de que o espírito do homem veio do Espírito de Deus (Gn 2.7), explica a afinidade do homem com o Espírito de Deus. A possibilidade de comunhão entre Deus e homem depende absolutamente desta semelhança entre Deus e o homem. Alguns pensam que a imagem divina significa apenas a autoridade do homem sobre os animais. “E Deus os abençoou, e lhes disse: Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra a sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra” (Gn 1.28). Mas a mera autoridade sobre os animais tem pouca importância em relação com a imagem divina no ser humano. É em virtude de sua semelhança com Deus que o homem recebe a promessa de autoridade sobre os animais. O homem recebe uma ordem e uma responsabilidade, reconhecimento da sua dignidade, mas tem que se esforçar para estabelecer a sua autoridade (Gn 1.28-31). Terá domínio como recompensa do seu trabalho. A história da luta e do progresso do homem é um comentário sobre o significação da ordem e da promessa. O homem tem que se dominar a si mesmo antes que possa dominar e subjugar a 104

H. Wheeler Robinson, The Religious Ideas of the Old Testament, p. 11: “A descoberta de maior alcance na esfera da religião· é a dos profetas de Israel: o valor supremo da vida é a sua moralidade”.

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terra. À medida que realizar o seu destino espiritual, assim dominará a terra. No esforço de dominar a natureza, o homem tem que se lembrar da sua dependência e da sua responsabilidade perante Deus. 105 Baseando-se no contraste entre o homem de corpo ereto e os animais, alguns julgam que a imagem está no corpo do homem. Mas o corpo humano, maravilhoso como é, pode ser usado para provar apenas que ele é superior aos animais. Não pode ser semelhante a Deus no seu corpo, porque Deus é Espírito, e não tem forma humana. Todavia, não se pode desprezar o valor do corpo do homem no cumprimento da ordem de sujeitar a terra e dominar os animais. A potencialidade da mão humana, com o polegar, é maior do que a mais poderosa máquina no mundo, porque a máquina deve a sua existência finalmente à destreza e à eficiência da mão do homem. Mas é preciso lembrar ainda que a mão, em todos os seus trabalhos, recebe as suas ordens da inteligência do seu dono. Em que consiste, então, a semelhança divina no homem? Deus é Espírito; o homem é espírito e corpo. Não entendo, portanto, porque deveria haver especulações a respeito da questão. 10620 Os escritores do Novo Testamento entenderam perfeitamente a natureza da imagem divina no homem original (João 4.24; Ef 4.24; Cl 3.10). É claro que a imagem e a semelhança divina se acham na personalidade do homem. Deus se apresenta como Pessoa através de todas as Escrituras do Velho Testamento. Há duas características essenciais da personalidade: a consciência própria e a direção própria. É certo que a imagem divina no homem não significa uma representação perfeita de Deus. Todavia, o salmista ousadamente declara que ele foi feito “pouco abaixo de Deus” (8.5). Podemos verificar, pelas Escrituras, que Deus e o homem têm os seguintes característicos em comum: as faculdades de sentir, raciocinar e querer. Ora, Deus tem estes poderes em absoluta perfeição. Nota-se, todavia, que ele não precisa raciocinar, como nós, para descobrir a verdade por um processo de lógica. Mas a Bíblia nos revela o fato de que Deus freqüentemente ajuda os seus mensageiros, no processo de raciocinar e esclarecer as mensagens divinas dirigidas aos seus ouvintes (Sl 94.9; Amós 3.2; Is 1.18) e em todos os apelos à inteligência do homem. É pela faculdade de raciocinar que o homem progride na aquisição do conhecimento das leis da natureza, e de todas as ciências. A criação proclama a inteligência do Criador. Confiando na inteligência, na coerência e na bondade do Criador, o homem investiga, experimenta e descobre como Deus opera através das obras da criação e aprende a cooperar com as leis de Deus na natureza física, utilizando, assim, as forças e as riquezas da natureza para o seu próprio benefício. O cientista depende da integridade do Criador quando faz experiências com a misteriosa eletricidade, ou quando lança um satélite no espaço exterior. Embora limitado na capacidade de raciocinar, o homem, no processo de adquirir novos conhecimentos, vai sujeitando a terra e aproveitando as suas riquezas. O amor constante e persistente (hesed) de Deus para com o seu povo através da sua história, manifestado na compaixão, na misericórdia e na bondade, é o assunto básico do Velho Testamento e da teologia. Outros sentimentos são atribuídos a Deus pelos escritores do Velho Testamento, mas estes podem ser entendidos como facetas do seu amor. O homem também tem afinidade com Deus na sua capacidade de sentir emoções e entender, em parte pelo menos, o amor de Deus. É no amor da família, dos filhos e da fraternidade religiosa que o homem se sente mais perto de Deus. Percebendo, por estas bênçãos, e pelas suas experiências religiosas, o amor de Deus, o hebreu compreendeu que a essência da religião é comunhão com Deus. Quando reconhecemos que a imagem de Deus no homem é a participação na vida pessoal de Deus, podemos entender mais claramente a natureza da liberdade e responsabilidade moral do homem. É profundamente significativo que Deus deu ao homem recém-criado tão vasta autoridade e poder sobre os animais e as riquezas da criação. Alguns identificam esta autoridade com a imagem divina no homem, mas é bem claro que recebeu a autoridade em virtude da sua semelhança divina que o dotou dos dons necessárias para exercer autoridade sobre os animais e sujeitar a terra. Em toda parte no Velho Testamento a livre vontade do homem, juntamente com a sua responsabilidade moral, é reconhecida. A liberdade e a responsabilidade são corolários da natureza 105

C. von Orrelli, Old Testament Prophecy, p. 84: "Tem que se provar senhor da natureza por cultura, e esta cultura deve refletir todos os lados da sua relação com Deus”. 106 Baab, op. cit., p. 81; Ludwig Koehler, op. cit., p. 147.

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ética do homem. Ele não pode ser livre sem a responsabilidade na prática da liberdade. Não se encontra no Antigo Testamento qualquer afirmação ou negação do livre arbítrio do homem, mas ele se apresenta com o sentido de responsabilidade da escolha entre o bem e o mal. Sob a orientação de Moisés, a nação escolheu Iavé como o seu Deus, com a responsabilidade moral de ouvir a sua voz e obedecer ao seu concerto. Assim, entrou em relação ética com o seu Deus. Na sua vida diária o israelita aparentemente nunca tinha qualquer dúvida sobre a sua autonomia pessoal. Geralmente reconhecia a justiça de Deus quando tinha que sofrer as conseqüências das suas escolhas. Às vezes o hebreu tinha a coragem de escolher o bem, mesmo sabendo que tal escolha lhe traria mal-entendidos e sofrimento, como no caso de José. Não se pode duvidar da luta no espírito de Abraão quando ficou certo de que Deus lhe estava ordenando o sacrifício do filho, e quanto lhe custou obedecer à voz do Senhor na sua consciência. E quantas vezes os israelitas deliberadamente escolheram desobedecer à voz dos mensageiros de Deus, na esperança de que pudessem receber benefícios da má escolha, sem sofrer as conseqüências na deterioração do seu caráter moral. Assim o homem tem a liberdade de dirigir a sua própria vida em relação com o próximo, e em relação com o seu Deus. É perfeitamente claro que a vontade de qualquer homem é determinada, em parte, por circunstâncias, mas este fato não estabelece a filosofia do determinismo, que nega por completo a liberdade do homem. Na sua orientação própria Deus é perfeito, enquanto o livre arbítrio do homem é largamente limitado por condições que ele não pode controlar, e também pelas fraquezas humanas. O homem é criatura da sua época, da sua terra, da sua família, e o escopo da sua liberdade é assim limitado pelas experiências, e pelos preconceitos dos seus vizinhos, e também pelas influências da família. Não obstante estas limitações há uma liberdade prática, reconhecida por todos os escritores bíblicos, nas decisões que as pessoas têm que fazer na suas atividades diárias. Os homens em geral exercem esta liberdade sem levantar dúvidas sobre as forças que influenciam as suas escolhas, reconhecendo a responsabilidade pessoal das suas decisões. Na vida pessoal, social e religiosa, todos têm que fazer escolhas morais que representem o grau da própria integridade, e que têm influências inevitáveis, para o bem ou para o mal, na vida de outros. O Velho Testamento apresenta o homem como criatura cônscia de tais escolhas morais desde a própria criação. Nas experiências sociais e religiosas através da história, os israelitas receberam dos mensageiros do seu Deus, ensinos plenamente apoiados pela consciência instruída. Finalmente, o homem tem a liberdade de fazer a mais importante escolha da vida, a escolha que determina o rumo da vida desde então. É a liberdade de escolher ou rejeitar a Deus. “Escolhei hoje a quem haveis de servir” (Js 24.16). Há uma verdade importante relacionada com o exercício da liberdade moral do homem. Escolhas morais contribuem para o desenvolvimento, ou para o prejuízo do caráter moral do homem. Cada escolha moral tem influência nas escolhas subseqüentes. Assim as escolhas concordam com o grau do desenvolvimento da integridade pessoal, e em grande parte são predeterminadas pelo caráter moral e religioso da pessoa. Este processo de desenvolvimento moral e religioso não constitui uma restrição da liberdade, mas aumenta a facilidade de fazer as escolhas morais que contribuem para o desenvolvimento da nobreza e do bem-estar espiritual do homem. Convém fazer, em conclusão, algumas observações gerais sobre este assunto. Segundo uma teoria antiga, a imagem divina no homem refere-se à sua perfeição moral, como veio da mão do Criador, e que foi completamente estragada pelo pecado. Mas esta teoria contradiz a declaração de Gênesis 9:6, que fala da humanidade geral, depois do dilúvio, como feita à imagem de Deus. É inegável que as Escrituras reconhecem os estragos do pecado na vida do homem primitivo, mas reconhecem também que não foi apagada a afinidade espiritual do homem com Deus, representada por característicos espirituais de Deus na sua natureza espiritual. As aspirações religiosas do homem; o seu entendimento do desígnio divino nas obras da criação; a sua capacidade de sujeitar a terra e dominar os animais; os seus poderes criadores, no aproveitamento das riquezas da terra; o seu regozijo no privilégio de comunicar-se com Deus, e assim receber a revelação da vontade do Criador para a humanidade; o reconhecimento da providência divina na vida humana e as operações de Deus na história, segundo o seu plano predeterminado, são todas as conseqüências da imagem e da semelhança divina no espírito do homem. 88


Alguns pensadores modernos lutam com o problema de harmonizar a liberdade humana com a soberania divina, mas esta necessidade não se apresentou aos escritores do Velho Testamento. Certamente não pensavam que a vontade humana ficava fora da influência da vontade divina, enquanto, de outro lado, aceitavam a liberdade e a responsabilidade moral como fatos estabelecidos pela experiência. Observando os movimentos da sua própria história, os profetas tinham certeza de que o Senhor era soberano em Israel, e em todas as nações do mundo.

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CAPÍTULO VII A DOUTRINA DO PECADO O conceito que qualquer pessoa, ou qualquer povo, tenha do pecado é determinado por seu entendimento do caráter de Deus e da natureza do homem. O entendimento da natureza do pecado no Velho Testamento, por exemplo, acompanha a revelação progressiva de Deus, ou por outro lado, o progresso do conhecimento humano da santidade de Deus (Is 6.1-5). Há uma diferença que merece atenção, por exemplo, entre as idéias do pecado contra o ritualismo na história primitiva de Israel, e o conceito do pecado contra a justiça de Deus, segundo os profetas. Encontram-se evidências, através do Velho Testamento, de um conflito de idéias entre o ponto de vista dos sacerdotes e o dos profetas, quanto à importância do sistema ritual e sacrifical. O conflito chegou à sua maior intensidade no período dos profetas Amós, Oséias, Miquéias e Isaías. Mas o leitor cuidadoso da história dos israelitas não pode deixar de observar que, depois da volta do cativeiro, havia uma nova ênfase no cerimonialismo, especialmente por Esdras e Neemias. O profeta Ageu também dá ênfase ao cerimonialismo, e Malaquias condena o casamento com mulheres estranhas, e representa o ponto de vista dos sacerdotes na questão das ofertas e dos dízimos. Não se nega o valor do ministério dos profetas dessa época, em manter a união e a vida religiosa do seu povo, nesse período crítico da sua história, mas é claro que eles não apresentam os ideais da religião espiritual que Isaías e Jeremias tinham proclamado. Seria interessante fazer aqui um estudo mais elaborado do significado do sistema sacrifical na vida religiosa de Israel, mas trata-se deste assunto na discussão da doutrina da salvação. É mencionado nesta conexão porque ajuda no esclarecimento da natureza do pecado no Antigo Testamento. A Moralização do Conceito do Pecado Entre os povos primitivos o pecado era considerado simplesmente como ofensa contra Deus, e por algum tempo alguns israelitas tiveram esta mesma opinião. Mas quando uma ofensa foi cometida voluntariamente contra Deus, foi reconhecida, sem dúvida, como violação do sentido ético ou moral do homem. No entanto, uma violação involuntária da lei moral era punida, bem como as ofensas deliberadas. Também a lei cerimonial exigia a observação de multas ritos que tinham importância para os israelitas da época, mas perderam a sua significação à luz de novas revelações divinas. Ritos religiosos e costumes sociais eram estritamente observados, e a falha em cumprir qualquer das leis cerimoniais da religião trazia sobre o ofensor a ira divina. Não sabendo nada da ordem do seu pai, Jônatas comeu um pouco de mel, e foi condenado à morte por Saul, mas liberto pelo povo. Não havia qualquer princípio de justiça na maldição proclamada por Saul, mas representava o espírito de reverência do povo da época. A morte de Uzá, quando ele estendeu a mão para segurar a arca do Senhor, foi interpretada como devida à ira do Senhor. A lei moral associava-se, às vezes, com o costume do povo. Davi pecou quando numerou o povo de Israel, uma coisa que “não se fazia em Israel”. Nabal se tornou culpado porque se recusou a pagar a cobrança costumeira a Davi e seus homens. Os fenícios e os cananeus praticavam ritos religiosos, leis cerimoniais, festas e seu sistema de sacrifícios, os quais evidentemente tiveram a sua influência, por algum tempo, na vida religiosa de Israel. No seu livro, Prophecy and lhe Prophets in Ancient Israel, T. H. Robinson tem um capítulo intitulado As Duas Religiões de Israel. Ele mostra como um grupo de israelitas, por muito tempo, era mais influenciado pela prática fácil do baalismo, do que pela pureza da religião de Iavé, que não tolerava outros deuses e que era tão exigente na vida de justiça e fidelidade. A natureza ética e moral da religião dos hebreus estabelecida por Moisés sempre lutava contra as influências insidiosas do baalismo e da imoralidade dos cananeus. Os profetas Samuel, Natã, Elias e outros eram defensores de Iavé contra Baal em períodos de crise. Até no tempo de Oséias, alguns 90


israelitas, segundo o profeta, não sabiam que era o Senhor Iavé, e não Baal, que Ihes dava o cereal, o vinho, o azeite, a prata e o ouro que eles usavam para Baal (2.8). Não obstante os defeitos no conceito de pecado entre muitos israelitas, havia os representantes do Senhor que zelavam pelos ideais da religião espiritual. No código do concerto (Êx caps. 21-23) havia distinção entre o homicídio com premeditação e sem premeditação. “Quando Davi viu o anjo que feriu o povo, ele disse ao Senhor: Eis que eu pequei, e procedi perversamente; mas estas ovelhas, que fizeram? Seja a tua mão contra mim, e contra a casa do meu pai” (2 Sm 24.17). Também o Decálogo condena o pecado do pensamento, bem como o pecado da palavra e do ato (Êx 20.17). Com o entendimento cada vez mais claro da justiça absoluta de Deus, o povo compreendia mais perfeitamente que o Senhor, como o Juiz supremo, exigia a justiça do homem nas relações com o seu próximo. Na lei civil, os juízes representavam a justiça divina, e se sentiam responsáveis perante Deus na administração da justiça (Dt 1.17). Nota-se também que no código de Êxodo 21 a 22, as relações legais é morais entre os homens são divinamente protegidas. Quando chegamos aos profetas literárias, encontramos a moralização completa do conceito do pecado. Os profetas deixavam de lado os ritos e as cerimônias religiosas, ou os tratavam como de menos importância. Proclamavam que Deus não exigia sacrifícios e holocaustos, mas obediência à lei moral (Oséias 6.6). O sacrifício oferecido como substituto da justiça era abominação perante o Senhor (Am 5.21-24; Is 1.10-17). Tais sacrifícios, com a multiplicação de altares, não somente não agradavam ao Senhor, mas eram “altares para pecar” (Os 8.11). Os profetas ensinaram com clareza e com ênfase que qualquer injustiça praticada contra o próximo é pecado contra Deus. Condenaram severamente todas as formas do pecado social, o adultério, a opressão do pobre e do operário, o suborno, a fraude e todos os atos perversos. Os profetas deram mais ênfase à natureza pecaminosa do homem que comete o pecado. Atos de pecado são condenados, mas era a natureza corrupta do pecador que perturbava os profetas. Era o próprio pecador que, no seu egoísmo, na sua arrogância e no seu espírito revoltoso contra o Senhor, trazia a ruína sobre a nação. O profeta Oséias representou o pecado como hábito (5.4), tão arraigado no espírito do pecador, que era difícil removê-lo (10.12). Isaías condenou as ofertas e os holocaustos, as cerimônias e orações que não representavam o verdadeiro espírito de culto de adoração (1.10-17; 29.13). Mas Jeremias, como nenhum outro profeta, deu ênfase ao elemento subjetivo na vida moral e religiosa. O Senhor prova os rins e o coração (11.20; 17; 10; 20.12) e julga retamente. Os rins e o coração representavam as emoções e os pensamentos do homem, a sua natureza moral, a sede ou fonte do bem e do mal. Deus se apresenta aos homens de Israel, dizendo: “Escutai a minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; andai por todo caminho que vos ordeno, para que vos vá bem” (7.23), mas na dureza do coração, a raiz do pecado (9:14), eles não escutaram; afastaram-se ainda mais de Deus (7.24). A obstinação do homem não lhe era inerente ou natural, mas pela prática o hábito ficou tão enraizado, tão fixo, na sua natureza que se tornou tão incapaz de mudar a sua natureza pecaminosa, como seria para o leopardo mudar as suas malha” (13.23). Mas a mudança radical de Judá era a única esperança de escapar à ira divina. Desenvolvendo o pensamento de Oséias, Jeremias declara: “Assim diz o Senhor aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém: Lavrai para vós o terreno alqueivado, e não semeeis entre espinhos. Circuncidai-vos para o Senhor, e tirai os prepúcios do vosso coração” (4.3,4). Com a ênfase nos pecados sociais, os profetas chegaram a entender mais claramente a natureza dos pecados cometidos diretamente contra o Senhor. A adoração de outros deuses e o culto prestado aos ídolos fabricados pelos homens minavam as bases religiosas da ética. O culto prestado a Baal e aos seus associados ajuntava-se freqüentemente com formas baixas de imoralidade. A idolatria, a adoração de deuses estranhos, as intrigas políticas, e as alianças com a Assíria e o Egito representavam o espírito de rebelião contra o Santo de Israel. Os profetas entendiam e interpretavam as várias formas da infidelidade que minavam a autoridade do Senhor Iavé, e ameaçavam destruir a fé e a esperança de Israel. No período depois do cativeiro foi preservado o ensino profético sobre a natureza do pecado, mas com menos ênfase no seu caráter ético, e mais ênfase no cerimonialismo. O ritualismo condenado pelos profetas Oséias, Amós e Isaías representava mais o espírito do paganismo do que o culto ao 91


Senhor. O novo ritualismo de Esdras foi completamente desassociado das religiões pagãs, e visava o serviço simples e fiel ao Senhor, que o povo podia entender e praticar. Não perderam o alto conceito profético de Deus, nem a interpretação profética da natureza do pecado, mas não reconheceram o perigo das tendências do cerimonialismo que se manifestava nas exigências de Esdras, e a mudança de ênfase nas profecias de Ageu e Malaquias. Os escritores da literatura da sabedoria representam outra influência crescente na religião dos israelitas depois do exílio babilônico. Esta literatura consta principalmente de observações de natureza filosófica sobre a religião, especialmente sobre os frutos da justiça, e a ruína e o sofrimento do homem perverso. Se os homens tivessem sabedoria para entender as conseqüências inevitáveis da iniqüidade, certamente abandonariam a vida de insensatez. Assim os sábios, como os ritualistas, não se esqueceram dos ensinos proféticos sobre Deus e sobre o pecado, mas mudaram a ênfase. Os profetas tinham ensinado que o pecador traz na sua natureza corrupta a semente da sua própria destruição. Os sábios falavam dos resultados da desobediência. Para o profeta o pecado é devido à natureza perversa; para o sábio, a essência do pecado é a ignorância. Os profetas reconheceram a ignorância do pecador, mas de um ponto de vista mais profundo (Is 1.3). Para os sábios o verdadeiro guia da vida era a sabedoria. “A longura de dias está na sua mão direita, na sua esquerda riquezas e honra” (Pv 3.16). Os sábios falaram das conseqüências desagradáveis da desobediência; os profetas condenaram a perversidade do desobediente. Com ênfase nas aparências superficiais dos resultados do pecado, os sábios olvidaram o significado do seu poder destrutivo. O autor do livro de Jó, e alguns dos salmistas representam melhor o conceito profético do pecado. 107 Segundo o livro de Jó, o pecado está profundamente enraizado na natureza humana. “Pode o mortal ser justo diante de Deus? pode o homem ser puro diante do seu Criador?” (4.17). Em toda parte do capítulo 31 de Jó, os pensamentos e os desejos pecaminosos são considerados iguais aos atos praticados perante o público. Alguns dos salmistas depreciaram, com o mesmo entendimento dos profetas, o ritualismo, as ofertas e os holocaustos, e zelaram pelo culto que mostrasse os sentimentos do coração puro. “Senhor, quem pode hospedar-se na tua tenda? Quem pode morar no teu santo monte? Aquele que anda irrepreensivelmente, e pratica a justiça, E fala verdade no seu coração. Aquele que não calunia com a língua, nem faz o mal ao próximo, nem carrega de opróbrio ao vizinho” (Sl 15.1-3). Não obstante as tendências de reanimar o ritualismo, a idolatria e o paganismo desapareceram por completo entre os israelitas. Mas os ensinos proféticos da religião espiritual predominaram, enfraquecidos em parte pelo formalismo desenvolvido pelos essênios do período interbíblico, e os fariseus do Novo Testamento. Palavras Hebraicas que Descrevem a Natureza do Pecado É riquíssimo o Velho Testamento na variedade de termos que significam pecado. A história da influência e das conseqüências do pecado na vida do povo do Velho Testamento é de profundo interesse para os estudantes da natureza humana. O Novo Testamento acrescenta pouco ao entendimento da natureza do pecado, fora dos exemplos de ódio despertado pela santidade de Cristo e de seus discípulos. A doutrina bíblica do pecado fica entrelaçada com a revelação do caráter de Deus, e do homem criado à imagem divina para viver em comunhão com o seu Criador. Ateístas e outros, com idéias torcidas do caráter de Deus, professam ficar escandalizados com o Déspota do Antigo Testamento que exige a subordinação absoluta do homem. Aqueles que entendem a estrutura moral do universo, e reconhecem as forças do mal que operam no mundo contra o bem, depositam a sua confiança no triunfo final do Deus soberano, do Deus da verdade e justiça. Não se pode discutir plenamente, em um capítulo, a doutrina do pecado no Velho Testamento. É, portanto, limitada esta discussão aos ensinos mais importantes sobre este problema fundamental do povo de Israel. 107

Não se pode determinar a data exata de Já e dos salmos que mantêm o conceito profético do pecado, mas é certo que exerceram a sua influência no pensamento e na vida de Israel depois da restauração.

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O português, bem como o inglês, luta com dificuldade na tradução de uma palavra hebraica por uma só palavra que dê o sentido exato em nosso vernáculo. A classificação das palavras hebraicas em grupos, de acordo com o seu sentido geral, facilita a explicação da natureza das várias formas do pecado. I. Há um grupo de palavras que descrevem o pecado como sendo o desvio do caminho reto. O verbo Chatā’āh - hf)+ f Ax, com os três substantivos da mesma raiz, é o termo mais conhecido deste grupo, e tem o sentido radical de errar o alvo. Entre os guerreiros de Benjamin havia homens que podiam “dar tiros de funda num cabelo sem errar” (Jz 20.16). Assim a palavra se usa no sentido de perder uma coisa de valor, ou falhar na responsabilidade de alcançar um alvo importante. Quem perder (pecar contra) a sabedoria, faz violência a si mesmo (Pv 8.36). O verbo é usado mais de 200 vezes, e as formas do substantivo, 198 vezes no Velho Testamento. 108A palavra hebraica corresponde, até na etimologia, à palavra grega, hamartía (a(marti/a). Chega a ser usada para designar qualquer forma de pecado. Designa freqüentemente o mal praticado contra o próximo (2 Sm 19.20; 1 Rs 8.31); o pecado contra o concerto (Êx 32.30-33); e pode designar a blasfêmia, como em Jó 1.22. Em Jó 1.5, a palavra refere-se ao pecado íntimo, nos pensamentos do coração. “Talvez que meus filhos tenham pecado, e renunciado a Deus nos seus corações”. Encontra-se a palavra em paralelismos, como sinônima de incredulidade (Sl 78.32), e de rebelião contra Deus (Is 43.27,28). A palavra ‘avon (}owf(), iniqüidade, culpa, deriva-se da raiz ‘ava, que também significa errar o caminho. O termo é usado no sentido de torcer, perverter, desviar, ficar culpado de perversidade. Sempre indica a natureza perversa do homem. Tem o sentido também de castigo de iniqüidade. Usada 231 vezes, 109 a palavra sempre designa pecado de má intenção. “Ai da nação pecaminosa (hole’), povo carregado de iniqüidade!” Muitas vezes a palavra significa culpa, ou da iniqüidade cometida, ou da natureza perversa que pratica a iniqüidade. Na acusação de Jó, Elifaz declara: “A tua iniqüidade ensina a tua boca” (15.5). O profeta Jeremias declara que os homens de Judá haviam tornado às iniqüidades dos pais, servindo a outros deuses e violando o concerto que o Senhor fizera com os seus pais (11.10). A palavra ‘avon é usada em alguns paralelismos como sinônima de Chatā’āh Is 5.18). “Certamente me deste trabalho com os teus pecados, E me cansaste com as tuas iniqüidades” (Is 43.24). Os verbos shagag e shaga significam errar, extraviar-se, desencaminhar-se, vaguear, pecar. Estes verbos designam pecados cometidos por ignorância, ou por falta de cuidado, contra a lei cerimonial (Lv 4.2,22,27). “Se alguém pecar (hata') por ignorância (shaga'), oferecerá uma cabra dum ano como oferta pelo pecado” (Nm 15.27). Os verbos sur e sug significam virar, desviar, afastar, abandonar, apostar, revoltar. O substantivo sara significa deserção, apostasia. “Depressa se desviaram do caminho (sur), por onde seus pais andaram em obediência aos mandamentos do Senhor” (Jz 2.17). Os verbos natash e azab também significam abandonar. “Abandonou a Deus, que o fez, e tratou com desprezo à Rocha da sua salvação” (Dt 32.15). “Deixaram (azab) o concerto do Senhor. Deus de seus pais, o qual fez com eles, quando os tirou da terra do Egito” (Dt 29.25). Muitas palavras descrevem, de uma ou de outra maneira, o pecado do povo de Israel na violação do concerto do Sinai. Outro verbo hebraico que significa desviar do caminho, praticar a injustiça e perversidade, é ‘avel. Os substantivos são ‘vel e ‘avelah. “Pois as vossas mãos estão contaminadas de sangue, E os vossos dedos de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua pronuncia perversidade” (Is 59.3). O verbo hebraico ta’ah também significa vagar, andar à toa, extraviar-se, caminhar a esmo. “Todos nós, como ovelhas, temos andado desgarrados” (Is 53.6). “Tenho andado errante qual ovelha perdida; busca o teu servo, pois não me esqueço dos teus mandamentos” (Sl 119.176). II. Há outro grupo de palavras que indicam a mudança no estado moral ou religioso do homem. O verbo rasha’ significa ser provado ímpio, culpado, pecaminoso. Descreve o caráter formado pela prática do pecado. “Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios”. (Sl 1.1). “Ai do ímpio! mal lhe irá, porque a recompensa das suas mãos se lhe dará” (Is 108 109

Ludwig Koehler, Op. cit., p. 169. Ludwig Koehler, Op. Cit., p. 169.

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3.11). A palavra é muito usada,110 e freqüentemente como sinônima de palavras que significam enganar, defraudar, trair, como bagad, defraudar. O profeta Jeremias pergunta: “Por que prospera o caminho dos ímpios? Por que vivem em paz todos os que procedem aleivosamente?” (Jr 12.1). A palavra ’āsham - {f$f) (Lv 5.5-8; Jz 21.22; Sl 34.21-23; Os 10.2; 13.1; Is 24.6; Jl 1.18) significa culpa de pecado cometido por ignorância contra a lei cerimonial. O sentido principal da palavra ’āsham parece ser o de culpa. Todavia, o sentido varia desde a ação que traz culpa até a condição de culpa e, ainda, até o ato de punição. O culpado do pecado contra a lei cerimonial podia receber expiação, apresentando, segundo a lei, a oferta pela culpa, ‘asham (Lv 5.6). A culpa cerimonial era facilmente removida; mas a culpa do ímpio podia ser removida somente pela mudança da sua natureza pecaminosa. Todos os pecados trazem ao pecador o sentido de culpa, até que ele fique endurecido, inimigo de Deus e da justiça. “Ó Deus, tu conheces a minha estultícia. E as minhas culpas não te são ocultas” (Sl 69.5). ’ashemah - hfm:$a) (Lv 4.3; 22.16). Pecado, culpa, iniqüidade, ações pecaminosas, culpabilidade. Shegāgâh - hfgfg:$ Pecado (Lv 4.13; Nm 15.24). Shāgag - gaGf$. Desviar-se, desviar. III. O pecado no sentido mais profundo da palavra é representado pelo verbo pasha’ e o substantivo Pesha’ - (a$eP (Pv 28.13). Quer dizer rebelião ativa, uma transgressão da vontade de Deus. O verbo pasha’ significa rebelar-se ou revoltar-se. “Israel se rebelou contra a casa de Davi” (I Reis 12:19). O povo do concerto, os filhos do Senhor se rebelaram contra ele (Is 1.2). Não é usada tão freqüentemente como várias outras palavras, mas descreve mais perfeitamente a natureza do pecado e do pecador. “Põe a trombeta à tua boca, Pais uma águia está sobre a casa do Senhor; Porque violaram o meu concerto, e se rebelaram contra a minha lei” (Oséias 8.1). As palavras transgredir e transgressão não traduzem adequadamente as palavras hebraicas (Amós 3.14; Mq 1.5; Êx 34.7; Ez 21.29; Sl 32.5; Dn 9.24). Esta palavra, pasha’, mostra que o pecado, na sua essência, é mais do que a violação de mandamentos e proibições. Em última análise, o pecado é revolta da vontade do homem contra a vontade de Deus. ‘ābar - raBfa(i (Êx 38.26; Dt 2.14; Jó 13.13) transgredir. IV. Há também um grupo de palavras hebraicas que descrevem a perversidade da natureza humana. As palavras ra’ e roa’ significam malvadez, vileza, miséria. “Tirai de diante dos meus olhos a maldade das vossas ações; cessai de fazer o mal” (Is 1.16). A palavra hamas significa várias formas de violência. “Pois os ricos da cidade estão cheios de violência” (Mq 6.12). A palavra que descreve o povo obstinado, de cerviz dura, é qasheh (Êx 32.9; 33.3,5; Dt 9.6,13). Diz Ezequiel: “Pois toda a casa de Israel é de fronte obstinada, hizque; e de coração duro, peshe-lev” (3.7). Os sinônimos hebraicos, rum, gabal, halal, descrevem a soberba, a arrogância, o orgulho e a altivez do homem. “Visitarei sobre o rei da Assíria o fruto da arrogância (godel) do seu coração, e a pompa da altivez (rum) dos seus olhos” (Is 10.12). “A soberba (ga’on) precede a destruição, e o espírito altivo (gobah) a queda” (Pv 16.18). “Pois tinha inveja dos arrogantes (holelim), vendo a prosperidade dos perversos (reshaim)” (Sl 73.3). São apenas representativas as palavras apresentadas nesta discussão, mas mostram a natureza do pecado como a rebelião do pecador contra a vontade e a justiça de Deus. O profeta Isaías usa duas das palavras no sentido de incluir todas as qualidades do pecado. “Mas as vossas iniqüidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, de sorte que não vos ouça” (59.2). Há numerosas expressões em Levítico 26.14-40 que descrevem a desobediência aos mandamentos do Senhor: “não me ouvirdes” (v. 14); “rejeitardes os meus estatutos” (v. 15); 110

Ludwig Koehler, op. Cit., p. 171. A palavra é mencionada 261 vezes. É traduzida na Septuaginta por irreligioso, perverso, transgressor.

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“aborrecer os meus juízos” (v. 15); “via leis o meu concerto” (v. 15); “andardes em oposição a mim” (v. 21); “não quiserdes ouvir” (v. 21); “andardes contrariamente comigo” (v. 23). Estas expressões, e muitas outras, semelhantes, se encontram em toda parte do Velho Testamento. Pecado Social Do ponto de vista dos escritores bíblicos, o pecado entre o povo escolhido é essencialmente a infidelidade dos homens de Israel no cumprimento das suas responsabilidades perante Deus, de acordo com o concerto entre Deus e o povo da sua escolha. Estas responsabilidades incluem a prática de justiça e retidão entre os homens. Uma injustiça praticada contra o vizinho é também pecado contra Deus. A violação do casamento é pecado (Gn 39.9). A violação do contrato com o jornaleiro é pecado (Dt 24.15). São pecaminosos todos os atos que prejudicam os interesses de Israel (2 Reis 18.14). Quem deixa de cumprir a promessa feita a outro homem comete pecado (Gn 43.10). É pecado ajudar o ímpio na sua contenda com um homem justo, perante o tribunal (Êx 23.7; Pv 17.15; Is 5.23). Assim a responsabilidade social do homem recebe ênfase em toda parte do Velho Testamento. As atividades dos pecadores operam contra as forças dos homens justos que representam o reino de Deus, no sustento positivo da sociedade. Nos ensinos proféticos, o pecado da injustiça social centralizou-se cada vez mais na desobediência e na rebelião contra Deus. Os profetas denunciaram os males sociais porque são pecados contra Deus. A sociedade de Israel ficou entranhavelmente unida em virtude da sua redenção, da sua escolha como o povo peculiar de Deus, da sua união com Deus pelo concerto que lhe proporcionava o amor imutável do Senhor no cumprimento da sua missão no mundo. O desenvolvimento das instituições sociais e políticas apresentou novos problemas. A mudança da sociedade patriarcal, e o governo tribal para um governo nacional criou problemas econômicos, éticos e religiosos de vasta importância. Surgiu o conflito entre o desejo de seguir a orientação divina revelada aos profetas, e as ambições políticas e nacionais, nos períodos críticos da história. O fato importante nesta luta, especialmente para o estudante bíblico, é que Israel nunca podia esquecer por completo a finalidade da sua escolha divina e da sua missão espiritual. 111 A prática da justiça entre os homens é a vontade de Deus. Os direitos e os privilégios do homem lhe pertencem em virtude da vontade divina, e a negação destes direitos é ofensa contra Deus. Os profetas não se apresentaram como pregadores de ética, mas os seus princípios éticos são corolários do seu conceito de Deus. Os profetas condenaram os pecados sociais porque eram ofensas contra Deus, e contra o bemestar do povo escolhido (Mq 6.8). A justiça é justiça porque é o querer de Deus. A justiça é a vontade de Deus porque se harmoniza perfeitamente com o seu grande e santo caráter”. 112 Como a violação da justiça, o pecado é igualmente a maldição do pecador. “Arrependei-vos, e desviai-vos de todas as vossas rebeliões, para que a iniqüidade não seja a vossa ruína” (Ez 18.30). “A malícia matará o ímpio; e os que odeiam o justo serão condenados” (Sl 34.21). “Aquele que semeia a perversidade colherá a calamidade” (Pv 22.8). A impureza e a perversidade do espírito é uma maldição que gradualmente destrói a personalidade. Ficando isolado de Deus pelo pecado, o pecador perde a esperança de realizar o propósito de Deus na sua vida. “Não me lances fora da tua presença, e não tomes de mim o teu Espírito Santo” (Sl 51.11). “Mas as vossas iniqüidades fazem separação entre vós e o vosso Deus” (Is 59.2). O Velho Testamento ensina igualmente que o pecado da coletividade traz sobre ela a maldição. Os profetas não acreditavam no provérbio que diz: “A força determina o que é justo”. Não julgavam que o pequeno Israel tinha que ser inevitavelmente engolido pelas grandes nações em redor. A 111

Otto J. Baab., op. cit., p. 92: “A convicção do seu destino divino tinha uma vasta significação social na história de Israel. Contribuiu para o modo nacional de reagir contra as influências sociais de seus vizinhos; forneceu-lhe a crítica para as mudanças sociais; e estabeleceu uma homogeneidade e uma percepção da parte do grupo que tinha valor maravilhoso para a sobrevivência de Israel. Neste processo, o conceito e o efeito do pecado social tinha uma influência extraordinária.” 112 H. H. Rowley, The Relevance of the Bible, p. 149.

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beneficência amorável do Senhor na fundação de Israel de um grupo de escravos, que ele mesmo tinha libertado, ficou eternamente gravada na memória nacional. Não obstante o poder invencível do poderoso exército de Senaqueribe, o profeta Isaías confiava serenamente no poder do Senhor de operar o livramento e a salvação de Jerusalém, para a glória futura do seu reino no mundo. Os profetas nunca acreditavam que o mero poder militar dos inimigos pudesse destruir o pequeno povo de Deus. Vendo, porém, a iniqüidade entre o seu povo, e a infidelidade no cumprimento das promessas que solenemente fizeram ao Senhor, os profetas ficaram persuadidos de que Judá, bem como Israel, tinham que ceifar as conseqüências dos seus pecados. “Porque semearam ventos; e segarão o turbilhão” (Os 8.7). Os ricos e poderosos cometiam pecados graves contra a sociedade. Subornavam juizes para ajudá-los no roubo às vitimas nas contendas perante os tribunais (Am 5.7,12; Mq 7.3,4). Praticavam a violência para encher os seus palácios de riqueza (Am 3.10; Mq 2.1,2). Açambarcavam o trigo no período da ceifa, e, quando escasseava, vendiam-no misturado com refugo, por preços exorbitantes, usando balanças falsas (Am 8.5). Pisavam os necessitados, quebravam os pobres e os reduziam à escravidão (Am 8.6; Mq 3.1-3). A avareza dos compradores de casas e campos teve um efeito desastroso no aumento das riquezas dos ricos e na pobreza dos pobres (Is 5.8). Os profetas condenaram todas as qualidades de pecados que aceleraram a deterioração espiritual do povo, e apressaram a sua queda nas mãos dos inimigos: a sensualidade (Is 3.16-23; Am 4.1); a embriaguez (Is 5.11,22,23); a perversidade (Am 5.21-24; Os 9.7); a arrogância (Am 6.8; Mq. 1.5-9); a hipocrisia (Am 5.21-24); a infidelidade (Os 7.13-16); a crueldade (Os 4:2; Mq 3.10). Os profetas denunciaram vigorosamente as intrigas políticas dos reis, juntamente com os seus conselheiros políticos. Ao invés de confiar na orientação divina que o Senhor lhes oferecia, por intermédio dos profetas, os reis de Israel e Judá fizeram alianças com reis de outras terras, e, quando acharam conveniente, violaram o seu juramento. “Quando Efraim viu a sua enfermidade, E Judá a sua ferida, recorreu Efraim à Assíria, e enviou ao grande rei” (Oséias 5.13). No reino de Israel havia facções políticas e intrigas com os reis da Assíria e do Egito que tiveram resultados calamitosos. Oséias, o rei, trouxe a ruína final sobre o reino de Israel e o seu povo, pela violação da aliança com a Assíria. As facções políticas em Judá fizeram intriga com os reis da Babilônia e do Egito, desprezando e perseguindo o mensageiro do Senhor, o profeta Jeremias. O rei Zedequias, contra o conselho de Jeremias, fez aliança com o Egito e se revoltou contra Nabucodonozor, rei da Babilônia, e assim precipitou a destruição de Jerusalém e o fim político de Judá. A Origem do Pecado Teólogos modernos do Velho Testamento dizem pouco, ou nada, sobre a origem do pecado, ou a queda do homem. Dizem que o Antigo Testamento não tem nenhuma doutrina da queda do homem. 113 Segundo o apóstolo Paulo, o pecado teve origem na transgressão de Adão. É verdade que Paulo dá uma interpretação do significado do pecado de Adão que não se encontra no Velho Testamento senão por implicação. 114 É muito provável que as idéias distintivas de Paulo, tão largamente aceitas pelo

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Millar Burrows, An Outline of Biblical Theology, p. 168: “O Velho Testamento não apresenta urna doutrina da queda do homem. O pecado, corno desobediência, simplesmente começou quando o primeiro homem e mulher desobederam a Deus. No capítulo 3 de Gênesis, a origem do pecado não é mais acentuada do que qualquer outro dos elementos etiológicos na história. Outrossim, esta história não entra na discussão do pecado em qualquer outra parte do Velho Testamento. A identificação da serpente com Satanás tem causado mal-entendidos. O fato é que a idéia de Satanás apresenta-se muito mais tarde. Todavia, a origem psicológica do pecado apresenta-se habilmente na forma da história”. 114 A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament. p. 217: “Mas o ensino do Velho Testamento com respeito ao pecado não difere do Novo Testamento. Ensina, primeiro, que todos os homens são pecadores. Segundo, a natureza pecaminosa de cada indivíduo não é uma coisa isolada, mas é um exemplo do fato geral de que a humanidade é pecaminosa. E, terceiro, o pecado do homem pode ser removido somente pelo perdão do Senhor. .... É claro que grandes números podem ser considerados juntos, formando de vários modos uma unidade, ou segundo a ação do grupo, ou segundo o modo divino de tratar com o grupo”.

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cristianismo, tenham sido geralmente aceitas pelos judeus da sua época, e tendo sido consideradas harmoniosas com os ensinos das Escrituras Sagradas. Koehler e Burrows dão ênfase ao propósito etiológico na história do pecado de Adão e Eva. Dizem que o autor explica por que a serpente anda de rastos sobre o ventre e come pó; por que há inimizade entre a serpente e o homem; porque a mulher sofre em dar à luz, e que o seu desejo é para o marido; por que o homem tem que comer pão no suor do seu rosto; por que usa roupa e por que foi expulso do Jardim do Éden. 115 Mas a narrativa mostra antes que o propósito do escritor é o de explicar a natureza da tentação, do pecado e das suas conseqüências. O homem criado para seguir a orientação de Deus tem a tendência inveterada de ceder à tentação de seguir o seu próprio caminho, e o resultado da rebelião contra o propósito do Senhor é vergonha e sofrimento. Por causa da solidariedade da natureza humana, o mal do pecador pode envolver gerações subseqüentes, como se vê logo na história do pecado de Caim e Lameque. Seja qual for a influência literária da mitologia antiga nesta história da queda do homem, o escritor revela profundo conhecimento psicológico da natureza da tentação e do pecado. É verdade, como dizem os críticos históricos, que a doutrina de Satanás não se achava desenvolvida quando esta história foi escrita. Mas a serpente se apresenta na narrativa como tendo o mesmo caráter, a mesma astúcia e a mesma influência maliciosa de Satanás, o inimigo do homem e de Deus. A serpente apresenta a mais poderosa tentação possível, no esforço de corromper o casal e conseguir a sua queda. “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?” Assim a pergunta é dirigida ao egoísmo, à importância própria do casal. Com astuta insinuação, o tentador põe ênfase na única limitação que Deus lhes impusera. A resposta da mulher mostra que a sugestão do tentador pegara, porque desconfia logo da bondade do Senhor, um elemento de todas as tentações. “Do fruto das árvores do jardim podemos comer; mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, e nem nele tocareis, para que não morrais”. Aproveitando-se desta vantagem, o tentador contradiz a veracidade do Senhor e nega as conseqüências do pecado: “Certamente não morrereis”. No versículo 5, a serpente acusa ao Senhor de restrições arbitrárias, e até de engano, no seu modo de travar relações com o casal. Seduzi da pela conversa agradável do tentador, a mulher viu que a árvore “era boa” para se comer”, apelo ao sentido físico; “agradável aos olhos”, apelo estético; e “desejável para dar entendimento”, apelo ao desejo de adquirir novos conhecimentos. Onde se pode achar um exemplo mais perfeito, do ponto de vista psicológico, da tentação e da queda de qualquer homem, ou de qualquer mulher no laço de Satanás? Embora não seja desenvolvida no Velho Testamento a mesma interpretação das conseqüências da queda de Adão que se encontra nos ensinos do apóstolo Paulo, os escritores do Antigo Testamento discutem freqüentemente as causas do pecado e os motivos dos pecadores. Oséias, Amós, Miquéias e Isaías dão ênfase ao egoísmo como o motivo principal do pecador. Este egoísmo pode tomar a forma de orgulho, arrogância, avareza ou a ambição de ficar rico e poderoso. O profeta Oséias dá ênfase especial à falta, por parte do pecador, de conhecimento de Deus, da sua bondade e do seu amor imutável. Jeremias fala (repetidas vezes do coração perverso. Satanás apresenta-se como instigador do pecado em 1 Crônicas 21.1, e desde então a teologia rabínica dá ênfase aos impulsos pecaminosos que o tentador desperta quase como quiser. Apresenta-se em vários escritos do Velho Testamento o ensino explícito da universalidade do pecado. “Pois não há homem que não peque” (1 Reis 8.46). “Certamente não há homem justo sobre a terra, que faça o bem e que nunca peque” (Ec 7.20). “Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, Limpo estou do meu pecado?” (Pv 20.9). O Velho Testamento não ensina a depravação total do homem, no sentido de que a natureza humana é tão corrompida que nenhuma pessoa pode fazer, ou pode desejar fazer o que é justo, sem o socorro da graça remidora de Deus. O Velho Testamento não diz nada sobre a transmissão da culpa do pecado original à humanidade inteira, mas os escritores falam claramente da natureza perversa do homem, e da sua inclinação para o mal. Mas, apesar da sua natureza pecaminosa, o homem retém a liberdade e a 115

Ludwig Koehler, op. cit., p. 175, Millar Burrows, op. cit., p. 168.

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responsabilidade de escolher o bem, ao invés do mal. Também o pecado não tinha destruído a imagem divina no homem, nem a possibilidade da sua restauração (Gn 9.6). A carne, por si mesma, não é pecaminosa, segundo o Antigo Testamento. Impulsos e desejos, maus e bons, são características da personalidade que representa o espírito e a carne (corpo) do homem. É na personalidade, no caráter do homem que nascem as tentações. A desconfiança de Deus foi lançada no pensamento, no espírito da mulher pelo tentador, e ela então desejava satisfazer aos desejos físicos, estéticos e intelectuais novamente despertados. Estes desejos, como tais, não são pecados. São legítimos, e podem ser satisfeitos legitimamente, de acordo com a vontade de Deus. Mas o primeiro casal, com motivos egoísticos, desafiou a vontade de Deus no esforço de. proceder sem Deus e contra a vontade dele. A tentação do primeiro casal não foi essencialmente diferente da de qualquer outra pessoa. Não há qualquer indicação de que o ato de comer o fruto proibido abriu os olhos do casal à sua natureza sexual e às suas possibilidades. É ensino geral do Velho Testamento que o sexo, com as suas funções na produção de filhos, é uma bênção recebida do Senhor e Criador. A promessa divina de um filho, ou de numerosos filhos e descendentes, é sempre considerada como motivo de profunda gratidão a Deus. A perversão sexual, representada pelo baalismo e outras religiões da época, foi severamente condenada pelos mensageiros religiosos de Israel, e os israelitas mantiveram-se relativamente puros. Mas alguns foram seduzidos pelos vizinhos que praticavam a imoralidade nas cerimônias religiosas e na adoração dos deuses que lhes davam exemplos de grosseira imoralidade. O Velho Testamento reconhece as maravilhosas potencialidades, para o bem ou para o mal, do homem criado à imagem de Deus. A sua natureza é complicada e pecaminosa. Parece que o pecado, em todas as suas formas, tem a sua origem no egoísmo. “Assim diz o Senhor: não se glorie o sábio na sua sabedoria, Nem se glorie o forte na sua força, nem se glorie o rico nas suas riquezas; mas se alguém quiser se gloriar, glorie-se nisto: Que ele entende e me conhece, que eu sou o Senhor que pratica bondade, Justiça e retidão na terra; pois nestas coisas me deleito, diz o Senhor” (Jr 9.23,24). Todas as formas de pecado, segundo o Velho Testamento, são cometidas contra Deus. Qualquer falta de conformidade à Vontade de Deus é pecado. É justamente isto o significado do verbo hebraico hata’. O alvo divino para o homem é o de viver em feliz comunhão com Deus, e, quando ele desobedece à vontade do Senhor, perde o alvo preceituado para Ele. O homem recebe todos os seus direitos e todos os seus privilégios de Deus. Portanto, quem nega ao homem qualquer de seus direitos, peca não somente contra aquela pessoa, mas peca também contra Deus. Qualquer injustiça praticada entre homens é pecado contra Deus. Quando Davi confessou o seu pecado de adultério com BateSeba, ele não disse: “Eu pequei contra Bate-Seba e contra Urias”. Mas declara ao profeta Natã: “Pequei contra o Senhor”. Assim também no salmo tradicionalmente associado com este incidente, o salmista confessa: “Contra ti, contra ti somente pequei e fiz o que é mau diante dos teus olhos” (Sl 51.4). Conseqüências do Pecado A justiça e a retidão são princípios inerentes no caráter de Deus, e qualquer violação de tais princípios é ipso facto rebelião contra Deus. Assim os profetas denunciaram também todas as formas de injustiças praticadas contra a humanidade, como, a iniqüidade cometida contra o Senhor. “'Aqueles que pisam a cabeça dos pobres no pó da terra, E fazem desviar o caminho dos mansos; O homem e seu pai entram à mesma moça, De sorte que profanam o meu santo nome. Sobre roupas recebidas em penhor Deitam-se ao lado de qualquer altar; E bebem o vinho dos que têm sido multados Na casa de seu Deus” (Am 2.7,8). O profeta Amós reconheceu que a idolatria estava trazendo a morte espiritual ao povo de Israel, e foi inspirado a dizer-lhe: “Pois assim diz o Senhor à casa de Israel: Buscai-me, e vivei; Não busqueis a Betel, Nem venhais a Gilgal, Nem passeis a Berseba” (Am 5.4,5). 98


Dos israelitas que ficaram encantados com os deuses falsos, e vergonhosamente se consagraram aos baals, diz Oséias, “tornaram-se abomináveis como aquilo que amaram” (9.10). A história demonstra que a religião tem a influência na vida de qualquer povo de acordo com o caráter do deus que adora. Jeremias ficou profundamente impressionado com o fato de que os israelitas pudessem apostatar do Senhor Deus, o verdadeiro Deus, para ir atrás dos baals, que não eram deuses. “Pois dois males fez o meu povo: Deixaram-me a mim, a fonte de águas vivas, Para cavarem para si cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas” (2.13). O pecado do homem é mais do que ofensa contra Deus, o seu Criador e a fonte de todas as suas bênçãos; envolve a sua própria maldição. “Arrependei-vos, e desviai-'vos de todas as vossas transgressões, para que a iniqüidade não vos seja a vossa ruína” (Ez 18.30). Os salmistas referem-se freqüentemente às conseqüências do pecado na vida do transgressor. “A sua malvadez torna a cair sobre a sua cabeça, e sobre a sua fronte recai a sua própria violência” (7.16). “A malícia mata o ímpio, e os que odeiam o justo, são condenados” (34.21). “Aquele que semeia a injustiça ceifará a calamidade” (Pv 22.8). A maldição do pecado é o engano, a culpa, a vergonha e a depravação do pecador (Os 8.7; Dt 28.15). É a impureza do pecador que faz separação entre ele e Deus (Sl 51.2; Is 59.2). Os profetas ensinaram também que o pecado da comunidade, ou da nação, traz a calamidade sobre os transgressores. 11610 Os profetas condenaram severamente as intrigas e as alianças políticas dos reis que provocaram as calamidades de Israel. e Judá. A linguagem bíblica de passagens como I Crônicas 5:26; 11 Reis 24:2-4 e 11 Crônicas 12:1, 2 não deve ser entendida no sentido de que Deus arbitrariamente levantou inimigos para castigar o povo da sua escolha. Deus criou o universo, que representa, na operação das suas leis, os princípios da justiça, porque ele mesmo é o Justo. Não podemos entender todos os mistérios das atividades divinas nas leis da natureza, mas sabemos que o bem e o mal não podem produzir os mesmos efeitos. Sabemos também que a pessoa que se dirige a si mesma de acordo com a vontade revelada de Deus está preparada para enfrentar as obrigações e as responsabilidades da vida. Sabemos também que não é o desejo de Deus que o desastre caia sobre o pecador. “Tenho eu qualquer prazer na morte do ímpio? diz o Senhor Deus. Não desejo antes que se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez 18.23). Para o bem-estar da humanidade, é inerente na natureza do mundo criado por Deus que o salário do pecado seja a morte. Mas é muito difícil para o homem aprender esta verdade. Aprendeu bem cedo que o fogo queima, e tem o bom senso de não colocar a mão no fogo. Não é o desejo de Deus que o fogo queime o corpo do homem, nem que a comida venenosa o mate. Semelhantemente, Deus não deseja que o pecado destrua a pessoa ou a nação. É a rebelião do pecador contra a vontade do Senhor que traz a destruição. Influências do Pecado É discutido mais amplamente em outro lugar o problema do sofrimento. Mas importa discutir aqui, embora ligeiramente, influências do pecado na vida do transgressor, como também na vida de outros. Foi indicada a natureza desta influência na discussão dos característicos e das conseqüências do pecado, mas o Velho Testamento tem muito a dizer sobre o escopo da influência dos pecados do homem ou da comunidade. Os israelitas entenderam tão claramente como nós que muito da miséria e do sofrimento humano é o resultado direto ou indireto do pecado. Segundo a teologia dos seus amigos, o sofrimento de Jó foi o castigo divino, em retribuição aos seus pecados. No caso dele, a teoria foi refutada,

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H. H. Rowley, The Relevance of the Bible, p. 152: “Deus não e excluído do mundo que ele fez. A sua atividade na história concorda perfeitamente com os princípios do seu caráter, e também com os princípios básicos da sua criação do nosso mundo. Quando o desastre cai sobre uma nação pecaminosa, não é porque Deus arbitrariamente decidiu contra ela, mas porque foi inerente na própria natureza do pecado daquela nação, a cegueira que a levou à ruína”.

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todavia, não foi negado, mas antes acentuado o f.ato de que o sofrimento é inerente na natureza do pecado. Para citar apenas um dos numerosos exemplos da influência do pecado, o crime de Davi lhe trouxe a vergonha, o sofrimento. e o declínio do seu prestígio e. da sua influência benéfica. Resultou também na desmoralização da sua família. Jeroboão é condenado repetidas vezes, não somente por causa da sua responsabilidade na divisão do reino, mas pelo tato de que o seu pecado tinha conseqüências, desastrosas na história dó povo. Muitos dos reis de Judá e de Israel foram condenados severamente porque desviaram o seu povo, e assim trouxeram sobre ele a angústia, a guerra, o sofrimento, e finalmente a ruína nacional. O homem que enfraquece o seu corpo com doenças pela prática do pecado pode transmitir aos filhos que hão de nascer as conseqüências maliciosas da sua perversidade. O homem, pela improvidência ou pelo crime, pode trazer sobre a família a pobreza e a vergonha. A injustiça, nas suas muitas formas, é a causa principal do sofrimento humano. 117

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H. H. Rowley, The Relevance of the Bible, p. 156: “Todas as denúncias proféticas da opressão impiedosa dos pobres pelos ricos, da perversão da justiça e da escravização dos pobres mostram que o pecado de um só homem, ou de uma só classe, pode trazer sofrimento a muitos outros. E este ensino dos profetas não pode ser negado. Somos tão unidos, uns com os outros, que somos inevitavelmente envolvidos nos atos de outros”.

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CAPITULO VIII O PROBLEMA DO MAL A existência do mal no mundo é o problema mais sério para todas as pessoas que crêem em Deus. As experiências com Deus, apesar das experiências do mal, constituíram a base da fé religiosa do povo de Israel e da sua certeza da existência e da bondade do Senhor. Para o ateísta que não crê na existência de Deus, o sofrimento e a crueldade não têm propósito nem significação. Mas, com o crescimento da fé religiosa, este problema geralmente se torna mais agudo. É tão antigo como a raça humana. Toma muitas formas na perturbação do homem, e tem· lugar central nas mitologias, nos sistemas filosóficos, nas teologias e nas ideologias modernas. No Velho Testamento o problema do mal é representado por vários pontos de vista através da longa história de Israel, e sempre relacionado com a doutrina do pecado. O Pecado, a Culpa e a Punição No Velho Testamento o pecado sempre acarreta o reconhecimento da culpa e a justiça da punição do pecador. A culpa significa que o pecado cometido merece censura e punição, mas nem sempre corresponde com a convicção do pecador. Ele pode ficar cônscio do pecado praticado, sem qualquer sentido de culpa e sem reconhecer que o seu ato merece censura e punição. Aparentemente, Davi não reconheceu a gravidade do seu crime, nem experimentou a convicção de culpa, até que o profeta Natã lhe contou a parábola ingênua que lhe revelou a horrível injustiça que tinha praticado. O castigo do pecador, administrado somente como retribuição, segundo William Temple, “é sempre amoral ou imoral”.118 Mas não há certeza de que esta opinião concorde inteiramente com a dos escritores da Velha Testamento, que entenderam a santidade e a justiça de Deus. É convicção antiga, profunda e aparentemente universal, que a bem e a mal não devem receber a mesma consideração, e não podem ser tratadas da mesma maneira. A consciência humana se revolta contra a idéia de tratar igualmente o malvado e a bondoso. Para desprezar a diferença entre o bem e o mal, e considerar o malvado como se fosse bom, apagaria par completa a conceito moral do universo. Que o pecado merece castigo é o senso comum dos homens de todas as raças, e concorda com o ponto de vista representado no Velho Testamento. A palavra hebraica ‘avon significa iniqüidade (Sl 90.8), ou culpa (Gn 15.16). As palavras ‘hata e pesha são usadas também nos dois sentidos, de culpa e castigo (Mq 6.7 e Jr 17.1; Am 1.3 e Jó 34.6). São relacionados, em todas as Escrituras, estes termos pecado, culpa e punição. É digno de nota que os escritores do Velho Testamento, especialmente no período primitivo da sua história, mostraram-se relativamente indiferentes ao problema da sofrimento quanta à influência sabre a fé na bondade de Deus. Isto foi devido, em parte, à profunda gratidão ao Senhor, que tão bondosamente as tinha libertada da miséria da seu sofrimento na Egito. Deve ser reiterada o fato de que a religião de Israel, pela estabelecimento do concerto com Iavé no Sinai, rompeu com as religiões cujos deuses eram caprichosos e podiam castigar arbitrariamente o seu povo, sem qualquer justificação fora da sua própria ira passageira, ou a sua ambição pessoal de aumentar a seu poder e a sua autoridade sabre os seus rivais. Não reconheciam, nem seguiam, qualquer norma da justiça. O Senhor Iavé apresentou-se aos israelitas como o verdadeiro Deus, justo e misericordioso em todas as suas atividades e relações. Ele é a Deus de Israel, e Israel é a seu povo escolhido. Havendo experimentado o poder e a bondade do Senhor na sua própria salvação, Israel teve base mais firme para a confiança perfeita na bondade da Senhor, mesma quando não pudesse entender algumas das suas atividades. O Senhor havia libertado Israel como comunidade ou como grupo. Na relação tão íntima entre Deus e o seu povo, Israel sentiu-se diretamente responsável por qualquer sofrimento que lhe sobreviesse. Par exemplo, o escritor de Juízes declara repetidas vezes que Deus levantou inimigos 118

William Temple, The Faith and Modern Thought p. 140.

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para castigar os israelitas por causa das suas apostasias. Deus também levantou heróis entre a seu povo para o libertar do poder do inimigo. Tudo isto concorda perfeitamente com a psicologia do povo. Portanto, não houve, até séculos depois, o problema teológico e filosófico do sofrimento, porque o povo recebeu os males que lhe caíram, como a punição dos seus pecados, apesar dos mistérios que não pudesse entender. Assim, quando estudamos a problema do sofrimento no Antigo Testamento, temos que reconhecer que é sempre relacionado com as doutrinas básicas da teologia. Como foi observado e discutido no capítulo cinco desta obra, o conceito da santidade e da justiça do Senhor recebeu o seu maior desenvolvimento pelos profetas do século oitavo antes de Cristo. Assim o entendimento mais claro da justiça de Deus modificou e, em certo sentido, complicou o problema do sofrimento do justo. Mais tarde os profetas Jeremias e Ezequiel, enfrentando a dissolução de Israel como comunidade política, acentuaram e desenvolveram a doutrina da responsabilidade pessoal perante o Senhor. Este ensino também modificou em parte a interpretação do problema do sofrimento. Foi neste período que o grande profeta do exílio desenvolveu a doutrina do sofrimento vicário. Assim o problema do sofrimento é considerado de vários pontos de vista no Velho Testamento. Embora seja difícil fixar precisamente o período de cada uma destas teorias, podemos reconhecer, em geral, as condições sociais e políticos que acentuaram cada uma delas. Evidentemente novas explicações complementaram e não substituíram as teorias prevalecentes de cada época. Todavia, é bem claro, em toda parte do Velho Testamento, que Israel nunca abandonou a firme convicção de que o pecado merece punição, e que o seu sofrimento, em todas os períodos da história, foi devido principalmente, senão exclusivamente, ao seu pecado de rebelião contra a orientação revelada do seu Senhor. O Ponto de Vista Sacerdotal do Sofrimento Segundo a literatura sacerdotal, principalmente Levítico, Números e Crônicas, todo o sofrimento, incluindo os males físicos, cai sobre o homem por causa dos seus pecados. É possível que esta posição extremista fosse influenciada pelos cananeus e fenícios no período primitivo da história de Israel, mas é a tendência de qualquer sistema sacerdotal. Depois de descrever, no capítulo 26 de Levítico, as maravilhosas bênçãos da prosperidade que o povo receberá, sob condição de obedecer à lei, o escritor enumera os males que o Senhor trará sabre ele, se ouvir, rejeitar e não cumprir todas os seus mandamentos. “Eu também vos farei isto: porei sobre vós o terror súbito, a tísica e a febre ardente que consumirão os olhos e farão definhar a vida; e semeareis debalde a vossa semente, pais os vossos inimigos a comerão. Porei o meu rosto contra vós, e sereis feridos diante dos vossos inimigos; os que vos odeiam dominarão sabre vós, e fugireis sem que ninguém vos persiga. Se ainda, apesar destas coisas, não me ouvirdes, castigar-vos-ei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. Quebrarei a soberba do vosso poder, e vos farei o céu como ferro, e a terra como cobre. Inutilmente se gastará a vossa força, pais a vossa terra não dará as suas produções, nem as árvores da terra darão os seus frutos” (Lv 26.16-20). Segue ainda, até o versículo 39, uma série de retribuições terríveis para o povo, se continuar na desobediência aos mandamentos do Senhor. Mas tais castigos podem ser evitados pela confissão e obediência. No caso das serpentes venenosas (Nm 21.4-9), depois da morte de muitas, os sobreviventes vieram a Moisés, confessaram os seus pecados e lhe pediram: “Ora ao Senhor que tire de nós as serpentes”. Na história do bezerro de ouro (Êx 32.30-35), o pecado era grave, a violação do concerto do Sinai (Êx 20.3). Os mais culpados foram castigados pela morte, mas, em resposta à intercessão de Moisés, o Senhor perdoou os outros. A destruição do povo pelo dilúvio foi considerado o maior desastre que caiu sabre a humanidade no período antigo, mas a narrativa de Gênesis é muita diferente das histórias do mesmo evento em outras línguas. A narrativa bíblica revela “que era grande a maldade do homem na terra, e que toda a imaginação dos pensamentos do seu coração era má continuamente” (Gn 6.5). Com o abuso da sua liberdade, o homem tinha fracassado. O seu livre arbítrio ofereceu-lhe a oportunidade de degradar-se, mas não foi a causa da sua maldade. Deus trouxe o dilúvio para castigar a raça 102


pecaminosa, para manter a sua soberania e a sua justiça. O Senhor fez chover fogo e enxofre sabre as cidades de Sodoma e Gomorra, e assim as destruiu porque foi muito grave o seu pecado (Gn 18.20). No estudo da punição do pecado neste primeiro período da história de Israel, não se encontra um ponto de vista uniforme quanto ao castigo de pecadores. Mas, em todas as casas, a soberania e a justiça rigorosa do Senhor são manifestas e vindicadas na retribuição do mal. É claro também que Deus não castiga arbitrariamente, como os deuses pagãos, mas de acordo com a norma estabelecida da justiça. Revelam-se pontos de vista diferentes no entendimento da norma divina da justiça, devida ao fato de que nesse período não havia o conceito bem definido e claro da natureza da pecado. Também não havia entendimento perfeito das bases de responsabilidade. Como foi observado no princípio desta seção, os sacerdotes interpretaram todos os sofrimentos humanos, incluindo os desastres da natureza, como punição do pecado, embora não fosse possível descobrir, ou apontar, o pecado que teria trazido o desastre. Não surgiu para eles o problema do sofrimento do justo ou do inocente, porque o sofrimento era prova direta do pecado do sofredor ou dos seus pais. Também os sacerdotes não fizeram qualquer distinção entre a violação das leis cerimoniais e o pecado contra os princípios da justiça humana. Mas este foi um período de treinamento do povo de Israel que, por causa da solidariedade do grupo, nem sempre podia entender a relação entre a livre vontade e a responsabilidade pessoal. Esta questão da responsabilidade pessoal foi esclarecida mais tarde pelo os profetas Jeremias e Ezequiel. Mas não ficaram sem a instrução esclarecida de Moisés, e os ensinos das tradições e das experiências. Todos tiveram a convicção de que o pecado seria castigado. O castigo do primeiro pecado foi a maldição do orgulho do homem que desafiou a vontade do seu Criador. Com o privilégio de escolher o bem ou o mal, ele rejeitou as exigências morais da escolha do bem, e assim desprezou a sua própria dignidade e o seu lugar no plano do Senhor. A experiência do primeiro casal concorda com a verdade verificada pela humanidade. O esforço de aproveitar os prazeres do conhecimento, da beleza e das tentações da vida, com apenas o motiva de satisfazer aos apetites pessoais, acarreta o engano, a separação da presença de Deus e a morte espiritual. Reconhecendo o procedimento geral do Senhor na punição do pecado, os israelitas observaram, sem perturbação, que não foi um princípio de aplicação universal. A morte podia vir ao inocente Amasa (2 Sm 20.10), aos filhos de Gideão (Jz 9.5), e até aos sacerdotes de Deus de Nobe (1 Sm 22.18). No esforço de esconder a sua traição de Urias, Davi observou que a espada tanta “devora este como aquele” (2 Sm 11.25). O Ensino dos Profetas Os grandes profetas dedicaram os seus talentos e a sua vida ao ensino dos princípios da justiça ética. Não eram inovadores, como dizem alguns. Apresentavam-se antes como reformadores, intérpretes novos da redenção divina de Israel, do concerto entre Deus e o povo da sua escolha, sucessores de Moisés, Samuel, Elias e Eliseu, na interpretação da lei moral, revelada a Moisés, ao povo da sua própria época. Mas, como profetas levantados e vocacionados pelo Santo de Israel, não ficavam limitados nos seus ensinos, pela revelação do Senhor aos profetas do passado. Percebiam que o Senhor estava atuando na história do seu povo, e que eles eram os seus mensageiros, chamados para denunciar os ensinos falsos sobre a eficácia dos ritos religiosos e os pecados da injustiça social, a imoralidade e a desumanidade do seu povo. Não resta dúvida de que havia no ensino dos ritos religiosos lugar para apresentar também a prática da justiça como condição de receber as bênçãos do Senhor (Dt 24.10-22; 25.13-16). Com ênfase na eficácia do sistema sacrificial, os ensinos da justiça ficaram quase esquecidos ou desprezados, como se pode observar na severa condenação dos reis, juízes, sacerdotes, lavradores e negociantes pelos profetas. O seu conhecimento mais profundo da justiça do Senhor iluminou o espírito dos profetas para entender os princípios éticos que Deus, pela sua própria natureza, tinha que exigir do seu povo. 103


Os profetas reformadores não protestaram contra a idéia prevalecente de que o sofrimento era sempre a punição do pecado. Com o conceito sacerdotal do pecado, era sempre fácil descobrir uma justificação de qualquer sofrimento que pudesse cair sobre a nação ou sobre qualquer pessoa. Mas limitaram a sua discussão do pecado às ofensas dos ricos e poderosos contra a justiça social: a opressão dos pobres e indefesos, a prática do engano, violência e suborno dos tribunais, para se enriquecerem e viverem em luxo, enquanto apresentavam ofertas e holocaustos sobre os altares para ganhar o favor do Senhor. Os profetas condenaram severamente os pecados de várias classes, mas ainda consideravam englobadamente o povo na sua relação com Deus. Devido à complexidade das condições religiosas, estes profetas aceitaram, por algum tempo ainda, a teoria dos antecessores de que todo o sofrimento do povo era a punição dos seus pecados. Com a reforma, dirigida pelo rei Josias, baseada na descoberta de uma cópia da lei119 no templo do Senhor, houve um esforço para cultivar os ensinos proféticos, praticar a justiça, transformar a vida religiosa do povo, e assim desenvolver a nação santa visada na escolha divina de Israel. A reforma inspirou o povo com a esperança de receber as bênçãos do Senhor. Os pecados do povo no passado mereceram o castigo recebido, mas a nação reformada esperava, com as bênçãos do Senhor, um futuro melhor. Depois de um breve período de independência, caiu-lhe o desastre da morte do seu amado e piedoso rei Josias, na planície de Megido (609 a.C.), e da sujeição do povo ao poder do Egito. Pouco tempo depois Judá caiu em poder da Babilônia. Esta sujeição exacerbou o rei Joaquim e os seus partidários que, pela orientação política do povo, demonstraram a superficialidade da reforma e a infidelidade religiosa do povo. O rei e os seus servos desprezaram os conselhos do profeta do Senhor, Jeremias, e se revoltaram contra a Babilônia. O castigo severo veio subitamente. Nabucodonozor invadiu e saqueou a cidade de Jerusalém, roubou o templo, e levou para o cativeiro um grupo escolhido do povo, em 597 a.C. Nabucodonozor estabeleceu Zedequias como rei. em Jerusalém. Depois de onze anos de intrigas políticas, ele fez aliança com o Egito e rebelou-se contra a Babilônia. Veio logo o poderoso exército de Nabucodonozor e destruiu por completo a cidade, queimou a casa do Senhor, levando as riquezas e o melhor do povo para o cativeiro, terminando a vida nacional de Judá em 586 a.C. Esta tragédia, com o sofrimento horrível de tantas pessoas e a perda da esperança, levantou dúvidas no pensamento de muitos sobre a justiça do castigo que tinham sofrido. Não negaram que o pecado mereceu castigo, mas lembrando-se da perversidade de Manassés e de outros de seus reis, explicaram o seu sofrimento segundo o provérbio: “Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram” (Jr 31.29; Ez 18.2). Reconhecendo que muitos procuravam negar a sua culpa pessoal por este provérbio, Jeremias desenvolveu a doutrina da responsabilidade pessoal, que recebeu ênfase no ensino de Ezequiel: “A pessoa que pecar, essa morrerá” (18.4). Jeremias reconheceu o fracasso da reforma muito antes da queda nacional. Falou à consciência despertada do povo, mostrando aos reis e ao povo que a nação ainda era pecaminosa, desejando as bênçãos da justiça e da fidelidade ao Senhor, enquanto praticava a injustiça e confiava na política dos reis, ao invés de ouvir e obedecer à mensagem de Deus. Mas os observadores não podiam deixar de reconhecer que no castigo dos pecados nacionais, inocentes tinham que sofrer juntamente com os culpados. Nos casos individuais, era também evidente que alguns inocentes sofreram, enquanto alguns perversos prosperaram. As leis da natureza e da sociedade humana geralmente favorecem os justos, operando de tal forma que o revoltoso pode trazer sobre si o seu próprio castigo. A experiência humana mostra que há uma base considerável para a teoria de que a prosperidade é a recompensa do bom, e a adversidade é o castigo do malvado (Pv 13.15). A teoria tem defeitos. Não temos o direito, por exemplo, de interpretar o sofrimento de outros como o castigo de seus pecados, mas podemos considerar tais desastres como admoestações para nós. Este foi, em geral, o ponto de vista dos profetas (Os 5.13; Joel 1.5; Am 4.611). Se o homem tiver a certeza de que a sua piedade sempre será recompensada com a saúde e a prosperidade, ele terá a tendência natural de apresentar-se como justo e piedoso por causa do galardão 119

É reconhecida como o livro de Deuteronômio, achado no ano 621 a.C.

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que espera receber, e não por causa do seu amor para com Deus e para com os nobres princípios da justiça. Segundo este ponto de vista, o homem piedoso sente que tem o direito de ser recompensado. Se, na benéfica providência do Senhor, ele não recebe o pago das suas boas obras, ele pensa que Deus não é justo. Segundo o ponto de vista cristão, a saúde, a prosperidade e as outras vantagens materiais e sociais não podem ser consideradas como provas absolutas da bondade e da justiça do homem. Assim os doentes e os necessitados não pertencem ao grupo dos felizes. O leproso, na sua aflição, ficava privado dos privilégios da vida social e das práticas religiosas. Há, porém, evidências de que muitas pessoas religiosas mostraram simpatia para com as pessoas infelizes, e ministraram às suas necessidades, especialmente dos pobres, dos necessitados, dos órfãos e das viúvas. Escritores bíblicos denunciam aqueles que negligenciam e maltratam os pobres e necessitados (Jó 24.4; Sl 9.18; 12.5); mas as numerosas exortações em favor destes grupos infelizes aparentemente indicam que estes, geralmente ficaram negligenciados. Deus sempre se apresenta como seu defensor, e no Salmo 68.5 é representado como o pai de órfãos e o protetor de viúvas. Assim o instinto mais característico da religião, o profundo sentido da necessidade do socorro imerecido do Senhor, bem como o conceito da graça de Deus, opõe-se à teoria estrita de retribuição. O abandono dos necessitados seria contrário à natureza de Deus. Aparentemente o problema teológico do cativeiro de Judá preocupou e perturbou alguns dos mensageiros de Deus. Os profetas Jeremias e Ezequiel reconheceram a justiça da punição do povo escolhido, mas Habacuque levantou a questão da justiça de Deus no seu modo de tratar com as nações. Sem entrar na discussão do problema da data de Habacuque, e da identificação dos povos mencionados no livro, podemos dizer que não há dúvida de que ele representa Judá como o povo que estava sofrendo a injustiça às mãos dos estrangeiros. Ele não entende como Deus podia ficar calado “quando o infiel devora aquele que é mais justo do que ele” (1.13). A resposta, em resumo, é que a justiça triunfará finalmente. Mas a solução do problema do sofrimento do justo, apresentado no livro, não vai muito além do ensino do passado. O profeta evidentemente recebeu conforto pela certeza de que a prosperidade do ímpio não durará, e o opressor de Judá será destruído, e o justo viverá pela sua fidelidade (2.4). O profeta Jeremias quis saber de Deus: “Por que prospera o caminho do ímpio? Por que vivem em paz os que procedem aleivosamente?” (12.1). Não recebeu resposta. Chegou a sentir que Deus não o tinha tratado com justiça. “Porque é perpétua a minha dor, e incurável a minha ferida, recusando a ser curada? Serás tu para mim como ribeiro enganoso, como águas que não são fiéis?” (15.18). Estas queixas, porém, não representavam o verdadeiro espírito do profeta. A verdade é que a sua relação com o Senhor era mui preciosa (15.19). Nisto temos, com efeito, o que aproxima mais de perto a solução do problema do sofrimento. Para o profeta Jeremias a comunhão com Deus era o summum bonum da vida, e os seus sofrimentos, embora terríveis, não lhe podiam roubar aquela bênção. Esta experiência dos servos do Senhor através dos séculos, não resolveu para eles, nem para nós, o problema do sofrimento do justo, mas os elevava acima das aflições. Mais feliz, na sua vida como profeta, do que Jeremias, Ezequiel aceitou o ponto de vista tradicional dos profetas de que Judá, por causa da sua longa história de infidelidade, mereceu plenamente o seu castigo. Ele se interessou especialmente na defesa das atividades do Senhor na história do seu povo (14.21-23). Ele também defendeu a doutrina da retribuição individual. Pediu fervorosamente que os israelitas não continuassem no caminho pecaminoso. “Lançai de vós todas as vossas transgressões que cometestes contra mim e fazei-vos um coração novo e um espírito novo. Pois, por que razão morrereis, ó casa de Israel? Porque não tenho prazer na morte de qualquer pessoa, diz o Senhor Deus; convertei-vos, pois, e vivei” (18.31,32). Ezequiel deu ênfase à doutrina da retribuição individual. Não há lugar na sua teologia para a culpa transmitida dos pais aos filhos. Cada pessoa é punida unicamente por causa de seus próprios pecados. Do ponto de vista ético, e do destino final do homem, esta interpretação é lógica, mas quando aplicada à vida social do homem, levanta dificuldades inevitáveis. Depois da queda de Jerusalém em 586 a.C., o problema do sofrimento nacional, especialmente de tantas pessoas inocentes, não podia ser explicado somente na base dos ensinos proféticos do passado. Deus levantou o amável profeta do exílio, cuja mensagem é preservada na última parte do 105


livro de Isaías. É quase universalmente reconhecido pelos eruditos modernos como Dêutero-Isaías. Este profeta identifica-se entranhadamente com o povo desterrado, e apresenta grandes doutrinas teológicas, desconhecidas antes do período do cativeiro. O profeta Jeremias, o mais austero e, ao mesmo tempo, o mais sensível dos profetas, acompanhou a tragédia da dissolução política de Judá, mas com a dura missão profética de anunciar ao povo· a necessidade imperiosa do castigo divino por causa da infidelidade. Foi reconhecido quase como traidor da pátria e, às vezes, brutalmente perseguido. 120 Alguns pensam que a teoria do sofrimento vicário deste profeta do exílio baseia-se nas experiências do sofrimento injusto de Jeremias. Este novo intérprete, o mais poderoso profeta do Velho Testamento, pregador evangélico, mensageiro do amor de Deus, levantou o seu povo do abismo do desespero, e encheu o seu espírito de inspiração para o futuro. É possível que Jeremias tenha representado, no princípio, a figura do servo sofredor. É quase certo que o profeta reconheceu a injustiça da perseguição de Jeremias, e que este fato lhe abriu o entendimento para o sofrimento vicário. O profeta dirige-se ao seu povo com ternura e compaixão, e, no seu amor transbordante, apresenta-lhe o Santo de Israel como o Deus de amor. Oséias, Amós e Jeremias tinham reconhecido o amor do Senhor, mas, devido às circunstâncias, eles reconheceram a necessidade de expor e condenar severamente a gravidade da rebelião contra Deus. O cativeiro tinha quebrantado a soberba de Judá, e Judá ficou humilhado e desanimado. Podia ter sido difícil no princípio acreditar na mensagem do amor de Deus, mas este mensageiro interpretou-lhe a finalidade do castigo, e o propósito do Senhor de libertá-la e trazê-lo de novo à sua terra para o cumprimento da sua missão no mundo. A mensagem do profeta comoveu o espírito dos seus ouvintes, ganhou a sua confiança, despertou de novo a sua fé em Deus, e desenvolveu neles um novo sentido da sua responsabilidade religiosa. Uniu os fragmentos da vida nacional, não para formar uma nova nação, mas a fim de organizar a congregação espiritual do povo messiânico para o cumprimento da sua missão mundial. Como entendeu o profeta a significação dos sofrimentos de Israel? Depende da identidade da figura do Servo Sofredor nos capítulos 42, 49, 50, 53 de Isaías. Sem entrar na discussão das interpretações da figura do Servo, parece que o autor estava contemplando a missão de Israel como o povo messiânico do Senhor. No seu estudo da vida nacional, ele chegou a reconhecer que a nação, considerada na sua totalidade, era incapaz de desempenhar-se da sua missão. Representada pelos reis, e os seus conselheiros responsáveis, a nação tinha-se rebelado contra a orientação divina, e mereceu, em parte pelo menos, o castigo que o seu procedimento trouxera sobre ela. Sabia, porém, que havia um grupo fiel de israelitas que tinham sofrido grande injustiça às mãos dos estrangeiros. Para as nações, Israel era uma nação indigna e desprezada por seu deus. Mas a restauração demonstrou que o Senhor não tinha abandonado o seu povo de Israel. O profeta entendeu os sofrimentos de Israel à luz da sua posição entre as nações. Israel não era um objeto do desfavor divino, como pensavam as nações. O cativeiro ofereceu ao povo escolhido um meio de transmitir a mensagem divina aos seus vencedores políticos. Aparentemente nem o grupo dos fiéis aproveitou o ensejo de demonstrar ativamente a sua missão sacerdotal. Quanto às nações, é impossível verificar a influência religiosa dos sofrimentos de Israel na vida delas. Provavelmente ficaram impressionadas com a restauração de Israel, mas não há evidências de que entendessem os ensinos do profeta sobre os sofrimentos vicários de Israel em favor delas. A pregação do profeta serviu principalmente para confortar e encorajar o povo sacerdotal para enfrentar a responsabilidade da restauração que, na providência divina, havia de preparar o caminho para o cumprimento da sua missão na história. Nos capítulos 50 e 53 o servo sofredor não é mais a nação, nem o grupo dos fiéis, mas um profeta instruído, treinado e submisso à vontade do Senhor. Ele aquiesce nos seus sofrimentos, e triunfa sobre todos os seus adversários. Recebe pleno apoio e orientação do Senhor, na sua humilhação. “Eis que o meu servo procederá com prudência, Levantar-se-á, será exaltado e mui sublime” (Is 52.13). 120

George Adam Smith, Jeremiah, p. 5: “Ele viveu para ver a deficiência da lei, a nação espalhada e o altar nacional. desbaratado, mas recolheu no seu espírito o fogo da religião e o levou não somente inextinguido, mas com um fulgor mais puro para o seu futuro eterno.”

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É desprezado e abandonado nos seus sofrimentos, mas reconhecido finalmente como aquele que levou sobre si as iniqüidades dos seus perseguidores. É impossível precisar a significação e a influência destes ensinos para os israelitas da época. Aparentemente ficaram esquecidos depois da restauração. O profeta tinha proferido uma mensagem mais poderosa do que ele mesmo podia avaliar. Tinha mostrado, como o socorro divino, o poder redentor do sofrimento que operava na vida de Israel. Tinha proclamado o poder redentor do sofrimento vicário, um ensino esquecido até a sua verificação no Calvário. Este ensino do poder redentor do sofrimento vicário não é mencionado em qualquer outro lugar no Velho Testamento, nem no livro de Jó, outro estudo profundo do problema do sofrimento. O Problema do Sofrimento nos Salmos O livro dos Salmos apresenta a vida religiosa de Israel através de um longo período de tempo. Escritos por diversos autores, os Salmos representam uma variedade de experiências religiosas e muitas qualidades de sentimentos humanos. Muitos descrevem a profunda tristeza, e até o desespero dos autores. Em geral, os autores representam o ponto de vista tradicional dos sofrimentos. Reconhecem que, às vezes, os ímpios prosperam e os inocentes sofrem. O ensino mais importante dos Salmos, que tem sido o segredo da sua popularidade e influência na vida das pessoas religiosas, é a fé triunfante dos salmistas, apesar do problema misterioso do sofrimento. Experimentaram todas as qualidades de dor e agonia; zombaria e perseguição de inimigos; acusações injustas pelos associados e amigos falsos; espíritos torturados pelo sentimento de culpa, doença e medo da morte. Em alguns casos os salmistas sofreram na sua miséria por causa da demora do socorro divino. Na sua rica comunhão com Deus, o salmista em geral não se sentiu oprimido com o problema da prosperidade dos ímpios e os sofrimentos dos justos. Todavia, tornava-se cada vez mais difícil manter a teoria tradicional. Mas, com as limitações da sua teologia, era difícil abandonar a teoria sem saber de qualquer outra explicação mais satisfatória. Alguns defenderam vigorosamente a teoria, baseando-se principalmente na sua própria experiência. O autor do Salmo 37, por exemplo, insiste repetidas vezes, que os ímpios serão cortados em breve (vv. 2, 9, 22, 28, 34, 38), e os justos herdarão a terra (vv. 9, 11, 22, 29, 34). Os salmistas que discutiram a questão geralmente acharam a solução no futuro, ou nesta vida, como no Salmo 37, ou na vida após a morte. No Salmo 49, o autor declara que o ímpio não pode levar nada da sua glória consigo, na morte, e tem de descer ao mundo subterrâneo, onde nunca verá a luz (v. 17). Ele, porém, tem a certeza de que na morte a sua alma será levada para viver com Deus (v. 15). O autor do Salmo 73 ficou profundamente desanimado quando observou a segurança dos ímpios no aumento das suas riquezas (v. 12), e quase chegou a crer que em vão ele tinha purificado o seu coração e lavado as mãos na inocência (v. 13), mas quando entrou no templo ele entendeu o fim dos ímpios (v. 17). “Decerto tu os colocas em lugares escorregadios, Tu os lanças em destruição. Como são destruídos num momento! Ficam de todo consumidos de terrores” (vv. 18, 19). Nestas contemplações o salmista descobriu na sua própria vida as maravilhas da presença e do poder do Senhor. “Quem tenho eu nos céus senão a ti? Não há na terra quem eu deseje além de ti” (v. 25). Há outros salmistas que, não achando nesta vida a solução do problema do sofrimento, chegaram a crer que tudo seria endireitado na vida além da morte. Esta solução recebeu o apoio de Jesus, do Novo Testamento e do cristianismo em geral. O autor do Salmo 16 descreve os prazeres da sua fraternidade com os santos e as bênçãos inefáveis da comunhão entranhada com Deus. Lembrando-se dessas experiências, ricas e variadas, ele chega a confiar no seu triunfo pessoal sobre a morte e, assim, confessa ao Senhor a sua fé:

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“Pois não abandonarás a minha alma ao Sheol, Nem permitirás que o teu santo veja a corrução. Far-me-ás conhecer a vereda da vida: Na tua presença há plenitude de alegria; na tua destra há delícias para sempre” (vv. 10, 11). Encontramos no Salmo 17, versículo 15, uma das maiores exclamações da fé triunfante no Velho Testamento. Depois de suplicar que Deus o vindique das acusações falsas dos inimigos, o salmista declara a sua plena confiança em Deus. Baseando-se nas suas ricas experiências com Deus, este servo do Senhor termina a sua oração com a certeza de que depois de acordar da morte, ele entrará em perfeita comunhão com Deus e alcançará suprema satisfação para a sua alma. “Quanto a mim, com justiça, verei a tua face; satisfar-me-ei quando acordar na tua semelhança” (v. 15). Não podemos achar nos Salmos, nem na Bíblia inteira, uma solução formal para o problema do sofrimento. Mas descobrimos a experiência espiritual que transcende o problema. Fazemos bem em reconhecer que os nossos sofrimentos podem ser uma prova da nossa fé, que na providência de Deus eles podem ter valor disciplinar e redentor e que ultimamente eles darão lugar a um futuro feliz. É melhor ainda ter uma visão elevada do Senhor, que rouba ao sofrimento o seu aguilhão. O Problema do Sofrimento na Literatura de Sabedoria Os livros de Provérbios, Eclesiastes e Jó, deste grupo, escritos por israelitas, apresentam meditações sobre a vida humana em geral, sem limitar os seus pensamentos à comunidade de Israel. Dois destes livros, Jó e Eclesiastes, desafiam com ousadia a teoria tradicional da distribuição da justiça imparcial. Eles refletem o ensino da responsabilidade pessoal, apresentado com força por Jeremias e Ezequiel. Os autores dos Provérbios seguem, sem a perturbação de dúvidas, a teoria de que Deus sempre recompensa os sábios, os prudentes, os sóbrios, os brandos, os industriosos, os honestos, os verdadeiros, os misericordiosos e os tementes a Deus. Não se pode negar o valor destes ensinos do ponto de vista da experiência em geral, mas não têm aplicação universal. Deus faz prosperar aqueles que buscam e seguem diligentemente a sabedoria. Encontra-se em 3.12 a sugestão de que um infortúnio pode ter efeito benéfico na disciplina do homem. “Pois o Senhor reprova ao que ama, assim coma o pai ao filho no qual se deleita.” Os autores dos Provérbios reconheceram a dificuldade de manter a confiança na direção do mundo, segundo a justiça divina. É inegável que de vez em quando o ímpio prospera e desperta as dúvidas do justo. “Não te incomodes por causa de malfeitores, Nem tenhas inveja dos perversos, porque não há futuro para o homem mau; a lâmpada dos perversos se apagará” (24.19,20). O livro de Eclesiastes indica que o seu autor morava em Jerusalém, que era homem rico, avançado em idade e que talvez tivesse passado por experiências tristes e desagradáveis. Possuía alguma cultura, aparentemente influenciada por uma mistura de epicurismo e estoicismo. As suas observações sobre a natureza humana revelam a sabedoria modificada por preconceitos e decepções pessoais. Ele não é ateísta, mas pensa que não vale a pena tentar descobrir o segredo da justiça de Deus, ou do seu modo de governar o mundo. Ele rejeita de vez o ensino ortodoxo de que o justo prospera e o ímpio sofre. Para este sábio desiludido não há diferença entre a sorte dos justos e a dos ímpios, “o mesmo sucede ao justo e ao perverso” (9.2; 7.15; 8.14). Com esta posição, embora extremista, a crítica tinha o seu valor negativo. Negava que o sofrimento fosse a prova decisiva da iniqüidade do sofredor. Mas o seu modo de tratar o problema do sofrimento é um tanto superficial, e não penetra no âmago da questão. A fraqueza deste pregador está na sua teologia. Para ele Deus não é o Senhor do concerto do Sinai, Aquele que dirige a história de Israel, o Santo do seu povo e o Redentor misericordioso. Intelectualmente, ele percebe o poder e a justiça de Deus, mas do seu ponto de vista filosófico não pode entender a misericórdia, o amor persistente (hesed) do Santo de Israel. Não é de estirpe 108


profética, e não tem a mentalidade espiritual de Israel. Não há nada nas suas meditações que o desperte para trabalhar em favor do bem-estar do homem. Não entende nada das operações da providência divina, nada da filosofia da história apresentada pelos profetas. Representa o ensino da filosofia infrutífera, segundo a qual a história marcha em círculos: “O que tem sido é o que há de ser” (1 .1-9). Em muitos dos seus sentimentos religiosos é modernista, mas bem diferente dos outros escritores do Velho Testamento. O mais importante livro da literatura de sabedoria e uma das grandes obras de todos os tempos é a poesia dramática de Jó. Não sabemos quando foi escrito. O estilo hebraico de Jó é semelhante ao do profeta do exílio, Dêutero-Isaías, mas possivelmente foi escrito um pouco mais tarde. Quanto ao problema do sofrimento, o livro responde ao ensino representado por Ezequiel de que o ímpio não prospera e o justo não sofre. Os Provérbios e os Salmos, em geral, concordam com Ezequiel. Como o pregador de Eclesiastes, o autor questiona a teologia tradicional, mas dentro de uma esfera mais limitada, com o espírito mais reverente e com argumentos mais lógicos e mais firmemente apoiados na experiência. É também mais complicado. Com ousadia, o sofredor defende o seu direito de contender com Deus. Recusa fechar os olhos aos fatos evidentes e na sua miséria não está disposto a ficar calado. Quer saber por que Deus o castiga tão severamente. E queixa-se ainda mais amargamente de que não pode estabelecer comunicação com Deus. Deus não lhe responde. O homem deve ter o direito de entender-se com Deus. À luz da sua própria experiência, e das suas observações, ele declara que o ensino tradicional é falso. É fato inegável que os justos sofrem, e que muitos dos ímpios prosperam. Argumenta também que o sofrimento do justo e a prosperidade do ímpio não são meramente de breve duração, mas continuam por muito tempo e freqüentemente até a morte (Jó 21.7-34). Qual é a função do sofrimento na vida do homem justo? O livro, na sua forma presente, é drama que representa vários pontos de vista do assunto. O autor está claramente mais interessado no ponto de vista do seu herói, o sofredor Jó. O prólogo apresenta uma das finalidades do sofrimento; o debate, incluindo os discursos de Eliú, representa mais três; o aparecimento e os discursos do Senhor no fim do livro oferecem mais uma. Todas estas exposições do propósito do sofrimento do justo têm valor para os homens religiosos, embora não solucionem o problema. Recebemos logo no prólogo a informação de que sofrimentos terríveis hão de cair sobre Jó como prova da sua justiça. Sem saber que estava sendo posto a prova, Jó manteve a sua integridade através de todos os seus sofrimentos. “Eis que me matará; não tenho esperança: contudo, defenderei os meus caminhos diante dele” (13.15). Sem qualquer esperança de recuperar as riquezas, os filhos, a saúde, o bom nome e a posição social que tinha perdido; sem esperança de restabelecer a comunhão com o Senhor, de que previamente gozava, este pobre sofredor levanta-se sobre os joelhos ensangüentados para clamar ao mundo que o homem pode servir, sem esperança de recompensa, ao Deus da justiça. Também o sofrimento pode ter a influência de disciplinar e purificar a vida do homem justo. Diz Elifaz: “Eis que feliz é o homem a quem Deus reprova, Portanto, não desprezes o castigo do TodoPoderoso. Pois ele faz a ferida, mas ele mesmo a liga; Ele fere, mas as suas mãos curam” (6.17,18). Este ensino não se aplicava estritamente ao caso de Jó, mas é uma verdade importante, mais elaborada nos discursos de Eliú (33.15-30; 36.8-21). Verifica-se na vida de muitas pessoas piedosas que o sofrimento tem o efeito de aprofundar, enriquecer e amadurecer a vida daqueles que o aceitam no espírito de confiança na providência de Deus. Mas estes benéficos efeitos do sofrimento não se manifestam na vida de todos os sofredores. Do ponto de vista da justiça e do amor de Deus, ainda há mistérios profundos e inexplicáveis no padecimento de tantas pessoas justas e inocentes no mundo. Com profundas considerações do sofrimento de vários pontos de vista, o autor de Jó não apresenta uma solução do problema. Mas, para os leitores imparciais da obra, ele esclarece de uma vez para sempre o seu tema de que homens inocentes, como Jó, são vítimas da injustiça neste mundo, enquanto muitos dos ímpios prosperam. No debate da questão, apresenta-se com firmeza e convicção a teoria de que o padecimento tem uma finalidade na vida do sofredor, embora não seja possível descobri-Ia. É impossível para o homem 109


saber tudo o que se passa nos conselhos celestiais, mas tem razão de esperar que, em tais deliberações, os princípios da justiça sejam respeitados. É também impossível para qualquer pessoa sondar e entender todos os mistérios do universo. Mas não é difícil reconhecer que o sofrimento tem lugar no plano do Criador do mundo, de acordo com o seu caráter perfeito. As manifestações generosas da sabedoria e do amor do Senhor, na sua direção providencial da natureza e da vida humana, oferecem, para muitas pessoas, bases suficientes para as convicções inabaláveis de que os seus sofrimentos têm uma finalidade ou propósito benéfico. Num momento supremo, no calor do debate, surgiu nas meditações de Jó o pensamento de que a morte não fecha o caso do sofrimento do justo. “Ah! Que as minhas palavras fossem agora escritas! Oxalá que fossem inscritas num livro! Que com pena de ferro, e com chumbo, Fossem para sempre gravadas na rocha! Pois eu sei que o meu Redentor [Go’el] vive. E que por fim se levantará sobre a terra; E depois de destruída esta minha pele, Então, fora da minha carne, verei a Deus: A quem verei ao meu lado, e os meus olhos o contemplarão, e não outro” (19.23-27). Decepcionado como vítima da injustiça, e crendo profundamente que Deus é justo, ou deve ser justo, assim lhe nasceu a certeza de que depois da morte ele seria vindicado e tratado com a justiça divina que lhe foi negada nesta vida. Esta esperança de receber a justiça na vida além, ou pelo menos ser justificado, pela sua própria natureza, não lhe brilhava constantemente com o seu resplendor inicial, mas não foi extinta, e diminuiu notavelmente o desespero do sofredor, como se nota no teor do debate com os amigos depois daquela experiência. Com esta esperança que olhava além do túmulo, apresentada por salmistas e pelo autor do livro de Jó, vêm andando multidões inumeráveis através dos tempos. Esta confiança absoluta no triunfo final da justiça divina nunca pode ser apagada do espírito corajoso dos servos fiéis do Senhor.

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CAPÍTULO IX A SALVAÇÃO NO VELHO TESTAMENTO No Velho Testamento, o termo salvação abrange todas as qualidades de socorro que os israelitas recebem do seu Deus, o Senhor Iavé. O verbo hebraico yasha’ significa fazer largo, viver em abundância, conseguir a vitória, libertar do poder do inimigo, salvar da opressão, do pecado, da aflição, da doença, da morte. O substantivo yesha’ ou yeshua’, pode significar a salvação em qualquer um, ou em qualquer conjunto, destes vários sentidos. A palavra pode ser usada para significar a salvação do mal na vida futura, ou no sentido de libertação de todas as qualidades de aflição da vida neste mundo. A salvação no Antigo Testamento significa que o processo é iniciado e efetuado pelo Senhor, em favor do seu povo e pode ser independente do entendimento de Israel. No período antigo da história de Israel, qualquer chefe que tivesse a força de ganhar a vitória sobre os inimigos podia ser designado salvador do seu povo (Jz 2.18; 6.14), mas era sempre o Senhor Deus quem dava força ao salvador humano. Em todos os casos, o verdadeiro Salvador é o próprio Deus. Em todas as suas formas, a salvação é teocêntrica, no sentido de que é sempre iniciada e conseguida por forças e pessoas escolhidas e dirigidas por Deus, para cumprir o seu propósito e alcançar o seu alvo. Todos os homens de Israel, inclusive os reis, os príncipes, os sacerdotes, os profetas e o povo em geral tinham que depender de Deus, de quem recebiam a vitória, a liberdade, o socorro e a satisfação de todas as suas necessidades. Assim a história de Israel é a história das atividades do Senhor na vida do povo que tinha liberto do Egito e escolhido como o seu povo sacerdotal entre as nações do mundo. Na direção da história do seu povo, o Senhor levanta os seus agentes, os seus servos, e lhes entrega a incumbência divina, e por intermédio deles consegue os seus planos e propósitos. “A salvação pertence ao Senhor” (Sl 3.8). Se as pessoas incumbidas falharem, o Senhor tem outros recursos. As frases “Deus salva” e “Deus é a salvação” encontram-se freqüentemente nas Escrituras do Antigo Testamento (1 Sm 14.39; 1 Cr 16.35; Sl 68.20; Is 32.32). A história de Israel, como povo independente, começa com a sua própria salvação do miserável sofrimento como escravos no Egito. O Senhor Iavé apresenta-se como Salvador logo no princípio das suas relações com as tribos de Israel, desamparadas e desesperadas nas garras dos seus opressores. Sem qualquer esforço da sua parte, Israel foi libertado pelo Senhor e por ele levado ao Monte Sinai. O seu Salvador ali lhe anunciou que tinha sido escolhido como seu povo sacerdotal entre todas as nações do mundo. O Concerto e a Salvação no Velho Testamento 121 Discutimos brevemente o estabelecimento do concerto (diathêke - diaqh/kh) h entre Deus e Israel, na discussão dos atributos redentores do Senhor, no capítulo V. O concerto tem uma relação fundamental com a doutrina da salvação no Velho Testamento. O fato é que o concerto do Sinai foi feito com o povo que pertencia ao Senhor como seu povo peculiar, salvo, santo e escolhido como servo do seu Deus. Entre os povos antigos havia uma crença de que um deus não podia existir sem o seu povo. No seu próprio interesse os deuses tinham que proteger o seu povo dos perigos de extinção pelas guerras ou outras calamidades. Não se sabe se esta opinião de outros povos teve qualquer influência entre o povo escolhido, mas consta que, no tempo de Oséias e Amós, e por algum tempo depois, Israel pensava que o Senhor tinha a obrigação de preservar o seu povo. Ora, os profetas dão muita ênfase ao amor fiel (hesed) do Senhor no cumprimento das promessas do concerto. Mas ao mesmo tempo os profetas explicam as conseqüências terríveis da ingratidão, da injustiça e da infidelidade do povo do concerto. Os profetas conheciam o livro do concerto (Êx 20.22-23.33). Depois do tempo de Josias, a obra de Deuteronômio foi reconhecida como o livro que apresentava o que Deus requeria do seu povo, em 121

Ver a nossa justificação do uso da palavra concerto, Cap. I.

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virtude da sua eleição e das suas responsabilidades, que aceitou voluntariamente quando entrou em concerto com o Senhor. A revelação do nome de Deus ao povo de Israel, por intermédio de Moisés (Êx 6.1-9), produziu uma relação permanente entre Iavé e este povo. Esta relação é representada pelo berith entre Iavé e Israel. Portanto, é de profunda significação para o estudante da Bíblia, e especialmente para o teólogo. A palavra berith aparece no Velho Testamento 285 vezes, 122 e na Septuaginta é traduzida 257 vezes por diathêke. 123 Quando berith significa um acordo entre homens, pode ser traduzido corretamente por pacto ou aliança, pois os homens geralmente cortavam um pacto como iguais. Mas o Senhor sempre estabeleceu (qum) ou deu (nathan) o seu concerto. Há uma vasta diferença entre o significado da palavra berith quando descreve um ajuste entre homens, e quando representa o sentido teológico da relação estabeleci da por Deus com o seu povo. A tradução da palavra por pacto ou aliança, quando representa o concerto do Senhor com o seu povo, sempre rebaixa o seu sentido bíblico. É Deus quem toma a iniciativa e quem faz o concerto com o seu povo. Israel pode aceitar, ou rejeitar, o concerto oferecido pelo Senhor, mas nunca pode determinar os seus termos ou condições. “Eis que lhe dou o meu concerto” (Nm 25.12). Quando o Senhor ofereceu ao povo de Israel o seu concerto, assim aceitou a responsabilidade de cumprir as suas promessas que ele mesmo, e não Israel, tinha estipulado. Na aceitação do concerto, Israel também prometeu cumprir as suas condições. “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes o meu concerto, então sereis o meu tesouro peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha” (Êx 19.5). Deus estabeleceu o seu concerto com o povo no seu conjunto, e não com indivíduos. O israelita participava dos benefícios oferecidos como membro do grupo. O povo podia ser representado por um grande vulto como Moisés, ou por um grupo de anciãos, mas o concerto sempre operava em relação com a comunidade inteira. O concerto também abrangia as gerações futuras dos israelitas. Estrangeiros podiam ser incorporados com o povo de Israel, como no caso dos habitantes de Jerusalém, quando a cidade foi ocupada por Davi. Com a queda de Samaria, e o exílio do Reino do Norte, aquele grupo, na sua grande maioria, pelo menos, perdeu o seu lugar como membro do povo escolhido. A mesma coisa aconteceu mais tarde com muitos dos habitantes de Judá. Devemos sempre lembrar que a revelação de Deus no Velho Testamento é verdadeira e válida, mas representa um processo histórico, e assim se adapta ao povo do dia. A criança sabe que dois e dois são quatro. O matemático sabe muito mais, mas ainda concorda com a criança de que a soma de dois e dois é quatro. À luz da revelação mais clara da santidade e da justiça de Deus, por intermédio dos profetas, modificou-se o entendimento do escopo e das exigências do concerto. Assim os profetas proclamaram cada vez mais claramente que o povo do concerto tinha que ser uma comunidade espiritual. O Senhor exerceu o seu amor imutável e todas as forças morais da sua natureza para manter a fidelidade (hesed) do povo escolhido, e para orientá-lo no desempenho da sua missão, sem privá-lo do exercício da livre vontade. Assim os profetas desenvolveram o novo ensino da responsabilidade pessoal. Entendendo que a nação política não podia apresentar-se perante o Senhor como povo fiel, os mensageiros de Deus fixaram a sua esperança no restante fiel (Is 10.21,22; 11.16; 16.14; Jr 23.3; 31.7). Só o restante podia cumprir as responsabilidades que Israel. O Senhor Iavé é o único Deus de Israel, e o povo é proibido de reconhecer ou servir a qualquer outro Deus (Êx 20.5). Do lado positivo, o povo devia invocar ao Senhor, fazer os seus votos em seu nome, apresentar-lhe as suas ofertas e dedicar-lhe os filhos. Tudo tinha que ser feito em o nome do Senhor. Israel está obrigado inteiramente ao seu Deus em todas as suas relações sociais e religiosas. A relação de Israel com Iavé, o único Deus verdadeiro, é permanente, compreensiva, tomando constantemente novas formas espirituais, que se apresentam à inteligência do povo à luz das novas 122 123

Brown, Driver and Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, p. 136 Ludwig Koehler, op. cit., p. 61.

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revelações divinas. As obrigações religiosas dos hebreus antes de Moisés foram preservadas e incorporadas na vida espiritual de Israel, mas têm uma nova relação e uma nova direção. São todas relacionadas ao Senhor Iavé. Foi vacilante a fidelidade de Israel ao seu Senhor (Os. 6:1). A experiência demonstrou que a manutenção do concerto dependia da demonstração constante do amor persistente do Senhor nas atividades históricas de Israel. A experiência do profeta Oséias com a esposa infiel ensinou-lhe que o amor do Senhor não podia abandonar o povo, mesmo na sua infidelidade. O amor do Senhor para com o seu povo era mais forte e mais poderoso do que o amor do profeta para com a sua esposa. Apesar da infidelidade de Israel, que ameaçava a dissolução do seu casamento com o Senhor, o amor divino, com os seus ricos recursos, não podia abandonar o povo da sua escolha. No seu conhecimento deste amor do Senhor, o profeta nutria esperanças de dias melhores (cap. 11). Israel é o filho de Deus, tirado do Egito, o menino que o Senhor tinha ensinado a andar, e tinha levado nos braços, sarando as suas feridas (11.3,4). A Efraim, que se inclinava a apostatar (11.7), Deus revela o seu amor nas palavras do profeta: “Como te posso deixar, ó Efraim! Como te posso entregar, ó Israel! Como te posso fazer como Admá! Como te posso tratar como Zeboim! O meu coração se comove dentro de mim, as minhas compaixões juntamente estão acesas. Não executarei o furor da minha ira, não tornarei a destruir a Efraim: Pois eu sou Deus, e não homem; o Senhor no meio de ti” (11.8,9). Jeremias também apresenta a relação entre o Senhor e o seu povo na figura do casamento. Entendeu também o amor imorredouro do Senhor, mas a infidelidade do povo da sua época levou o profeta a enfrentá-la com a mensagem divina da necessidade imperiosa do castigo dos infiéis. Mas, na sua angústia, o profeta tinha o privilégio de olhar além do cativeiro até a restauração dos fiéis. “Minha angústia, minha angústia! Eu me torço em dores. Ó as paredes do meu coração! O meu coração bate impetuosamente; não me posso calar, pois eu ouço o som da trombeta, O alarido de guerra” (Jr 4.19). Jeremias cria firmemente nas promessas do Senhor, e na indestrutibilidade do povo fiel da escolha divina. Reconheceu, todavia, a necessidade premente de um novo concerto com o povo regenerado, com a Lei, ou a Torah do Senhor, escrita no coração. O capítulo 31 de sua profecia descreve as esperanças do profeta e as maravilhosas promessas do amor imutável do Senhor. Com bastante dificuldade, os profetas enfrentaram e resolveram o dilema da justiça do Senhor, e do seu amor imutável (hesed) no cumprimento do seu concerto. Havia de ser cumprido com o povo fiel (hesed). Para Isaías foi o restante que se arrependeu de seus pecados, e confiou na fidelidade do Senhor. Para Jeremias foi o povo do novo concerto, o mesmo do Sinal, com novas modificações necessárias por causa das novas circunstâncias. Numerosos israelitas desprezaram as suas responsabilidades como o povo do concerto, e confiaram na política dos seus reis, ao invés de se orientarem pela revelação divina. Por intermédio dos profetas, Deus guiou o grupo fiel através das peripécias do cativeiro babilônico, e o restaurou à sua terra, não mais como nação política, mas como congregação espiritualmente regenerada, com a incumbência de cumprir a missão do povo escolhido, segundo o concerto. “Assim será a minha palavra que sair da minha boca: Não voltará para mim vazia, mas conseguirá o que me apraz, E prosperará naquilo para que a enviei” (Is 55.11). O Sistema Sacrificial dos Israelitas Há certas verdades subentendidas no Velho Testamento que nem todos os teólogos entendem. Primeiro de tudo, o povo de Israel, libertado e escolhido pelo Senhor, apresenta-se, desde o Monte Sinai, como povo salvo pela graça de Deus, separado, escolhido ou eleito e dedicado, segundo o concerto, ao serviço do Senhor. Mas nem o amor imutável (hesed) do Senhor poderia prender qualquer israelita contra a sua própria vontade.

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Assim, qualquer israelita, ou grupo de israelitas, poderia perder o seu lugar, entre o povo escolhido, pela revolta contra o Senhor, como no caso dos mais culpados, que fizeram e adoraram o bezerro de ouro. Outro fato subentendido no Velho Testamento é que o sistema sacrificial nunca se apresenta em qualquer lugar como meio de salvação. Koehler trata os sacrifícios como “expediente do Homem para a sua Própria Redenção”. 124 A. B. Davidson explica, em termos bem claros, o significado das ofertas no sistema sacrificial como praticado pelos israelitas. “Os sacrifícios foram assim oferecidos a Deus, que estava em relações de graça com o seu povo. Não foram oferecidos para alcançar a sua graça, mas para retê-la, ou para evitar que a comunhão existente entre Deus e o seu povo fosse interrompida ou terminada pelas imperfeições ainda inevitáveis do seu povo, quer seja de indivíduos, quer seja do povo inteiro”. 125

Baseando-se em Amós 5.25 e Jeremias 7.22, alguns mantêm que os israelitas adotaram o rito sacrificial dos cananeus depois de chegarem à Palestina. Mas a pergunta retórica e uma alusão não justificam a rejeição completa das tradições preservadas no Pentateuco. Há semelhanças entre o sistema sacrificial dos israelitas e o de outros povos semíticos, mas é o significado dos ritos para a verdadeira fé de Israel que tem importância. Morando no ambiente politeísta, e associados com vizinhos corrompidos, os israelitas tinham que lutar para manter a fidelidade ao seu Senhor. Reconhecendo que o povo, na sua enfermidade moral, poderia cair em várias qualidades de erros, o Senhor estabeleceu o sistema de sacrifícios e ofertas para fazer expiação dos pecados de enfermidade e ignorância. Assim o sistema ritual foi instituído para tratar de pecados cometidos dentro do concerto. Deste modo ofereceu ao povo meios de livrar-se do sentimento de culpa de uma qualidade limitada de pecados. Para os pecados cometidos com alta mão (yadh rama), pecados de rebelião contra Deus, não havia expiação, porque tais pecados eliminavam o pecador do povo do concerto. Convém lembrar, mais uma vez, a longa história dos israelitas, e o desenvolvimento da sua teologia, através das experiências históricas, em harmonia com a revelação progressiva da santidade e ela justiça de Deus. Esta advertência é especialmente importante no estudo da influência do sistema sacrificial na história antiga do Israel. Quando os profetas receberam uma revelação mais completa do caráter de Deus, entenderam mais claramente a natureza do pecado. Reconheceram a tendência e o perigo de atribuir eficácia ao próprio sacrifício, ao invés de lembrar que era apenas um símbolo de arrependimento e da fé do ofertante, e que nestas condições Deus perdoa o pecado. A lei cerimonial servia para ensinar, treinar e preparar o povo para entender o que o Deus santo e justo requer do homem. Todas as pessoas dentro do povo escolhido tinham a responsabilidade de cumprir todas as condições do concerto. Quando uma pessoa cometia um pecado de fraqueza, embora involuntariamente, tinha que apresentar a oferta ordenada pela lei. No curso do desenvolvimento da religião de Israel manifestou-se a tendência de estabelecer duas opiniões a respeito da eficácia do sacrifício. Persistia a idéia tradicional, fortemente combatida pelos profetas, de que o próprio sacrifício tinha o efeito de cancelar o pecado do ofertante. Com o conhecimento mais claro do caráter de Deus, e da dignidade do homem, desenvolveu-se um entendimento mais profundo da natureza do pecado. O pecado interrompe a comunhão entre o homem e Deus, e afasta o pecador da presença de Deus. Chegou-se finalmente a entender que o verdadeiro arrependimento do pecador, que envolve o ódio ao seu pecado e a firme determinação de abandoná-lo, era necessário no preparo do coração para receber o perdão divino e regozijar-se de novo na comunhão com Deus. Assim os profetas entendiam que o sacrifício era apenas simbólico do espírito reto que devia acompanhar a oferta. Com a interpretação profética do significado do arrependimento e o entendimento mais profundo da graça de Deus, os profetas ensinavam que o motivo do perdão do pecado está sempre no amor eterno e fiel do Senhor.

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Ludwig Koehler, op. cit., pp. 181 - 198. A. B. Davidson, The Theology of the Old Testament, p. 316.

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Mas, apesar de seus defeitos, o sistema sacrificial servia ao propósito do Senhor no treinamento espiritual do povo escolhido no período primitivo da sua história. A graça de Deus operava por intermédio do sacrifício para aliviar o pecador do sentido da culpa e manter a comunhão com o Senhor. Gradualmente esclareceu e aprofundou o conhecimento da santidade e da justiça de Deus. Servia também para acentuar a gravidade do pecado, que separa o homem da presença de Deus, e para mostrar o amor imutável do Senhor na salvação do pecador. A Pessoa e a Função do Sacerdote O sacerdote, o rei, o profeta e o Servo do Senhor são figuras proeminentes nas Escrituras do Velho Testamento. São agentes e servos do Senhor. Cada um deles representa, na sua pessoa e no seu serviço, um ideal visado no aperfeiçoamento da teocracia que servia. O sacerdote é ministro do Senhor. O concerto representa a relação entre Deus e o povo. O Senhor é o Deus de Israel, e Israel é o povo do Senhor. A lei cerimonial foi um meio de separar o povo escolhido do mundo para o serviço do Senhor. Esta nação santificada e assim preparada para o serviço é designada como um reino de sacerdotes. Todos os homens da nação sacerdotal tinham o privilégio de aproximar-se de Deus no serviço. Tinham privilégios iguais quanto ao direito de apresentar ofertas ao Senhor. Há vários exemplos de homens que exerceram este direito, como Gideão, Davi, Salomão e outros. Todavia, este privilégio individual não interferia no culto nacional, e não podia dispensar ou tomar o lugar do culto do conjunto do povo que tinha entrado em concerto com o Senhor. O culto nacional tinha que ser celebrado no santuário central por um grupo de sacerdotes que eram servos do Senhor e representantes do povo. Como intermediários entre o povo e Deus, os sacerdotes tinham que chegar perante o Senhor no serviço. Tinham que ser semelhantes, tanto quanto possível, ao Senhor no seu caráter e nos seus motivos. O ideal da santidade do sacerdote não podia ser perfeitamente realizado, mas podia ser representado simbolicamente, para ensinar ao povo um entendimento cada vez mais claro do ideal. Foi santificada a tribo de Levi exclusivamente para prestar qualquer serviço relacionado com o tabernáculo. Dentro da tribo de Levi foram designados no Monte Sinai os filhos de Arão, com o privilégio exclusivo de ministrar diretamente perante o Senhor. Finalmente, o sumo sacerdote, representando as virtudes e a santidade de toda a casta sacerdotal, era o único que podia entrar no lugar santíssimo, como intermediário entre todo o povo e o Senhor. Mas, com todas as suas regalias, podia entrar neste lugar mais santo apenas uma vez por ano. O sistema de sacrifícios não visava os pecados proibidos pela lei moral, como a violação do concerto, ou o espírito arrogante e revoltoso da parte do pecador. Mas não há nas Escrituras uma distinção nítida entre os pecados que excluíam o pecador da assembléia do povo, e os que podiam ser perdoados de acordo com o ritualismo sacerdotal. É provável que algumas violações da lei moral fossem consideradas como pecados involuntários, e assim podendo ser perdoados pela apresentação de uma oferta que representava o arrependimento do pecador. O sistema sacrificial culminava no grande dia de expiação. Este era o dia mais santo e mais importante na vida religiosa do povo de Israel. Todo o possível era feito para pôr em relevo o significado da expiação de todos os pecados de todas as pessoas da coletividade do povo do Senhor. Os capítulos 29 de Êxodo e 8 de Levítico apresentam as instruções para a consagração dos sacerdotes; Êxodo 28.3-5 e Levítico 8.7-9 descrevem as ricas vestimentas usadas pelos sacerdotes quando ministravam perante o Senhor. O tabernáculo, o altar e o sacerdote tinham que ser ungidos “para os santificar” para o serviço (Levítico 8.10-12). Qual é o resultado conseguido pelo sacrifício oferecido pelo sacerdote em favor do povo? É claro que os sacerdotes lhas atribuíam muita importância. A palavra hebraica, kaphar, em várias formas, é usada para descrever o efeito da oferta apresentada em qualquer tempo em favor do pecador, ou em favor de todo o povo pecaminoso, quando apresentada pelo sumo sacerdote, no santíssimo lugar, no grande dia de expiação. O sentido etimológico de kaphar é duvidoso. O substantivo kopher é usado em muitos lugares no sentido de resgate, ou o preço da vida (Êx 21.30; Jó 33.24; Pv 6.35; Is 43.3). O piel, ou intensivo kipper, é usado no sentido de resgatar, expiar, propiciar, reconciliar, 115


cobrir. Como já foi observado, os sacrifícios visavam apenas os pecados cometidos por ignorância ou por enfermidade. As ofertas cobriam os pecados de pessoas que pertenciam ao povo do concerto, a fim de reter, ou manter, a comunhão desembaraçada com o Senhor. Antes de deixar esta questão, é preciso notar que o efeito do sacrifício era apenas simbólico do arrependimento que o acompanhava, e por si só não tinha qualquer eficácia, senão no espírito do ofertante, segundo o esclarecimento da religião puramente ética ou espiritual, pelos profetas. A oferta teve o efeito de aliviar o espírito do ofertante do sentimento de culpa. Não há diferença essencial entre o ato de cobrir o pecado pelo sacrifício, e o de conseguir por meio de oração que o Senhor esconda a sua face do pecado. Os profetas e os salmistas têm muito a dizer sobre o perdão divino dos pecados humanos. Os profetas apresentam novas revelações sobre a santidade, a justiça e o amor do Senhor. Sendo justo, o Senhor exige a prática da justiça entre o seu povo. Com o conhecimento mais profundo do caráter de Deus, aumentou-se o entendimento do valor e da dignidade moral do homem individual e da vida humana em geral. Assim o perdão do pecado e a pureza do coração tinham valor essencial e dignidade própria. Os profetas e salmistas tinham também um entendimento mais claro do amor persistente e imutável do Senhor, da sua amorável benignidade e do poder transformador da sua graça. A salvação não era simplesmente o livramento das conseqüências do pecado, mas a liberdade do poder do pecado. Reconhecendo a natureza pecaminosa do seu próprio coração, o profeta Jeremias exclamou: “Sara-me, Senhor, e serei sarado; salva-me, e serei salvo” (17.14). Evidentemente ele desejava uma verdadeira regeneração, tal como descreve o novo concerto, a revelação (Torah) no interior, escrita no coração (31.33). “Perdoarei a sua iniqüidade, e nunca mais me lembrarei do seu pecado” (31.34). A Fidelidade do Senhor no Perdão do Pecado O profeta Ezequiel descreve ainda mais claramente o perdão que transforma a natureza humana. “E vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo, e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu espírito, e farei que andeis nos meus estatutos e observeis fielmente as minhas ordenanças. Habitareis na terra que dei a vossos pais; e vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus. E vos salvarei de todas as vossas imundícias” (36.26-29). E o Dêutero-Isaías salienta esta idéia de perdão com a bênção principal no preparo do povo para a volta do cativeiro, o cumprimento da sua missão. “Eu, eu mesmo sou quem apago as tuas transgressões por amor de mim; não me lembrarei dos teus pecados” (43.25). “Apaguei as tuas transgressões como a névoa; e os teus pecados como a nuvem; volta-te para mim, porque eu te remi” (44.22). O profeta Miquéias termina a sua profecia com uma linda declaração sobre o perdão divino, mas a gramática do hebraico é complicada, como se vê nas versões. “Quem é Deus semelhante a ti, perdoando a iniqüidade, e passando por cima da transgressão para o restante da tua herança? Ele não retém para sempre a sua ira, porque se deleita no amor imutável. Tornará a ter compaixão de nós, pisará aos pés as nossas iniqüidades. Lançarás todos os nossos pecados nas profundezas do mar. Mostrarás a Jacó a fidelidade, e a Abraão o amor imutável, Que juraste a nossos pais desde os dias antigos” (7.18-20). São expressivas as figuras que descrevem o perdão do pecado. “Purifica-me com hissope, e ficarei puro; Lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve ... Esconde a tua face dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniqüidades. Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto” (Sl 51 .7,9,10). “Eis! tocou isto nos teus lábios, tirada é a tua culpa, e o teu pecado é coberto” (Is 6.7). “Pois lançaste para trás das tuas costas todos os meus pecados” (Is. 38.17). “Eu te confessei o meu pecado, e a minha iniqüidade não encobri; disse eu: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a culpa do meu pecado” (Sl 32.5). “Perdoaste a iniqüidade do teu povo; cobriste todos os seus pecados” (Sl 85.2). Estas citações representam, em parte, a variedade dos termos usados para descrever o perdão divino dos pecados humanos. A palavra nasa’ significa 1evaniar, carregar, tomar, tirar, levar embora. 116


Mas significa perdoar em Gênesis 50.17, Miquéias 7.18, Salmos 32.5 e 85.2 e outros lugares. A palavra salach também significa perdoar em Jeremias 31.34; 33.8 e Salmos 103.3. O verbo yasha’ é usado no sentido de liberar ou salvar de qualquer perigo, ou da morte, mas em Jeremias 17.14 e Ezequiel 36.29 tem o mais profundo sentido de salvar elas conseqüências e do poder do pecado. A palavra rapha’ é termo médico, usado no sentido físico de curar feridas e chagas. Deus é o médico que cura as aflições do seu povo e das nações (Os 6.1; 11.3; Is 19.22). Mas em Jeremias 17.14 o profeta pede a cura da sua natureza pecaminosa. O verbo hata’, errar o alvo, significa também, na forma do piel, (Sl 51.7), purificar, sinônimo de kavas, lavar completamente. A nossa tradução do particípio de avar, passando por cima, esquecer de Almeida, é sinônimo de perdão neste versículo, mas não é usada em qualquer outro lugar na Bíblia. Outra palavra que descreve nitidamente o perdão divino, especialmente segundo os profetas e salmistas, é mana, que significa apagar, riscar, cancelar, obliterar. No Salmo 51.9 é sinônimo de esconder. Em Isaías 43.25, o pecado não é mais lembrado; e, em 44.22, ele desaparece como a névoa perante o sol. O verbo kasa significa encobrir, esconder, ocultar. Tem quase o mesmo sentido de kaphar ou cobrir. No Salmo 85.2 Deus cobre o pecado; e em Provérbios 10.12 “o amor cobre todas as transgressões”. Outra figura importante do perdão divino é representada pela palavra shalak, que significa lançar, atirar, arremessar. É usado freqüentemente com frases auxiliares para descrever como o pecado perdoado desaparece. Deus lança o pecado atrás das suas costas (Is 38.17). Em Miquéias 7.19 o Senhor lança todos os nossos pecados nas profundezas do mar. É usado aqui com o verso paralelo de que Deus, na sua compaixão, pisa aos pés (Kavash) as nossas iniqüidades. Estes exemplos do perdão divino são apenas representativos, e concordam com as numerosas exposições do amor imutável e a compaixão eterna do Senhor. O Motivo Divino em Perdoar Quando o Senhor, na sua compaixão, redimiu os filhos de Israel, e lhes deu o seu concerto no Monte Sinai, assim estabeleceu a base das suas relações com eles em todas as atividades históricas que prepararam o caminho para a fundação do reino de Deus no mundo inteiro. No sistema sacrificial dos israelitas, as ofertas apresentada.s ao Senhor representaram apenas o espírito de arrependimento do ofertante, enquanto o amor imutável do Senhor operava persistentemente no perdão do pecador desviado que desejava o restabelecimento da comunhão com o seu Deus. A graça do Senhor, no perdão do pecado, manifestava-se, no princípio, quase exclusivamente dentro de Israel. O motivo deste favor especial de Deus para com o povo de Israel é “por amor de mim” ou “por amor do meu Nome”. “Por amor do meu Nome retardo a minha ira” (Is 48.9). “Por amor de mim, por amor de mim, eu o faço, Pois como seria profanado o meu nome? A minha glória, não a darei a outrem” (Is 48.11). Tais declarações, no seu conjunto, apontam para o propósito mundial do Senhor. Não pode ser acentuada demais a revelação deste propósito divino, não somente na escolha de Israel, como também na operação maravilhosa de Deus, com os recursos espirituais do seu amor, através da história que visava o seu povo. É claro que através da sua história, Israel não podia satisfazer plenamente às condições de perdão. Mas santidade e a justiça do Senhor harmonizam perfeitamente com a sua misericórdia e a sua compaixão no perdão do pecado. Igualmente claro que Israel não podia merecer o favor divino. Todavia, o perdão divino nunca é incondicional, e nunca pode violar a justiça divina. O pecado de deslealdade e de desconfiança de Israel no deserto foi perdoado de acordo com a súplica de Moisés (Nm 14.20), mas neste caso a geração velha, os responsáveis, não têm permissão de ver a terra da promessa (Nm 14.23). O Senhor, porém, é sempre compassivo, e perdoa abundantemente quando o iníquo ou o injusto abandona o seu caminho e volta ao Senhor (Is 55.6-9). 117


Deus não perdoava pecados cometidos com alta mão, como a idolatria (Jr 5.7-9). Não quis perdoar os pecados de Manassés por “tudo quanto fizera”, e “por causa do sangue inocente que derramou” (2 Reis 24.3,4). O perdão removia a barreira que separava o pecador da presença do Senhor, e restabelecia o favor divino e a comunhão com Deus (Jr 33.8; 36.3; Sl 32 e 51). O perdão cancelava a culpa, e certas conseqüências do pecado, mas não mudava a natureza ética do Senhor, nem a base moral do seu governo do mundo. Davi recebeu pleno perdão do seu pecado, mas o perdão não evitou a operação normal das más influências na sua família, e no declínio do prestígio e do poder do seu reino. Assim o perdão visava o propósito do Senhor no desenvolvimento do seu reino. A restauração de Israel do cativeiro é representada como necessária para vindicar o Nome do Senhor, blasfemado pelas nações quando o povo escolhido foi espalhado entre as nações (Ez 36.16-23). No perdão dos pecados do seu povo, Deus se lembrava das promessas que tinha feito aos pais. “Orei ao Senhor, dizendo: Ó Senhor Deus, não destruas o teu povo e a tua herança, que remiste com a tua grandeza, e que fizeste sair do Egito com mão poderosa. Lembra-te dos teus servos Abraão, Isaque e Jacó; não atentes para a dureza deste povo, nem para a sua maldade, nem para o seu pecado” (Dt 9.26,27; Êx 32.12,13; Ne 9.15,23). “Todavia o Senhor não quis destruir a Judá por amor de Davi, seu servo, porquanto lhe havia prometido que lhe daria uma lâmpada, a ele e a seus filhos, para sempre” (2 Rs 8.19). Convém notar que tais promessas se relacionam ao concerto, sempre operante. O amor e a justiça do Senhor sempre constituem o seu motivo imutável no perdão do pecado. A natureza divina, a santidade que abrange a justiça, não podem deixar de exigir o arrependimento e a fé por parte do pecador, sem o qual nenhum sacrifício e nenhuma oração pode induzir o Senhor a perdoar o pecado. Mas Deus tem prazer em perdoar, “por amor do seu Nome”, todos os que almejam o perdão. Segundo um grupo de passagens, é o próprio Deus quem faz expiação do pecado. Este é o sentido do hebraico complicado do Salmo 65.3: “Obras de iniqüidade prevalecem contra mim, mas tu fazes expiação das nossas transgressões”. Não pode haver dúvida sobre o piel de kaphar, “tu cobres” ou “tu fazes expiação das nossas transgressões”. O único meio de cobrir o pecado, ou escondê-lo da vista do Senhor, é o de anular ou cancelar a culpa do pecador. Deus é santo, e o pecado desperta a sua ira; Deus é justo, e o pecado perturba a comunhão com ele. O arrependimento, a mudança radical da mentalidade, coloca o pecador na posição mora! onde a santidade e a justiça do Senhor podem operar no espírito do arrependido e cobrir o seu pecado. É Deus quem esconde, apaga e perdoa o pecado. O motivo do perdão sempre se acha no Senhor: no seu amor eletivo (‘ahaba), e no seu amor imutável (hesed), que mantém o concerto pela orientação misericordiosa do seu povo e pela operação da sua providência na direção da história para o fim que ele mesmo predeterminou. O seu propósito redentor visa todas as nações do mundo, começando com Israel. A Operação da Santidade, da Justiça e do Amor do Senhor na Salvação Como nenhum outro profeta, o Dêutero-Isaías acentua, e põe em relevo, o poder incomparável do Senhor, Criador dos céus e da terra. Mas nem as obras majestosas da criação podem representar adequadamente o poder, a sabedoria e a providência do Senhor. “Eu fiz a terra, e sobre ela criei o homem; As minhas mãos estenderam os céus, e pus em ordem todo o seu exército” (45.12; 40.12-15; 42.5; 45.7). O Senhor é o Deus santo, e não há outro Salvador (40.18, 25; 44.24; 46.5). Deus sempre atuava em favor do seu povo, mesmo quando o entregava “aos roubadores” (42.24). O povo tinha sofrido por causa dos seus pecados, e não porque o Senhor o tivesse desamparado. Se, na sua ira, o Senhor escondeu sua face do seu povo por um momento, com amor eterno terá compaixão dele (54.8). Tinha chegado o dia do conforto. A iniqüidade de Jerusalém é perdoada (40.2). O profeta multiplica as evidências da atividade redentora do Senhor. As palavras “Confortai, confortai o meu povo” é a tradução correta das palavras introdutórias desta profecia. O mensageiro do Senhor não tinha recebido ordem de falar apenas palavras de consolação ao povo na sua tristeza, mas a palavra de conforto que termina com a tristeza, e fortalece o espírito com as boas-novas de redenção. 118


“Eis o vosso Deus!” Cansado e fatigado, o povo receberá o amparo do poder do Senhor. É possível que a mulher se esqueça do seu menino de peito, “todavia, eu não me esquecerei de ti”, diz o Senhor (49.15). O Senhor se apresenta freqüentemente nesta profecia como o Redentor do seu povo. A palavra hebraica go’el designa na linguagem popular o parente mais chegado que tem a responsabilidade de cuidar dos direitos do parente falecido. “Pois assim diz o Senhor: Por nada fostes vendidos; também sem dinheiro sereis remidos”. Em Jeremias 50.34, o Senhor dos exércitos apresenta-se como o Redentor do seu povo do poder da Babilônia. O Senhor é Vindicador do seu povo e promete resgatá-lo do poder do inimigo. “Não temas, ó bichinho de Jacó, homens de Israel! Eu te ajudo, diz o Senhor, o teu Redentor (go’el) é o Santo de Israel” (Is 41.14). A obra do Redentor no Dêutero-Isaías é dupla. Ele resgata o seu povo do poder do inimigo, e também o redime do pecado, e assim o prepara para o cumprimento da sua missão. Mas a redenção do pecado. a comunhão espiritual com o Senhor, é claramente subentendida nas passagens que descrevem o livramento do poder do inimigo. “Mas agora, assim diz o Senhor que te criou, ó Jacó, e que te formou, ó Israel: Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu”. (Is 43:1). “Saí de Babilônia, fugi de entre os caldeus. E anunciai com voz de júbilo, fazei ouvir isto, e levai-o até o fim da terra; dizei: O Senhor remiu a seu servo Jacó” (48:20). (Ver também 43.14; 44.6,22-24; 47.4; 48.17; 49.7,26; 52.9; 54.5,8; 59.20; 60.16; 63.9,16.) Estas passagens explicam como o Redentor de Israel dirige a história e liberta o seu povo do poder do inimigo. Ele também ensina e guia o seu povo, perdoando as suas transgressões e orientando as suas atividades de acordo com o propósito divino revelado na escolha de Israel. Este profeta também se refere ao Senhor como o Salvador, termo que se encontra em outras profecias, e freqüentemente nos Salmos. Insistem em que não há outro Salvador fora do Santo de Israel. “Eu, sim eu, sou o Senhor, e fora de mim não há salvador” (43.11). “Israel, porém, é salvo pelo Senhor com a salvação eterna; Vós não sereis envergonhados nem confundidos para todo o sempre” (45.17). Os termos salvar e salvador eram usados em sentido lato para significar a libertação do poder do inimigo ou de quaisquer perigos e aflições, mas, no sentido mais profundo dos profetas e salmistas, o Deus eterno da justiça, da santidade, e do poder criador ia salvando os homens dos seus pecados e orientando-os na vida nova. Os israelitas experimentaram o socorro do Salvador na sua vida pessoal, como também na história nacional. As Escrituras testificam da vida de Israel em comunhão com o seu Salvador, e não pensam em apresentar um sistema de teologia. Ê justamente por esta razão que a teologia do Velho Testamento tem tanto valor para os homens modernos que estudam e entendem a religião de Israel. Os profetas do século oitavo a.C., o Dêutero-Isaías, e alguns sal mistas, usam a palavra justiça (tsedeq ou tsedeqah) como sinônimo de salvação. Deram à justiça este sentido largo, porque entenderam que o Senhor ia estabelecendo a justiça no mundo pela extensão do seu reino no coração de pessoas salvas pela graça divina. Receberam este conhecimento profético pela observação das atividades do Senhor na história e na sua própria experiência com o Senhor. Através do Velho Testamento, encontra-se a palavra tsedeq, usada no sentido de triunfar ou de ganhar a vitória (Êx 9.27). Discutimos o uso de tsedeqh neste sentido no Capítulo V, sobre os atributos redentores de Deus, mas convém dar mais alguns exemplos neste estudo da salvação. “Não temas, porque eu estou contigo, não te assombres, porque sou o teu Deus; Eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça” (Is 41.10). “Eu o Senhor te chamei em justiça, Tomei-te pela mão, e te guardei; Eu te dei por concerto do povo, Para luz das nações” (Is 42.6). Quando pensamos em tsedeq como a justiça divina righteousness), é o homem salvo, e só ele, que é justo. “O Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos iníquos perecerá” (Sl 1.6). Assim a justiça de Deus se manifesta na sua obra salvadora. A justiça divina, exemplificada no homem, significa a sua salvação. Assim usado, o termo justiça mantém o seu sentido ético, e ao 119


mesmo tempo dá mais ênfase à obra salvadora do Senhor. Este conceito de salvação apresenta-se nos Salmos, em Jeremias, Ezequiel, em outras profecias, e especialmente em Isaías 42.7 e 49.6, na missão do Servo do Senhor. O Mistério da Eleição de Israel A história do povo de Israel é dominada pelo conceito da eleição de Israel como o povo sacerdotal do Senhor. Esta relação peculiar com o seu Deus envolveu direta, ou indiretamente, todos os interesses e todas as relações da vida deste povo. A consciência sensível de Israel surgiu da convicção da sua escolha e da sua missão. As lutas políticas e sociais da pequena nação entre as nações operavam poderosamente contra o exercício da sua vocação, mas nunca poderiam apagar a certeza de que tinha sido eleita como o povo peculiar do Senhor. Os escritores bíblicos não puderam explicar, como também os teólogos nunca têm podido explicar, o mistério da eleição de Israel. As escrituras do Velho Testamento, produzidas no calor das experiências dos autores em comunicação direta com o Senhor, revelam o poder misterioso do Deus Soberano na direção da história de Israel em perfeito acordo com a finalidade da sua eleição. A comunidade de Israel foi eleita e separada do mundo para transmitir a palavra de redenção às nações (Gn 12.2-4; 18.18; 22.17,18; 26.4). Os escritores bíblicos apresentaram a eleição deste ponto de vista teológico, 126 mas o povo em geral nunca ficou entusiasmado no desempenho da sua missão. A Bíblia insiste em que Israel não escolheu ao Senhor. O Senhor fez a escolha, e estabeleceu Israel como nação. O concerto que o Senhor deu a Israel no Sinai foi o laço que uniu o povo com ele, dando-lhe o privilégio de receber as bênçãos do seu Deus, incluindo a orientação da sua vida nacional. O concerto não foi bilateral, no sentido de um pacto ou contrato. Não impôs ao Senhor quaisquer obrigações. No seu amor imutável, tinha já escolhido a Israel como o seu povo para transmitir às nações a mensagem da graça divina. Com a eleição, o Senhor tinha demonstrado que era o Deus de Israel, e assim tinha aceitado as suas obrigações antes de apresentar o concerto ao povo. O Senhor declarou ao povo que, da sua parte, nunca terminaria o concerto. Mas Israel, por sua parte, poderia terminá-lo, se quisesse, pois a lealdade não pode ser forçada. Mas o concerto, por sua própria natureza, não dava a Israel o direito de terminá-lo. Podia repudiá-lo, mas somente com vergonha e desonra. O amor do Senhor para com Israel nunca foi limitado estritamente pelas condições do concerto. O seu hesed 127 para com o povo eleito nunca vacilou, nem quando Israel se mostrou como povo de cerviz dura. O Senhor persistiu em cumprir as promessas do concerto, e até fazer mais do que tinha prometido, enquanto Israel, da sua parte, mostrou-se esquecidiço das suas obrigações de fidelidade. Mas não se entende que o amor do Senhor tinha a força de obrigar a sua lealdade ao povo, apesar da deslealdade de Israel. Israel aceitara voluntariamente as condições do concerto, e cada geração sucessiva devia aceitar as mesmas obrigações de fidelidade. 128 “O Senhor nosso Deus fez conosco um concerto em Horebe. Não foi com os nossos pais que o Senhor fez este concerto, mas conosco, sim, conosco, todos nós que somos vivos aqui este dia” (Dt 5.2,3). Assim o concerto tinha valor apenas para aqueles que aceitavam voluntariamente as suas condições. Os profetas condenaram severamente a ingratidão e a deslealdade dos israelitas, e a história indica que os obstinados e os infiéis foram cortados da comunidade. Para tais pessoas a eleição não tinha mais valor. Eleitos para servir, a eleição perdeu a sua significação para os israelitas que 126

H. H. Rowley, The Biblical Doctrine of Election. p. 39: “É sempre a eleição que visa algum propósito, e Deus sempre escolhe aqueles que são mais aptos para realizar o seu propósito. Os seus propósitos são muitos, e ele escolhe muitos para o servirem. O seu maior propósito é o de revelar-se aos homens, e Israel foi escolhido porque era o povo mais idôneo para fazer isto. Isto não significa que não se revelou a homens de outras nações, ou que não escolheu outras nações para outros propósitos ... , Todavia, aos homens de Israel ele deu uma revelação mais ampla, não porque eram inicialmente melhores do que outros, nem porque eram os mais favorecidos, mas porque eram os mais idôneos para prestar este serviço”. 127 Ver a nota 5, do Capítulo II, sobre hesed. Outras explicações: A. R. Johnson, devoção; G. A. Smith, lealdade para com uma relação; N. H. Snaith e G. E. Wright, “covenant love”; M. Burrows, lealdade, incluindo uma beneficência além daquilo que o recipiente tem o direito de esperar; S. H. Hooke, piedade, misericórdia, amor, graça. 128 H. H. Rowely, The Biblical Doctrine of Election, p. 48. “A essência fundamental do concerto foi a resposta do homem à graça divina, e só os herdeiros da resposta podiam ser os herdeiros do concerto.”

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repudiaram as obrigações de serviço. Todavia, os profetas não subestimaram a persistência e os recursos do amor imutável do Senhor na direção da história de Israel de tal maneira que o restante dos fiéis pudesse realizar o propósito divino da eleição. No período de desânimo e de terrível angústia, quando Jerusalém enfrentava a destruição e o cativeiro, o profeta Jeremias transmitiu ao povo a mensagem de esperança recebida do Senhor: “Restaurarei a fortuna de Judá e a fortuna de Israel, e os edificarei como no princípio. E os purificarei de toda a culpa do seu pecado contra mim, e Ihes perdoarei toda a culpa do seu pecado contra mim e da sua rebelião contra mim. E esta cidade me servirá de nome de alegria, de louvor e de glória perante todas as nações que hão de ouvir todo o bem que eu Ihes estou fazendo; temerão e tremerão por causa de todo o bem e de toda a paz que eu lhes estou proporcionando.” Os profetas do exílio pintaram em termos poéticos a glória da restauração e das bênçãos do Senhor no socorro do seu povo fiel. É fato de suprema importância, para o futuro do reino de Deus no mundo, que Judá voltou de Babilônia para a sua terra, não mais como nação, mas como congregação religiosa, unida pelos laços de fé no seu Deus de amor e de amorável benignidade, com um novo reconhecimento do propósito da sua eleição. Havia duzentos anos que os profetas Isaías (2.2-43), Miquéias e outros vinham entendendo e explicando a missão sacerdotal do povo eleito. Ora, no período depois da volta do cativeiro, a congregação religiosa de Israel, com a orientação de seus profetas, reconstruíram o templo, restabeleceram o culto, recolheram e preservaram os seus documentos da revelação divina para todos os povos do mundo. Nas profecias, desde Isaías até Zacarias, um período de mais de duzentos anos, encontram-se mensagens sobre a salvação e o preparo do restante dos fiéis para efetuar o propósito do Senhor na eleição de Israel. Estas passagens representam vários pontos de vista, mas concordam, em geral, nos seguintes ensinos: O Senhor dos exércitos, com os maravilhosos recursos do seu amor e justiça, está sobrepujando as ambições e as lutas políticas das nações na direção do seu povo no cumprimento do propósito divino na eleição de Israel. O restante, entendendo muito pouco das operações da providência divina nas vicissitudes da sua história, mantém a sua fé no Senhor e, embora com alguma relutância, confia nas mensagens de esperança de seus profetas. Deus assim levanta os profetas, como seus mensageiros, para interpretar o significado das suas atividades na história, e para animar, encorajar e orientar o restante fiel no seu serviço ao Senhor. Os profetas entendem, cada vez mais claramente, que é o propósito do Senhor estabelecer o seu reino entre todas as nações do mundo. Os profetas percebem e explicam a fome espiritual das nações e o seu regozijo no privilégio de apegar-se ao povo do Senhor. “Pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor Como as águas cobrem o mar” (Is 11.9). “Pois o Senhor terá compaixão de Jacó, Ainda escolherá a Israel e os porá na sua própria terra. O estrangeiro se agregará a eles, e estes se apegarão à casa de Jacó” (Is 14.1). “Muitos povos e poderosas nações virão buscar o Senhor dos exércitos em Jerusalém, e para suplicar o favor do Senhor. Assim diz o Senhor dos exércitos: Naqueles dias pegarão dez homens, de todas as línguas das nações, sim, pegarão na orla do vestido de um judeu, dizendo: Iremos convosco, porque temos ouvido que Deus é convosco” (Zc 8.22,23). Deus, como Pai, no Velho Testamento Muitos teólogos não dizem nada sobre o amor paterno do Deus do Velho Testamento. Pregadores do evangelho exageram demais o contraste entre os ensinos do Novo Testamento sobre o amor paterno de Deus e a ênfase do Antigo Testamento na autoridade severa do Deus de Israel. Ê verdade que os termos marido e pai, entre os povos antigos, incluindo semitas, acentuavam tanto a autoridade como o amor do pai. Mas na religião do povo de Deus, no Velho Testamento, o amor de Deus, como pai, recebe muito mais ênfase do que a sua autoridade paterna, especialmente entre os grandes profetas que 121


receberam a mais ampla revelação do caráter de Deus. Entre as onze passagens que se referem diretamente a Deus, como pai, nove delas dão ênfase ao seu amor, enquanto as outras duas falam da honra e o temor que lhe é devido, como pai de seu povo (Mt 1.6; 2.10). Há também várias passagens que falam figuradamente do Senhor como pai, e Israel como seu filho, ou os israelitas como seus filhos, Nestas comparações o amor ou a compaixão do Senhor recebe ênfase. “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece daqueles que o temem” (Sl 103.13). “Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei a meu filho” (Os 11.1). “Tu, ó Senhor, és nosso pai; nosso redentor desde a antiguidade, é o teu nome” (Is 63.16). “Pois sou pai de Israel, e Efraim é o meu primogênito” (Jr 31.9; ver também Dt 32.6; 2 Sm 7.14; Sl 68.5; 85.27; Is 64.8; Jr 3.4; 4.19). Nestas passagens o Senhor é reconhecido como o pai do seu povo, na sua coletividade, mas não se nega ao israelita como indivíduo o direito de chamar-se, ou de ser chamado “filho de Deus”. Segundo o que notamos no Capítulo VI, a democracia dos israelitas, a dignidade do homem e a defesa dos seus direitos indicam que o israelita como indivíduo tinha o privilégio de pensar no Senhor como seu pai, e reconhecer-se a si mesmo como filho de Deus. É claro que a declaração de 2 Samuel 7.14 refere-se a um dos filhos de Davi como filho de Deus, mas é uma passagem messiânica, e declara que o ungido do Senhor terá uma relação filial com o Senhor. O Salmo 89.27 refere-se a este mesmo filho de Davi como primogênito do Senhor. Mas no Salmo 68.5 Deus é reconhecido como pai dos que não têm pai, e em Isaías 63.16 os israelitas que temem ao Senhor são chamados filhos do Senhor. Parece, pois, que o israelita como indivíduo, no Velho Testamento, pensava de si mesmo como filho do Senhor, e o invocava como seu pai. O Eclesiástico (23.1,4) diz: “Ó Senhor, pai e mestre da minha vida ... Ó Senhor, pai e Deus da minha vida”. 129 Em todos os períodos do Antigo Testamento o israelita reconheceu-se a si mesmo como criatura sob o cuidado providencial de Iavé, objeto do amor imutável (hesed) do seu Deus. Os povos contemporâneos dos israelitas falavam do seu deus como pai deles no sentido físico. A tribo, ou o clã atribuía a sua origem ao seu deus, ao seu primeiro pai, o seu mais antigo ante cessar (Nm 21.29; Ml 2.11). O conceito do Senhor como pai, entre os israelitas, era espiritual, completamente desassociado de qualquer idéia de paternidade física. Para eles, o homem foi criado à imagem de Deus. A filiação divina do povo de Israel foi devido à obra da graça, no seu livramento e na sua eleição como o filho primogênito do Senhor. A frase a paternidade do Senhor expressa o amor divino, que é também representado pela figura de médico (Êx 15.26; Os 6.1; 7.1; 14.5), ou de pastor (Sl 23; Êx 34). Oséias é o primeiro pregador da graça de Deus, o primeiro profeta que descreve o amor do Senhor nos termos íntimos de ternura e compaixão nas mais profundas relações humanas. Despertou a consciência do seu povo pela exibição do amor do Senhor como o mais poderoso atributo divino na redenção do homem.

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Thomas Nelson and Sons, The Apocrypha, 1894, pp. 94 e 95.

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CAPÍTULO X O REINO DE DEUS É profundo o significado bíblico da frase “o reino de Deus”. Examinado à luz do conceito da soberania de Deus, o governo divino do universo é eterno; é também manifestado na direção da vida dos homens, e será realizado na sua perfeição ainda no futuro. A frase exata não consta no Velho Testamento, mas os escritores apresentam o Senhor Deus como o Criador e Controlador de todas as coisas, segundo a perfeita sabedoria do seu propósito. Na escolha de Israel como o seu povo sacerdotal, o Senhor revela o seu propósito de estabelecer o seu reino entre todas as nações do mundo. Na realização progressiva deste propósito, ele se revela como o diretor da história humana. Estas idéias fundamentais do Velho Testamento já foram mencionadas várias vezes no curso desta obra, e têm que ser lembradas no exame bíblico do reino de Deus. O Povo de Israel e o Reino de Deus É fato de importância histórica que os escritores do Velho Testamento, em geral, reconhecem Moisés como o fundador da sua nação. Ele é reconhecido também como o profeta que transmitiu a Israel a revelação do seu Deus Iavé. Através do Velho Testamento inteiro Iavé é o Deus de Israel, identificado com Elohim, o Criador de todas as coisas, e com EI Shaddai, o Todo Poderoso, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. As Escrituras reconhecem que o Senhor tinha dirigido o mundo desde a criação (Dt 32.8), e mostram nos primeiros onze capítulos de Gênesis que Abraão era descendente de Sem, filho de Noé, segundo a linhagem de Arfaxade e Eber (Gn 10.21-24; 11.13-26). Era a escolha de Israel, libertado do poder do Egito pelo Senhor e por ele estabelecido na Palestina como sua nação sacerdotal, uma unidade religiosa que representava uma nova forma do reino de Deus no mundo. Israel trouxera consigo do Egito uma nova religião desconhecida no mundo até então. A sua fé era tão drástica que representava um rompimento completo com todas as formas do paganismo antigo. Há opiniões diferentes sobre a natureza da nova religião de Israel que resultou da sua libertação do Egito. Os israelitas, porém, tinham a certeza de que Iavé, o seu Deus, lhes aparecera e, no seu poder, os libertara sem qualquer esforço da parte deles. Eram apenas testemunhas do poder do Senhor na sua libertação. Assim a religião de Israel foi excepcional, incomparável, não somente na sua origem, como também nos seus característicos fundamentais. Primeiro de tudo, a sua fé foi monoteísta. Esta declaração é freqüentemente contestada, mas sem argumentos persuasivos. Para Israel, havia um só Deus, e o mandamento, “Não terás outros deuses perante (além de) mim”, proibia o reconhecimento de qualquer outro deus. O Senhor se apresenta como Deus zeloso, que não tolera qualquer outro deus. O monoteísmo de Israel não era uma doutrina logicamente formulada, no sentido moderno, mas era prático e não permitia a adoração de qualquer outro deus. Alguns israelitas reconheciam a existência de outros deuses, mas quando os adoravam eram cortados da congregação dos fiéis, como no caso daqueles que adoraram o bezerro de ouro. À luz dos novos conhecimentos da arqueologia bíblica e da vasta literatura das religiões contemporâneas, não é mais possível manter a teoria de que a fé dos israelitas que vieram do Monte Sinai para a Palestina era uma religião tribal que gradualmente se desenvolveu em monoteísmo. 130 130

G. Ernest Wright, The Old Testament Against Its Environment, p. 13: “Como é que Israel se tornou uma nação com tanta fé em seu Deus que a sua própria existência foi entendida como milagre de graça? Os profetas não inventaram este conceito extraordinário, pois já existia antes deles. O estudo sociológico não explica, porque a mudança da vida nômade para a vida agrícola não podia efetuar uma tal inovação religiosa. Nem o ambiente pode fornecer a resposta, pois o Velho Testamento apresenta testemunho eloqüente ao fato de que a religião dos cananeus era o mais perigoso agente para a desintegração que Israel tinha que enfrentar. O conhecimento de Israel da sua eleição por Deus tem que ser atribuído à reflexão teológica sobre o significado do seu êxodo do Egito. É o princípio determinante da teologia do Velho Testamento, e pertence à esfera da fé religiosa, que não pode ser explica da ou entendida pelo critério do crescimento”.

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Neste estudo da teologia do Velho Testamento, verifica-se progresso na revelação do Senhor ao povo de Israel através da sua longa história. É uma revelação coerente e harmoniosa do princípio ao fim. A revelação de Iavé como o verdadeiro Deus começou com a salvação e a escolha de Israel, como o mensageiro do Senhor a todos os povos do mundo. Esta experiência de Israel era tão revolucionária, tão maravilhosa, que era impossível entender logo a sua plena significação. A fidelidade do Senhor no cumprimento do seu concerto com Israel; as suas atividades na história do seu povo escolhido: enfim, todas as suas comunicações com os profetas na direção providencial do seu povo relacionam-se com o seu propósito no livramento e na eleição de Israel. O Velho Testamento e a história de Israel, são evidências do milagre da graça do Senhor na redenção e na escolha de Israel para cumprir o seu propósito no estabelecimento e no desenvolvimento do seu reino no mundo. A fé de Israel no Senhor exigiu a exclusão ele outros deuses como divindades. Iavé, o Deus de Israel, não tem consorte, nem progênie. Não há na língua hebraica a palavra “deusa”. O Senhor é o único Deus para o povo de Israel. Ele não podia ser representado por qualquer imagem (Êx 20.4). O Velho Testamento fala freqüentemente sobre a adoração de deuses falsos, mas não tem referência a qualquer esforço de fazer uma imagem do Senhor. A arqueologia não tem descoberto qualquer imagem de um Deus macho nas habitações antigas dos israelitas. Israel cria firmemente que o seu Deus era o Controlador dos eventos da história. Na direção da história ele revela o seu poder e a sua justiça. Esta crença é muito significativa em relação ao estabelecimento e ao desenvolvimento do reino de Deus no mundo. Os deuses dos pagãos eram apenas personificações das forças da natureza, sem caráter definitivo. A sua força era limitada pelos deuses rivais. Eles não tinham qualquer entendimento moral dos eventos. Em contraste, o Deus de Israel dirige os movimentos dos corpos celestiais e todas as forças da sua criação. Não tem qualquer habitação fixa, e pode vir logo em socorro do seu povo no Egito, no Sinai, em Canaã ou em qualquer outro lugar. O Velho Testamento apresenta narrativas de grande valor histórico, 131 mas os autores não escreveram para preservar os fatos dramáticos da sua história política, nem para interpretar cientificamente o significado da sua cultura para o progresso da civilização. Como profetas, eles se interessavam na interpretação dos princípios espirituais dos eventos da sua história. Os escritores bíblicos criam firmemente na relação entre a história e a religião. As suas mais profundas experiências religiosas ficaram entranhadamente entrelaçadas com os mais importantes eventos da sua história, não somente no estabelecimento do povo como nação, mas também nos períodos críticos da história, e fielmente no cumprimento da sua missão messiânica. Deus não fica isolado do mundo que fez, nem do homem criado à sua imagem. A saída de Israel do Egito é interpretado como ato do amor imerecido do Senhor. Todos os sinais e maravilhas que acompanharam o livramento do poder de Faraó são reconhecidos como atos da graça de Deus. O concerto que o Senhor ofereceu a Israel no Monte Sinai foi mais uma revelação da sua amorável benignidade. A aceitação das condições e das responsabilidades do concerto foi a resposta de Israel à graça de Deus. Assim Israel começou a sua história como nação reunida, escolhida, vocacionada pela graça do Senhor, para viver sob o seu governo e como o povo sacerdotal do reino de Deus. Israel ficou assombrado por estas experiências espirituais com o Senhor, Criador de todas as coisas e Controlador da história. O livramento e a eleição de Israel levaram consigo o profundo sentido do seu destino entre os povos do mundo (Êx 19.5). A finalidade da sua escolha despertou no povo uma confiança que nenhuma tragédia nacional podia destruir. O conceito da história que Israel recebera na revelação do propósito do Senhor na sua eleição desenvolveu no povo a tendência de olhar para o futuro com esperança, especialmente nas experiências de vexame e desânimo. 131

John Bright, op. cit., p. 27: “A posição hipercrítica da narrativa do Êxodo, tão popular por alguns anos, não pode mais ser mantida. Não pode haver dúvida de que uma multidão de hebreus era escravo no Egito; que Moisés, sob o ímpeto de uma tremenda experiência religiosa, os tirou de lá, verificando-se simultaneamente acontecimentos tão estupendos que nunca foram esquecidos; e que então vieram ao monte no deserto onde aconteceram aqueles eventos que fizeram deles um povo, e lhes deram aquela religião distintiva que havia de moldar o curso inteiro da sua história. Assim as origens de Israel são encadeadas a eventos históricos tão certamente como as do cristianismo. A medida que Israel absorvia sangue novo na sua estrutura tribal, a tradição do Êxodo se estendia, tornando-se normativa para todos, até para aqueles cujos antepassados não tiveram participação no Êxodo”.

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Em certos períodos da sua história Israel focalizou seu pensamento quase exclusivamente no privilégio do seu lugar entre os povos do mundo, e nas promessas que tinha recebido como o povo da escolha divina. A coisa mais difícil para este povo, em todos os períodos da sua história, foi o problema de reconhecer que privilégios especiais levam consigo responsabilidades especiais. Profetas como Amós (3.1-2), Isaías (5.1-7) e Jeremias (26.1-15), combateram poderosamente esta mentalidade do seu povo, sem êxito. Com o crescimento do espírito do nacionalismo, povo tinha que lutar com a dificuldade de se lembrar de que o seu Senhor, Iavé, era o Deus de todos os povos e não meramente de Israel. Com todas as suas imperfeições, Israel nunca chegou a crer que fora escolhido como o povo do Senhor por causa dos seus méritos. Fora escolhido para servir como testemunha do poder e da graça do único Deus, o único Salvador da humanidade. O concerto que recebera do Senhor foi mais urna revelação da graça de Deus, que pedia obediência e fidelidade da parte do povo, mas o Senhor se mostrou tardio em irar-se e misericordioso no perdão das fraquezas e falhas do povo no cumprimento das condições do concerto. Não obstante a fraqueza dos israelitas entre os cananeus, no primeiro período da sua história, e as tentações de ir após os deuses da lavoura, os fiéis mantiveram a confiança firme nas promessas do seu Senhor Iavé. Israel não era ainda uma nação. Era apenas uma liga de tribos, unidas pela fé em Deus. As tribos mantiveram a sua independência por duzentos anos. Os anciãos das tribos exerceram autoridade moral, mas não havia um governo central. “Naqueles dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que era reto aos seus olhos” (Jz 21.25). O Senhor reinava sobre o povo (8.23). Na ocasião das festas o povo se reunia ao redor do santuário da arca para buscar a presença do Senhor e renovar as promessas de fidelidade. O livro de Juízes explica como as tribos, sem autoridade central, mantiveram a sua existência como povo. Em tempos de perigo, quando vizinhos ameaçavam subjugá-los ou destruí-los, um homem corajoso, sob o poder do Espírito do Senhor (3.10; 14.6), reunia homens das tribos vizinhas e libertava o povo da opressão. Assim o libertador ganhava prestígio e recebia o titulo de juiz, mas não estabelecia a sua autoridade como rei sobre o povo. Esta teocracia (governo do Senhor), neste primeiro período da história de Israel, mostrou-se firme e persistente em manter-se contra o estabelecimento de cidades-estado entre as tribos, semelhantes aos governos dos pequenos reis cananeus. E no seu amor da democracia, resistiu por muito tempo à fundação da monarquia. Mas os filisteus, que vieram da região do Mar Egeu e se estabeleceram nas costas e no sul da Palestina, depois de sofrer uma derrota no esforço de entrar no Egito (cerca de 1188 a.C.), ameaçaram destruir as tribos desorganizadas de Israel e tomar a terra. Os israelitas conseguiram estabelecer-se na Palestina porque os pequenos estados dos cananeus não podiam oferecer Uma resistência unida. Mas os filisteus eram um povo militar, unido e bem organizado. Manifestaram, pelas suas atividades, o propósito de subjugar os israelitas e estabelecer o seu domínio da Palestina. O capítulo 4 de 1 Samuel conta a história da derrota dos israelitas pelos filisteus. A arca foi capturada, os filhos do sacerdote, Hofni e Finéias, e muitos outros israelitas foram mortos. Foi uma grande humilhação militar e moral para Israel. Os filisteus estabeleceram guarnições no meio dos israelitas (1 Sm 13.4). Israel foi desarmado, e o seu poder de resistir ao inimigo foi destruído (1 Sm 13.19-23). Esta demonstração do poder e do propósito dos filisteus despertou os israelitas para reconhecer que o único meio de defender-se contra o perigo dos invasores era a união de todas as forças das tribos. Apesar da oposição, os israelitas fundaram, com relutância, a monarquia, escolhendo Saul, da tribo de Benjamim, como o primeiro rei. Figura majestosa, de boa aparência (1 Sm 9.2; 10.23), corajoso (11.1-11), modesto (9.21) e de espírito generoso (11.12,13), é difícil analisar e avaliar a influência do caráter e da carreira de Saul no desenvolvimento do reino de Israel. Ele sofreu desvantagem em comparação com Samuel e Davi. Os capítulos 13 e 14 de I Samuel descrevem as vitórias de Saul e Jônatas sobre os filisteus. Estas vitórias quebraram a força dos filisteus na Palestina central, e provavelmente decidiram o domínio de Israel sobre os seus maiores inimigos. A tragédia da derrota e da morte de Saul e seus três filhos valentes, na batalha de Gilboa, eclipsou em parte a significação do seu serviço na formação da monarquia, mas deixou o caminho preparado para completar o domínio dos israelitas pelo grande sucessor Davi. 125


Davi era o homem da hora. Possuía a sagacidade política de livrar-se jeitosamente da má influência de haver servido como vassalo dos filisteus e as qualidades de personalidade para ganhar a confiança das tribos do norte e estabelecer-se como rei de todos as israelitas. Foi reconhecido como o ungido do Senhor, e assim governou como o representante de Deus. Capturou a Jerusalém dos jebuseus, e ali estabeleceu a capital política e religiosa de Israel, trazendo a arca do Senhor para a cidade como o símbolo da presença do Senhor. Organizou sabiamente o seu governa, desenvolveu o exército e com entusiasmo e poder entrou na campanha de conquista, que finalmente resultou na extensão do seu império desde o golfo de Acaba, no sul, até a Síria central, no norte. Outros reis fizeram com ele alianças de paz (2 Sm 8.9,10). As conquistas de Davi firmaram as bases de prosperidade econômica, e Salomão teve a habilidade de aproveitar-se das novas condições. Ele controlou os caminhos comerciais desde o Egito até o norte, e desde o litoral da Fenícia até o inteirar do país. Com o lucro dos impostos, o comércio de cavalos e carros, a fundição de cobre em Eziom-Geber e a comércio de tora, Israel prosperou fabulosamente. Salomão fez alianças com povos vizinhos, e assim evitou a guerra. Confirmadas por casamentos, estas alianças explicam, em parte, as numerosas esposas de Salomão (1 Reis 11.1-3) e a introdução da idolatria na corte. Pela aliança com Hirão, de Tiro, Salomão ganhou o auxílio indispensável para o seu grande programa de construção. O templo, as instalações militares, o palácio do rei, o arsenal de armas, o pórtico do trono e o palácio da filha de Faraó são evidências da riqueza e do esplendor da corte de Salomão (1 Reis 10.11-29). Estas atividades representaram uma grande mudança na estrutura da sociedade de Israel. Salomão aboliu a liga das tribos e estabeleceu o estado com a autoridade centralizada no rei. Davi iniciara o processo que foi completado quando Salomão nomeou os administradores dos doze distritos, sujeitos à sua autoridade (1 Reis 4.7-19). Assim a teocracia, preservada no princípio do reinado de Davi, gradualmente deu lugar à dinastia, acompanhada por mudanças radicais na sociedade nômade do povo do concerto. Mas o reino de Davi foi considerado por gerações subseqüentes como o período áureo da sua história. Floresceram a literatura e a cultura. Israel tinha realizado a promessa de tornar-se uma grande nação (Gn 12.2). Ocupou a terra prometida, pela primeira e pela última vez, um fato de que Israel nunca pôde se esquecer. Apesar das aparentes vantagens, o desenvolvimento da religião mantida pelo estado trouxe novos perigos para a religião de Israel. Os reis se esforçaram para controlar e subordinar a religião aos interesses do Estado, quando isto era considerado para o bem do reinado (1 Reis 1.7,25; 2.26). Havia, porém, influências que obstavam a deificação do rei ou do Estado. Embora reconhecido como o ungido do Senhor, o rei nunca foi considerado como o mediador da salvação nacional, como na Babilônia. Israel enfrentou a perigo de igualar o reino política de Davi com a reina de Deus, e pensar que o Senhor tinha estabelecido o seu reino na terra na sua forma final. A Natureza do Reino de Israel O conceito do reino de Israel como teocracia foi mantido apesar das suas falhas e fraquezas. Mas os dois pontos de vista sobre a fundação e a natureza da monarquia manifestaram-se por muito tempo depois do período de Davi e Salomão. Um ponto de vista representado em partes da literatura histórica, geralmente designadas como a obra de J (escritor que usou o nome de Iavé), não manifesta qualquer hostilidade contra aqueles que fundaram a monarquia. O outro escritor, designado por E, porque usou o nome Elohim como o nome de Deus, pensava que a monarquia seria um desastre para o povo de Israel. 132 É ele quem descreve a vida dura de qualquer povo governado por um rei. Parece que está descrevendo as condições sociais e econômicas do grupo dos oprimidos na reinado de Salomão. 132

Alguns conservadores não aceitam a hipótese de que o autor tivesse usado dois documentos, representados por J e E, mas é inegável a representação dos dois pontos de vista quanto ao estabelecimento da monarquia.

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Mas os representantes destes dois pontos de vista concordam em que o Senhor escolheu o primeiro rei de Israel, e que não abandonou o seu povo, mesmo quando alguns dos reis se revoltaram contra a vontade de Deus e muitos israelitas se afastaram do Senhor. O poder do rei de Israel era limitado no princípio, especialmente no reinado de Saul, mas Davi, pela força da sua personalidade, de seus talentos maravilhosos, de suas conquistas de terras e povos e de sua organização, aumentou rapidamente o prestígio e a autoridade do rei. Salomão, com sabedoria, indústrias, comércio e riquezas, centralizou autoridade cada vez maior na corte, até o ponto de organizar o sistema de trabalho compulsório no serviço público, além dos impostos pesados para manter a família real, os numerosos príncipes, nobres e outros membros das classes privilegiadas, imbuídas da noção de que os súditos do reino existiam para servir ao governo (1 Reis 12.1-15). Apesar do magnífico templo, e o patrocínio extravagante do culto nacional pelo governo, a religião tolerou ajustes com o paganismo, fato que evidentemente desagradou a alguns dos fiéis de Israel (1 Sm 7.5-7). Surgiu uma reação violenta contra o Estado de Salomão. O sentimento contra a monarquia ainda persistia em alguns círculos, e a política opressiva do rei causou a revolta dirigida por Jeroboão. O conceito do destino de Israel, segundo o concerto do Sinai, foi mantido pelos fiéis, mesmo no período do reino dividido e depois do reino de Judá, apesar dos muitos obstáculos, como interesses pessoais e o indiferentismo por parte dos reis e de multidões do povo. O sentimento contra a monarquia, representado por Gideão, Jotão e Samuel, nunca foi completamente apaziguado. Persistia a convicção de que a monarquia não concordava com o destino verdadeiro de Israel, visado na sua eleição. E a história de Israel revela a antipatia e a oposição de muitos reis contra a orientação profética que procurava manter a fidelidade do povo ao Senhor. A revolta política contra Reoboão foi inspirada pelos profetas, mas infelizmente o resultado foi desastroso do ponto de vista político, e nada contribuiu para a reforma da religião. O Reino do Norte rompeu com a política de Salomão, e prosseguiu, adotando o mesmo modo de governar; e o governo dominava a religião estatal com maior rigor do que o de Salomão. A crise mais grave no Reino do Norte veio no meio do século nono a.C. Onri (876-869) usurpou o trono (1 Reis 16.15-28), e foi seguido por seu filho Acabe (869-850). Estes reis procuraram aumentar e enriquecer o seu reino. Dominaram os sírios, e fizeram aliança com a Fenícia pelo casamento de Acabe com Jezabel, filha de Ethbaal, rei de Tiro (1 Reis 16.31). Acabe terminou as guerras entre Judá e o seu reino, casando a filha, Atalia, com Jeorão, filho de Josafá (1 Reis 8.18). Parecia sábia esta política, mas a influência de Jezabel pesou mais na balança do que as vantagens políticas. Mulher de vontade de ferro, Jezabel era devota do Baal de Tiro, e veio com o zelo e o firme propósito de fazer do baalismo a religião oficial de Israel. Sendo tolerante, Acabe edificou para ela um templo de Baal (1 Reis 16.32). Enfurecida por qualquer oposição, e especialmente pelas denúncias de Elias, Jezabel usou toda a sua força e prestígio como rainha contra os profetas do Senhor (1 Reis 18.19). A luta de Elias com Acabe e Jezabel não era apenas a pregação de um profeta fanático. Elias revelou o seu amor da justiça social na severa condenação de Acabe, que seguiu o conselho de Jezabel, levantou acusações falsas contra Nabote e o matou, a fim de possuir a sua vinha. Elias reconheceu o perigo do baalismo que aviltava a vida moral do povo, e o poder de Jezabel, que resolvera exterminar a fé do povo do Senhor e estabelecer o baalismo como a religião oficial de Israel. Os profetas do Senhor que não foram mortos por ela (1 Reis 19.13) ficaram calados, por medo da morte (18.9). À luz da literatura de Ras Shamra133 sabemos da baixeza moral do culto de Baal Melcarte, de Tiro. Uma questão importante era esta: quem havia de ser e Deus de Israel, Iavé ou Baal (1 Reis 18.20-24)? O baalismo já estava exercendo uma influência notável na vida do povo quando Jezabel veio a Samaria. Muitos se tinham afastado do Senhor, e apresentavam as súplicas aos deuses e deusas da família de Baal para que Ihes dessem a produtividade do solo. Mas Jezabel representa o primeiro esforço da parte do governo para impor o baalismo como a religião de povo. 133

Cyrus H. Gordon, Introduction to Old Testament Times, Cap. VI.

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A política de Jezabel era intolerável para com “os filhos dos profetas” e o povo conservador de Israel. No tempo oportuno explodiu a reação violenta (2 Reis 9.10). Jeú, general ambicioso, apoiado pelos profetas, fez mais do que os seus patrocinadores esperavam dele. O derramamento de sangue por Jeú é uma história de brutalidade quase sem paralelo. Ele matou o rei Jorão de Israel, Jezabel, o rei Acazias de Judá e seus irmãos, e toda a casa de Acabe, incluindo os homens da corte e todos os seus filhos. Depois convocou os sacerdotes e os sectários de Baal no templo em Samaria e ordenou aos soldados que os matassem. Esta brutalidade deteve o progresso do baalismo importado de Tiro, promoveu as ambições políticas de Jeú e outros oportunistas, mas pouco ou nada contribuiu para a purificação da religião de Israel ou para melhorar as condições econômicas do povo. A revolta chefiada por Jeú era principalmente política, e não transformou Israel em reino de Deus. Pouco se interessava Jeú na purificação de Israel. Deixou em Samaria a Aserá, símbolo da deusa do baalismo (2 Reis 13.6). Exterminou o paganismo estrangeiro, mas o nacional continuou, com o apoio de alguns profetas patriotas que prestaram o seu serviço ao reinado de Jeú, pensando que se tornara o Estado do Senhor. O “louco” (2 Reis 9.11) que, ao mando de Eliseu, ungiu a Jeú era da ordem dos “filhos dos profetas”. Eles apareceram no tempo de Samuel, profetizando em grupos e usando instrumentos de música (1 Sm 10.5-13; comp. 2 Reis 3.15). Falavam com agitação violenta, arrebatados pelo frenesi (1 Sm 19.18-24). Representavam o nacionalismo conservador e mostravam-se patrióticos. Acompanhavam os exércitos nos campos de batalha (2 Reis 3.10-19; 2 Cr 20.14-18) e não tinham pena dos inimigos (1 Reis 20.31-43). Jonadabe, simpático para com os profetas, representa o ódio criado contra a casa de Acabe (2 Reis 10.15-17). Na última parte do século nono a.C., a Assíria apareceu como ameaça para Israel, Síria e os seus vizinhos. Nação antiga, a Assíria fora importante no período de Abraão, mas, devido a fraquezas internas, não se interessava nas atividades internacionais. Começou a campanha de expansão em 870 a.C., com as conquistas pelo rei Asurnarsipal, no norte da Mesopotâmia. Apesar das lutas entre si, Israel e a Síria fizeram uma aliança, e em 853 travaram uma grande batalha com Salmanaser III em Carcar (Qarqar), perto do rio Orontes. O assírio escreveu da sua vitória de Carcar, mas a sua marcha para oeste ficou detida por algum tempo. Três anos depois, Israel e a Síria renovaram a sua luta, e Acabe foi morto na batalha de Ramote de Gileade, e por meio século Israel permaneceu humilhado e dominado pela Síria. Nesse período a Síria repeliu mais duas invasões de Salmanasar, mas em 805 Adade-nirari conquistou a terra de Arã (Síria), enquanto Israel escapou. A Assíria entrou em outro período de fraqueza, e sem o perigo de inimigos de fora, Israel entrou na época mais próspera da sua história. O rei Jeoás (801-786) começou a campanha de expansão, subjugando a Síria, a sua antiga rival. Mas foi Jeroboão II que, no seu longo reinado (786746), levantou Israel até a maior altura da sua glória política. Estendeu as fronteiras de Israel para incluir o território dominado por Salomão no norte (2 Reis 14.25). O rei contemporâneo de Judá, Azarias ou Uzias (783-742), também alargou o seu domínio, e o território dos dois reinos era quase igual ao de Salomão. A arqueologia confirma as descrições das riquezas de Samaria, apresentadas na profecia de Amós. Como no tempo de Salomão, a sociedade ficou corrompida, mas esta vez a doença foi para a morte. A avareza sem consciência, a injustiça sem escrúpulo, a opressão, a imoralidade e o desprezo da dignidade humana caracterizavam a sociedade (Am 2.6-8; Os 4.4-14). Apesar das riquezas fabulosas dos privilegiados, muitos viviam na miséria e desespero da opressão e pobreza. A religião do Reino do Norte foi dominada, desde o princípio, pelos reis e sujeitada aos interesses do Estado, quase divorciada da moralidade (Am 7.10-13). Mas a religião formal, associada com a prosperidade, era muito popular. Ajuntava-se o povo aos santuários com os seus sacrifícios para ganhar os favores divinos (Am 4.4,5; 5.21,23). Apesar da doença mortal de Israel, o povo tinha uma confiança quase incrível no futuro. Considerando-se o povo escolhido, e com a vista limitada pela posição politicamente favorável no momento, os israelitas, no seu orgulho, viviam sossegados, sentindo-se seguros no monte de Samaria (Am 6.1), esperando o Dia do Senhor, quando o reino de Deus seria estabelecido e o propósito de Iavé na escolha de Israel seria gloriosamente realizado. 128


A profecia de Amós, mensageiro autorizado com a palavra de Deus, assim fala aos israelitas orgulhosos que se julgavam o povo favorecido do Senhor. “Vós que converteis a justiça (juízo) em veneno, e jogais por terra a retidão (righteousness)... Odeiam ao que repreende na porta, e abominam ao que fala com integridade! Portanto, visto que pisais o pobre, e dele exigis um tributo de trigo, Edificastes casas de pedras lavradas, Mas nelas não habitareis. Plantastes vinhas desejáveis, mas não bebereis do vinho delas. Pois sei quão numerosas são as vossas transgressões, E quão grandes os vossos pecados, vós, que afligis o justo, tomando peitas, e rejeitais os necessitados na porta” (5.7,10-12). Amós sabia que os pecados do povo de Israel, o povo privilegiado, revelavam a sua perversidade, o egoísmo, que dá mais importância ao conforto pessoal do que à retidão e à justiça. Fala às senhoras ricas, prestigiadas, dominantes e orgulhosas: “Ouvi esta palavra, vós, vacas de Basã, Que estais no monte de Samaria, que oprimis os pobres, que esmagais os necessitados, Que dizem aos seus senhores: Dai cá, para que bebamos” (4.1). A sociedade não se pode curar por uma religião que despreza a justiça e afronta a Deus com o sacrifício de animais cevados e ofertas pacíficas. 134 “Odeio, desprezo as vossas festas, e não tenho prazer em vossas assembléias solenes, Ainda que me ofereçais os vossos holocaustos, e as vossas ofertas de cereais, não os aceitarei; nem atentarei para as ofertas pacíficas dos vossos animais cevados. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; Não ouvirei a melodia das vossas harpas. Desça, porém, a justiça (juízo) como águas, e a retidão (righteousness) como corrente perene” (5.21-24). O desastre pronunciado por Amós sobre Israel veio depressa. O Reino do Norte caiu em 721, vinte e cinco anos apenas depois da morte do grande Jeroboão II em 746. Neste breve período houve seis reis de Israel, três destes como o resultado de homicídios. O profeta Oséias viveu nesse tempo trágico, e descreve na sua obra a falta de lei e ordem (4.1,2; 7.1-7; 8.4; 10.3). Com o colapso da religião veio a decadência moral (4.10-14; 6.9; 7.1-7); a falta da instrução religiosa (4.6); o aumento da má influência do batismo (2.8,12); a prática crescente da imoralidade (4.13,14). A teologia de Oséias não é diferente da de Amós, mas dirigiu a sua mensagem ao povo no processo do colapso. Não acentua, como Amós, a injustiça e a opressão dos pobres, mas repreende mais severamente a idolatria do povo, o culto de Baal e a apostasia do povo do seu Senhor. Formulou em termos de casamento o concerto do Senhor com o povo de Israel. A adoração de outros deuses para Oséias é o pecado de adultério, como para os profetas subseqüentes, Jeremias e Ezequiel. Deus pede do seu povo o amor e a fidelidade (hesed) em resposta ao seu amor imutável e persistente (hesed) que ele tinha demonstrado ao povo através da sua história, mesmo quando Israel persistia na sua infidelidade. “Pois eu quero amor fiel, e não sacrifício, o conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (6.6). O profeta rejeitou e denunciou a crença popular de que Israel era o reino de Deus, com a mesma firmeza de Amós. Coma podia ser Israel a reino de Deus quando adorava deuses falsos e lhes atribuía a sua prosperidade material; quando praticava a imoralidade e a injustiça dos deuses falsos (2.12; 4.1-2), ao invés da pureza e justiça que o Senhor Iavé pede? Israel não é mais a povo de Deus, nem o reino de Deus, mas “Ló-Ami, não meu povo”. “Ai deles, porque fugiram de mim! Destruição sobre eles, porque se rebelaram contra mim! E eu queria remi-los, mas falam mentiras contra mim!” (7.13). Assim Oséias, como Amós reconheceu que o reino de Israel é destinado à destruição (8.13; 11.5; 9.3). Os israelitas serão escravos na Assíria como a foram no Egito. 134

H. W. Robinson, The Religious Ideas of the Old Testament, pp. 11 e 12: “Amós, como Oséias, discernindo a lei espiritual no mundo natural, interpretou o perigo do inimigo de fora como juízo divino. A largura da aplicação deste princípio correspondente ao conceito profético do próprio Javé como o governador das nações. Esta interpretação moral da história pelos profetas do século oitavo, juntamente com o seu entendimento do caráter de Deus, é o mais importante evento deste período. A pregação destes profetas tinha mais influência quando a própria história confirmou os princípios que eles tinham proclamado. Quando Samária finalmente caiu em poder dos assírios (722), foi vindicada a verdade da nova profecia que tinha ameaçado o desastre nacional como juízo divino sobre a injustiça social do povo de Israel”.

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O reino de Israel não é, e não pode ser, mais reconhecido como o reino de Deus na terra, mas Oséias não perdeu esperança quanto ao futuro de Israel. A profecia de Oséias relaciona-se com a experiência pessoal do profeta com Gomer, a sua esposa querida, mas infiel. O reino de Deus é divorciado do reino de Israel como Oséias é divorciado de Gomer. O profeta, no seu amor, suplicou e ganhou de novo o amor da sua esposa (cap. 3). 135 Oséias ficou plenamente certo de que o (hesed) amor imutável e persistente do Senhor não podia ser menos do que o seu próprio amor para com a sua esposa. Se, na tragédia da infidelidade da esposa, o amor de Oséias pôde ganhá-la de novo, quanto mais o amor persistente do Senhor poderia ganhar de novo o povo da sua escolha. A fidelidade do homem é fraca e falha, mas o amor imutável do Senhor não falhará. O Estado de Israel é destinado à ruína (2.3,9,12,13), mas Deus não destruirá por completo a Efraim (11.9). No exílio, Israel aprenderá de novo a pureza e a fidelidade da sua juventude (2.14,15), de que se esquecera (11.1-4; 13.4-6). Israel desposar-se-á de novo com o Senhor. “E desposar-te-ei comigo para sempre; desposar-te-ei comigo em retidão (righteousness) e justiça, Em benignidade amorável (hesed) e terna compaixão; sim, desposar-te-ei comigo em fidelidade, e conhecerás o Senhor” (2.19, 20). Assim o profeta olhou além da destruição do Estado de Israel, para um novo princípio e um novo concerto. Apesar das admoestações de Amós e Oséias, Israel, nas suas loucuras, andava depressa para a destruição. Salmanaser, da Assíria, ocupou a terra, mas Samaria resistiu por dois anos. Salmanaser faleceu enquanto sitiava a cidade que caiu frente ao seu sucessor, Sargão II, em 721 a.C. Foram levados para a Assíria 27.290 habitantes e ficaram misturados finalmente com os assírios. Numerosos assírios foram deportados para o território de Israel, e a mistura destes com israelitas produziu os samaritanos. Características Políticas e Religiosas do Reino de Judá Com a queda de Israel e a política de genocídio da Assíria, O povo desta pequena nação gradualmente perdeu a sua identidade. É provável que a esperança de Oséias (2.19,20), e de Jeremias (31.1-6,15-22), foi realizada em parte na vida de alguns israelitas fiéis, ou na sua terra ou no estrangeiro. Sabemos de 2 Cr 30.10,11, que alguns israelitas das tribos de Aser, Manassés e Zebulom aceitaram o convite de Ezequias e visitaram o templo em Jerusalém a fim de participar do culto ao Senhor. É também provável que alguns dos israelitas fiéis no território de Babilônia, tomada da Assíria, voltaram do cativeiro com os judeus, na restauração ordenada por Ciro. Mas a esperança para o futuro do reino de Deus na terra repousava com Judá. Judá, porém, ficou enfraquecida, política e religiosamente, com a infidelidade do rei Acaz, que tinha vendido a liberdade do povo ao rei da Assíria pela promessa de “libertá-lo” do poder imaginário de Rezim e Peca (Is 7.4). Assim, pagou caríssimo a Tiglate-Pileser para executar o que tinha planejado a fazer (2 Reis 16.7,8; Is 7.3,-9). Foi um golpe perigoso, porque introduziu o paganismo no templo de Jerusalém (2 Reis 16.10-18) e encorajou a prática das abominações dos estrangeiros (2 Reis 16.3,4; Is 2.6-8). O profeta Miquéias denuncia os pecados de Judá quase tão severamente como Amós tinha condenado a corrução de Israel. Descreve a avareza dos ricos (2.1-20), a venalidade dos juizes (3.1-3), os ensinos falsos dos profetas (3.5) e a corrução dos sacerdotes (3.11). Judá não é o povo do Senhor, nem o reino de Deus. Jerusalém, com o seu templo, será destruída (3.12). A morte de Acaz e o governo do seu filho Ezequias, homem totalmente diferente do pai no caráter e no modo de governar, trouxe novas esperanças para os fiéis de Judá. O rei Ezequias foi feliz em receber de bom grado os sábios conselhos e a orientação ajuizada do grande profeta Isaías. Homem de profundo entendimento da santidade e da justiça do Senhor, Isaías cria firmemente na escolha divina de Israel para servir no estabelecimento do reino de Deus na terra, na base dos princípios da justiça divina. Denunciou tão severamente como Amós, Oséias e Miquéias, os pecados do povo, e reconheceu que muitos dos homens de Judá, na sua ignorância e no seu amor da injustiça e 135

Há dúvidas quanto à identificação da mulher do capítulo três com Gomer, mas é contra o teor do ensino da profecia que o Senhor se divorciasse de um povo e restaurasse outro.

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imoralidade, nunca poderiam servir ao propósito divino na eleição de Israel. 136 Mas foi o primeiro profeta que compreendeu os maravilhosos recursos do Senhor na direção da história e na realização dos seus propósitos por meios espirituais que sobrepujam as revoltas, e a infidelidade de reis e de multidões do povo contra a sua vontade revelada aos profetas. É verdade que Judá, na sua totalidade, não era o povo de Deus, nem o reino de Deus, mas dentro do povo haveria sempre um restante de fiéis, representantes do reino como o agente do Senhor na terra. A submissão de Acaz a Tiglate-Pileser, com a introdução dos deuses da Assíria em Jerusalém, estimulou o sincretismo da religião de Israel com o paganismo da Assíria. Ezequias, apoiado e ajudado por Isaías, instituiu o movimento de purificar o seu povo das influências pagãs, tirando os altos, quebrando as estátuas, fazendo em pedaços a serpente de metal e centralizando o culto em Jerusalém (2 Reis 18.1-5). Convidou israelitas nas províncias da Assíria para virem à casa do Senhor em Jerusalém e “celebrarem a páscoa ao Senhor Deus de Israel”. 137 Havia diversos esforços entre os povos vizinhos de Judá para levantar, em conjunto, uma revolta contra a Assíria. O profeta Isaías, que tentou em vão dissuadir o rei Acaz da tolice de sujeitarse ao poder da Assíria, mostrou-se igualmente contra a participação de Judá na revolta contra ela. Como estadista, Isaías entendeu a futilidade de alianças políticas, e revoltas de pequenas províncias contra impérios poderosos. Quando o povo ficou entusiasmado com o convite de aliar-se com o Egito para livrar-se do poder da Assíria, Isaías reconheceu que o socorro do Egito era uma ilusão. O profeta andou “nu e descalço” por três anos “para servir de sinal e portento contra o Egito e contra a Etiópia”. Mostrou o caminho para Judá, segundo a palavra do Senhor Deus, o Santo de Israel: “Voltando e descansando, sereis salvos; no sossego e na confiança estará a vossa força” (30.15). A única esperança para Judá era o caminho estreito da fé. É a mesma mensagem que anunciou a Acaz: “Se não crerdes, certamente não sereis estabelecidos” (7.9). Depois da morte de Sargão (705), no reinado de seu filho Senaqueribe, o povo, no seu patriotismo destemido, desprezou o conselho do mensageiro do Senhor e se uniu por aliança com vizinhos na revolta contra a Assíria. Foi terrível o resultado. O exército poderoso de Senaqueribe invadiu a terra e capturou todas as quarenta e seis cidades fortificadas. Foi esmagado o exército do Egito, e o rei Ezequias, segundo a narrativa de Senaqueribe, foi fechado em Jerusalém “como pássaro engaiolado”. Foi discutido no capítulo IV o sítio de Jerusalém por Senaqueribe, a recusa de entregar a cidade e o significado da salvação de Judá no genocídio que o povo do norte sofreu. É especialmente notável a fé e a nobreza de espírito de Isaías nesta luta de vida e morte. Não censurou o rei e o povo por não terem seguido o seu conselho, mas animou-os pelo seu exemplo pessoal de coragem e confiança, e com a mensagem do Senhor: “Pois defenderei esta cidade para a salvar, por amor de mim e por amor do meu servo Davi” (37.35). Foi a hora sublime do profeta, do rei e do povo. Foi nesse tempo de alta coragem e terrível agonia que nasceu a esperança messiânica do povo do Senhor, que será discutida em outro capítulo. Para o encorajamento do seu povo, Isaías contrabalançou a sua severa condenação dos pecados com a esperança do futuro glorioso do reino de Deus que havia de ser estabelecido na terra por intermédio do povo fiel. Há certos princípios na fé e nos ensinos do profeta Isaías que se devem entender para compreender não somente a sua teologia, como também a teologia bíblica e as verdades fundamentais do reino de Deus em todas as épocas da história. Importa dar aqui um breve resumo destes ensinos. Deus é santo e justo. Foi explicado em outro lugar o progresso na revelação do caráter de Deus, e que os ensinos dos profetas se basearam, desde Amós, no conhecimento mais claro do caráter ele Deus. Isaías é o profeta da época que nos explica melhor como Deus opera na história em perfeita harmonia com os atributos de santidade, justiça, poder e amor imutável. Ele reconheceu que Judá estava sofrendo da mesma corrução que destruiu o Estado de Israel, e que estava enfrentando o mesmo perigo de exterminação. 136

A palavra Israel é usada aqui no sentido geral. O contexto geralmente mostra quando a palavra significa apenas o Reino do Norte. 137 Os israelitas zombaram dos correios que lhes trouxeram o convite (2 Cr 30.10,11), mas alguns fiéis o aceitaram. É provável que este esforço de Ezequias tenha motivado a reorganização do santuário em Betel (2 Reis 17.27,28).

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“Que é para mim a multidão de vossos sacrifícios? Diz o Senhor. Estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; e não me agrado do sangue, nem de cordeiros, nem ele bodes... As vossas luas novas e as vossas festas fixas a minha alma aborrece; tornaram-se para mim uma carga: estou cansado de as sofrer E quando estenderdes as vossas mãos, esconderei de vós os meus olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, eu não estou ouvindo. As vossas mãos estão cheias de sangue! Lavai-vos, purificai-vos; tirai a maldade dos vossos atos de diante dos meus olhos; Cessa i de fazer mal, aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, restringi o opressor; fazei justiça ao Órfão, defendei a causa da viúva” (1.11,14,17). Reconheceu que o reino de Judá não era o reino de Deus, que o seu povo não era o povo de Deus. Mas o profeta não vacilou na certeza de que o Senhor tinha escolhido Israel para fazer a sua vontade, e para assim servir ao seu propósito de estabelecer o reino de Deus na vida dos homens na terra. Isto será conseguido pelos recursos espirituais do Senhor na direção da história de Israel e das nações. Os agentes do Senhor serão os fiéis que sabem discernir e responder à disciplina do amor imutável do Santo de Israel através de todas as vicissitudes da decadência do estado político. Deus escolheu Israel para ser o seu povo, e lhe deu o concerto do Sinai. O povo aceitou voluntariamente as responsabilidades estipuladas no concerto, e poderia, em qualquer tempo, repudiálas voluntariamente. O fracasso do povo no cumprimento das suas promessas importou na rejeição do concerto. O povo de Israel é a vinha do Senhor (5.1-7), que o vinhateiro cultivou com cuidado e carinho, na esperança que desse os frutos de retidão e justiça, mas produziu a injustiça e a opressão. Portanto, Israel, o povo da parábola da vinha, foi entregue aos seus próprios desejos. Então, como se entende esta relação do Senhor com o povo de sua escolha e o seu propósito de usá-lo no estabelecimento do seu reino de justiça na terra? Isaías compreendeu a posição complicada do seu povo à luz da história da sua eleição, e do fracasso pendente do Estado de Judá, como tinha caído a nação de Israel, sem cumprir o propósito de Deus na sua escolha. A queda de Judá, como estado político, baldará completamente o propósito divina na eleição do povo de Israel? O concerto do Senhor ficará malogrado com o término do Estado de Judá? De modo nenhum. Isaías tem a solução deste problema eterno da teologia: a soberania do Senhor e o livre arbítrio do homem. A relação entre Deus e o seu povo de Israel não era mecânica, mas moral e espiritual. O povo escolhido para o serviço do Senhor é livre para aceitar, ou renunciar, as suas responsabilidades. A soberania do Senhor não é limitada pela fraqueza daqueles que deixam de cumprir as promessas de fidelidade. Mas o Senhor, na sua soberania, é limitado, nas atividades do seu reino, por seus atributos de santidade, justiça e amor. Todavia, há sempre o grupo dos fiéis que não dobra os joelhos a Baal, mas responde com gratidão à benignidade amorável do Senhor. É só este restante dos fiéis que o Senhor soberano pode usar no serviço espiritual do seu reino de amor e justiça. O Restante Fiel do Povo Escolhido Apesar da infidelidade do Estado de Judá, sob o governo de reis como Acaz e Manassés, Isaías não creu que a nação seria completamente destruída, como foi destruído o Estado de Israel. Apesar de ter caído Judá nos mesmos pecados que destruíram o Estado de Israel, Isaías não podia acreditar que a sua nação havia de ser totalmente exterminada. Para entendermos a personalidade de Isaías e o valor teológico de seus ensinos, temos que estudar o seu entendimento do caráter de Deus. A sua doutrina do restante fiel relaciona-se com suas profundas experiências religiosas com o Senhor. O Deus de Isaías é o Senhor santo da visão inaugural (cap. 6), o Deus cuja glória enche não somente o templo, como também a terra toda. Perante o Senhor santo e justo o homem mortal não é nada (2.11,12). Os poderes das nações da terra, como a Assíria, são apenas utensílios na sua mão (7.18,19). Na direção da história humana, Deus usa os poderes, como a Assíria, para conseguir os seus propósitos, em visitar sobre eles o fruto da sua arrogância (10.5-19). O Deus soberano dirige a história da humanidade de acordo com o seu propósito supremo, e não o abandona a qualquer poder ou ideologia política dos homens. O reino político de Israel tinha caído, e não poderia falhar também o Estado de Judá? Não somente poderia, mas já estava determinada a sua queda, por causa dos seus pecados. Mas o Senhor 132


faz operar as suas intenções na história, e assim salvará um restante, os fiéis de Judá, para conseguir o seu propósito na escolha de Israel. Mas a salvação do restante não é mecânica, como não é mecânica a operação de Deus na história, mas ética e espiritual. Havia, em Judá, homens e até reis como Ezequias e Josias, dispostos e prontos para responder à graça salvadora de Deus, apesar dos sofrimentos que porventura tivessem que enfrentar nos perigos que a nação defrontava. O profeta confiava firmemente na existência e na fidelidade da “santa semente” (6.13). O desastre deixou a casa de Davi como carvalho derrubado, mas ainda havia seiva no tronco, e das suas raízes sairia um renovo, que daria fruto (11.1). Assim esta confiança inabalável do profeta no restante fiel do povo escolhido baseia-se no seu conceito do Santo de Israel e no conhecimento do seu povo. A doutrina do restante fiel do povo de Deus é um dos ensinos característicos de Isaías (4.2-4; 10.20-22; 37.30-32). O profeta deu aos dois filhos nomes significativos para reforçar este ensino. O primeiro nome dá ênfase aos estragos que Judá há de sofrer pela invasão dos assírios: Maher-shalalhash-baz, “Rápido-despojo-presa-segura” (8.3). O segundo nome põe em relevo a firme esperança do profeta Shear-jashub. “Um restante voltará” (7.3). Assim o reino de Deus fica divorciado do Estado de Judá. O Estado de Judá poderia cair, como tinha caído o Estado de Israel, mas o profeta ainda confiava firmemente que o propósito de Deus na eleição de Israel seria realizado. O reino de Deus seria estabelecido finalmente pelo restante fiel do povo escolhido. Judá tinha caído num estado tal de corrução, que não podia mais ser identificado como o reino de Deus. Mas permaneceram ainda homens fiéis, que não se esqueceram do amor e da fidelidade do Senhor no cumprimento das promessas do concerto, e o profeta tinha certeza de que o Senhor sempre teria o seu restante fiel e que o propósito final de Deus não podia falhar. Aparentemente Isaías esperava por algum tempo que Judá seria purificada pelo sofrimento e disciplina, e voltaria arrependido ao Senhor (37.30-32), mas não havia mais esperança para o Estado como tal. Alguns pensam que o profeta perdeu a esperança que depositara no restante, e chegou a confiar somente no reino Messiânico que Deus havia de produzir no futuro. 138 Mas Isaías entendeu as operações de Deus na história, e na base deste entendimento ele interpretou a missão do restante, o grupo dos salvos, os escolhidos para pregar a salvação do Senhor. O restante fiel e o reino Messiânico são doutrinas diferentes do ponto de vista do profeta, mas intimamente relacionadas, no seu pensamento, como no desenvolvimento da história do reino de Deus na terra. Deus salva, purifica e orienta o restante através das guerras, das invasões do estrangeiro, do cativeiro; e estes, por sua parte, confiam em Deus, preservam as Escrituras da revelação divina, mantém a esperança no Messias vindouro. Se perdesse esperança na missão do restante, qual seria a base da esperança messiânica? Há evidências de que o profeta esperava a vinda do Messias dentro em breve, talvez pouco depois da invasão de Judá pelos assírios, e ele tem muito a dizer sobre o Messias e o reino messiânico. Discutese esta doutrina no próximo capítulo. É claro que a discussão da doutrina do restante no Velho Testamento não é limitada ao profeta Isaías. Há várias palavras hebraicas: palat, shaar, yathar, malat, sarad, que, nas suas várias formas, significam escapar de qualquer desastre ou calamidade. “E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo (malat); pois no monte de Sião e em Jerusalém haverá os que escaparem (palat), como prometeu o Senhor, e entre os sobreviventes (sarad) aqueles que o Senhor chamar” (Joel 2.32). O restante é chamado pelo Senhor, é de Sião e é uma entidade futura do reino, ou do povo de Deus. Em Ezequiel 6.8 o Senhor promete deixar (yathar) alguns que escapem (palat) da espada entre as nações. Os escapados (palat) da Babilônia anunciarão a vingança do Senhor (Jr 50.28) e se lembrarão do Senhor (51.50). Em 2 Crônicas 30.6, o restante (shear) dos escapados (palat) do poder da Assíria que torna ao Senhor recebe a promessa da sua bênção. “O restante que escapar da casa de Judá tornará a lançar raízes para baixo e dará fruto para cima” (2 Reis 19.30). “O Renovo (tsema) do Senhor se tornará em beleza e glória, e o fruto da terra excelente e formoso para os que escaparem (palat) de Israel” (Is 4.2; cp. Ob 17). O restante pode ser do povo de Israel (Is 46.33); ou do Reino do

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John Bright, The Kingdom of God, p. 91

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Norte (2 Reis 17.18); ou de Judá (Jr 41.11,15); ou de Judá e Jerusalém (Is 37.4); ou de Sião (Is 49.21); ou de Jerusalém (Jr 24.8). A idéia de um restante é largamente empregada no Velho Testamento, como no caso de Noé e dos sobreviventes do dilúvio, os da linhagem de Abraão, da chamada ou separação de Abraão e depois de Jacó. O menino Moisés é salvo da matança dos filhos dos israelitas pelos egípcios, e depois se toma o libertador do seu povo. Só os filhos dos queixosos peregrinos no deserto, com Calebe e Josué, são os sobreviventes de Israel que entraram na terra prometida. A doutrina da eleição liga-se com a idéia do restante, como no caso da escolha de Noé, de Abraão, de Moisés e dos profetas. Os profetas, chamados para proclamar a mensagem do Senhor aos seus contemporâneos, serão salvos, juntamente com os fiéis do seu povo e preservarão as Escrituras da revelação divina. A doutrina da providência de Deus também se liga com a idéia do restante. A palavra providência não se encontra no Antigo Testamento, mas o conceito é profundamente bíblico. Deus chama e dirige aqueles que servem ao seu eterno propósito, claramente revelado no seu concerto com Israel. Deus opera na história, usando meios humanos, segundo a justiça divina, para promover as forças espirituais e as influências que visam o progresso do seu reino no mundo e a realização final do seu eterno propósito. Deus pode dominar os atos malvados dos homens, e assim sobrepujar os seus maus propósitos, como no caso dos que venderam José. Por intermédio dos profetas, Deus orientou o seu povo através das vicissitudes da história, e, apesar da infidelidade de muitos israelitas e o fracasso dos estados de Israel e Judá, ele, na sua maravilhosa providência, dirigiu o restante dos fiéis no cumprimento da missão do povo escolhido. Não se pode justificar a idéia de que todos os acontecimentos têm a sua origem na vontade de Deus. Mas eventos que têm a sua origem na vontade dos inimigos de Deus não ficam inteiramente fora do seu controle. “As suas ternas misericórdias estão sobre todas as suas obras” (Sl 145.9). Esta é claramente uma declaração de fé. Mas a fé na providência divina é fortalecida com o entendimento da história e das Escrituras do povo de Israel. O Deus do amor persistente e imutável, e de poder supremo, governa o mundo que ele criou (Sl 145), e de um modo especial o seu povo (Sl 8 e 23), cuidando com carinho da vida e da atividade do seu restante fiel. “This is my Father’s world, O let me ne’er forget That though the wrong seems oft so strong, God is the ruler yet”. O Dia do Senhor O Dia do Senhor (hfwh:y-{Oy) é o dia de juízo do Senhor. Nas versões portuguesas da Bíblia, a palavra juízo é considerada como sinônima de justiça, mas freqüentemente significa também os estatutos de Deus e as ordenanças da lei. No sentido do julgamento do Senhor, o termo refere-se ao julgamento dos atos dos homens e das nações na história, e também no fim da história. Como foi indicado na discussão do restante fiel do Senhor, o reino de Deus visa a vindicação da justiça e dos justos. Os israelitas, em geral, tinham a tendência de pensar, por muito tempo, que eles eram os justos (justificados), em virtude da sua eleição como o povo do Senhor. Em certos casos esta opinião recebe apoio nas Escrituras e assim se justifica, em parte, especialmente quando a vida moral e religiosa dos israelitas é comparada com a de seus vizinhos. É deste ponto de vista que se entende o significado do Dia do Senhor na profecia de Obadias. Neste dia de julgamento a maldade das nações cairá sobre a cabeça delas, mas para os da casa de Jacó haverá livramento (vv. 15-17). No tempo de Amós, o povo do Reino do Norte desejava o Dia do Senhor (5.18). Mas o povo sofria da “doença da teologia. 139 O povo de Israel pensava que o Dia do Senhor significava o estabelecimento do seu governo benéfico sobre o povo escolhido. Mas não entendia a justiça de Deus, que exige a justiça do povo do seu reino. Nesta profecia o Dia do Senhor será um dia de julgamento de Israel. Contrário ao pensamento popular, a eleição e os privilégios especiais de Israel não podem 139

John Bright, The Kingdom of God, p. 60. A frase significa “preconceitos teológicos.

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isentá-lo do julgamento, mas pedem antes o castigo de todas as suas injustiças (cap. 3). Não pode haver esperança nenhuma para Israel no Dia do Senhor. “Será como se um homem fugisse de diante dum leão, e lhe saísse ao encontro um urso; ou como se entrasse em casa, e encostasse a mão à parede e o mordesse uma cobra” (5.19). Sofonias descreve o castigo terrível que cairá sobre Judá e Jeremias no Dia do Senhor: “Dia de indignação é aquele dia, Dia de angústia e ânsia, Dia de alvoroço e assolação, Dia de trevas e escuridão, Dia de nuvens e de densas trevas” (1.15). O Senhor derramará toda a fúria da sua ira sobre as nações, e toda a terra será devorada; mas apesar deste terrível castigo, um restante de Israel e das nações escapará, receberá do Senhor o dom de uma língua pura e servirá no estabelecimento do novo reino mundial do Senhor (3.8,9). Segundo Ezequiel 30.3-10, Egito, Pute, Lude, Etiópia e outras terras seriam desoladas no terrível Dia do Senhor. Isaías também descreve a terribilidade do Dia do Senhor (13.6-22). Será um dia cruel, com furor e ira ardente, fazendo da terra uma desolação, com a destruição dos pecadores. A terra será sacudida do seu lugar, o sol ficará escurecido, a lua e as estrelas não darão a sua luz. Joel declara que o Senhor se assentará no vale de Josafá para julgar as nações. O Egito e Edom serão castigados por causa da violência que fizeram aos filhos de Judá, mas o Senhor será o refúgio do seu povo (3.11-13). Os profetas assim entenderam que o Dia do Senhor é o dia em que Deus havia de julgar os povos e as nações com justiça, e estabelecer o seu reino eterno em todo o mundo. O DIA DO SENHOR (hfwh:y-{Oy)140 “Eis que vem o Dia do SENHOR, em que os teus despojos se repartirão no meio de ti. Porque eu ajuntarei todas as nações para a peleja contra Jerusalém; e a cidade será tomada, e as casas serão saqueadas, e as mulheres, forçadas; metade da cidade sairá para o cativeiro, mas o restante do povo não será expulso da cidade. Então, sairá o SENHOR e pelejará contra essas nações, como pelejou no dia da batalha. Naquele dia, estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente; o monte das Oliveiras será fendido pelo meio, para o oriente e para o ocidente, e haverá um vale muito grande; metade do monte se apartará para o norte, e a outra metade, para o sul. Fugireis pelo vale dos meus montes, porque o vale dos montes chegará até Azel; sim, fugireis como fugistes do terremoto nos dias de Uzias, rei de Judá; então, virá o SENHOR, meu Deus, e todos os santos, com ele. Acontecerá, naquele dia, que não haverá luz, mas frio e gelo. Mas será um dia singular conhecido do SENHOR; não será nem dia nem noite, mas haverá luz à tarde” (Zc 14.1-7). O capítulo 14 de Zacarias inicia com a seguinte afirmação: “Eis que vem o Dia do Senhor”. Para entendermos a importância dessa declaração, temos de considerar alguns fatos: Em primeiro lugar, a expressão “o Dia do Senhor” se refere à intervenção de Deus nos eventos mundiais para julgar os Seus inimigos, cumprir o Seu propósito quanto à história e, assim, demonstrar quem ele é – o Deus soberano do Universo (Is 2.10-22; Ez 13.5,9,14,21,23; 30.3,8,19,25,26). Em segundo lugar, já aconteceram vários “Dias do Senhor”, nos quais Deus demonstrou o Seu domínio soberano ao levantar nações para executarem o Seu julgamento sobre outras nações. Por exemplo, Ele levantou a Babilônia para julgar o Egito e seus aliados em torno de 500 a.C. (Jr 46.2,10; Ez 30.3-6). O futuro Dia do Senhor

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VARNER, William C. Jerusalém no Centro do furacão. Porto Alegre: Actual Edições, 2004, p. 31-41.

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A Bíblia, entretanto, também prediz um futuro Dia do Senhor. Por exemplo, Is 2.10-22 descreve um Dia do senhor que compreenderá o sexto selo da futura septuagésima semana de Daniel 9 (Ap 6.12-17). O apóstolo Paulo predisse um futuro Dia do Senhor, quando uma destruição repentina e inescapável sobrevirá a todos aqueles que não creram em Jesus Cristo como seu Salvador pessoal (1Ts 5.1-11). Ira e Bênção A Bíblia também assinala que o futuro Dia do Senhor terá, no mínimo, dupla natureza. Por um lado, ele será caracterizado pela escuridão e por um terrível derramamento da ira divina sobre o mundo (Sf 1.14,15). Assim será a sua natureza durante a septuagésima semana de Daniel 9 (o período da Grande Tribulação). Contudo, o Dia do Senhor também será caracterizado pela luz, por um derramamento da bênção divina e pela administração do governo de Deus sobre a terra. Após descrever o escurecimento do sol, da lua e das estrelas, bem como o juízo de Deus sobre os exércitos das nações reunidos em Israel no Dia do Senhor (Jl 3.9-16), o profeta Joel predisse a grande bênção de Deus “naquele dia” (Jl 3.18-21). O profeta Zacarias, depois de considerar o futuro Dia do Senhor, quando os exércitos de todas as nações guerrearão contra Jerusalém e serão surpreendidos pela volta do Messias à Terra para combatê-los (Zc 14.1-50, indicou que “aquele dia” também será caracterizado por luz (vv. 6,7), por grande bênção (v.8), e pela administração do governo de Deus sobre toda a Terra (v.9). Essa será a natureza do Dia do Senhor durante o Milênio. Amplo e estrito O futuro Dia do Senhor tem um duplo aspecto: é tanto amplo quanto estrito. O sentido amplo se refere a um tempo extenso, que cobre pelo menos toda a septuagésima semana de Daniel 9 e o Milênio. O sentido estrito se refere a um dia específico – o Dia em que Cristo voltará à Terra na Sua Segunda Vinda com os Seus anjos e a Igreja (Ap 19.11-16; Zc 14.5). O DIA DO SENHOR (AMPLO) Período de 2ª Vinda Regeneração da Terra: Perseguição Mt 19.28 3,5 anos 3,5 anos Ap 19.11-21 Milênio A Angústia de 2 Pe 3.10,11; Jerusalém Jacó: Jr 30.7; Jl 1.15; O Trono do Senhor Dn 12.1; Jl 2.1,2,11,31; Jr 3.17; 17.12; Ez 43.6,7; Mt Ap 12.13,14. Jl 3.14 25.31 70ª Semana de Daniel O Ano dos Meus Remidos O Dia do A Grande Tribulação Is 63.4 Senhor Estrito O Dia Da Vingança Is 63.4

Período de Paz

O Dia do Senhor estrito: quando Cristo voltar Os seguintes fatos indicam que um futuro Dia do Senhor será limitado a um único dia: Primeiro: o texto de Ap 16.12-16 revela que os exércitos de todas as nações do mundo iniciarão a sua concentração em Israel para o Armagedon apenas depois do derramamento da sexta taça (a que antecede ao último juízo da Grande Tribulação). Assim, esses exércitos começarão a se reunir no final daquele período (após os sete selos, as sete trombetas, e depois que as primeiras cinco taças de julgamentos do Dia do Senhor amplo tiverem ocorridos). Segundo: os textos de Jl 3.9-16 e Zc 14.1-5 indicam que, após o ajuntamento dos exércitos das nações em Israel, “vem o Dia do Senhor” (Zc 14.1) e ele “está perto” (Jl 3.14). Conseqüentemente, esse Dia do Senhor só acontecerá depois que os exércitos tiverem se concentrado em Israel e uma importante parte do Dia do Senhor amplo tiver transcorrido.

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Esse Dia do Senhor estrito será uma parte do Dia do Senhor amplo, mas também se constitui num completo Dia do Senhor em si mesmo. O Dia do Senhor amplo abrangerá um extenso período de tempo. O Dia do Senhor estrito será limitado a “um dia” (Zc 14.7). Terceiro: os textos de Jl 3 e Zc 14 indicam que o Dia do Senhor a que se referem será o dia em o Messias guerreará contra os exércitos reunidos em Israel. De acordo com Ap 19.11-21, esse é o dia em que Cristo voltará do céu para a Terra. Sendo assim, o Dia do Senhor estrito é o dia do retorno de Cristo na Sua gloriosa Segunda Vinda após a Grande Tribulação (Mt 24.21,29,30). O texto de Jl 3.14,15 indica que o sol, a lua e as estrelas escurecerão antes que venha o Dia do Senhor estrito. O texto de Jl 2.31 declara que “o sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor”. Portanto, o Dia do Senhor estrito de Jl e Zc 14 é o grande e terrível Dia do Senhor – o dia da gloriosa Segunda Vinda de Cristo. Dessa maneira, as Escrituras aplicam a expressão – “o grande e terrível Dia do Senhor” – ao Dia estrito, não ao Dia amplo, implicando que o Dia estrito diferirá do Dia amplo tanto em duração quanto em importância. Ainda que o período inicial do Dia do Senhor amplo envolva um grande derramamento da ira de Deus sobre o domínio de Satanás e da humanidade, o Dia estrito será o clímax apoteótico do julgamento. Tal Dia exporá os inimigos de Deus à autêntica presença de Cristo e à plenitude do Seu divino poder, glória, julgamento e poderio bélico (Mt 24.29,30; Ap 19.11,12,15). Esse Dia marcará a intervenção dos exércitos angelicais celeste contra os inimigos de Deus (Mt 24.31; Ap 19.14,17), dará fim ao governo de Satanás e da humanidade rebelde sobre o sistema mundial, bem como os expulsará da terra (Dn 2.31-35,37-45; 7.18,25-27; Lc 17.26-37; Ap 19.17-20.3). Por conseguinte, E. W. Bullinger declarou: “Ele é chamado ‘o grande e terrível Dia do Senhor’ por o clímax de todo o período conhecido como o Dia do Senhor”. Em virtude do Dia do Senhor estrito ocasionar uma mudança tão decisiva e permanente no mundo, o profeta Joel chamou de “vale da decisão” ao local onde o clímax do julgamento de Deus será derramado sobre Satanás e a humanidade rebelde (Jl 3.14). C. F. Keil o denomina de “vale do julgamento decisivo, a partir do termo hebraico charats que significa decidir, determinar irrevogavelmente”. Qual a razão do Dia do Senhor estrito? O texto de Zc 14.2 declara a razão do Dia do Senhor estrito. Antes que chegue aquele dia, os exércitos de todas as nações concentrar-se-ão para empreenderem guerra contra Jerusalém. Eles conquistarão pelo menos a metade de Jerusalém, saquearão as casa, violentarão as mulheres e levarão a metade da população da cidade para o cativeiro. Porém, a outra metade não será removida, provavelmente porque o Dia do senhor estrito se iniciará antes que os exércitos possam conquistar a outra metade da cidade. Outras passagens proféticas revelam que os líderes políticos e os exércitos de todas as nações virão contra Israel e Jerusalém perto do fim da futura Tribulação (Is 34.1-8; Jl 3.2,9-17; Mq 4.11-13; Sf 3.8; Zc 12.2,3,9; Ap 16.12-16; 19.11-21). O propósito de Deus Deus desempenhará um papel fundamental no ajuntamento desses líderes e exércitos (Zc 14.2; Jl 3.2; Mq 4.11-13; Sf 3.8) e terá dois propósitos. O primeiro será o de usar essa força militar como a Sua vara para quebrantar a rebeldia obstinada de Israel contra Ele e o Messias, de modo que a nação venha a se arrepender (Dn 9.9.24; 12.1,5-7; Zc 12.10-13.1). Enquanto Israel não se arrepende, Deus não esmagará Satanás e o seu reino, não os removerá da terra, nem estabelecerá o Seu governo teocrático, Seu Reino sobre a terra (Zc 12-14; At 3.12-21), porque já determinou que Israel será líder espiritual do mundo durante o governo milenar de Cristo sobre a terra (Is 2.1-5; 61.6; Zc 8.20-23). E também que Israel será cabeça das nações por toda a eternidade (Is 61.7-9; 65.17-25; Ez 37.24-28; Dn 7.18,27). O segundo propósito é que Deus tenciona ter todas as forças políticas e militares do reino de Satanás reunidas num só local para que, juntas, sejam destruídas por Cristo quando Ele voltar do céu, por ocasião da sua gloriosa Segunda Vinda no Dia do Senhor estrito (Is 34.1-8; Jl 3.2,9-17; Mq 4.1113; Sf 3.8; Zc 12.2,3,9; Zc 14.3,4; Ap 16.12-16; 19.11-21). 137


O propósito de Satanás Satanás também desempenhará um importante papel no ajuntamento dessas forças políticas e militares concentradas contra Israel e Jerusalém próximo ao fim da tribulação (A 16.12-16). Ele igualmente tem dois propósitos. O primeiro será o de usar essas forças para tentar aniquilar Israel antes que o povo judeu possa se arrepender. Já que não se arrepende, Satanás terá em mente que, se Israel for completamente destruído antes que se arrependa, Deus nunca esmagará a ele e ao seu reino. Num segundo propósito, uma vez que Zacarias 14.4 revela que, por ocasião do Dia do Senhor estrito, o Messias voltará do céu para Jerusalém, a intenção de Satanás é que as forças políticas e militares do mundo gentílico estejam concentradas naquele local para o auxiliarem na tentativa de impedir a segunda Vinda de Cristo à terra. Elas estarão congregadas “para pelejarem contra aquele que estava montado no cavalo [o Messias] e contra o seu exército” (Ap 19.19). O livramento divino Quando o remanescente de Israel na terra for inescapavelmente encurralado, sem dispor de qualquer recurso terreno para livrar-se do iminente aniquilamento, voltar-se-á para Deus e o invocará para que envie o Messias – O Go’el (Lc 13.34,35; Rm 11.26; Is 59.20,21). Então o Messias aparecerá vindo dos céus com Seus poderosos anjos e Sua Igreja (Zc 14.5; Jl 3.11; Ap 19.14). Quando os judeus contemplarem as feridas da crucificação no corpo ressuscitado de Jesus, perceberão que Aquele a quem rejeitaram na Primeira Vinda era o seu legítimo Messias – o seu Go’el. Então se arrependerão (mudarão suas mentes deixando de rejeitá-lo e passarão a confiar nEle como seu Messias e Salvador (Go’el), conforme Zc 12.10-14). Em resposta ao arrependimento da nação, Deus a purificará de seus pecados (Zc 13.1). Uma vez que Israel tenha se arrependido, o Messias sairá para lutar contra as forças políticas e militares das nações (Zc 14.3). Seus pés tocarão no monte das Oliveiras, localizado a leste de Jerusalém. O monte se dividirá ao meio. Uma metade se moverá para o norte e a outra metade se deslocará para o sul, formando um novo vale na direção leste-oeste, através do qual o remanescente do povo de Israel escapará dos seus inimigos (Zc 14.4,5). O messias destruirá os poderes políticos e militares do mundo num horrendo juízo cheio de ira (Zc 14.12-15; Ap 19.15-21). A Pedra esmiuçará a estátua (Dn 2) e encherá a terra (Dn 2,35,44,45). O Parente Vingador – Go’el tomará vingança e remirá Israel e sua terra. Para Israel Jesus é o Parente Remidor, para os seus inimigos Ele é o Parente Vingador. O texto de Zacarias 14.6,7 indica que o futuro Dia do Senhor estrito não se caracterizará integralmente por trevas, nem completamente por luz. Pelo contrário, esse “um dia” será tanto de trevas quanto de luz. “Naquele Dia”, a primeira parte será marcada pela escuridão, enquanto os exércitos atacarem Jerusalém; mas a segunda e última parte será caracterizada pela luz, quando O Messias voltar para libertar o remanescente de Israel e destruir seus inimigos (Renal E. Showers). Salmo 118.26: ;hfwh:y {“$:B )fBah |UrfB Baruch hábah Boshem Adonai (IAHWEH). Bendito é o que vem em nome do Senhor Lc 13.35: “Eis que a casa de vocês (Israel) ficará deserta. Eu lhes digo que vocês não me verão mais até que digam: bendito o que vem em nome do Senhor”. O Novo Concerto Os reinos de Israel e Judá violaram o concerto do Senhor, e assim fracassaram como estados do povo escolhido. Para entendermos a tragédia espiritual de Judá, precisamos estudar a profecia de Jeremias. Este profeta exerceu o seu ministério na época quando o Estado de Judá se apressava para a destruição. Depois de passar pelas experiências de dúvida, de revolta contra a sua sorte, queixando-se das responsabilidades que o Senhor lhe impusera, das injustiças e perseguições que sofrera às mãos do 138


seu povo, que servia em circunstâncias tão desfavoráveis, o profeta emergiu purificado pelo fogo do sofrimento e heroicamente consagrado à sua dura missão. De espírito perceptível, e de coração profundamente sensível, Jeremias entendeu claramente as fraquezas religiosas e as falsas esperanças do seu povo que não podia perceber a agonia mortal da sua nação. Na sua empatia, o profeta levou sobre si os problemas e o sofrimento do seu povo. As qualidades do seu caráter e da sua pregação contribuíram poderosamente para fortalecer a fé esmorecida do povo para sobreviver à morte do Estado, e viver como congregação espiritual. “Passou-se a ceifa, acabou-se o verão, E nós não estamos salvos. Quebrantado estou pela ferida da filha do meu povo, Pranteio; o espanto apoderou-se de mim. Não há bálsamo em Gileade? Ou não se acha lá médico? Por que, então, não se realizou A cura da filha do meu povo? Oxalá a minha cabeça se tornasse em águas, E os meus olhos em fonte de lágrimas, para que chorasse de dia e de noite os mortos da filha do meu povo!”. Os profetas Jeremias e Ezequiel, como mensageiros de Deus, anunciaram fielmente a tragédia do julgamento divino sobre o Estado de Judá, reconhecendo que Deus estava operando na história para a realização do seu propósito moral. Graças à pregação de Jeremias e Ezequiel, a fé de Israel mostrou-se suficientemente forte para sobreviver à mais terrível catástrofe. 141 O profeta Jeremias apresenta novas interpretações de verdades espirituais imperfeitamente entendidas na sua época. Ele pôs em relevo a espiritualidade da natureza de Deus. Alguns teólogos pensam que o profeta deu muita ênfase à ira do Senhor, mas devem lembrar-se de que a ira divina sempre se manifesta contra a injustiça. 142 Para demolir as falsas esperanças do povo, Jeremias tinha que expor a incompatibilidade da injustiça de Judá com a justiça de Deus. A perfídia do Estado de Judá não podia suportar a luz brilhante da justiça divina. Jeremias entendeu e explicou mais claramente do que os seus predecessores que o verdadeiro culto do Senhor é espiritual, e assim não depende do templo, nem de qualquer lugar como Jerusalém. Pudesse adorar a Deus em qualquer lugar, até nas planícies da Babilônia, sem templo. Outra verdade de profunda importância esclarecida por Jeremias é o valor supremo do culto a Deus que surge do coração sincero do homem individual. O verdadeiro culto é pessoal. Na condenação severa da infidelidade do Estado de Judá, o profeta chegou a compreender a futilidade da religião oficial. Não é verdade, como dizem alguns, que Jeremias descobriu o indivíduo, mas ele explicou melhor do que os seus predecessores a responsabilidade pessoal na vida religiosa.143 Mais do que qualquer outro profeta, Jeremias conheceu o seu próprio coração e a operação de Deus no seu espírito como pesquisador, guia e força. O privilégio de conhecer a Deus é a glória do homem. Valoriza a vida, mas também impõe a responsabilidade pessoal perante o seu Senhor. Jeremias reconheceu bem cedo a futilidade de proclamar a mensagem de Deus ao seu povo. Tinha pregado, com toda a força da alma, o arrependimento e a mudança de coração como a única esperança de Judá, mas sem resultado na vida do povo obstinado. A denúncia da injustiça e corrução do Estado despertou o ódio dos políticos, que lhe pagaram com horrível perseguição. Vendo o 141

John Bright, The Kingdom of God, p. 122: “Que a fé de Israel pudesse viver de qualquer maneira, que Israel pudesse viver e manter qualquer esperança, foi em grande parte devido aos profetas que cruelmente demoliram todas as esperanças falsas. O reino que Deus estabelecerá não é o de Judá e seu templo. Portanto, a destruição daquele estado e do templo não pode ser a derrota do Senhor”. 142 Mateus 23.13-33; Marcos 7.6-13; Lucas 11.44. 143 W.O.E. Oesterley and T. H. Robinson: An Introduction to the Books of the ala Testament, p. 312. “Assim, da agonia do espírito de Jeremias a religião humana alcançou um novo característico. Historicamente, o homem deve à tortura vitalícia da alma de Jeremias uma das suas mais gloriosas possessões. Enquanto o conceito do grupo ou da congregação como uma unidade religiosa nunca foi, e nunca deve ser, perdido, é o direito de primogenitura de cada homem ele poder afirmar a sua fraternidade pessoal com Deus. Quando reconhecemos a riqueza incalculável da vida espiritual que esta revelação tem significado para as gerações subseqüentes, teremos a inclinação de sentir que Jeremias, não pelas suas palavras, mas pela sua experiência, deu ao mundo mais do que qualquer outro homem na história inteira de Israel”.

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fracasso completo do Estado, trabalhando até contra a produção do reino de Deus, o profeta perdeu a esperança nos poderes humanos. Mas enquanto testemunhava a decadência e a morte do Estado e da religião oficial, Jeremias experimentava no seu espírito a íntima comunhão pessoal com Deus. Com a fé invicta no Senhor, ele nunca podia crer que a ruína nacional fosse o fracasso do Senhor. Judá, como Israel, tinha violado o concerto, e o tempo da sua salvação tinha passado. Ao rei Zedequias, que esperava a libertação miraculosa do poder de Nabucodonozor (21.2), Jeremias declarou que não haveria milagre nenhum, porque Deus estava ao lado dos caldeus (21.3-7). Caiu depressa a terrível tragédia da destruição de Jerusalém, a última defesa do Estado pecaminoso e rebelde, mas horrível como fosse para os que tinham nutrido esperanças falsas, a destruição do Estado e da religião oficial abriu o caminho para a fé, divorciada de reinos mundanos, a fé que pudesse viver e operar no coração de homens individuais, como nunca tinha deixado de viver e operar no espírito de israelitas fiéis, e especialmente na pregação dos grandes profetas, os servos do Senhor. Os profetas Jeremias e Ezequiel esperavam que os sofrimentos amargos dos cativos na Babilônia produzissem neste grupo humilhado o arrependimento, e que o Senhor, por esta prova do cativeiro, pudesse criar um restante puro de fiéis, e que Deus fizesse com este o Novo Concerto. Jeremias, que tinha perdido o último vestígio de esperança no Estado, nutria a esperança mais alta e mais segura no Deus de Israel, o Criador e Governador de todas as coisas. O Senhor da história realizara, na direção da história, o seu eterno propósito. De compaixão infinita, o Senhor almejava a volta do seu filho precioso: Efraim. “Pois quantas vezes falo contra ele, tantas vezes me lembro dele ternamente” (Jr 31.15-22). Certamente o Senhor nunca se esqueceria do seu propósito de criar um povo preparado que ele pudesse governar com amor e justiça. Um Israel novo e espiritual sairá do forno de aflição, acrisolado, e o Senhor poderá fazer com ele o Novo Concerto, dado pela graça de Deus ao povo arrependido e entregue ao Senhor. “Eis que vêm os dias, diz o Senhor, em que farei um novo concerto com a casa de Israel e com a casa de Judá, não semelhante ao concerto que fiz com seus pais, quando os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito, o meu concerto que eles violaram ainda que me desposei com eles, diz o Senhor. Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração; eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Não ensinará mais cada um ao seu próximo, dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerão desde o menor até o maior deles, diz o Senhor; pois perdoarei a sua iniqüidade e não me lembrarei mais dos seus pecados” (Jr 31.31-34). Graças à pregação da ternura e compaixão do Senhor, pelo grande profeta do exílio, conhecido como Dêutero-Isaías, a esperança de Jeremias foi realizada. A fé de Israel demonstrou que tinha o poder de sobreviver à destruição nacional e à humilhação do exílio babilônico. É difícil exagerar a calamidade que Israel sofreu no cativeiro e na diáspora permanente de numerosos israelitas. Mas a destruição nacional de Israel não podia extinguir a sua fé. A sobrevivência da sua fé foi devida principalmente ao seu conceito do Senhor o Deus da historia. Segundo este conceito, Deus nunca pode ser derrotado. É claro que muitos não entenderam esta teologia, mas com a pregação messiânica, havia muitos que nela se firmaram e ficaram preparados para voltarem à sua terra, e assim cumprirem a sua missão. Portanto, o período do cativeiro foi uma época espiritual na história de Israel. A vitalidade e a orientação certa da mensagem dos profetas confirmaram-se como as palavras de Deus. Assim o reino de Deus será completamente vitorioso no fim da história. Apesar de todas as forças que operam contra o progresso do reino de Deus no mundo, no fim da história, o propósito do Senhor, o propósito do Controlador da história, será realizado, e o seu reino será estabelecido no mundo inteiro. Diz o Senhor: “Pouco é que sejas o meu servo, Para levantares as tribos de Jacó e restaurares os preservados de Israel; Eu te darei para luz dos gentios, para seres a minha salvação até os confins da terra” (Is 49.6).

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CAPÍTULO XI A ESPERANÇA MESSIÂNICA O termo messiânico tem uma significação dupla. Refere-se, ou à idade messiânica, ou à vinda pessoal do Messias. Do ponto de vista dos escritores do Velho Testamento, em geral, a esperança messiânica significa a crença na vinda do reino ideal de Deus. Trata-se do futuro do povo de Deus. Foi discutido no capítulo anterior o fracasso dos reinos políticos dos israelitas na missão de representar o reino de Deus na terra. Pesados na balança da justiça divina, os reinos de Israel e de Judá foram achados em falta. O reino messiânico significa o aperfeiçoamento do reino de Deus. Como representado pelos escritores do Velho Testamento, o aperfeiçoamento do reino de Deus abrange quatro elementos: o juízo divino, a redenção de Israel, uma nova idade da história e o próprio Messias. Estes elementos são entrelaçados, mas o dominante, de que depende a plena realização da esperança, é geralmente b do próprio Messias. Mas o estabelecimento do reino ideal é representado, às vezes, como a obra direta de Deus. O povo do reino messiânico submete-se voluntariamente à vontade do Senhor e assim recebe a graça da redenção. O assunto é vasto, e há muitos livros que tratam de todos os seus elementos. Há também muita diferença nas interpretações das Escrituras messiânicas. Os escritores do Novo Testamento apresentam interpretações para mostrarem o cumprimento da esperança messiânica na pessoa e do reino de Cristo. Os vários ramos do cristianismo, com poucas exceções, têm seguido a interpretação apostólica do Velho Testamento, mas os judeus e os muçulmanos apresentam interpretações diferentes destas Escrituras. Em nosso livro, A Esperança Messiânica, publicado em 1935, foi apresentada a interpretação apostólica das Escrituras messiânicas do Velho Testamento. Mas, nesta breve discussão procuramos limitar as interpretações segundo o ponto de vista dos próprios escritores no seu ambiente histórico. 144 Deve-se dizer, porém, que, à luz de pesquisas arqueológicas e históricas, 145 os teólogos se mostram mais interessados na defesa da interpretação cristã das Escrituras messiânicas da Bíblia. 146 Há uma vasta diferença nas opiniões sobre a origem e o valor da esperança messiânica. Alguns radicais insistem no seu desenvolvimento no período do exílio, juntamente com a literatura apocalíptica. Dizem que a expectativa messiânica se originou com Ezequiel. Ele desenvolveu a escatologia do Velho Testamento da qual surgiu a literatura apocalíptica. Segundo esta teoria extravagante, todas as passagens messiânicas nos livros escritos antes do tempo de Ezequiel são interpolações. Mas esta teoria não pode ser mantida à luz da história, nem da interpretação histórica da literatura do Velho Testamento. A literatura do Antigo Testamento é a primeira e a única do tempo que entendeu a marcha da história para o fim predeterminado, revelado ao povo de Israel no Monte Sinai, na finalidade da sua escolha. Assim todos os escritores do Velho Testamento entenderam, mais ou menos claramente, o propósito do Senhor na orientação histórica do seu povo. É evidente que as passagens messiânicas de Isaías, e as dos outros livros bíblicos, cabem perfeitamente nas suas respectivas épocas da história. A eliminação destes excertos como interpolações resultaria em incrível mutilação da Bíblia. Na sua forma atual o Velho Testamento relaciona-se, do princípio ao fim, à esperança messiânica. Seja qual for a data de Gênesis e dos outros livros do Antigo Testamento, a Bíblia apresenta o entendimento dos seus autores. Assim a esperança messiânica se liga à promessa divina, dada a Abraão, representado como descendente de Noé (Gn 12.1-3; 15.1-18). Esta promessa apresenta o conceito do reino de Deus na terra, e o Velho Testamento é a história do crescimento desta esperança e, como foi entendida nos períodos sucessivos da história de Israel, do povo escolhido. A 144

Ver o prefácio da Esperança Messiânica, p. vii, sobre a interpretação histórica. Os escritos da seita de Qumran, e o conhecimento mais largo da história antiga. 146 Helmer Ringgren, The Messiah in the Old Testament, p. 7: “Considera-se, às vezes, necessário falar de duas interpretações diferentes da mesma passagem: a concreta e histórica, e a interpretação teológica. Conseqüentemente deve ser aclamada com satisfação a tendência recente de defender o significado messiânico destas passagens bíblicas. Assim a interpretação tradicional dos cristãos recebe algum apoio da exegese histórica.”

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esperança messiânica Se entretece na estrutura do pensamento hebraico, como um dos seus elementos constituintes. 147 Na base de vários textos proféticos do Egito, e de alguns de Babilônia, apresenta-se com dogmatismo a teoria de que a esperança messiânica dos israelitas derivou-se das profecias do Egito. Mas os arqueólogos bem sabem que é muito exagerado o significado dos vaticínios ou predições desconexas dos egípcios e babilônios, e que não têm nada em comum com os grandes conceitos que dão valor permanente ao Antigo Testamento. O propósito de Deus na escolha de Israel, o seu plano para com o mundo inteiro, o governo moral para todos os povos e a vinda do reino universal do Senhor são conceitos que pertencem unicamente à literatura de Israel. Não se encontram em qualquer outra literatura ensinos, comparáveis na sua largueza, no seu ardor, na sua intensidade e na sua força espiritual. Nos limites de apenas um capítulo, a discussão dos vários elementos desta doutrina tem que ser muito abreviada e resumida. No estudo do homem, no capítulo VI, foi notado o significado da sua criação à imagem de Deus. Nos salmos 8, 16 e 40, e em várias outras Escrituras, apresenta-se o conceito do homem ideal, no seu valor, na sua relação com o povo do Senhor e na sua obediência e comunhão com Deus. Assim a Bíblia reconhece em toda parte as potencialidades espirituais do homem. Mas o homem é também fraco e pecaminoso, e o Deus justo exige a justiça do seu povo. 148 O Juízo Divino - A Luta com o Pecado e a Esperança de Vitória É claro que nem todas as Escrituras que tratam do problema do pecado· estão relacionadas diretamente com a esperança messiânica. Na revelação progressiva do propósito eterno de Deus, no Velho Testamento, encontram-se numerosas promessas da vitória final e completa sobre o pecado. Esta vitória será alcançada pelas atividades constantes e persistentes do Senhor na história, com os seus infinitos recursos espirituais, de acordo com as suas promessas, a sua santidade, o seu amor e a sua justiça. “Nestas primeiras promessas divinas apresentam-se três princípios básicos na esperança de que a raça tinha de ganhar a vitória na luta prolongada com o pecado: primeiro, a vitória do homem sobre o pecado depende do poder e da graça de Deus; segundo, a fé e a obediência do homem são as condições estabelecidas no grande piano redentor de Deus; terceiro, a esperança do homem é divinamente dirigida para o futuro”. 149 Os fatos da história religiosa de Israel testificam que o Senhor libertou este povo da sua miséria no Egito, e o levou sobre asas de águias, e o trouxe a si no Monte Sinai, onde fez com ele o seu concerto. “Agora, pois, se obedecerdes à minha voz, e guardardes o meu concerto, sereis a minha própria possessão dentre todos os povos, pois toda a terra é minha, e vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19.5,6). Segundo o concerto, o problema do pecado para Israel foi condicionalmente resolvido. Se obedecesse à voz de Iavé e guardasse o seu concerto, seria uma nação santa, pertencente ao Senhor e, como tal, livre do pecado. No capítulo VII, sobre o pecado, foram discutidos certos problemas que surgiram à luz da revelação divina, como o entendimento mais claro da santidade e justiça, da natureza do pecado e da responsabilidade pessoal.

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Albert C. Knudson, The Religious Teaching of the Old Testament, p. 353: “O messianismo, através da parte mais importante da história de Israel, foi o portador das suas mais altas esperanças, o sustentáculo e o estimulo do seu idealismo ético. O ensino dos grandes profetas pré-exílicos, bem como o dos profetas e salmistas do período subseqüente, pode ser plenamente entendido somente à luz da história desta doutrina.” 148 A Esperança Messiânica, do autor, p. 41: “A religião do povo escolhido foi altamente ética desde o princípio. Sempre estabeleceu uma distinção clara entre-o bem e o mal. O homem tinha a obrigação moral de escolher o bem, e era condenado a sofrer as conseqüências, se escolhesse o mal. Javé é moral. A santidade e a justiça são os seus atributos característicos. A comunhão com ele depende da harmonia da vontade do homem com a do ao seu Senhor” (Citação adaptada). 149 A Esperança Messiânica, p. 47.

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Antes da fundação da monarquia, e por algum tempo depois, o sistema de sacrifícios ofereceu ao povo o meio de livrar-se do sentimento de culpa dos seus pecados. Mas o sistema foi muito abusado, e desenvolveu o cerimonialismo degradante que permitia a prática de todas as formas de pecado e injustiça, enquanto o pecador apaziguava ao Senhor com os seus sacrifícios. Os profetas literários do século oitavo a.C. representam uma nova época no desenvolvimento da teologia. Juntamente com o seu mais profundo conceito do caráter de Deus, eles apresentam um entendimento mais claro da natureza do pecado. Não eram meramente revolucionários, nem simplesmente reformadores. Eram homens da época, espiritualmente sensíveis ao espírito do Senhor, de um lado, e, de outro, aos terríveis pecados que acompanharam a divisão política do povo de Israel. Nem todos os profetas tinham a mesma compreensão da natureza do pecado, como nem todos tinham o mesmo conceito dos atributos, ou facetas, do caráter de Deus. Para Amós, montanhês e pastor, que tinha simpatia para com os pobres e oprimidos no tempo de grande prosperidade nacional, a justiça era o atributo de Deus que mais profundamente o impressionava. O Senhor Iavé lhe dera uma mensagem adaptada à condição pecaminosa do povo da época. O pecado não era menos ofensivo ao Senhor quando cometido por um homem contra o seu semelhante. Pela sua experiência e pela sua idoneidade, Amós estava bem preparado para apelar à consciência contra a injustiça e a idolatria do seu povo, e assim aprofundar a significação ética do reino de Deus. A iniqüidade que reinava entre as nações e entre o povo de Israel tinha que ser castigada. Assim o profeta anunciou o juízo divino contra as nações pela sua crueldade, e pela violação da consciência. E demoliu de vez a falsa esperança de Israel no dia do Senhor, declarando que seria um dia de trevas, um dia especialmente terrível para Israel que confiava na sua eleição, por ter deixado a lei, e por se haver afastado do seu Deus. Para Oséias, o pecado era o adultério espiritual de Israel, o desprezo do amor persistente (hesed) do Senhor. O amor imutável do Senhor para com o povo de Israel revela a perversidade da infidelidade de Israel. Por causa da corrução crescente de Israel, o profeta anunciava com severidade o juízo divino sobre o povo infiel. Segundo Isaías, o pecado se manifestava no orgulho e na arrogância do povo de Judá. “Os olhos altivos do homem serão abatidos, e o orgulho dos homens será humilhado, e só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.11). A falta de fé é outra característica do pecado (7.9), como também a insensibilidade e o indiferentismo (6.10). Todos os profetas repreendem severamente a perversidade de Israel, e a falta de cumprir o propósito do Senhor na sua escolha. Israel fora escolhido para glorificar o Nome de Iavé entre os povos e para lhes dar conhecimento do verdadeiro Deus. O Senhor, no seu amor imutável, tinha demonstrado constantemente seu cuidado carinhoso pelo povo, revelando-lhe, por intermédio dos profetas, os recursos da sua santidade, justiça, poder e misericórdia, para ensiná-lo e orientá-lo no desempenho da sua vocação. Todos os profetas, desde Amós, explicam como o povo escolhido respondeu ao hesed do Senhor. A nação era adúltera, povo infiel, mostrando a ingratidão para com o Senhor, que o chamara para ser o seu filho primogênito. A seguinte passagem de Isaías dá em resumo o juízo divino contra Israel: “Mas são as vossas iniqüidades que fazem separação Entre vós e o vosso Deus, E os vossos pecados esconderam de vós o seu rosto, De sorte que não vos ouça. Pois as vossas mãos estão manchadas de sangue, E os vossos dedos de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, a vossa língua resmunga a perversidade ... Os seus pés correm para o mal, e se apressam para derramar sangue inocente; os seus pensamentos são os pensamentos de iniqüidade, Desolação e destruição se acham nas suas veredas. O caminho da paz eles não o conhecem; e não há justiça nos seus passos; fizeram para si veredas tortas; todo o que anda por elas não conhece a paz” (59.2,3,7,8; ver Ez. 5.5,6). As terríveis repreensões à perversidade e à ingratidão de Israel produziram poucos resultados, mas os profetas não perderam a esperança. Sabiam que a infidelidade de Israel mereceu o castigo do cativeiro, com a vergonha, a humilhação, o sofrimento e a morte de muitos, mas esperavam que o 143


povo ficasse assim preparado para ouvir a mensagem do amor imutável do Senhor. Disse o profeta Isaías: “Mas Iavé dos exércitos é exaltado pelo juízo (justiça), e o Santo Deus se mostra santo na justiça (retidão)” (5.16). A Redenção de Israel Foi discutido no último capítulo o restante fiel e o Novo Concerto. Estes dois termos relacionam-se com a esperança messiânica, indicando assim os limites da redenção de Israel. Juntamente com as denúncias da infidelidade de Israel é proclamada a salvação divina, na condição de arrependimento e fé. Em Isaías 1.18, entre as repreensões severas de Israel, o Senhor proclama pelo profeta: “Vinde agora, e raciocinemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como o escarlate. Ficarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, Tornar-se-ão como a lã”. A redenção futura, ou na época messiânica, segunda algumas profecias e salmos, será conseguida diretamente por Iavé. Ele virá pessoalmente na glória, estabelecerá o seu reino na terra, e reinará sobre o seu povo. “O Senhor reinará para sempre, teu Deus, Ó Sião, reinará por todas as gerações” (Sl 146.10). “O Senhor edifica a Jerusalém, Congrega os dispersas de Israel. Sara os quebrantados de coração, e ata-lhes as feridas” (Sl 147.2,3). “Brame o mar e a sua plenitude, o mundo e os que nele habitam. Batam palmas as correntes, à uma cantem de júbilo os montes Perante o Senhor, que vem julgar a terra; Julgará o mundo com justiça, e os povos com eqüidade” (Sl 98.7-9). Assim como Iavé se revelou antigamente ao povo de Israel no seu poder de Redentor, e o trouxe para si, outra vez, pela sua própria mão, como bom pastor, trará de longe as suas ovelhas espalhadas, e as recolherá para si. Assim como Iavé se revelou antigamente ao povo de Israel no seu poder de Redentor, e o trouxe para si, outra vez, pela sua própria mão, como bom pastor, trará de longe as suas ovelhas espalhadas, e as recolherá para si. “Dizei aos tímidos de coração: sede fortes, não temais! Eis que o vosso Deus virá com vingança, Com a recompensa de Deus. Ele virá e vos salvará. Então serão abertos os olhos dos cegos, E desimpedidos os ouvidos dos surdos . Então saltará o coxo como o cervo, e a língua do mundo cantará de júbilO. Pois arrebentarão águas no ermo, e correntes no deserto” (Is 35.4-6). O Senhor Iavé virá com o braço forte de valente, e ao mesmo tempo como o carinhoso pastor. De Sião reinará sobre todas as nações (Is 40.10,11; Ez 34.11-22; Zc 14.16). Encherá da sua glória o templo, e brilhará constantemente sobre a sua cidade (Ez 43.2-7). Com a presença do próprio Senhor, não haverá mais necessidade da arca (Jr 3.16). Surgem questões interessantes sobre estas Escrituras que falam da salvação direta do Senhor. Cumpriram-se estas promessas com o governo do Senhor na volta dos israelitas do cativeiro? Foram cumpridas, em parte, pela presença e poder do Senhor no livramento do seu povo do cativeiro, e pela sua restauração em Canaã, não mais como estado, mas como congregação espiritual. Mas isto foi apenas um passo no preparo para a vinda da idade messiânica. Aparentemente alguns dos profetas, como Ageu e Zacarias, esperavam por algum tempo que o restabelecimento de Israel fosse o princípio da idade messiânica. 144


Pergunta-se também: Há qualquer contradição entre esta redenção direta do Senhor e a salvação realizada pelo Messias? Se o Messias é reconhecido como Deus-Homem, a salvação do Senhor pode ser identificada com a do Messias. O profeta Ezequiel representa o Senhor como o Salvador e Pastor do seu rebanho (cap. 34) e depois identifica esta redenção com a do seu servo Davi, o Messias. “Salvarei o meu rebanho para que não sirvam mais de rapina, e julgarei entre ovelhas e ovelhas. Estabelecerei sobre elas um só pastor, o meu servo Davi, e ele as apascentará, e Ihes servirá de pastor” (34.22,23). As características da salvação messiânica apresentam um contraste notável com o perdão dos pecados, segundo a experiência dos israelitas em geral. Enquanto o crente do Velho Testamento vivia pela fé, e conhecia a paz proporcionada pelo perdão, este perdão não repousava na expiação objetiva e permanente, e assim não podia estabelecer no seu espírito a certeza de uma reconciliação permanente com Deus. Quando recebia o perdão de qualquer pecado, ele começava de novo a procurar a sua justificação perante Deus pelas obras da lei. Não sentia no seu espírito a presença e o socorro constante do Espírito Santo. Entendeu a conversão como mudança moral, sem experimentar a regeneração da sua natureza moral, segundo o novo concerto. A salvação messiânica é eterna. “Eu me lembrarei do meu concerto contigo nos dias da tua mocidade, e estabelecerei contigo um Concerto eterno” (Ez 16.60). Mas como é que Deus podia garantir este concerto eterno com o povo obstinado, que se mostrara infiel ao concerto existente? Deus promete dar ao povo uma nova natureza para habilitá-lo a ser fiel ao seu· Deus e ao cumprimento da sua missão. Mas Israel tem de entender que Deus não realiza os seus propósitos por um processo mágico. Ele opera conforme a sua justiça e misericórdia. Por parte do povo torna-se possível no arrependimento e na volta ao Senhor. O Senhor efetuará a nova salvação por meios espirituais, em perfeito acordo com a sua santidade, justiça e amor, e conforme a natureza e a necessidade espiritual do povo. Os desterrados, humilhados e disciplinados pelO castigo de seus pecados, e verdadeiramente arrependidos de seus pecados, ouvem a terna voz do Senhor, e das terras longínquas apressam-Se com tremor, para que a redenção não seja demorada. “Com choro virão, e com consolações (grego) os levarei, guia-los-ei às correntes de águas, por um caminho plano em que não tropeçarão; pois eu sou Pai de Israel. E Efraim é o meu primogênito” (Jr 31.9). Assim virão andando e chorando, e perguntando pelo caminho de Sião. Chegarão e ajuntar-seão ao Senhor “num concerto sempiterno, que nunca será esquecido” (Jr 50.4,5). A salvação messiânica é da graça livre de Deus, é perfeita, e sustenta-se contra todas as forças do mal. Olhando para o futuro, o profeta Oséias viu a Israel tornando-se de novo a noiva do Senhor, com gratidão, amor e fidelidade. Assim receberá os nomes Ammi, meu povo, e ruhama, compaixão. O amor imutável (hesed) do Senhor produzirá, na idade vindoura, o amor e fidelidade (hesed) no povo do Senhor. Haverá perfeita harmonia entre Deus e o seu povo, e até entre os céus e a terra. “Desposar-te-ei comigo para sempre; sim, desposar-te-ei comigo em justiça, e em retidão (juízo), e em amor fiel (hesed), e em terna compaixão. Desposar-te-ei comigo em fidelidade (‘emuna), e conhecerás o Senhor” (2.19,20). Depois do grande julgamento (juízo) que exterminará os iníquos, o· renovo do Senhor Se tornará em beleza e glória, e o fruto da terra, excelente e formoso para os sobreviventes de Israel. Todos os inscritos entre os vivos de Jerusalém serão chamados santos (Is 4.2,3). A felicidade deste grupo purificado depende da fé e da comunhão com o Senhor. A nova Jerusalém será protegida pela nuvem de fumo de dia, e o resplendor dum fogo flamejante de noite (4.6). Aqueles que gozam da salvação messiânica participam do caráter ético de Deus (Is 33.13-16). “Toda ferramenta preparada contra ti não prosperará; e toda língua que se levantar contra ti em juízo, tu a condenarás” (Is 54.17).

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A salvação messiânica é puramente espiritual. Juntamente com o juízo divino, o Espírito do Senhor será derramado sobre o povo do Senhor. “Derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade, e a minha bênção sobre os teus descendentes” (Is 44.3). Juntamente com o novo concerto, o Senhor promete as bênçãos permanentes da presença do seu Espírito, e o conselho das suas palavras (Is 59.21). O Espírito Santo que transmitia a revelação divina aos profetas, e que efetuava a sua relação direta e pessoal com o Senhor, será, na nova dispensação, a possessão comum de todos os homens de Deus. “E vos darei um coração novo e dentro de vós porei um espírito novo; tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. Dentro de vós porei o meu Espírito, e farei que andeis em meus estatutos, e observeis fielmente as minhas ordenanças” (Ez 36.26,27). Esta justiça que vem da graça livre de Deus será também um princípio novo da vida. Justificado pela de graça de Deus, o homem na idade messiânica pode, mediante o auxilio do Espírito do Senhor, viver em harmonia com o seu Deus. O profeta Joel fala dos resultados do derramamento do Espírito do Senhor. “E acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; Vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, e os vossos jovens terão visões. Também sobre os servos e sobre as servas derramarei, naqueles dias, o meu espírito” (Joel 2.28,29). Joel não se tinha libertado das limitações do nacionalismo, mas faz uma distinção clara entre o reino existente e a idade futura. “Um dos elementos da grandeza da profecia bíblica é Justamente a possibilidade e a realidade do cumprimento maior no reino do Messias do que os próprios autores entenderam quando proferiram ou escreveram as suas mensagens”. 150 A salvação messiânica removerá as conseqüências do pecado. Os escritores bíblicos, em geral, reconhecem que muitos dos males físicos, como os sofrimentos e tristezas da vida, são os resultados do pecado. A aniquilação do pecado removerá todas as formas do mal que aflige a humanidade. Os negócios comuns entre os homens serão purificados e consagrados ao Senhor (Jr 31.38). A maldição da terra (Gn 3.17) será tirada, e até o solo produzirá mais abundantemente (Ez 7.612). Diz também o profeta Amós, 9.13: “Eis que vêm os dias, diz o Senhor, Quando o arador alcançará ao que sega, e o pisador de uvas ao que lança a semente. Os montes destilarão vinho doce, e todos os outeiros se derreterão”. Esta linguagem poética expressa verdades profundas. Na idade messiânica, a miséria e a opressão política desaparecerão” e virão em seu lugar a liberdade e a prosperidade. Libertos do medo, os homens, tão gloriosamente salvos, serão mais zelosos. no serviço do Senhor. Com o progresso da ciência que acompanha o progresso no conhecimento de Deus, a terra cede os seus produtos mais abundantemente, e os homens redimidos gozam dos frutos do seu labor. Segurança e alegria perpétuas· caracterizarão o povo naqueles dias, quando a sociedade humana for remida do pecado. A paz reinará até entre os animais por causa da mudança da natureza, e não haverá mais perigo deles para o povo de Deus. Em Isaías 11.6-9 o profeta vislumbra a redenção da natureza. Esta transformação da natureza não deve ser entendida no sentido puramente figurativo. Foi uma mudança que os profetas esperavam, porque tem uma base de profunda verdade. O mundo, com os seus .recursos, fica adaptado para satisfazer às necessidades humanas, como o homem se acomoda ao clima e outras condições para aproveitar-se dos recursos naturais da terra. À medida que o homem entra no estado mais alto do seu desenvolvimento espiritual, pode ser-lhe confiado mais dos poderes e recursos da terra, e assim se aumenta a harmonia entre o homem e o mundo físico. Mas, na esperança dos profetas, o seu modo de pensar era diferente do nosso. Nós esperamos o reino eterno de Deus além

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A Esperança Messiânica, p. 148.

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dos limites do tempo, enquanto os profetas pensavam na vinda do reino do Senhor, na sua perfeição, dentro dos limites do tempo aqui na terra. O Reino Messiânico Os profetas, no seu alto conceito de Deus, não podiam deixar de esperar o aperfeiçoamento do seu reino, o triunfo final da justiça divina no mundo. Assim falam freqüentemente sobre a vinda do reino na sua perfeição como o resultado das atividades do Senhor. Também descrevem, às vezes, os característicos do reino sem qualquer referência ao Messias. Mas, em geral, o reino de Deus, na plenitude da sua perfeição, será realizado com a vinda e o governo do Messias, o servo do Senhor. Por falta de clareza absoluta em todas as formas da esperança profética, temos que reconhecer o desenvolvimento gradual do conceito do reino messiânico. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de reconhecer que a esperança messiânica relaciona-se, no pensamento dos escritores do Antigo Testamento, com as várias atividades providenciais do Senhor na história de Israel, desde a chamada de Abraão até o novo concerto de Jeremias e Ezequiel. Assim o conceito, encerrado nas palavras o reino messiânico, é mais antigo do que a frase que aparentemente tem a sua origem na promessa de Deus a Davi (2 Sm 7.11-16). Israel é geralmente reconhecido, pelos escritores bíblicos, como o portador da revelação do eterno propósito do Senhor que abrange todas as nações do mundo. “Quando falamos da eleição e da missão messiânica de Israel, não queremos dizer que Deus desamparou as outras nações, porque sabemos que ele as abrangeu no plano da salvação desde o princípio. A Bíblia distintamente ensina que Deus no seu amor escolheu a Israel para levar a revelação divina da redenção universal a todas as nações do mundo. 151 O Velho Testamento ensina que Deus dirige, dentro de certos limites, a história de todas as nações, e que os israelitas eram sujeitos às mesmas leis gerais que governavam as outras nações. A distinção principal da história hebraica é a profecia, e por meio da profecia o Senhor dirigiu a história de Israel de acordo com o seu eterno propósito, que realmente inclui todas as nações e povos do mundo. Depois da libertação dos israelitas do Egito, o Libertador, Iavé, foi identificado como o Deus de Abraão (Êx 6.3). Aparentemente a promessa do Todo-Poderoso dada a Abraão não recebe tanta ênfase, pelos profetas e salmistas, como a escolha de Israel, mas é amplamente reconhecida pelos escritores bíblicos. Com pouca variação, a promessa apresenta-se cinco vezes no livro de Gênesis, e sempre com ênfase na bênção para as nações. Aceitando a incumbência de andar pela fé, obedecer às ordens de Deus e ser uma bênção, o patriarca recebe a promessa em duas partes. Receberá em herança a terra de Canaã, tornar-se-á uma grande nação, terá um grande nome, será um servo tão exemplar do seu Deus que os seus amigos receberão o favor divino e os que fazem pouco caso dele serão amaldiçoados. O Todo-Poderoso promete também ao patriarca que ele terá uma posteridade numerosa, que se multiplicará como as estrelas do· céu e como o pó da terra, abrangendo uma assembléia de povos. Mas o elemento mais salientado da promessa é que por intermédio dele e da sua descendência serão abençoadas todas as famílias da terra. A promessa patriarcal apresenta-se como eterna e universal na aplicação de seus benefícios (Gn 17.7,19). A eleição de Israel para o benefício das outras nações á reconhecida como passo importante no cumprimento da promessa patriarcal. A missão messiânica de Israel é amplamente reconhecida pelos profetas. “O Senhor te estabeleceu para si como um povo santo, como te prometeu com juramento, se guardares os mandamentos do Senhor teu Deus e andares nos seus caminhos. Todos os povos da terra verão que tu és chamado pelo nome do Senhor; e terão temor de ti” (Dt 28.9,10). O Senhor Iavé é Deus de todas as nações, toda a terra é dele, e em tudo que ele fez pelos patriarcas, e mais tarde pelos filhos de Israel, visava o seu propósito eterno de abençoar todas as famílias da terra. É claro para os 151

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escritores bíblicos que o Senhor escolheu a Israel para servir como meio de conseguir o propósito do Senhor, revelado na promessa patriarcal. A história de Davi ocupa mais espaço do que a de qualquer ·outro homem do Velho Testamento. A sua carreira, uma das mais românticas na história do mundo, estabeleceu a fama eterna do povo de Israel. Apesar das suas faltas, Davi era profundamente religioso, designado como “homem segundo o coração de Deus”. Depois de fundar a sua capital em Jerusalém, e conseguir a solidariedade do seu grande reino, ele desejava edificar um templo para a glória do Senhor. Foi nessas circunstâncias que o Senhor fez a sua maravilhosa promessa a Davi. “Também o Senhor te diz que ele mesmo te fará uma casa. Quando os teus dias são cumpridos, e te deitas com teus pais, suscitarei depois de ti o teu filho (semente) que sairá das tuas entranhas, e estabelecerei o seu reino. Ele edificará uma casa para o meu nome, e eu estabelecerei o trono do seu reino para sempre. Eu serei o seu pai, e ele será o meu filho. Quando ele cometer a iniqüidade, castigá-lo-ei com varas de homens, e com açoites de filhos de homens. Mas o meu amor imutável não se apartará dele (o grego diz: 'não o retirarei dele'), como o retirei de Saul, a quem tirei diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; o seu trono será estabelecido para sempre” (2 Sm 7.11-16; cp. 1 Cr 17.1-15). Este concerto do Senhor com Davi é geralmente reconhecido como a origem do conceito do reino messiânico e a base das profecias messiânicas. O Messias, ou o Ungido do Senhor, é reconhecido na profecia como o filho de Davi. Mas é claro que o conceito do reino messiânico chegou a incluir a promessa patriarcal e a escolha de Israel como o povo do Senhor. Assim Deus prometeu edificar uma casa para Davi, estabelecer para sempre o seu trono e reconhecê-lo como filho. “Este concerto de Deus com Davi termina um período de desenvolvimento e inicia outro. Do lado material a confirmação da monarquia de Davi era o cumprimento da esperança do povo de Israel. Quanto à prosperidade material, o reino de Israel chegou ao auge da sua glória não multo depois da confirmação deste concerto. O povo, em geral, contemplava as bênçãos materiais do reino de Davi e as reconhecia como o penhor do favor do Senhor. Elas realmente fazem parte da promessa divina”. 152 Foi discutido no Capítulo X o declínio e o fracasso dos reinos políticos do povo escolhido, e como foram destruídas as suas esperanças falsas pelos profetas. Mas, estes mensageiros do Senhor, baseando-se na promessa patriarcal, na finalidade da eleição de Israel, e nas promessas do Senhor a Davi, ensinaram e encorajaram o seu povo, politicamente acabado, com a interpretação da sua história de acordo com o eterno propósito e o amor imutável do Senhor dos exércitos, o Santo de Israel. O restante dos fiéis que sobreviveu à tragédia da sua história política tem ainda a incumbência de manter a sua fé nas promessas do Senhor, e cumprir a missão messiânica confiada ao povo escolhido do Senhor. É claro, porém, que os sal mistas e profetas” na sua maioria, pensavam por algum tempo depois da época de Davi, nas características políticos do reino messiânico. Mas os termos que usaram eram tão ricos e nobres, e traduziram tão nitidamente o conceito da espiritualidade e justiça, que ainda são usados para descrever o reino de Deus. O reino messiânico não se distingue, no sentido absoluto, do reino de Deus. Para o indivíduo, o reino de Deus é a presença do Senhor no seu espírito, a harmonia da sua vontade com a vontade divina de tal maneira que a sua vida inteira seja divinamente orientada em perfeita harmonia com o Espírito do Senhor. Devido às limitações humanas e ao eterno propósito do Deus infinito esta harmonia

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A Esperança Messiânica, p. 128.

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perfeita da vontade do homem com a de Deus é difícil de alcançar, como se vê no caso de Jeremias e alguns dos salmistas. Mas o reino de Deus, como o reino messiânico, é também social. É o propósito divino trazer o maior número possível à salvação para que, no seu reino, eles possam viver em amor fraternal e trabalhar juntos em cooperação com o Senhor para realizar o seu governo perfeito entre todos os povos do mundo. O reino, portanto, é passado, presente e futuro. Está sempre se aproximando. Os profetas entenderam as imperfeições do reino de Deus na 'vida do seu povo. Para eles, o reino messiânico era a forma futura do reino de Deus, o aperfeiçoamento e a consumação do reino do Senhor, sob o governo do seu Ungido. Os profetas e salmistas, nos seus escritos, descrevem em termos perceptíveis os característicos do reino messiânico. O reino messiânico é do próprio Senhor. Esta não é uma verdade nova, pois o reino era sempre do Senhor, mas é uma verdade mais acentuada nas profecias e nos salmos messiânicos. Desde o tempo de Moisés até a fundação da monarquia, o governo de Israel foi uma teocracia ou o governo de Deus. Mas na monarquia o rei foi considerado como o ungido ou o agente do Senhor. Com o afastamento de Davi, nos seus últimos dias, e a opressão, do povo por Salomão, muitos julgaram que ainda estavam participando dos benefícios do governo do Senhor, mas os videntes inspirados levantaram a vista para o futuro, e esperavam a vinda do segundo Davi. Davi e Salomão reconheceram publicamente que o reino é do Senhor (1 Cr 29.9-11; 2 Cr 6.12-41), mas eram reis ou representantes imperfeitos do reino de Deus. Muitos dos salmos acentuam o governo futuro do mundo pelo Senhor. O Salmo 47 comemora uma vitória política de Israel, e o salmista sonha com a submissão das nações a Israel, e com Deus como o rei de toda aterra. O Salmo 67 é uma oração fervorosa para que Deus, o Rei de Israel, seja reconhecido e aceito como o Rei do mundo inteiro. O salmista ora para que seja conhecido o caminho de Deus e a sua salvação entre todas as nações da terra. Estes dois salmos baseiam-se no conceito político do reino de Israel, aperfeiçoado e governado por Deus. Escrito no período de crise nacional, o Salmo 89 descreve o dilema que perturbava os santos de Israel. O rei no trono é rejeitado como representante da casa de Davi. Mas, apesar da triste condição de Israel, o salmista confia nas promessas do Senhor ao rei Davi. O Senhor soberano, Criador e Rei da terra, cumprirá as suas promessas. “Do amor imutável do Senhor sempre cantarei; com a minha boca proclamarei a todas as gerações a tua fidelidade. Pois disse eu: O teu amor imutável foi estabelecido para sempre, a tua fidelidade é tão firme como os céus. Fiz um concerto com o meu escolhido, Jurei a Davi, meu servo: Para sempre estabelecerei a tua descendência, e firmarei o teu trono por todas as gerações” (vv. 1-4). O grupo dos Salmos 93 a 100 é designado como salmos “teocráticos”, porque são profecias do advento e governo do Senhor em algum tempo indefinido no futuro. Alguns pensam que são ações de graça pela restauração do cativeiro babilônico em que se manifestam esperanças do estabelecimento do reino aperfeiçoado do Senhor dentro em breve. É difícil determinar quando foram escritos muitos dos salmos, mas eles se relacionam com a profecia do futuro do reino do Senhor. Conceitos proféticos são apresentados e desenvolvidos, com devoção e confiança, nos salmos. O costume de cantar os salmos no culto público mantinha acesa a esperança no Messias vindouro, pois os salmistas,· como os profetas, se interessavam na esperança messiânica. O tema do Salmo 93 é a majestade do Senhor como o Rei do universo. O Salmo 94 é um apelo à justiça do Senhor contra os malfeitores, O Sa!mo seguinte é uma exortação ao culto, e admoestação contra a incredulidade e desobediência. O prOfeta canta com júbilo e gratidão, no Salmo 96, o estabelecimento do reino do Senhor entre todas as nações da terra. Os outros salmos deste grupo louvam a majestade, o amor fiel, a soberania, a justiça e as bênçãos do Senhor, como Rei de todos os povos do mundo. “Pois o Senhor é bom; o seu amor imutável dura para sempre, E a sua fidelidade, através de todas as gerações” (100.5). 149


O profeta Daniel dá ênfase ao triunfo do reino messiânico na luta com as forças do mal. Todos os reinos que dependem apenas do seu próprio poder são destinados à perdição. Mas o reino messiânico, de origem humilde, será vitorioso sobre todos os reinos da terra. Estabelecido pelo Deus do céu, o reino do senhor se tornará soberano, universal, indestrutível e eterno Dn 2.44,45). O reino do Senhor será estabelecido por intermédio do seu povo escolhido. Os escritores bíblicos põem ênfase nesta revelação divina. Os israelitas ficaram humildes e admirados de serem eleitos pelo Senhor como o seu povo sacerdotal. Ao mesmo tempo, na luta com outras nações, eles desenvolveram o espírito do nacionalismo e interesses políticos, que quase derrotaram o propósito do Senhor na sua escolha. Mas o Senhor, com os recursos espirituais e a orientação dos seus servos, os profetas, orientou o restante fiel do povo da sua escolha, no cumprimento de sua missão. Os escritores bíblicos põem em relevo a orientação divina dn história e da vida de Israel. No declínio dos dois reinos políticos, os profetas e salmistas firmaram a sua fé no amor imutável e na fidelidade do Senhor, no cumprimento do seu eterno propósito revelado· na história de Israel. O concerto de Deus com Davi introduziu o conceito de filiação que teve influência na profecia. Com a nova idéia de castigo redentor, ligada com a promessa davídica e o estabelecimento perpétuo da casa e do reino de Davi, nem a desobediência podia revogar o concerto. Os Salmos 2, 22, 89, 110 e outros, juntamente com muitas profecias, falam de plena confiança que o rei ideal de Israel e do mundo inteiro virá da linhagem de Davi. O poder do reino messiânico recebe ênfase nos salmos e nas profecias. Em todas as épocas da história, o povo de Deus sente-se fraco perante os poderes seculares e políticos do mundo. Mas os videntes de Deus percebem e entendem o poder invisível, o poder espiritual do Senhor que opera na história e no coração humano. É este que é o poder do reino messiânico. As nações e os povos conspiram e tramam em vão contra o Senhor e contra o seu ungido, e não sabem como ficaram derrotados. “Falarei do decreto do Senhor; Ele me disse: Tu és meu filho; Eu hoje te gerei. Pede-me, e te darei as nações por tua herança, e os fins da terra por tua possessão” (Sl 2.7,8). Assim os Salmos 18, 21, 110 e outros, juntamente com as profecias de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e Zacarias, encorajam o seu povo com numerosos exemplos e promessas do poder espiritual do Senhor, que opera eternamente no seu reino na terra. Com muitos exemplos e experiências do poder do Senhor na história e na vida de Israel, os salmistas e profetas proclamam com certeza a vitória final do reino messiânico. Este é o tema dos Salmos 20 e 21. No primeiro, o salmista antecipa a vitória do rei; no segundo, ele exulta na vitória do rei, que é realmente a vitória do Senhor, para a felicidade do seu povo. O Salmo 72 descreve vários característicos do reino ideal, com ênfase na retidão e justiça. “Ó Deus, dá ao rei os teus julgamentos, E a tua justiça ao filho do rei, que ele julgue o teu povo com retidão, e os teus pobres com justiça” (Sl 72.1,2). “Mas Salomão não realizou a esperança desta oração. a juiz justo se tornou opressor do seu povo; o rei sábio, o voluntarioso, fraco, tolo e desprezível. Deus despedaçou diante dos olhos do seu povo -o fraco tipo mortal, para que pudesse induzi-lo a esperar aquele que era mais alto do que os reis da terra”. 153 Nas meditações sobre o reino futuro do Messias, os profetas e sal mistas tinham a certeza de que o seu reino havia de ganhar a adesão de todos os povos do mundo. O Salmo 22 apresenta um exemplo desta confiança. Depois de descrever em termos proféticos o seu sofrimento e humilhação, citado no Novo Testamento como o sofrimento do Nazareno, o autor fala da universalidade do reino do Senhor. 153

Perowne, The Book of. Psalms, in loco.

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“Lembrar-se-ão e converter-se-ão 20 Senhor todos os confins da terra, adorarão perante ti (grego, ele) todas as famílias das nações. Pois o domínio pertence ao Senhor; ele reina sobre as nações. Comerão e adorarão todos os opulentos da terra; diante dele dobrarão os joelhos de todos os que descem ao pó, ainda aquele que não pode preservar a própria vida. Os descendentes servi-lo-ão, falarão do Senhor à geração vindoura, proclamarão a justiça que ele fez ao povo que há de nascer” (22. 31). O Messias Vindouro 154 Não há harmonia perfeita em todas as esperanças quanto ao Messias vindouro. O conceito do Messias não se originou com Davi, mas por causa da sua maravilhosa carreira, escritores bíblicos ligaram a esperança a ele ou à sua descendência, fazendo do seu nome o símbolo do Rei Messiânico. Mas, segunda alguns dos escritores, a realeza do Messias se destacava de Davi e da sua dinastia. Ageu e Zacarias esperavam que Zorobabel havia de estabelecer-se como o Messias (Zc 6.12,13; cp. 3.8 e Ageu 1.12-2.9). No segundo século a.C., os Macabeus, da tribo de Levi, na luta terrível de ganhar a sua independência política, esperavam por algum tempo que o Rei Messiânico viesse daquela tribo. 155 Baseando-se nas promessas do Senhor em 2 Samuel 7.11-16, os profetas e salmistas relacionam a esperança messiânica principalmente ao Messias da descendência de Davi. São numerosas as profecias sobre a vinda do Messias, com os predicados divinos que lhe são atribuídos. Antes, porém, de discutir algumas destas promessas, convém observar como os escritores bíblicos ligam a promessa davídica às promessas anteriores. Toda a história do povo de Israel funda-se no concerto do Sinai, e Iavé, o Deus de Davi e do Sinai, identifica-se como Todo-Poderoso, o Deus de Abraão. A crítica sobre a data desta identificação e a relação entre o concerto do Senhor com Davi e as promessas anteriores são interessantes para o estudante da história do desenvolvimento da religião de Israel, e indiretamente para o teólogo. Todavia, no estudo teológico do Velho Testamento, é claro que a teologia avançada dos grandes profetas baseia-se na revelação do Senhor por intermédio de Abraão e Moisés, e que as mais profundas doutrinas dos profetas e salmistas são o crescimento lógico e coerente das verdades eternas do Senhor transmitidas e verificadas nas experiências e na história do povo de Israel. O concerto do Sinai representa o desenvolvimento da promessa de Deus a Abraão (Êx 3.13-15; 6.7,8). O Deus de todos os povos considera o bem-estar da humanidade inteira em tudo que faz por Israel. Este é o significado da profecia messiânica. Os profetas reconhecem o fracasso do povo escolhido no cumprimento da sua alta missão e transferem ao Messias vindouro as atribuições reais e sacerdotais que o povo messiânico tinha perdido, por sua infidelidade. Os profetas que precederam a Isaías apresentam doutrinas messiânicas, mas falam pouco, ou indiretamente, do Messias vindouro. O amor imutável, a compaixão e a misericórdia do Senhor apresentam-se repetidas vezes nestas profecias, e de maneira especial na profecia de Oséias. Ele declara que o povo apóstata voltará ao Senhor e a Davi, o seu rei (3.5). As mensagens e doutrinas mais importantes sobre o Messias, em relação com a casa de Davi, encontram-se nas profecias de Isaías e Miquéias. A profecia de Isaías 7.14, Emanu EL, “Deus Conosco”, tem sido assunto de muitas discussões e várias interpretações. O fundo histórico da profecia é de interesse especial, representando um conflito entre os pontos de vista do rei Acaz e do profeta Isaías. Nos dias de Acaz, rei de Judá e descendente de Davi, os dois reis, Rezim da Síria e Peca de Israel, fizeram uma aliança para pelejar 154

A palavra Messias é, no Novo Testamento, e foi por algum tempo antes, um termo técnico, mas no Velho Testamento a palavra podia designar qualquer homem separado para um serviço especial, como o sacerdote ou o rei. No período interbíblico, e no princípio do período do Novo Testamento, a esperança no estabelecimento do reino ideal de Deus na: terra tomou várias formas. A seita de Qumran e os zelotes esperavam a libertação política de Roma por ação militar dirigida pelo Messias. Os fariseus esperavam a realização da Comunidade Santa, estabelecida pelo Senhor, sob o governo do Messias, na condição de que o povo observasse estritamente a lei. A esperança apocalíptica, ou catastrófica, com a vinda do Filho do Homem nas nuvens (Dn 7.13,14), é mencionada é mencionada em Mateus 26.64. 155 H. H. Rowley, The Re-Discovery of the Old Testament, p. 269.

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contra Acaz e para tomar e repartir entre si as riquezas do Reino de Judá. Quando Acaz, pusilânime representante da casa de Davi, foi avisado da aliança contra Judá, ficou amedrontado. O Senhor ordenou que Isaías saísse com o seu filho, Sear-Jasube, ao encontro de Acaz, fora da cidade, para lhe entregar a mensagem divina. Entendendo a fraqueza da Síria e Israel, e sabendo da covardia e medo de Acaz, o profeta procurou animá-lo com a promessa clara e definitiva: “Isto (o plano de Rezim e Peca) não subsistirá nem acontecerá”. Percebendo a incredulidade do rei, o mensageiro do Senhor se ofereceu para confirmar a promessa divina por um 'sinal. “Pede para tua casa ao Senhor teu Deus um sinal; faze-o tão baixo como o Sheol, ou tão alto como os céus”. Acaz rejeitou logo a oferta do sinal, fingindo que não queria tentar o Senhor. Mas rejeitou o sinal porque tinha já resolvido pedir o auxílio da Assíria. Então Isaías respondeu: “Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal. Eis a donzela (grego parthénos, “virgem”), conceberá e dará à luz um filho, e lhe dará o nome Emanu El. Ele comerá manteiga e mel,. e quando souber rejeitar .O mal e escolher o bem, será desolada a terra ante cujos dois reis tu tremes de medo” (7.14-16). Sem entrar na discussão das várias interpretações da profecia,convém mencionar três fatos importantes. O primeiro é que a palavra há’alma, “a virgem”, tem o artigo definido, um fato que os tradutores geralmente deixam de ver ou tomar em consideração. Parece, então, um termo que podia ser reconhecido pelos contemporâneos do profeta. A declaração “a donzela dará à luz um filho” encontra-se em um dos textos de Rás Shamra, usada aparentemente com referência ao nascimento divino ou real. 156 O conceito “Deus conosco” era usado no culto, como no Salmo 16: “O Senhor dos exércitos está conosco (Smanu)”. Outro fato interessante é que manteiga e mel são conhecidos entre os semitas como a alimentação dos deuses. O sinal divino e todas as palavras do profeta indicam que não está falando do nascimento de qualquer filho, mas de um filho divino. Isaías tinha a certeza de que Israel e Judá seriam destruídos pelo poder da Assíria, a quem o insensato Acaz pediu, sem entendimento, auxílio contra Rezim e Peca. O profeta, na sua visão do futuro, esperava a salvação messiânica logo após a destruição dos reinos de Israel e Judá, sob o governo do filho da donzela, mas não veio tão cedo. Contudo, não morreu a esperança do profeta, mas foi nutrida e mantida acesa no coração do povo fiel através de todas as calamidades políticas. Nos capítulos 8 e 9 de Isaías, a invasão pela Assíria apresenta-se na figura de uma grande inundação. “A extensão das suas asas encherá a largura da tua terra, ó Emanu EL”. A lembrança do nome inspira o profeta com a promessa “Deus conosco”, e ele desafia o assírio e todos os seus aliados nos seguintes termos: “Sede despedaçados, Ó povos, e consternados; Dai ouvidos, todas as terras longínquas; cingivos, e sede consternados; tomai juntamente conselho, mas será frustrado; Dizei uma palavra, mas não subsistirá, pois Emanu EL, Deus é conosco” (8.9,10). Certo de que o período terrível de trevas e assolação está começando, o profeta exorta o povo a não temer os inimigos, porque Deus ainda está no seu meio. Isaías declara que quando o povo olhar para Deus, as trevas se dissiparão. “O povo que anda nas trevas Vê uma grande luz; os que se assentam na terra de profunda escuridão, sobre estes brilha a luz” (9.2). Continua o profeta com a mensagem que aparentemente se liga diretamente com Emanu EL, o filho da donzela de 7.14. “Porque a nós é nascido um menino, é-nos dado um filho; E o governo estará sobre os seus ombros: E ele terá por nome Maravilhoso, Conselheiro, poderoso Deus, Eterno Pai, Príncipe da Paz. Do aumento do seu governo e da paz não haverá fim, sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, Para o

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Cyrus H. Gordon, Ugaritic Literature, p. 64.

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estabelecer e para o firmar, com justiça e com retidão, desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos exércitos fará isto” (9.6,7). Apresenta-se nesta profecia a mesma combinação de idéias que se acham no capítulo 7. Deus, na sua providência misteriosa, usa o poder da Assíria para castigar o seu povo rebelde, e este castigo é seguido pela salvação messiânica. Não se diz no capítulo 7 que Emanu EI será da casa de Davi, mas parece subentendido, sendo a profecia entregue ao rei Acaz. Aqui “o Menino nascido”, Emanu EI, se assentará no trono de Davi e governará o seu povo. Os nomes atribuídos ao Messias nesta profecia referem-se também, em vários textos, ao próprio Deus (Is 10.21; 28.29; 54.10; 66.12; Jr 31.9). Portanto, não há razão de duvidar que o profeta atribui predicados divinos ao “Menino nascido”. 157 Apresenta-se nos primeiros cinco versículos do capítulo 11 a profecia do Rebento que, segundo a interpretação mais lógica se identifica com “o Menino nascido” do capítulo 9 e com Emanu EL do capítulo 7. O Rebento do tronco de Jessé tem os atributos reais requeridos para a realização da esperança do seu povo. “Brotará do tronco de Jessé um rebento, e das raízes sairá um renovo, que dará fruto. E descansará sobre ele o Espírito do Senhor, O espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de poder, o espírito de conhecimento e do temor do Senhor. Ele terá prazer no temor do Senhor. Não julgará segundo a vista dos olhos, nem decidirá segundo ao que ouve; mas julgará com justiça (retidão) os pobres, e decidirá com eqüidade os mansos da terra; ferirá a terra com a vara da boca, e com o bafo dos lábios matará ao perverso. A justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade, o cinto dos seus rins” (Is 11.1-5). Tudo nesta passagem indica que o profeta esperava a realização do reino messiânico na terra, mas o ideal religioso prevalece sobre o político. O texto de Isaías 61.1,2, citado em Lucas 4.18, 19, tem idéias paralelas com as de Isaías 11. A comunicação do espírito ligasse com a unção. O Ungido tem os mesmos atributos nas duas passagens, mas na última atos do seu reino benéfico são especificados: a pregação das boas-novas aos ,mansos, a cura dos quebrantados de coração, a libertação dos cativos, a proclamação do ano favorável do .Senhor e o dia da vingança de Deus. O trecho de Miquéias 5.2-4, citado em Mateus 2.6, declara que o Messias há de nascer em Belém. Depois de descrever a miséria que Israel sofreu às mãos das nações hostis, o profeta diz: “Mas tu, ó Belém Efrata, embora pequena entre os milhares de Judá, Ainda de ti sairá para mim aquele que há de ser o reinante em Israel; cuja origem é desde os tempos antigos”. O Messias de Belém é descendente de Davi e reinará como seu· sucessor no trono de Israel. O versículo 3 é difícil, mas aparentemente se refere ao nascimento de Emanu EL, em Isaías 7.14. O versículo 4 declara que ele governará como pastor do seu povo; e que “ele será grande até os fins da terra”. O termo “Renovo” é significativo nas profecias sobre o Messias vindouro. “Naqueles dias e naquele tempo farei brotar um Renovo de Justiça para Davi; ele executará justiça (juízo) e retidão (justiça) na terra” (Jr 33.15; comp. Is 4.2). “Ouve, pois, Josué, sumo sacerdote, tu e teus amigos que se assentam diante de ti; porque são homens de presságio; eis que farei vir o meu servo, o Renovo” (Zc 3.8). É mais um eco da promessa de Deus a Davi. Estas passagens citadas sobre a esperança da vinda do Messias, perfeito em sabedoria e justiça, são apenas representativas. É provável que tais profecias representavam por algum tempo o ideal do reino divino e o rei, como o representante ungido do Senhor, e que esta esperança viva se manifestava todas as vezes que um novo rei subia ao trono. Mas, com o aumento das intrigas políticas e da injustiça do governo, juntamente com a desmoralização dos reis, a esperança dos fiéis ficava cada vez

157

A. B. Davidson, Old Testament Prophecy, p. 368: “O presente nestes atributos e operações na pessoa do rei; é a revelação da presença do Senhor nestes atributos”.

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mais abalada, sendo transferida ao futuro até “aquele dia” quando o Rei Ideal, com os atributos divinos, havia de reinar com sabedoria e justiça divina sobre todos os povos, até os confins da terra. O Filho do Homem “Então vi nas visões noturnas, e eis que vinha com as' nuvens do céu Um como o Filho do Homem. Chegou até o Antigo dos Dias, e foi apresentado diante dele. Foi-lhe dado domínio, glória e um reino, que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio sempiterno, que não passará, E o seu reino tal, que não será destruído” (Dn 7.13,14). Este texto é outra representação da esperança messiânica. O título do Nazareno, Filho do Homem, provavelmente se baseou nesta passagem. A passagem dá, em resumo, a mensagem principal das profecias messiânicas: o reino de Deus na terra vencerá o poder dos inimigos e será estabelecido pelo Filho do Homem, que terá domínio eterno sobre todos os povos, nações e línguas. Baseando-se nos versículos 18, 22, 27 do capítulo 7, alguns intérpretes pensam que a frase “um como Filho do Homem” refere-se ao “povo glorificado e ideal de Israel”, “os santos do Altíssimo”. Mas a frase “vinha com as nuvens do céu” não concorda com a interpretação coletiva. Os dois títulos, “Filho do Homem” e “Servo Sofredor”, referem-se ao Redentor que veio do povo escolhido; da nação' sacerdotal. O domínio mundial do Messias é facilmente transferido “ao povo glorificado e ideal da Israel”. O Servo Sofredor A figura do Servo Sofredor é a mais importante da esperança profética. Entre os judeus a esperança messiânica se centralizava no Filho de Davi, como o soberano de um reino fundamentalmente político, mas divinamente justo, eterno e universal. Não há certeza de que eles jamais ligassem o conceito do Servo Sofredor com o do Rei Messiânico, mas não pode haver dúvida de que o autor dos textos de Isaías 42, 49, 50 e 53, sobre o Servo do Senhor, apresenta-o como o Agente de Deus que há de conseguir a salvação no mundo. Ele tem quase os mesmos predicados divinos que são atribuídos ao Rei Ungido do Senhor, e ao Filho do Homem, mas temos no retrato dele o ensino sublime de que a redenção será efetuada, não pela missão do Rei político, mas pelo sofrimento vicário do Servo do Senhor. Surgem vários problemas no estudo e na interpretação dos quatro poemas acima referidos, mas a salvação conseguida pelo sofrimento vicário é o assunto mais interessante para o teólogo. É significativo que o Servo Sofredor se apresenta ao povo sofredor no cativeiro babilônico. Este é o ponto de partida da interpretação de que o próprio Israel é a figura representada nas poesias. Quem é, então o Servo? É o mesmo nas quatro poesias? Houve um desenvolvimento gradual no entendimento do profeta? 158 É difícil responder precisamente a estas perguntas. Parece que houve progresso nas meditações do profeta sobre o Servo e a sua missão. Teólogos reconhecem a fluidez do termo, ou o seu sentido variável nas discussões. Em Is 41.8, Israel é designado como o servo do Senhor. “Mas tu, ó Israel, servo meu, Tu Jacó, a quem escolhi, descendente de Abraão, meu amigo”. Alguns intérpretes julgam que na passagem Is 42.1-7, o profeta está pensando no grupo fiel dos israelitas como o servo, mas os versos 6 e 7 descrevem a sua missão dupla e indicam que ele é mediador pessoal entre o seu povo e o Senhor. Aceitou pessoalmente a missão messiânica da coletividade, e pelo seu sofrimento vicário conseguiu realizar aquela missão. Para o cumprimento 158

Bons livros recentes sobre o assunto: H. H. Rowley, The Servant of the Lord, and other Essays in the Old Testament. W. Zimmerli and J. Jeremias, The Servant of God. Helmer Ringgren, The Messiah in the Old Testament.

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desta grande missão, o Servo é dotado do Espírito e dos recursos do Criador dos céus e da terra. Em trazer às nações a justiça divina, o Servo é calmo, manso, nobre e gentil. Na missão dupla de levar ao fim as promessas do concerto do Senhor com Israel, e ao mesmo tempo serve de luz aos gentios, ele abrirá os olhos aos cegos e tirará do cárcere os que estão sentados nas trevas. A segunda poesia, Is 49.1-6, acentua o caráter profético da missão do Servo. Chamado e preparado para o seu serviço, é como seta polida na aljava do Senhor. Aparentemente desalentado e pensando, por algum tempo, que estava trabalhando em vão, o Servo se encoraja com a lembrança de que o seu direito, está com o Senhor, e firma-se na confiança de que na plenitude dos tempos, com a bênção do Senhor, o seu trabalho será coroado de êxito. Como no texto de 42, apresenta-se a missão dupla do Servo; a restauração de Israel e a salvação dos gentios. É a luz do mundo e o Mediador da salvação universal. Ele, então, será exaltado com sublimidade pelo Santo de Israel, e também com ele o povo desprezado. Quando os reis e príncipes verão o Servo livre da humilhação e exaltado conforme a dignidade da sua missão redentora, eles se levantarão de seus tronos com adoração pela fidelidade de Deus no cumprimento de suas promessas, e a do Servo em desincumbir-se da sua missão. Há dúvidas e discussões sobre o significado da palavra Israel no versículo 3. Significa a nação, o Restante ou a pessoa do Servo individual? O termo honroso bem pode servir como título do Servo, sendo ele o representante de Israel, no cumprimento da missão sacerdotal do povo escolhido. É difícil crer que ele seja o próprio Israel, como nação, à luz do versículo 6. “Pouco é que sejas o meu servo, Para suscitares as tribos de Jacó e restaurares os que de Israel têm sido preservados; Também te darei para a luz dos gentios, para seres a minha salvação até os fins da terra”. Acentua-se no terceiro cântico, Is 50.4-11, mais do que no segundo, o sofrimento do Servo como profeta. Ao entregar a sua mensagem, ele é severamente perseguido e fisicamente ferido, mas suporta com paciência o seu sofrimento, confiando no Senhor Iavé, que o ajuda. Portanto, ele não ficará, envergonhado, e a traça comerá os seus inimigos. Esta passagem põe ênfase especial na “missão do Servo como profeta. O Servo submete-se ao Senhor e obedece fielmente à sua vontade. Para se tornar o Mediador da revelação divina, ele é preparado pelo Senhor para compreender plenamente a mensagem e para proclamá-la com coragem e confiança. Não hesitou em receber a incumbência, sabendo que, ao invés de trazer-lhe vantagens e honras, terá que sofrer vergonha, desprezo e vilipêndio no desempenho da sua missão. A vontade do Senhor é o seu prazer e triunfará finalmente sobre todos os seus adversários. O último cântico Is 52.13-53.1-12, é reconhecido por muitos como o clímax da revelação divina no Velho Testamento. A tradução e a exegese do texto oferecem certas dificuldades, especialmente para aqueles que gostam de descobrir dificuldades e oferecer novas interpretações. O hifil, imperfeito da sakal, 52.13, geralmente traduzido nas versões modernas por prosperar, pode significar “proceder com prudência”, como em Jeremias 23.5, “procederá sabiamente”, segundo, as traduções mais aceitáveis. É interessante observar que neste versículo Jeremias se refere ao Rei Messiânico. A palavra em 52.15, traduzida em versões portuguesas como borrifará, é incabível e rejeitada pelos eruditos em geral. É o hifil do verbo naza, que não consta em outro lugar, mas “fazer saltar” ou “espalhar” parece ser a tradução mais aceitável.

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“Quem deu crédito ao que nós ouvimos?” (53.1). A quem se refere o “nós”: ao “povo de Israel”, às “nações” ou ao “mundo inteiro”? No pensamento do escritor, refere-se primeiramente aos observadores dos sofrimentos do Servo. No versículo 5 a palavra shalom com o sufixo de nós, tem o sentido de paz, que, do ponto de vista· do Velho Testamento, freqüentemente abrange as idéias de salvação, saúde, prosperidade, felicidade. No versículo 9 “o rico” é a tradução do hebraico, mas alguns emendam o texto, acrescentando uma letra, e assim lêem “malfeitores”, sinônimo mais claro de “ímpios” na linha anterior. Num dos manuscritos do Mar Morto se lê no versículo 10: “e o traspassou”, ao invés de “deulhe enfermidades”. Ringgren, seguindo Nyberg, traduz ou interpreta: “deixou-se ser propiciado”. Os dois manuscritos do Mar Morto trazem a palavra “luz” na segunda linha do versículo 11: “Ele verá a luz, e ficará satisfeito”. Esta palavra não consta no texto dos massoretas. Não obstante as dificuldades do texto, o ensino teológico do poema é claro. O Servo foi perseguido e atormentado, e os seus sofrimentos foram interpretados pelos observadores como o castigo divino e merecido. Morreu, e até na morte foi considerado um criminoso. Mais tarde Deus o exaltou e lhe deu c lugar entre os grandes. Os observadores então confessaram que tinham entendido erradamente os sofrimentos do Servo. Não sofreu por causa dos seus próprios pecados, mas levou sobre si os sofrimentos, as tristezas e as iniqüidades dos seus detratores, que tinham testemunhado e apoiado as crueldades e as injustiças praticadas contra ele. Sofreu o castigo das transgressões dos seus perseguidores. E tudo isto aconteceu de acordo com a vontade de Deus. Pelos seus próprios sofrimentos, o Servo tinha libertado os pecadores da punição que eles mereciam, para que eles pudessem ficar justificados perante o Senhor. Sim, o sofrimento do Servo foi vicário. Salmos do Servo do Senhor Há um grupo de salmos do Ebed-Iavé, ou do “Servo ao Senhor”, e como os quatro cânticos de Isaías, são geralmente reconhecidos como saímos messiânicos. Incluem-se neste grupo os Salmos 18, 22, 69, 88, 116 e outros. Sem entrar na discussão destes salmos, chamamos a atenção apenas a certos conceitos semelhantes aos das poesias sobre o Servo do Senhor de Isaias. O suplicante geralmente se acha no poder da morte do Sheol ou dos seus inimigos. Descreve o seu sofrimento com a imagem de águas profundas e cordas da morte. É geralmente cercado por inimigos, poderosos e malvados, representados como cães, touros ou leões. É desprezado, escarnecido, e abandonado pelos amigos. Destas injustiças e sofrimentos o Senhor salva o seu Servo, e lhe dá uma vida cheia de gratidão e felicidade. Ele então proclama a salvação do Senhor no meio da congregação. Tão grande é a salvação do Sofredor do Salmo 22 que será proclamada à geração vindoura. Com esta breve discussão do Servo nos Salmos, surgem duas perguntas interessantes. Primeiro, o Servo dos Salmos identifica-se com o Servo Sofredor de Isaías? O termo servo nos Salmos representa pessoas fiéis que sofreram por causa da fidelidade ao Senhor. São inocentes e sofrem por amor do Senhor. Enquanto há muito nos Salmos 22 e 116 e outros que nos lembra do Servo Sofredor de Isaías 52:13-53:12, não se encontra neles o conceito especificado do sofrimento vicário. Segundo, o Servo Sofredor identifica-se, dentro do Velho Testamento, com o Rei Messiânico, ou com o Filho do Homem? O Dr. H. H. Rowley concluiu, no seu estudo cuidadoso desta questão: “Não há evidência séria para unir estes conceitos do Servo Sofredor e o Messias Davídico antes da era

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cristã”. 15916 Por outro lado, W. Zimmerli e J. Jeremias, conquanto não achem a identificação dos dois conceitos dentro do Velho Testamento, declaram, no seu estudo elaborado: “Os nossos estudos até aqui verificaram que a interpretação messiânica de Isaías 42:1 e 52:13 se baseia em tradições antigas”. 160 Eles citam o Targum antigo de Isaías. Sobre a pessoa do Servo Sofredor de Isaías, o Dr. John Bright oferece as seguintes observações: “O Servo sempre é descrito em termos individuais. É claro também que, às vezes, esta figura é mais do que Israel inteiro, mais do que o Israel verdadeiro, figura maior do que qualquer outra pessoa de Israel. Assim se torna uma figura ideal. É o Redentor Vindouro do verdadeiro Israel que, no seu sofrimento, consegue pessoalmente o cumprimento da missão de Israel. É o operador central na coisa nova que está para acontecer. Podemos dizer que ele é o Novo Moisés, no novo êxodo, prestes a começar. Quem é o Servo? Ele, é Israel; ele é o Israel verdadeiro e fiel; ele é o grande Servo que será o Guia do povo que há de servir - tudo isso em uma só Personalidade”. 161 Podemos acrescentar que é de fato maravilhoso o retrato do Servo Sofredor que se apresenta em Isaías 52.13-15.12. O seu caráter, a sua prudência, a sua paciência, a sua fé, a sua justiça, a sua fidelidade no desempenho do seu mandato: o seu proceder, a sua íntima relação com o Senhor e a influência peculiar do seu sofrimento vicário sobre os homens são coisas novas na experiência humana. Ficou profundamente gravado na memória e na consciência dos seus contemporâneos como ele levou, na sua pessoa, as tristezas, os sofrimentos e os problemas do seu povo. Com ele entrou no mundo uma nova luz, uma nova verdade, um novo caminho e um novo poder para orientar e encaminhar a humanidade extraviada.

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H. H. Rowley, The Servant of the Lord and Other Essays on the Old Testament, p. 85. W. Zimmerli and J. Jeremias, The Servant of God, p. 67. 161 John Bright, The Kingdom of God, p. 150. 160

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CAPÍTULO XII A VIDA FUTURA Há, no Velho Testamento, dois conceitos de escatologia. Um se refere ao aperfeiçoamento futuro do reino de Deus na terra; o outro trata da vida futura do homem além da morte. O primeiro nasce da revelação do propósito do Senhor na escolha de Israel, e se desenvolve em relação com as atividades de Deus na história. O segundo refere-se ao Sheol (lO):$) como a habitação de todos os mortos, e finalmente apenas o lugar da punição dos ímpios a primeiro desenvolve-se com o entendimento da personalidade corporal de Israel; a modificação do conceito do Sheol acompanha o esclarecimento do ensino profético sobre a responsabilidade pessoal. O primeiro é mais característico da mentalidade de Israel, e teve mais influência na teologia do Antigo Testamento; o segundo concorda perfeitamente com o entendimento do lugar do homem· individual no desenvolvimento do reino de Deus. Desde o tempo de Amós os profetas testemunharam o declínio moral de Israel como nação política e como o representante do reino de Deus no mundo. O profeta Jeremias apresentou um novo ensino, de profunda significação. A frase que encerra os elementos deste ensino profético é o Novo Concerto. A unidade religiosa no Novo Concerto não será mais a nação como tal, mas uma pessoa. Deus escreverá a sua lei no coração do homem. Cada pessoa experimentará diretamente o poder da graça de Deus no seu espírito, ficando individualmente e pessoalmente responsável perante Deus. Assim o reino de Deus constará de pessoas em comunhão pessoal com Deus. O israelita fiel podia aceitar estes dois conceitos de escatologia. Aqueles que tinham o conhecimento do Senhor no coração podiam trabalhar para o aperfeiçoamento do reino de Deus, com a certeza das bênçãos do Senhor. Todavia, este novo conhecimento da comunhão pessoal com Deus modificou gradualmente o ensino profético sobre a vida futura. Assim os salmistas e profetas chegaram a entender que a morte não poderia romper a comunhão entre homens piedosos e o seu Senhor. A Morte Física A escatologia do indivíduo recebe menos atenção no Velho Testamento do que a da comunidade nacional. Para os hebreus, a morte física significava a partida da alma do corpo para se unir com outras almas no mundo subterrâneo (Sheol). Assim a alma se separava do corpo, mas ainda continuava a existir, embora num estado de tristeza e esquecimento, pois se julgava que a personalidade sem corpo não podia mais gozar comunhão com Deus. Cortada da “terra dos vivos”, a mera existência da pessoa quase não tinha mais significação. Torna-se claro na leitura do Antigo Testamento que a morte próxima sempre despertou profunda tristeza, até no espírito dos homens mais piedosos. Assim a palavra maweth significa a dissolução das coisas vivas, incluindo o homem, mas na Bíblia a palavra adquire um sentido peculiar em relação com o homem. Levando na sua pessoa a semelhança divina, o homem, enquanto vivia, podia ser “visitado” por Deus, e receber as bênçãos da comunhão pessoal com Deus. Contudo, é muito diferente de Deus na sua mortalidade. Como os animais do campo, ele é sujeito à morte. “Os seus dias são como a sombra que passa” (Sl 144.3). Com o entendimento de que o pecado impede a comunhão com Deus, os escritores bíblicos reconheceram uma conexão entre o pecado e a morte. “Porquanto tu és pó, e em pó te tornarás”. “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.20). Contudo, o profeta Ezequiel ensina que Iavé não tem prazer na morte, nem na morte dos ímpios.

O Velho Testamento, em geral, não apóia o ensino de que a morte é um benefício humano, de acordo com a ordem da natureza. A morte é um mal, uma amargura, um terror (Dt 30.15; 1 Sm 15.32; Sl 55.4). Todavia, o sofredor Jó, na sua aflição, expressou a esperança de encontrar algum alívio no 158


silêncio Obscuro do Sheol (17.13-16). Ele sabe que o seu Redentor (Go’el) vive, e espera que vindique o justo depois da morte (19.25-27). Normalmente a vida é desejável. Jó tinha experimentado a vida boa antes da sua aflição. Em toda parte da Bíblia a vida é reconhecida como o dom do Criador, e que não deve ser repudiada. O suicídio entre os israelitas era muito raro. Nem o sofredor Jó, na sua miséria e nas suas dores terríveis, considerou que o suicídio seria justificável. Severamente ferido no campo de batalha! Saul pediu que o seu pajem de armas arrancasse a espada e o atravessasse para que não caísse nas mãos dos incircuncisos para ser torturado e escarnecido. Horrorizado, o pajem de armas recusou. Então Saul lançou-se sobre a espada, o único meio ele salvaguardar a sua honra de soldado. A morte é fato de experiência. Homens morrem em todas as variedades de circunstâncias. Alguns, como Abraão, Jacó, José e Moisés, morrem em idade avançada, depois de uma vida ricamente abençoada. Outros são cortados na infância ou na mocidade. Ainda outros caem às mãos do inimigo, na guerra, por doenças, pragas, fome, tempestades, epidemias e terremotos. A morte está sempre ceifando as suas vítimas. Enquanto os homens enfrentavam a sua própria morte com terror, o povo em geral ficava indiferente à morte de pessoas fora da família ou dos amigos. A atitude dos israelitas para com a morte não era muito diferente da de outros povos. 162 O Prof. Baab exagera a indiferença e a dureza de coração dos israelitas na atitude para com a morte. Cita a falta de alegria ou de tristeza por causa da morte dos primogênitos dos egípcios, e como aproveitaram a ocasião para despojar os egípcios. Mas, não foi uma reação humana, especialmente de ex-escravos que tinham sido cruelmente tratados, e brutalmente explorados por muitos anos? Foi também humano e profundamente significativo o cântico do hino de alegria pelos israelitas quando viram os cadáveres dos soldados egípcios que os tinham perseguido até o Mar Vermelho (Mar de Juncos). Baab cita também a falta de pena das famílias de Coré, Datã e Abirão, que foram engolidos na terra por causa da sua revolta contra a autoridade de Moisés e Arão. Mas o escritor conta simplesmente o que aconteceu, e porque aconteceu, sem explicar o sentimento dos observadores. A brutalidade de Jeú, citada por Baab como exemplo da indiferença à morte, é severamente condenada pelo profeta Oséias. Considerando o ponto de vista dos escritores destas narrativas, que representam, segundo Baab, a falta de sentimento dos israelitas para com a morte, convém fazer duas observações. Primeiro, os autores estão contando incidentes significativos na história do povo, e não se interessam especialmente nos sentimentos do povo. Segundo, qualquer falta de compaixão, indiretamente revelada na atitude dos observadores da matança de seus inimigos, não é essencialmente diferente da dos povos modernos, especialmente quanto à morte dos inimigos na guerra, ou mesmo de pessoas desconhecidas. Há exemplos de pessoas que sofreram profunda tristeza por causa da morte de amigos ou de parentes amados. Quando Jacó recebeu a notícia da morte suposta do seu filho José, ele rasgou os vestidos, cingiu-se de saco, e lamentou a seu filho por muitos dias (Gn 37.34,35). O povo chorou a morte de seus grandes homens, como José, Moisés e os seus melhores reis e servos. Davi lamentou amargamente a morte de seu nobre amigo Jônatas. Chorou também a tragédia do seu filho rebelde, Absalão. Segundo o Velho Testamento, há coisas mais importantes do que a vida da pessoa anti-social. A lei era muito dura, do ponto de vista moderno, mas visava a segurança da sociedade e os interesses da comunidade. A pena de morte foi imposta por vários crimes: por exemplo, à pessoa que incitasse um membro da sua família a apostatar da fé para servir a outros deuses (Dt 13.9); a qualquer pessoa que se encurvasse ao sol, à lua ou ao exército do céu (Dt 17.3); à pessoa que se rebelasse contra o sacerdote ou o juiz (Dt 17.12); ao filho rebelde contra os pais (Dt 21.21). À luz da história de Israel, é quase certo que estas leis não eram executadas rigorosamente.

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Otto J. Baab, The Theology of the Old Testament, p.199: “Baab apresenta a história da luta entre Jacó e Esaú, no esforço de ganhar a bênção do pai moribundo, como ilustração da indiferença dos filhos para com a morte do pai. Mas Isaque viveu mais 21 anos, até a volta de Jacó de Padã-arã. Morreu velho e farto de dias; e Esaú e Jacó, seus filhos, o sepultaram (Gn. 35.:29). É uma ilustração da falta de cuidado na interpretação, ou da tendência de tirar conclusões das Escrituras que não concordam com a do seu Senhor” (citação adaptada).

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Alguns teólogos 163 se esforçam para provar que os israelitas normalmente prestavam culto aos mortos porque os seus vizinhos, os egípcios, os babilônios e outros o faziam. Citam as proibições contra a necromancia para reforçar as suas inferências. Pelo mesmo modo de argüir pode-se provar que o cristianismo presta culto aos mortos, porque alguns cristãos crêem firmemente na comunicação com os mortos. Os desvios da religião de Israel não representam qualquer ensino teológico do Velho Testamento, justamente como os cristãos mal instruídos não representam a teologia cristã. “Não se achará entre vós quem faça: passar a seu filho ou a sua filha pelo fogo, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro, nem· encantador, nem quem consulte uma adivinha um mágico ou um necromante. Porque abominável é ao Senhor todo aquele que faz estas coisas, e por causa destas práticas abomináveis, o Senhor vosso Deus os lança fora diante de vós” (Dt 18.10-12). Sheol - lO):$ Não há no Velho Testamento qualquer declaração para sugerir que a morte fosse a extinção total de uma pessoa. Todavia; Ludwig Koehler pensa que qualquer homem apedrejado ou queimado deixou de existir (corpo e alma) no sentido absoluto. “Se o homem fosse apedrejado ficaria coberto de pedras, de sorte que nada dele restaria. Se fosse queimado, restaria apenas um acúmulo de cinzas, nada; pois ele não existiria mais”. 164 Todas as declarações sobre o Sheol e os seus habitantes são vagas. A palavra é usada freqüentemente no sentido poético ou figurativo, como em Deuteronômio 32.22; Isaías 7.11; Jonas 2.2,3; Amós 9.2-4; Salmos 130.7,8. “Pois um fogo se acende da minha ira, e arde até a profundeza do Sheol, devora a terra e a sua novidade, e abrasa os fundamentos dos montes” (Dt 32.22). Não há certeza quanto à origem do conceito de Sheol. Alguns pensam que se originou com os sumerianos e veio aos hebreus por intermédio dos cananeus. A palavra provavelmente deriva-se de uma raiz que significa “ser oco”, e assim corresponde ao significado do termo inglês “hell”. Não são uniformes as reapresentações de Sheol no Velho Testamento, mas as referências indicam que os escritores pensavam que era uma grande cavidade nas profundezas da terra, o lugar do encontro e da habitação de todos os mortos. Há uma teoria de que originalmente o Sheol era apenas um grupo de sepulturas de uma tribo ou de uma nação, e desta idéia se desenvolveu o conceito de que á a habitação dos mortos de todos os povos, bons e maus. Se o conceito de Sheol se desenvolveu da idéia primitiva das sepulturas, os dois lugares continuaram a existir juntos como a habitação dos mortos. Mas a sepultura é o lugar do corpo, enquanto a personalidade, separada do corpo, habita no Sheol. As muitas declarações sobre o Sheol aparentemente não expressam verdades recebidas pelos escritores em comunicação com Deus, mas representam principalmente a imaginação dos autores no período antes da revelação dos ensinos sobre a responsabilidade pessoal. Por esta razão as descrições do lugar e de seus habitantes são vagas e indefinidas. Os pensamentos e as imaginações sobre o Sheol pertencem mais às idéias religiosas e passageiras do que à teologia do Velho Testamento. Não se representa como lugar de castigo nem de recompensa.· Ate nos últimos períodos do Velho Testamento os homens receberam a recompensa ou a punição que mereceram enquanto ainda viviam. Sendo o contraposto da esfera de luz e vida, o Sheol é o lugar de profundas trevas. “Terra escuríssima, como a mesma escuridão, terra de densas trevas sem ordem alguma, onde a luz é como a escuridão” (Jó 10.22). As gerações dos antepassados de todos os homens, todas as tribos e nações habitam juntos o Sheol. O profeta Isaías representa a chegada do rei da Babilônia ao Sheol.

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Otto J. Baab, op. cit., p. 205 e seg. Hebrew Man, How He Looked, Lived and Thought, p. 96.

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“O Sheol embaixo excita-se por ti, Para te sair ao encontro na tua vinda; desperta por tua causa os habitantes fracos (refaim, “sombras”) , todos os que haviam sido líderes na terra; levanta de seus tronos que tinham sido reis das nações. Todos eles falarão, e te dirão: Tu também te tornaste fraco como nós! Tu te tornaste semelhante a nós! A tua pompa está abatida até o Sheol, O som das tuas harpas; debaixo de ti são espalhados os vermes, e os bichinhos te servem de coberta” (Is 14.9-11). Note o leitor como, nas últimas linhas, o pensamento do profeta se reverte à sepultura, até na descrição do Sheol. Os escritores falam freqüentemente sobre a condição dos moradores do Sheol. Entendiam que, na morte, Deus tira o espírito de vida, a fonte vital de força e energia, e deixa apenas a mera existência da pessoa. O Sheol é chamado abadom, “perecendo”, ou hadal, “cessação”. Os habitantes são chamados “sombras”. Ficam entorpecidos, silenciosos. É o lugar de esquecimento (Sl 88.12), onde perecem os sentimentos de amor, ódio e inveja (Ec 9.5), mas os habitantes têm um pouco de curiosidade a respeito da chegada dos grandes da terra que hão de ficar na sua mesma condição (Is 14.10). É claro que estes são pensamentos da imaginação, mas levam a certeza de que a morte não termina a existência cio homem. As referências geralmente indicam que não havia distinção entre a condição dos moradores do Sheol, não sendo ele lugar de castigo nem de recompensa. “Ai estão o pequeno e o grande, e o servo fica livre do seu senhor” (Jó 3.19). Mas Isaías 24.21,22 acentua o castigo especial do “Exército dos altos nas alturas, e os reis da terra na terra”, e Ezequiel 32.23 indica que os assírios cruéis sofrerão mais as misérias do Sheol. É claro que se modificaram lentamente as opiniões sobre o Sheol, e a distinção entre os seus moradores. Com certa relutância, os escritores dos últimos períodos do Velho Testamento chegaram a reconhecer que os justos e inocentes sofrem injustiças nesta vida, enquanto os injustos freqüentemente escapam à punição que merecem. Esta mudança no modo de pensar não é especificamente declarada, mas torna-se clara à “luz de vários; fatos. Um destes fatos foi o fracasso dos reinos de Israel e Judá como representantes do reino de Deus na terra. Estes reinos caíram por causa da infidelidade de reis e de multidões de seus súditos. Segundo, o futuro do reino de Deus dependerá do restante fiel, homens que têm a lei do Senhor escrita no coração, segundo o Novo Concerto. a terceiro fato importante é o reconhecimento mais c!aro da dignidade do homem, e da sua responsabilidade pessoal perante o seu Senhor. O fracasso nacional do povo escolhido e o cativeiro babilônico perturbaram profundamente os israelitas, até que o profeta lhes transmitiu a mensagem de conforto, e a promessa da restauração dos fiéis para cumprir a missão sacerdotal, de acordo com o propósito do Senhor na sua escolha. Novas Revelações sobre a Vida Futura A interpretação do significado do cativeiro e a orientação moral e espiritual de Israel pelos profetas, na volta do cativeiro, é uma das maravilhas da história. Este povo derrotado e quebrantado foi levantado pela graça de Deus através do ministério de seus profetas. O seu Senhor Iavé não os tinha desamparado, mas pelos infinitos recursos da sua sabedoria tinha demonstrado a futilidade de confiar nos poderes políticos como meios de promover o reino de Deus no mundo. Assim os profetas interpretaram para o povo os movimentos da sua história e as orientaram no cumprimento da sua missão messiânica. Nesta orientação profética surgiram os novos ensinos sobre a vida futura. Assim a crença na imortalidade pessoal foi desenvolvida quase no fim do período do Velho Testamento. Mas ainda são poucas as declarações de convicção firme e assegurada na vida feliz dos fiéis além da morte. O conceito do destino final do indivíduo no Velho Testamento geralmente parece inferior ao das religiões éticas da Grécia e do Egito. Como se explica esta falta de interesse na vida futura da personalidade individual dos homens? É claro que o conceito de Sheol concordava com a teologia em geral, enquanto acentuava a solidariedade nacional e julgava que o homem recebia nesta vida a recompensa ou a punição de seus atos. O filósofo Kant ficou tão impressionado com esta falta do Antigo Testamento que negou ao judaísmo o caráter de uma religião genuína. O conceito da solidariedade dos hebreus ficou tão profundamente gravado na sua memória com a libertação do Egito, e a sua escolha como povo do seu Senhor Iavé, que desde o princípio da sua 161


história nacional eles davam importância especial ao bem-estar e aos interesses do grupo nacional. Assim os interesses individuais ficaram absorvidos, ou subordinados ao bem da família, da tribo e da sua nação. O hebreu ficava satisfeito com o progresso do seu grupo como o povo do Senhor. A crença profunda na imortalidade nacional impediu o progresso do conceito da imortalidade pessoal, segundo a opinião de alguns. Outros dizem que a esperança messiânica, com a visão do aperfeiçoamento do reino de Deus na terra, com a felicidade suprema dos filhos e descendentes, explica em parte a falta de interesse no destino final dos indivíduos. Mas estas várias explicações não apresentam uma razão adequada do ponto de vista negativo do Velho Testamento sobre a imortalidade pessoal. Os povos semíticos em geral mantiveram a mesma opinião dos hebreus sobre a vida futura, mas sem o motivo hebraico de dar ênfase à solidariedade nacional. Os babilônios e assírios, semelhantes aos egípcios, na falta do sentimento hebraico de solidariedade, não se interessavam na vida além, enquanto os egípcios se interessavam profundamente no seu bem-estar e na sua felicidade pessoal depois da morte. Dizem outros que os povos semíticos se interessavam apenas em coisas práticas, e que não tinham a imaginação para o desenvolvimento do drama, da filosofia ou da metafísica, e, portanto, não desenvolveram o pensamento sobre o destino final do homem. No estudo cuidadoso da religião de Israel, não se pode deixar de reconhecer a sua virilidade e a ênfase que dava à vida presente, especialmente na literatura devocional. Os profetas e os salmistas que escreveram sobre o reino do Messias vindouro descrevem em termos brilhantes o aperfeiçoamento da vida social. Eram as religiões que davam pouca importância à vida presente que davam mais ênfase à vida além da morte. Disse R. L. Stevenson: “Crer na imortalidade é uma coisa, mas primeiro de tudo é necessário crer na vida”. Nenhum dos povos contemporâneos cria tão profundamente na dignidade da vida humana como o povo de Israel. “A única vida em que podemos crer permanentemente é a vida social, a vida fraternal, a vida com os irmãos e para os irmãos. Foi o fracasso dos egípcios, persas e gregos em não dar ênfase adequada à vida presente, ou à vida social, que privou a sua crença na vida futura da vitalidade. E assim aconteceu que a religião hebraica, aparentemente mais fraca e mais negativa no seu conceito da vida futura do que a fé dos contemporâneos, mas dando ênfase ao valor da vida como tal e ao seu caráter social, foi finalmente a única religião que desenvolveu a fé vital e permanente na imortalidade”. 165 No fervor da comunhão com o Senhor, os hebreus não negavam em absoluto a realidade da vida futura. Mas cônscios das bênçãos que recebiam do Deus Vivo na vida presente e interessados no progresso do reino de Deus na terra, eles simplesmente ficavam preocupados com as riquezas da fé nesta vida e consideravam indesejável a mera existência no Sheol, fora da presença do Senhor. Todavia, pode-se observar, no estudo da vida religiosa dos salmistas que do seu regozijo na presença de Deus surgiu a esperança de que nem a morte poderia interromper uma comunhão tão real e tão preciosa com Iavé, o Deus de amor eterno. Assim, no período de transição do reino político para a assembléia dos membros do restante fiel, com ênfase na dignidade e no valor do homem individual, e na sua responsabilidade pessoal perante Deus, tornou-se inevitável a mudança no entendimento do destino final do servo de Deus. Para satisfazer ao imprescindível do espírito humano, os santos de Israel reconheceram cada vez mais claramente que a justiça divina se verificará na distinção moral entre o destino final do justo e o do ímpio. De três pontos de vista os hebreus desenvolveram a doutrina da imortalidade. A comunhão dos salmistas com o Senhor demonstrou a semelhança entre o espírito humano e o Espírito de Deus. Da experiência de regozijo na comunhão com o Senhor, alguns salmistas firmaram a crença na imortalidade da alma. Com o desenvolvimento da teologia, de acordo com o Novo Concerto, não era mais possível manter a neutralidade moral dos moradores do Sheol. Alguns dos profetas ligaram a certeza da vida além com a crença firme na ressurreição do corpo. Isto significava que a vida no outro mundo seria mais ou menos igual à vida natural do presente.

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Alguns dos salmistas sentiram tão profundamente a riqueza da fraternidade com o Senhor que chegaram a concluir que a morte não podia terminá-la. Basearam esta conclusão em verdades bem estabelecidas na sua teologia. O Senhor Iavé é o Deus dos vivos e não dos mortos. Persistia a crença firme de que a vida cônscia é um dos fins mais importantes do Senhor na criação do homem. O bem supremo da vida é a comunhão com o Senhor Iavé, o doador da vida. Devido à sua natureza divina esta comunhão é tão eterna como o próprio Deus. Pois o Senhor Criador não pode ser mais fraco do que as suas obras, ou da morte, ou do Sheol. Portanto, a vida em comunhão perfeita com Deus tem que ser eterna. Esta fé inabalável em Deus e a experiência feliz de comunhão com o Doador da vida produziram o sentimento emocional e o desejo ardente de viver eternamente. O medo da morte e o amor de viver intensificaram a esperança de triunfar sobre o poder da morte. Mas ainda não se apresentou aos poderes intelectuais o meio ou a possibilidade de alcançar a imortalidade. O Salmo 90, atribuído a Moisés, é certamente antigo. O autor apresenta um exemplo da vida emocional no espírito dos hebreus que representa o fundo histórico dos quatro salmos que proclamam a confiança na imortalidade da alma. Este salmo trata da brevidade da vida em contraste com a eternidade do Senhor. A vida do homem é breve porque ele é consumido pela ira de Deus por causa do pecado. Mas o escritor não limitou a discussão apenas às influências trágicas do pecado na vida humana. Nas suas meditações ele descobriu o remédio. O Deus eterno é o refúgio ou morada do homem de poucos dias. Então o salmista devoto termina com a oração: “Volta Senhor, até quando? E tem compaixão dos teus servos. Sacia-nos de manhã com o teu amor constante, para que cantemos de júbilo, e nos regozijemos em todos os nossos dias”. No Salmo 90 o poeta expressa o sentimento comum dos homens de Deus. O Salmo 16 descreve a experiência religiosa do sal mista nas suas próprias palavras. Em perigo de morte, ele se refugiou em Iavé, o Deus Vivo, para receber a proteção contra aqueles que queriam assaltá-lo. Pede fervorosamente: “Guarda-me, ó Deus, porque em ti me refugio”. Seguro no seu refúgio, passa logo o medo dos inimigos. Com calma e com certeza fala então da segurança eterna, da confiança pessoal e da sua dependência do Senhor. “A Iavé eu disse: Tu és o meu Senhor; Não tenho outro bem além de ti. Quanto aos santos que estão na terra, eles são os nobres, nos quais está todo o meu prazer”. Na segunda estrofe o servo devoto se regozija na presença do Senhor e contempla a riqueza da sua herança. “A porção da minha herança” alude aos levitas, que não receberam uma parte da terra na divisão de Canaã, pois a porção deles era Iavé (Nm 18.20; Dt 10.9). Segundo o profeta Jeremias, Iavé era a herança espiritual de todos os israelitas (10.16), mas alguns deles desprezaram o Senhor. Meditando sobre o amor constante (hesed) do Senhor, o salmista se regozija na riqueza da sua porção e no privilégio de comunhão pessoal com ele. Recebe até nas meditações da noite a plena satisfação de seus desejos espirituais e a instrução para o guiar no caminho da vida. “Portanto, está alegre o meu coração e se regozija o meu espírito; também o meu corpo habita em segurança. Pois tu não me abandonarás ao Sheol, nem permitirás que o teu santo veja corrução”. Todos os estudantes do Velho Testamento reconhecem n profunda significação destas palavras, mas nem todos oferecem a mesma interpretação do seu significado. Diz Davidson: “Ora, se considerarmos o teor do Salmo - primeiramente o refúgio do suplicante no Senhor, para receber dele a proteção contra um perigo mortal - então o solilóquio da meditação sobre a sua bênção no Senhor, e finalmente a perspectiva que ele tem em seu lugar de refúgio, donde tem u ousadia de confrontar e desafiar os seus perseguidores -não podemos deixar de concluir que, no seu alto momento de inspiração, ele expressa a certeza da imortalidade. Não morrerá, mas viverá. O seu Deus, para quem havia fugido, não o abandonará”. 166 No seu comentário sobre o salmo, Alexander Maclaren apresenta a mesma interpretação dos versículos 9 a 11, nos seguintes termos: “O coração que dilata com a certeza tão abençoada de possuir a Deus pode entoar o seu cântico triunfante perante a sepultura. Assim, na sua melodia final, o salmista derrama a fé arrebatadora de que a sua fraternidade com Deus suprimirá a morte... Ver a corrução é sinônimo de experimentar a morte, e o salmista expressa a confiança de que ficará isento da morte, guiado pela mão divina, como 166

Theology of the Old Testament, p. 446.

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Enoque foi guiado, ao longo do alto caminho, na vereda da vida, que o levará até a mão direita de Deus, sem qualquer descida horrenda ao vale embaixo”. 167 O Salmo 17 também apresenta um exemplo do poder e das bênçãos da comunhão com o Senhor. O Salmista é sofredor inocente, cercado por inimigos. Refugiando-se nos braços do Senhor, ele recebe, com oração e fé, a paz e a esperança. O último versículo é uma declaração de fé na vida feliz além da morte. “Quanto a mim, com justiça verei a tua face; Satisfar-me-ei quando acordar na tua semelhança”. Esta tradução reconhece o paralelismo, na linguagem poética, entre a tua semelhança e com justiça. O salmista espera acordar da morte na semelhança divina para continuar a doce comunhão com o Senhor. A sua confiança é com Iavé, o homem de fé e devoção, sem revelação clara do futuro, tem certeza de que a morte não pode terminar as relações espirituais entre ele e o seu Senhor. A sua confiança é o resultado da comunhão pessoal com Deus. Da experiência de comunhão íntima com Iavé, o homem de fé e devoção, sem revelação clara do futuro, tem certeza de que a morte não pode terminar as relações espirituais entre ele e o seu Senhor. Os autores dos Salmos 49 e 73 baseiam a sua crença na imortalidade no fato e na qualidade da comunhão com o Senhor na vida presente. Mas as suas declarações de fé na vida além são mais claras e mais definidas do que as dos Salmos 16 e 17. No Salmo 49 o destino do ímpio é contrastado com o do justo. O Sheol há de ser a morada futura dos ímpios, não obstante as suas riquezas materiais e o seu conforto na vida presente. Declara o versículo 14: “Como ovelhas são encurraladas no Sheol, A morte é o seu pastor; os justos triunfam sobre eles naquela manhã, a sua forma, consumida pelo Sheol, não tem habitação”. Quanto ao seu próprio destino, na vida além, o salmista declara: “Mas Deus remirá a minha alma do poder do Sheol, Pois ele me tomará” (Selá). O famoso erudito, Franz Delitzsch, no seu Biblical Commentary on lhe Psalms, diz o seguinte na exposição deste versículo: “É evidente como o poeta concebe esta redenção da alusão à história de Enoque (Gn 5.24) encerrada na breve, e, portanto, mais importante linha, porque ele me tomará. Estas palavras não podem significar: Ele me tirará do Sheol, pois Enoque, a quem alude, nada tinha que ver com o Sheol. Também não podem significar: Ele me tomará sob a sua proteção, uma significação que o verbo tomar não pode ter por si só. As palavras significam: Ele me tomará e me levará a si mesmo. Como no Salmo 73.4, o significado da expressão é determinado por Gênesis 5.24. As trasladações de Enoque e Elias são os fatos que dirigem a esperança do salmista além da noção melancólica do caminho que leva todos os homens até as profundezas do Sheol”. 168 Este sal mista devoto, com “o ouvido inclinado” (v. 4), ouviu como os homens de Deus hão de triunfar, no raiar daquela manhã, além da sepultura, mas nada sabe do futuro dos homens que têm a sua porção nesta vida. A prosperidade dos ímpios apresentava aos salmistas, profetas e todos os homens piedosos do Velho Testamento um grande problema moral, enquanto prevalecia o ensino de que todos os homens recebem nesta vida todas as recompensas e punições que merecem. O livro de Jó representa a luta intelectual com este problema teológico. O sofredor Jó, acusado de ser um grande pecador, e meditando na sua experiência como exemplo da injustiça que a doutrina popular apoiava, num momento de inspiração, concebeu a idéia de que o homem justo talvez pudesse receber na vida futura a recompensa merecida, mas não recebida nesta vida. “Sei que o meu Redentor (Go’el) vive, e por fim se levantará sobre a terra. E depois de destruída esta minha pele, Então fora da minha carne verei a Deus, A quem verei ao meu lado, e os meus olhos o contemplarão, e não como estranho” (19.25-27). O autor do Salmo 73 explica, nos versículos 15-18, como conquistou as suas dúvidas sobre a operação dos princípios da justiça neste mundo. Na comunhão entranhada com Deus, ele chegou a entender que os injustos hão de ser castigados. Depois de falar sobre a destruição certa dos ímpios, explica então o valor incomparável e o significado da sua fraternidade com Deus, com a certeza gloriosa da vida futura na eterna presença divina. 167 168

The Psalms, Vol. I, p. 147. Vol. II, p. 137.

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“Todavia, estou de contínuo contigo, Tu me seguras pela mão direita. Tu me guias com o teu conselho, e depois me tomarás à glória. Quem tenho eu nos céus? E não há nada na terra que desejo além de ti” (vv. 23-25). Os Salmos 49 e 73 assim ensinam que os justos continuam em comunhão com Deus depois da morte, enquanto os injustos passam para a sua habitação no Sheol. Assim atribuíram ao Sheol um caráter moral no reconhecimento dele como o lugar do castigo dos ímpios. Na psicologia tradicional dos israelitas, a alma não podia viver inteiramente separada do corpo, embora fosse um corpo definhado, ou apenas um pouquinho mais do que o semblante do corpo. Até no Sheol a alma tinha uma espécie de corpo (Is 14.19). Mas havia confusão no pensamento de alguns, pois julgavam que as formas corpóreas dos moradores do Sheol tinham qualquer conexão com os corpos correspondentes nas sepulturas (Jó 14.22; Is 66.24). Por outro lado, Jó fala da sua pessoa “fora do corpo” (19:26). Estas várias referências indicam a falta de clareza no pensamento de muitos israelitas, enquanto procuravam entender os corolários do novo reconhecimento da dignidade, e do valor do indivíduo, como membro do restante fiel, e o seu lugar na nova ordem do reino de Deus na terra. Mas permaneceu a crença de que a alma não podia viver inteiramente desligada do seu corpo. Surgiu, então, a questão da felicidade das almas justas que moravam na presença de Deus. Com todas as riquezas da morada celeste dos espíritos justos, os israelitas pensavam que eles precisavam ficar revestidos de seus corpos para completar a sua felicidade eterna. Os salmistas tinham apresentado um novo e magnífico entendimento da imortalidade da alma e tinham demonstrado que as injustiças e os sofrimentos imerecidos desta vida hão de ser endireitados na vida futura. Mas para aperfeiçoar a felicidade das almas imortais com Deus, elas precisavam ser revestidas de formas corpóreas. A Doutrina da Ressurreição do Corpo Temos indicado, em vários lugares desta obra, as esperanças dos israelitas no seu futuro nacional desde o tempo de Moisés. Do entendimento do propósito de Iavé na sua eleição, os israelitas desenvolveram o seu conceito da história que visava para eles o futuro glorioso do seu povo. A idade áurea de Israel traria também às outras nações do mundo o conhecimento e as bênçãos do seu Senhor Iavé. Não há dúvida de que esta forma da esperança para o futuro nacional de Israel persistia através da sua história política. O israelita individual podia então participar das bênçãos da nova época, se vivesse até que fosse estabelecida, ou podia esperar que os seus filhos e descendentes pudessem gozar estas bênçãos juntamente com os seus contemporâneos. No correr da história, a esperança nacional ligava-se com o conceito do reino messiânico, a forma perfeita do reino de Deus na terra. Ora, a esperança messiânica se originou antes do desenvolvimento do individualismo e da crença na imortalidade pessoal, e se tinha apoderado firmemente da consciência nacional. Não podia ser substituída nem desprezada. Todos os ideais nobres da religião de Israel fundiram-se com a esperança messiânica. A doutrina da imortalidade pessoal, que Se originou na experiência pessoal de comunhão de salmistas com Deus, ligou-se também com a esperança na vinda do reino messiânico. Os justos que morreram antes da vinda do reino perfeito deviam ficar habilitados para participar das bênçãos da nova época. Isto seria conseguido pela ressurreição dos seus corpos, pois o corpo era considerado um elemento constituinte da personalidade. É significativo o preparo de Israel para ouvir e entender o ensino profético sobre a ressurreição. As esperanças para o sou futuro ligavam-se firmemente com a fé no caráter do Senhor Iavé, o Deus vivo. A vida de Israel dependia da sua comunhão com o Deus Vivo, mantida por seu amor (hesed) e fidelidade. O profeta Oséias declara: “Quando Efraim se fez culpado no tocante a Baal, morreu” (13.1). Os profetas, desde o tempo do Amós, reconheceram e proclamaram a dissolução de Israel. Mas com a proclamação do julgamento divino veio também a promessa de restituição. A árvore brotará de novo (Is 6.13; 65.22). “O restante voltará”. Assim Oséias emprega a figura da morto e proclama a ressurreição de Israel: “Vinde, voltemos ao Senhor; ... Depois de dois dias ele nos revigorará; No terceiro dia nos levantará. E viveremos diante dele” (6.1, 2). Então o Deus Vivo destruirá o poder da morte sobre o povo. 165


“Resgatá-los-ei do poder do Sheol? Remi-los-ei da morte? Ó morte, onde estão as tuas pragas? Ó Sheol, onde está a tua destruição?” (13.14). Esta profecia clara sobre a ressurreição de Israel como povo é conhecida pelos profetas desde o tempo de Oséias. À luz do conhecimento deste ensino, e no ambiente do desenvolvimento da dignidade e da responsabilidade pessoal, dois profetas proclamam a ressurreição de homens mortos. Encontra-se a primeira destas profecias em Isaías 26.19. Os versículos 1-18 expressam uma variedade de pensamentos e emoções. Começa o autor com um cântico de louvor ao Senhor pela força e segurança de Jerusalém. Mas Israel deseja ardentemente o julgamento purificador de Iavé para que os habitantes do mundo aprendam a justiça. Segue-se a oração para que os inimigos sejam destruídos, e que Israel tenha a paz, com o retrospecto do passado e a lembrança das bênçãos recebidas. Israel então confessa a vaidade e o fracasso dos seus esforços e lamenta a escassez do seu povo. Vem então abruptamente este rasgo de eloqüência sobre a ressurreição de seus mortos. “Os teus mortos viverão, os seus corpos se levantarão. ó vós que habitais no pó, acordai e cantai de júbilo! Pois o teu orvalho é o orvalho da luz, e a terra lançará fora os mortos (sombras)”. Evidentemente a comunidade de Israel é representada como quem fala nos versículos 1-18, e a resposta divina às esperanças desapontadas é a promessa da ressurreição. “Teus mortos” significa aqueles que tinham morrido na fé e no temor de Deus. O texto hebraico tem “meus mortos”, mas, com a mudança da última vogal, fica “teus mortos”, que cabe melhor. A frase “o orvalho da luz” é melhor do que “o orvalho das ervas”. As duas palavras são semelhantes, mas é um orvalho sobrenatural, e logo que cai nas sombras (refaim, “corpos”), eles acordam vivos. Diz A. F. Kirkpatrick, no seu Comentário sobre o livro de Isaías: “A doutrina da ressurreição representada aqui foi alcançada através da convicção, gradualmente produzida pelo longo processo de revelação de que a redenção final de Israel não podia ser conseguida dentro dos limites da natureza. Tornou-se claro então que as esperanças e as aspirações produzidas pelo Espírito no coração dos crentes fiéis apontavam o grande milagre apresentado aqui, e assim a crença na ressurreição se ligava firmemente com as esperanças indestrutíveis do futuro de Israel”. 169 Pareceria que apenas os israelitas que tinham sido fiéis ao Senhor são incluídos nesta ressurreição. O contexto indica que estão sendo ressuscitados, como justos, para gozar, com seus irmãos fiéis, as bênçãos e os privilégios do reino messiânico. O livro de Daniel reflete o ambiente do período dos Macabeus, e os seus característicos apocalípticos e literários indicam que teria sido escrito nesse período, mas não podemos determinar com certeza a sua data. Por alguns séculos Israel tinha ficado profundamente agitado pelas calamidades políticas da sua história. Os grandes profetas se esforçaram para confortar o povo nas suas tristezas nacionais, apelando ao mesmo tempo aos fiéis que se esquecessem das aspirações políticas e trabalhassem para o desenvolvimento da assembléia espiritual de Israel, porque deles dependia o futuro do reino de Deus. Uma das tragédias de Israel é que o seu povo, na sua maioria, nunca quis abandonar as suas esperanças políticas. Os Macabeus revoltaram-se heroicamente contra condições intoleráveis impostas pelos opressores políticos e religiosos. Antíoco Epifânio, governador da Síria e Palestina, tentou impor a cultura helênica aos judeus, e assim destruir o judaísmo. Mas é justo dizer que o motivo da revolta dos Macabeus, dirigida por Matatias, era principalmente religioso. Ganharam a liberdade religiosa, e os Hasidim ou Piedosos ficaram satisfeitos, mas Judas continuou a guerra com a firme resolução de ganhar independência política. Depois da morte de Judas na batalha, e a morte do seu sucessor Jônatas por traição de um general assírio, Simão Macabeu, o último filho de Matatias, escolhido como chefe, negociou o tratado de independência com Demétrio II no ano 134 a.C. Mas depois de ganhar a independência e o poder político, a ambição, ciúme e rivalidade contribuíram para o declínio da dinastia. O Estado Judaico foi subjugado pelos romanos, sob Pompeu, no ano 63 a.C. O Autor de Daniel mostra que tinha conhecimento mais acurado do período grego, 175-163 a.C., do que tinha do período babilônico (Dn 8.9-12, 23-25; 11.21-29). Certamente as injustiças e as

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The Book of the Prophet Isaiah, p. 210.

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traições que homens justos e fiéis iam sofrendo nesta vida levaram os escritores a pensar mais profundamente sobre a vida e a morte. “Como Daniel é libertado da fornalha ardente, e da cova dos leões, assim aos fiéis durante a perseguição de Antíoco Epifânio será dada a coragem para sofrer a morte horrível pela renovação da fé em Deus, como o Conquistador da morte e o Doador da vida eterna”. 170 “E o reino, o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo: O seu reino será um reino sempiterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão” (Dn 7.27). A passagem de Daniel 12.2,3 apresenta novas idéias sobre a ressurreição. Comovido o autor, aparentemente pela condição dos mártires, os quais não deviam ficar privados do privilégio de ocupar um lugar de honra no novo reino, ele diz com confiança: “E muitos que dormem no pó da terra acordarão, alguns para a vida eterna, e outros para a vergonha e desprezo eterno Então os sábios resplandecerão como o fulgor do firmamento, e os que levaram a muitos para a justiça refulgirão como as estrelas para todo sempre”. Assim o autor fala da ressurreição de duas classes. Não está claro se a primeira classe se refere a todos os israelitas justos que dormem no pó da terra, ou apenas aos mártires. Se refere aos mártires, como o termo sábios de 12.3 e 11.33 talvez indique, a outra classe que acordará para a vergonha e o desprezo eterno provavelmente inclua apenas os apóstatas. Mas é claro que ele fala apenas de israelitas, e não tem nada a dizer sobre a ressurreição de gentios. Os justos voltarão à vida para renovarem a comunhão com Deus e com a comunidade religiosa. Certamente os mártires merecem um lugar no novo reino. O conceito positivo da justiça divina é o fundamento do novo ensino da ressurreição do corpo. Os mártires e os homens fiéis ao Senhor nesta vida, apesar das injustiças que sofreram, serão ressuscitados para receberem a sua recompensa no reino de Deus, estabelecido e aperfeiçoada neste mundo, segundo o ensino prevalecente da época. Mas o ensino de que os ímpios ou os apóstatas, bem como os justos se levantarão introduz um novo motivo na doutrina. Acrescenta a idéia da justiça da retribuição do Senhor. Serão ressuscitados os injustos a fim de que sejam punidos. Este novo conceito implica em que o escritor pensava do Sheol como a região onde não havia nem recompensa nem punição. Por outro lado, a conjetura sobre a ressurreição apenas dos justos implica em que o 5heol era a habitação temporária dos justos, mas a morada eterna dos ímpios, e assim relativamente um lugar de castigo. Surgem duas perguntas a respeito do ensino do Velho Testamento sobre a ressurreição do corpo. Primeiro, por que demorou por tanto tempo o entendimento e o ensino desta doutrina entre o povo de Israel? Segundo, qual foi a influência dos persas sobre os escritores do Antigo Testamento, que finalmente apresentaram a doutrina? Foram apresentadas, na discussão do desenvolvimento da crença na imortalidade pessoal, as razões por que demorou por tanto tempo o desenvolvimento deste ensino. Uma vez firmada a crença na imortalidade pessoal, juntamente com o entendimento mais claro da dignidade e da responsabilidade pessoal do homem, a psicologia dos israelitas exigia a ressurreição do corpo e a união do corpo com o espírito dos justos, a fim de aperfeiçoar a personalidade e prepará-la para o seu lugar de felicidade no novo e perfeito reino de Deus. Uma vez estabelecido o ensino do Novo Concerto de que o restante fiel, composto de pessoas fiéis, e não mais a nação política infiel, representa o reino de Deus no mundo, a justiça divina recompensa individualmente os justos, com o aperfeiçoamento da sua personalidade e a sua comunhão com Deus e a comunidade dos Hasidim, os santos fiéis. Com o novo entendimento da responsabilidade pessoal, o princípio de retribuição, bem como o de recompensa, aplica-se aos ressuscitados. Quanto à segunda pergunta, há duas opiniões. O fato de que a doutrina sê originou mais cedo na Pérsia não é prova da teoria de que os israelitas receberam o ensino dos persas. Também não nega a possível influência do ensino pérsico nos escritores do Velho Testamento. Não se nega que haja semelhanças entre a doutrina dos persas e a dos israelitas, que é representada em Daniel 12.2. Daniel concorda com os persas no ensino da ressurreição dos ímpios, bem como dos justos. Por outro lado, os persas ensinam a ressurreição universal, enquanto Daniel inclui apenas os israelitas, e talvez somente os mártires e os apóstatas entre estes. Na doutrina pérsica, os homens recebem logo depois da morte a 170

Otto J. Baab, op. cit., p. 219.

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recompensa ou a punição que merecem, passando de vez para o céu ou para o inferno. Não está perfeitamente claro o ensino das duas passagens do Velho Testamento neste sentido, mas indicam que os mortos têm que permanecer no Sheol até que fique estabelecido o reino messiânico, quando eles acordarão e se levantarão para o seu destino final. Estas discrepâncias indicam que Israel desenvolveu os seus pensamentos sobre este assunto, independente da influência da Pérsia. Havia também tendências nas meditações dos escritores do Velho Testamento sobre o declínio de Israel como nação e sobre a dignidade e a responsabilidade pessoal dos homens fiéis no futuro reino messiânico, que resultaram normalmente no desenvolvimento da doutrina da imortalidade e da ressurreição, de acordo com a sua própria psicologia, sem qualquer influência de fora. O novo entendimento do individualismo e da retribuição, juntamente com as experiências da mais profunda comunhão pessoal com Deus, dirigiram o pensamento para a vida além da morte, de acordo com o mais perfeito esclarecimento profético da justiça divina. A doutrina do reino messiânico intensificada nesse período da transição histórica de Israel pedia a ressurreição de mortos. A idéia não era inteiramente nova, pois os profetas tinham falado da ressurreição de Israel como nação. E os profetas Elias e Eliseu tinham levantado corpos mortos, segundo 1 Reis 17.22 e 2 Reis 4.35; 13.21. Assim se apresentam no Antigo Testamento três passos no desenvolvimento da idéia de imortalidade: a imortalidade do homem piedoso na época messiânica; a convicção de que a rica comunhão pessoal com Deus não pode ser terminada pela morte; e, finalmente, a ressurreição do corpo e a completa renovação da vida pela nova união do espírito com o corpo. Há uma falta de clareza perfeita nestas idéias. Aparentemente, alguns salmistas esperavam ir diretamente para a presença de Deus, na ocasião da morte, ou acordar fogo depois, contemplando o rosto de Deus na justiça. Prevalecia entre alguns a opinião de que, na ocasião da morte, a pessoa definhada, ou quase extinta, descia ao Sheol, e lá ficava até que fosse levantada para gozar as bênçãos do reino messiânico, fogo que fosse estabelecido. Mas o pregador de Eclesiastes e os saduceus mantinham dúvidas sobre as duas formas de esperança. Juntamente com o desenvolvimento do conceito da imortalidade dos homens individualmente, o Sheol é reconhecido como lugar de distinções morais, com o entendimento mais claro da aplicação dos princípios da justiça divina na vida futura. Segundo o livro apócrifo Enoque 22.9, “há uma separação dos espíritos justos, que têm uma fonte de água brilhante”. Também se modificaram, em termos mais espirituais, as referências à ressurreição e à idade messiânica. Falam da ressurreição do espírito ou da ressurreição “em vestidos de luz e glória”. O reino messiânico na terra não é mais considerado como reino eterno, e não se fala mais da ressurreição dos justos para participarem das bênçãos da idade áurea do reino de Deus na terra. Este capítulo trata mais das experiências religiosas do povo de Israel do que propriamente da teologia. Mas as meditações dos escritores sobre a imortalidade e a vida futura baseiam-se em corolários de doutrinas teológicas firmemente estabelecidas e aceitas entre o povo de Israel. Ainda no processo de desenvolvimento as idéias concordam essencialmente com os princípios eternos da justiça, segundo os ensinos do Velho Testamento. Representam também o sentimento universal, da humanidade, que distingue entre o bem e o mal e que chegou ao mais alto grau no reconhecimento do Senhor Deus como a verdadeira fonte da justiça eterna. As experiências espirituais de homens piedosos em comunhão com Deus não podem ser interrompidas ou concluídas pela morte. Continuarão na vida além da morte. “Quanto a mim, com justiça, verei a tua face; satisfar-me-ei quando acordar na tua semelhança” (Sl 17.15). “Tu me guias com o teu conselho, e depois me receberás na glória” (Sl 73.24).

I.

SHEOL-HADES: O LUGAR DOS MORTOS 171 O Sheol, no Velho Testamento, é o lugar para onde vão os mortos.

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BENTES, A. C. G. O DIA DO SENHOR. Lagoa Santa, MG. Edição Própria, 2008, p. 126-128.

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1. Geralmente, entretanto, ele é citado como equivalente à sepultura, onde cessam todas as atividades humanas; o fim para o qual toda a vida humana se dirige (Gn 42.38; Jó 14.13; Sl 88.3; 1 Rs 2.6, 9). 2. Ao homem “debaixo do sol”, ao homem natural, que necessariamente julga pelas aparências, o Sheol parece nada mais que a sepultura - o fim e a cessação total, não só das atividades da vida, mas também da própria vida (Ec 9.5, 10). Mas as Escrituras revelam o SHEOL como um lugar de tristeza (2 Sm 22.6; Sl 18.5; 116.3), para o qual os perversos vão (Sl 9.17), e onde eles ficam totalmente conscientes (Is 14.9-16; Ez 32.21). Compare Jn 2.2; o que o ventre do grande peixe foi para Jonas, o Sheol é para aqueles que se encontram lá. A palavra grega HADES (#(/dhj) como o seu equivalente hebraico, SHEOL (lO):$) é usada de duas maneiras. 1ª) Para indicar a condição dos que não são salvos entre a morte e o julgamento final diante do Trono Branco (Ap 20.11-15). Lucas 16.23, 24 mostra que os perdidos no Hades estão conscientes, possuem pleno poder de suas faculdades, memória, etc., e estão em tormentos. Isto continuará até o julgamento final dos perdidos (2 Pe 2.9), quando todos os que não são salvos, e o próprio Hades, serão lançados no LAGO DE FOGO (Ap 20.13-15). 2ª) Para indicar, de um modo geral, a condição de todas as almas que partiram, no período compreendido entre a morte e a ressurreição. Este uso se encontra ocasionalmente no Velho Testamento, mas raramente no Novo Testamento (Gn 37.35; 42.38; 44.29, 31). Não há possibilidade de mudança de um estado para outro depois da morte, pois Lc 16.23 mostra que, quando o homem perdido viu no Hades Abraão e Lázaro, eles estavam ao “longe”, e o versículo 26 declara que entre os dois lugares há um Grande Abismo, de modo que nenhum pode passar de um para o outro. Alguns intérpretes pensam que Efésios 4.8-10 indica que a mudança de lugar dos crentes que morreram ocorreu na Ressurreição de Cristo. É sabido que todos os salvos vão imediatamente à presença de Cristo (2 Co 5.8; Fp 1.23). Jesus disse ao ladrão penitente: Hoje estarás comigo no Paraíso (Lc 23.43). Paulo foi arrebatado ao Paraíso “ (2 Co 12.2-4). O Paraíso é um lugar de grande alegria e bem-aventurança, mas esta bem-aventurança não será completa até que o espírito e a alma sejam reunidos ao corpo glorificado na ressurreição dos justos (1 Co 15.51-54; 1Ts 4.16, 17). Embora ambos, Hades e Sheol sejam as vezes traduzidos para sepultura ou morte (Gn 37.35; 1 Co 15.55), jamais indicam um lugar de sepultamento, mas antes, o estado da alma depois da morte. II.

SHEOL NO VELHO TESTAMENTO E A SUA LOCALIZAÇÃO

1ª) A sua localização: Nm 16.30-33; Gn 37.35; 44.29-31; Jó 17.16; 21.13; Salmo 30.3; 55.15; Pv 15.24; Is 5.14; 7.11; 14.15; Ez 31.15-17; 32.17-21; Mt 11.23; Lc 10.15; 16.23. Em todos estes textos se diz que os mortos desciam ao Sheol, logo a localização desta região é o interior da terra, em Números 16.30-33 vemos claramente que a terra se abriu e que aqueles elementos desceram ao Sheol. O Evangelista Mateus (Mt 12.40) cita as palavras de Jesus dizendo: “Como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estará o Filho do Homem três dias e três noites no seio da terra (no grego: Kardia tes ges - kardi/# th=j gh=j (que literalmente quer dizer: no coração da terra) Devemos lembrar também que em At 2.27-31 afirma que Jesus esteve no Hades. 2ª) SHEOL-HADES: O Lugar dos mortos. A palavra Sheol, em hebraico, é usada no V.T. mais de 60 vezes, na LXX (o V.T. em grego) a palavra hades ocorre mais de 100 vezes, na maioria das vezes para traduzir o termo hebraico Sheol. Para benefício dos estudantes, apresentamos uma lista de algumas das passagens em que o vocábulo “SHEOL” é empregado, segundo a sua tradução na Edição Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil. Geralmente, na margem, encontra-se a nota esclarecendo que, em hebraico, a palavra é Sheol ou Seol. O estudante deve comparar estas referências com outras versões. A Bíblia de Jerusalém (Edições Paulinas) e a Edição Versão Revisada da Tradução de João Ferreira de Almeida traduzem os vocábulos Sheol e Hades de acordo com os originais. O vocábulo Sheol é traduzido como inferno na edição Revista e Atualizada no Brasil, nas seguintes passagens; Dt 32.22; Sl 9.17; 116.3; Pv 5.5; 9.18; 15.24; 23.14; 27.20. Nas seguintes é 169


traduzido como “sepultura”: Gn 37.35; Sl 49.14; Pv 7.27; 30.16; Is 57.9; Ez 32.27. Eis aqui outras traduções: “Abismo”- Nm 16.30; Jó 11.8; 26.6; Sl 139.8; Pv 15.11; Is 14.15; Am 9.2; Jn 2.2; “Cova” Is 5.14; Sl 55.15; Ez 31.14; “Sepulcro” - Hc 2.5; “A Morte” - Jó 17.16; Sl 16.10; 86.13; Is 28.15, 18; “Além” - Pv 15.11; Ec 9.10; “Infernais” - 2 Sm 22.6; e “As profundezas da Terra” - Ez 32.18. Estes exemplos bastam para que se veja que não é fácil determinar o que quer dizer a palavra hebraica SHEOL. Como outras palavras desta espécie, é possível usá-la em sentido figurado ou literal. Vê-se também que pode referir-se ao corpo, à alma, ou simplesmente à própria pessoa ou ser. Uma definição que abranda todas as acepções da palavra, precisa ser feita em termos genéricos, e a mais comum é: “LUGAR OU REGIÃO DOS MORTOS”. Os tradutores da Bíblia fizeram um esforço para dar-lhe o significado que, em cada caso, se enquadrava com o contexto. Não há dúvida de que muitas vezes “Sheol” significa o lugar de castigo ou de sofrimento dos maus, e fica bem traduzir como INFERNO (Dt 32.22; Sl 9.17; Pv 15.24; 23.14). Por isso algumas destas passagens advertem os justos, para que evitem ir para lá. Em diversos casos é verdade que “Sheol” foi traduzido para “Inferno” quando deveria ter sido traduzido para “sepultura” (1 Rs 2.6,9; Jó 7.9; 17.16). Entretanto, noutros casos o contexto e a maneira com que a palavra Sheol foi usada na sentença, indica claramente que se refere à um lugar de castigo e não simplesmente à sepultura. Vamos examinar algumas dessas passagens: Salomão adverte contra as mulheres adúlteras, dizendo: “Sua casa é o caminho para o inferno” (Sheol) - (Pv 7.27) e “Os seus convidados estão nas profundezas do inferno” - Sheol (Pv 9.18). Quando usou a palavra SHEOL evidentemente falava de algum lugar diferente da sepultura, porque todos os homens, bons e maus, têm de descer à sepultura. Ele estava admoestando homens imorais, dizendo que seriam punidos no Inferno por causa dos seus pecados e não que morreriam e seriam sepultados. Salomão nos adverte: “Tu a fustigará (a criança) com a vara e livrarás a sua alma do Inferno Sheol” (Pv 23.14). Está muito claro que Salomão aqui se referia a algo além da sepultura, porque por mais que um filho rebelde seja fustigado, morrerá e descerá a sepultura, e por mais que se fustigue uma pessoa, ela não poderá ser retirada da sepultura, mas o castigo sábio de um pai amoroso pode ser o meio usado por Deus para manter o filho cabeçudo afastado do Inferno. Evidente que antes da Ressurreição de Cristo tanto justos como injustos iam ao Sheol, mas os fiéis desciam ao Seio de Abraão (Paraíso) e os perdidos ao Lugar dos Tormentos, os justos foram traslados para o 3º Céu (Ef 4.8.10) onde está hoje o Paraíso (2 Co 12.2-4). O vocábulo equivalente na língua grega é a palavra “Hades”. Na Versão dos Setenta, que é o Velho Testamento em grego, traduz-se “Sheol” com a palavra “Hades” (mais de 100 vezes na Septuaginta). Também em At 2.27 emprega-se o vocábulo Hades para traduzir o Salmo 16.10, onde a palavra usada em hebraico é Sheol. Várias versões usam a mesma palavra grega “Hades” ao invés de traduzi-la. A palavra Hades encontra-se 10 vezes no Novo Testamento: Mt 11.23; 16.18; Lc 10.15; 16.23; At 2.27, 31; Ap 1.18; 6.8; 20.13, 14. O N.T. localiza também o Hades (a semelhança do V.T.) como estando dentro da terra (numa outra dimensão), de tal forma que há uma descida para chegar a ele (Mt 11.23; Lc 10.15; confira Mt 12.40 Kardia tēs gēs = kardi/# th=j gh=j = o Coração da Terra). Paulo em Ef 4.9 nos diz: “Ora, isto, Ele subiu, que é, senão que também desceu à partes mais baixas da terra? “ (to\ de\ )Ane/bh ti/ e)stin, ei) mh\ o(/ti kai\ kate/bh ei)j ta\ katw/tera [me/rh] th=j gh=j = também desceu até as inferiores regiões da terra? O Hades também é visto como uma prisão (1 Pe 3.19; Ap 20.1-3, 7). Como uma cidade, tem portões (Mt 16.18; Jó 17.16: “Acaso descerá comigo até os ferrolhos do Sheol? Descansaremos juntos no pó?”), e está trancada com uma CHAVE que Cristo tem na sua mão (Ap 1.18). Na ocasião da ressurreição, o HADES devolverá os seus mortos (Ap 20.13). Desta forma, não é um lugar ou estado eterno, mas, sim apenas temporário. A Versão Revisada traduz quase que 100% o vocábulo Hades, já a Edição Revista é Atualizada no Brasil traduz a palavra grega Hades 7 vezes por inferno, 2 vezes por morte e uma vez por além. Será que a palavra Hades deveria ter sido traduzida para sepultura em todos os casos? Achamos que não. Quando Jesus advertiu a cidade de Cafarnaum dizendo que desceria ao Inferno (Hades) e que seria mais castigada do que a cidade de Sodoma (Mt 11.23, 24), Ele estava falando de um lugar que não era a SEPULTURA, porque o apóstolo Judas disse que as cidades de Sodoma e Gomorra sofriam punição no Fogo Eterno (Jd 7). 170


Quando Jesus disse que um certo homem rico morreu e foi sepultado e foi ao Hades e que levantou os olhos estando em tormentos, evidentemente Ele falava de um lugar além da SEPULTURA, porque na sepultura não há tormentos (Lc 16.19-31). Pessoas que estão na sepultura não podem levantar os olhos, nem se lembrar das coisas que aconteceram antes delas morrerem. Os homens tentam contornar esta história dizendo que foi uma parábola, mas a Bíblia não diz que foi uma parábola. Em Lucas como sempre, “Jesus propôs uma parábola...”, ele escreveu: “Disse Jesus: Ora, havia certo homem rico...”, mostrando que Jesus tinha em mente certo homem rico. Cosmologia Hebraica 172 O gráfico apresentado a seguir ajuda na compreensão da perspectiva “científica” dos hebreus referente ao formato do universo, refletido especialmente em passagens como Gênesis 1-11 e de Jó 38-41, na qual Deus faz perguntas a respeito da criação do universo que Jó não consegue responder. Os elementos comuns entre os hebreus e os outros povos são diferenciados em seus termos representativos e especialmente na sua explicação religiosa. É importante lembrar que mesmo quando o conceito hebraico reflete certas noções tidas em comum com os outros povos, a ênfase das narrativas hebraicas é a de oferecer uma crítica nos pontos em que divergem deles pela revelação de Deus. Este gráfico do conceito hebraico da estrutura do universo limita-se a uma fração mínima da cosmologia científica atual. Pode-se ver como a Bíblia utiliza certa terminologia que se refere ao conceito cosmológico de seus autores173. Pode-se ver no gráfico o título de “firmamento” (ou “expansão”) para o círculo dos céus que separa as águas acima do firmamento da zona que se denomina hoje por atmosfera. Estes termos ajudavam o povo a falar do mundo ao seu redor, mesmo que o seu conceito específico tenha sérios problemas em face da ciência atual. Entender a cosmologia hebraica é de ajuda para compreender as implicações das narrativas que utilizam a terminologia do mesmo conceito. Quando o autor bíblico refere-se às janelas do céu, é bom saber que faz referência ao seu conceito de como a água acima do firmamento chega até a terra em forma de chuva. A cosmologia é uma área da ciência que influi muito em vários aspectos da comunicação humana, pois muitos dos seus conceitos alteram a forma de conceber o que acontece em volta do indivíduo e a sua sociedade. A cosmologia hebraica aparece até no livro de Apocalipse, onde o “‘abismo sem fundo’ está vinculado a idéias concernentes à forma do mundo. A terra era concebida como um disco plano que flutuava em cima da água. O abismo refere-se às profundezas imensuráveis debaixo da terra, para os quais pensava-se existir uma fenda capaz de ser selada”. Até o Novo Testamento, portanto, sente a influência desta cosmologia.

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Escatologia e o Apocalipse Pr. Chrístopher B. Harbin Edição: 12-09-2002 ©Copyright 2002 Página 6.

http://www.rocksbc.org 173 Gênesis 1.2,6-8,16-17, 7.11; Êxodo 20.4.

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III. DEPOIS DO SHEOL-HADES SEGUE-SE O GEENA 174 Mt 5.22, 29, 30; 10.28; 18.9; 23.15, 33; Mc 9.43, 45, 47; Lc 12.5; Tg 3.6 (ge/enna . Os Testemunhas de Jeová (TJ) dizem que todas as passagens onde a palavra “Inferno” foi traduzida da palavra grega GEENA (ge/enna), significa destruição ou extinção eterna. Mas a verdade é que qualquer professor respeitável de grego pode dizer, que não há absolutamente nenhuma evidência no N.T. de que GEENA significa aniquilamento, mas antes, há muitos lugares onde está claramente indicado que significa miséria eterna. Qualquer pessoa que leia as referências indicadas junto à palavra “Geena” verá que não existe a idéia de ANIQUILAÇÃO. Nos 12 versículos anteriores a palavra em português é uma tradução da palavra grega “Geena” = ge/enna ; Em 2 Pe 2.4 nossa palavra “inferno” é uma tradução da palavra grega “tártaro” (ταρταρωσας) . Todas as demais referências do Novo Testamento com a tradução de “inferno “são oriundas da palavra grega “hades”. O meu querido amigo Pastor Aldery Nelson cita Is 34.8-10 para afirmar que o GEENA estará nos ribeiros de EDOM que se transformará em PEZ, cujo solo também será transformado em ENXOFRE, e cuja a terra transformar-se-á em PEZ ARDENTE. O versículo 10 afirma que nem de dia nem de noite SE APAGARÁ este FOGO; para sempre (isto é, eternamente) a sua fumaça subirá; de geração em geração (eternamente) será assolada. Será que também o Geena será localizado no Planeta Terra (em outra dimensão)? Os TJ declaram que GEENA não se refere ao Inferno, mas ao Vale de Hinom. Esse fica ao Sul e Oeste dos muros de Jerusalém. Era usado como CREMATÓRIO ou INCENERADOR, onde os israelitas descarregavam o lixo e também os corpos de animais mortos e criminosos para serem destruídos pelo fogo. Entretanto, nenhuma criatura viva era jogada ali, pois era contra a lei judia. O fogo era sempre mantido acesso para aumentar a sua intensidade os judeus acrescentavam enxofre. Acontece que o GEENA ou Vale de Hinom, tornou-se um símbolo, não do tormento eterno, mas da condição da condenação eterna. Suas chamas simbolizam a DESTRUIÇÃO completa e eterna, para a

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BENTES, A. C. G. O DIA DO SENHOR. Lagoa Santa, MG. Edição Própria, 2008, p. 129-132.

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qual estão destinados todos os inimigos declarados de Deus e do seu reino e no qual não haverá reconstituição ou Ressurreição” (Seja Deus verdadeiro - edição de 1º de abril de 1952). Vamos estudar algumas destas referências para vermos se esta interpretação dos TJ é o que Jesus pretendia dizer quando usou a palavra Geena. Jesus disse que se chamarmos nosso irmão de “tolo”, estaremos sujeitos ao fogo do Inferno-Geena (Mt 5.22). Seria tolice dizer que Ele advertia os homens de que seriam queimados no monte de lixo fora da cidade, pois não há nenhum registro de alguém que tenha sido queimado assim. O Senhor Jesus Cristo ensinou que devemos temer mais a Deus do que aos homens, porque os homens podem matar o nosso corpo, mas só Deus pode lançar ao Inferno (Geena). Se Jesus se referia ao lugar crematório fora da cidade de Jerusalém em Mt 10.28 e em Lc 12.5. Ele não estaria nos ensinando a temer a Deus, porque os homens têm o poder de jogar uma pessoa no incinerador, mas só Deus pode lançar ao “Inferno” (Geena), não só o corpo, mas também a alma. Para enfatizar o terror do Inferno, Jesus ensinou que se o olho no faz tropeçar, devemos arrancá-lo para não sermos lançados no Inferno-Geena (Mt 18.9), que se uma mão ou pé nos faz tropeçar, devemos cortá-los para não sermos lançados no Inferno-Geena (Mc 9.45-48). Jesus repreendeu os fariseus chamando-os de serpentes e raças de víboras e perguntou-lhes como escapariam da condenação do Inferno = Geena (Mt 23.33). Se o Geena não é nada mais do que um lugar de incinerar o lixo fora da cidade, como pode estar ligado à condenação? Para sermos coerentes em nosso pensamento, se cremos que o céu é um lugar literal, temos também de crer que o inferno é um lugar literal (Cf. Dt 32.33; Sl 86.13; 139.8; Is 14.15; Ez 31.16, 17). Repetidas vezes na Bíblia, o inferno relaciona-se com o fogo. Jesus o chamou de ou “Fogo do Inferno” = geenan tou pyros [th\n ge/ennan tou= puro/j] (Mt 5.22; 18.9). Ele falou dele chamando-o de “Fornalha de Fogo” = Kaminon tou pyros = (ka/minon tou= puro/j) (Mt 13.42, 50). O inferno (Hades) será lançado no Lago de Fogo (limene tou pyros = (li/mnhn tou= puro\j) que é a condenação eterna e final (Ap 19.20; 20.10, 14, 15); Ap 21.8 = ( e)n tv= li/mnv tv= kaiome/nv puri\ kai\ qei/% ) en te limene te Kaiomene pyri kai theio = no lago ardente de fogo e enxofre). Friso: Ap 20.10; Is 34.8-10. A história do homem no Hades mostra que este é um lugar de consciência (Lc 16.23, 24). É um lugar de sofrimento (Jd 7). Um lugar de dor (Sl 116.3). É um lugar de tormentos (Lc 16.24, 25, 28). O Hades-Sheol é um lugar de lembranças. Abraão disse ao homem rico que se lembrasse das boas coisas que desfrutou enquanto vivia na terra. O homem rico lembrou-se de seus irmãos que estavam na terra. O pecador se lembrará das orações e rogos de seus pais piedosos. Ele se lembrará de ter ouvido sermões evangelísticos. Ele lembrará de todas as vezes que rejeitou a Cristo. Além de ser um lugar de recordações. O Hades é um lugar de remorso. A alma do pecador ficará cheia do mais profundo remorso por cada pecado cometido. No Hades ele tomará consciência da tolice que fez em vender a sua alma por “guisado de lentilhas”. Ele se encherá de remorso por ter desdenhado do Amor de Deus e por ter rejeitado o Evangelho do Nosso Senhor Jesus Cristo. O Hades-Sheol e o Geena não são um lugar de aniquilamento. Para provar que o Hades será destruído, os TJ citam que “A Morte e o Hades foram lançados para dentro do Lago de Fogo”. Esta é a 2ª Morte (Ap 20.14). Mas eles têm de prever o claro ensinamento de muitas outras passagens para chegarem a esta conclusão. Se tenho na mão um pedaço de pau queimando e eu o lanço em uma fogueira, ambos continuarão queimando juntos. A Bíblia ensina claramente que o Fogo do Inferno (Geena) é eterno (Ap 19.20; 20.10; Mt 25.41, 46; Mc 9.44, 46, 48). Em Ap 19.20 vemos a Besta (o Anticristo) e o falso Profeta serem lançados vivos no LAGO DE FOGO. Após 1000 anos, o Diabo também será lançado no LAGO DE FOGO, e diz a Bíblia: “onde estão a Besta e o falso Profeta”. A Palavra de Deus não diz que o Anticristo e o Falso Profeta foram aniquilados, mas que após 1.000 anos ainda estão no LAGO DE FOGO. E finaliza a Palavra de Deus afirmando: “e de dia e de noite serão ATORMENTADOS pelos séculos dos séculos (isto é eternamente)”. As seguintes provas são apresentadas por Karl Sabiers, como evidências de que nem SHEOL nem HADES jamais se referem a sepulcro:

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1) Tanto o hebraico como o grego têm outras palavras que significa “sepulcro” ou “túmulo”: “QUEBER” (rebeq), SHAHAT (taxf$) e “MNĒMEION” (mnhmei=on). Leia: Mt 23.29; 27.52; Mc 5.2; 6.29; 15.45,46; 16.2, 3, 5, 8; Lc 11.44; 24.2, 9, 12; Jo 11.17, 31, 38; 20.1-4, 6, 8, 11: At 13.29. 2) A palavra Sheol nunca é usada no plural, enquanto que Queber é muitas vezes: Ex. 14.11; 2 Rs 23.6; 2 Sm 3.32; 21.14; 2 Cr 16.14; e Mnēmeion: Mt 27.52, 53; Lc 11.44. 3) Nunca lemos que uma pessoa tivesse um Sheol, mas sim que tinha um sepulcro: Gn 50.5; I Rs 13.30. 4) Nuca se diz que o corpo está no Sheol, nem que o espírito ou a alma estão no sepulcro. 5) Nunca se fala de fazer um Sheol para um morto, nem de preparar um Sheol, como um sepulcro: Is 53.9. 6) No Juízo Final, as duas coisas: a Morte ou sepulcro, e o Hades, entregarão os seus mortos; isto é, o lugar dos cadáveres e o lugar onde (estão) as almas estiverem morando. 7) A mesma distinção entre Hades e a Morte ou Sepulcro se faz em Ap 1.18, onde se diz que Cristo tem as chaves de ambos. 8) Em At 2.27 (Sl 16.10 = lO):$) está escrito que alma de Cristo não foi deixada no Hades, nem o Seu corpo viu a corrupção (no túmulo, subtende-se). 9) Quando os filhos de Jacó venderam José para ser escravo no Egito, enganaram ao seu pai, trazendo-lhe a sua túnica manchada de sangue de uma fera. Expressou o seu lamento com estas palavras: “Chorando, descerei ao meu filho até ao SHEOL. Sendo que cria que seu filho fora devorado por uma fera, como é possível que se encontraria com ele na sepultura? Isto prova que o SHEOL é o lugar das almas, e Jacó com razão esperava encontrar ali a alma de seu filho (Gn 37.31-35). 10) Em Gn 49.33 está escrito que Jacó expirou e foi reunido ao seu povo. Morreu no Egito; durante 40 dias o seu corpo foi embalsamado, e durante outros 30 dias, foi chorado no país. Então, José obteve permissão de Faraó; fizeram uma peregrinação a Canaã; lamentaram-no outra vez por sete dias, para depois sepultá-lo na Caverna Macpela, que era a sepultura dos seus pais. A conclusão é, por certo que SHEOL ou HADES quer dizer lugar das almas desencarnadas, e não outra coisa. Quanto ao PARAÍSO ou SEIO DE ABRAÃO, ou compartimento de paz no SHEOL ou HADES há passagens que nos dão razão para crer que Jesus foi até lá quando foi crucificado (At 2.2731). Ele prometeu ao ladrão penitente crucificado que o encontraria ali naquele mesmo dia (Lc 23.43). Mas a Alma de Cristo não permaneceu ali (At 2.27). Cremos que, segundo Ef 4.8-10, o Senhor não só ressuscitou, mas também levou consigo as almas redimidas que antes estavam naquela parte do SheolHades, que se chama o PARAÍSO ou SEIO DE ABRAÃO. Por isso é que o apóstolo Paulo, quando foi arrebatado até o TERCEIRO CÉU, verificou que este correspondia ao PARAÍSO (2 Co 12.2-4). E nos revela que o Paraíso não está mais embaixo, para que alguém desça até lá, mas acima, de forma que é necessário SUBIR até ele. Uma tradução de Ef 4.8 diz: “Ele levou a multidão de cativos”. No grego: dio\ le/gei, )Anaba\j ei)j u(/yoj v)xmalw/teusen ai)xmalwsi/an = dio legei, Anabas eis hupsos ekmaloteuçen aikmaloçian. “Por isso diz: tendo subido às alturas levou cativo o cativeiro”. Também Paulo fala da morte como “partir” e estar com Cristo (Fp 1.23), e “estar ausentes do corpo e presentes com o Senhor” (2 Co 5.8, 9). Como Cristo SUBIU e está ao lado do Pai “Acima de todos os céus” (Ef 4.10; Cl 3.1), e aqueles que dormem no Senhor estão com Ele no Paraíso também, então necessariamente o Paraíso está no Céu (3º), onde está Jesus Cristo. Os santos do Antigo Testamento foram guardados no Sheol-Hades até a Ressurreição do Senhor, porque os seus pecados foram cobertos (Sl 32.1); contudo, uma vez sacrificado o REDENTOR, os pecados foram removidos (Hb 10.4; 9.26) e eles logo puderam entrar na presença de Deus. Por isto o cristão hoje também entra logo em seguida à sua morte, na sua morada, onde viverá com seu Salvador. O outro compartimento (Lugar de Tormentos), ou região do Sheol-Hades não sofreu modificação alguma, nem sofrerá, até o juízo final (Ap 20). As almas dos perdidos continuam indo para lá, onde ficam até o juízo final que também é o chamado O JUÍZO DO TRONO BRANCO. Nesse juízo não há menor índice de uma 2ª oportunidade para crer e ser salvo. Até o Juízo Final as almas perdidas estarão sofrendo no Lugar de Tormentos no Hades (Sheol), e até a 2ª Vinda de Cristo, os salvos estarão no Paraíso.

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CONCLUSÃO As doutrinas Essenciais do Velho Testamento Esta obra representa o esforço de apresentar as doutrinas essenciais da teologia do Velho Testamento, sem entrar, senão ligeiramente, na discussão da história da religião de Israel. Enquanto a religião ficava enraizada nos ensinos teológicos dos profetas, havia sempre a tendência na prática religiosa, da parte das multidões, de desviar-se dos mais nobres ensinos dos profetas. A religião dos israelitas era freqüentemente mais influenciada pelas religiões dos vizinhos do que pela sua própria teologia. A teologia se desenvolvia no esforço dos escritores de orientar o povo de acordo com o concerto que o Senhor Iavé tinha estabelecido com Israel em Horebe. É claro que a história da religião de Israel e a teologia do Velho Testamento podem ser apresentadas como matérias diferentes, embora não seja possível fazer uma distinção nítida entre elas. Por exemplo, no período dos juízes, o baalismo tinha quase tanta influência na vida do povo como a religião de Iavé, e desde o tempo de Salomão havia um declínio gradual da religião de Israel, enquanto a teologia dos profetas chegou ao seu maior desenvolvimento. Os escritores do Velho Testamento não eram versados na filosofia e na lógica, e nem se interessavam em sistematizar os seus artigos de fé. Escrevendo das experiências da comunhão pessoal com Deus, as suas obras literárias refletem as influências culturais das várias épocas da história. Portanto, há, na literatura canônica, uma variedade de experiências com Deus e ensinos teológicos influenciados pelas condições sociais e religiosas, mas sempre adaptados às necessidades espirituais do povo dos períodos sucessivos da história. As experiências e os ensinos religiosos de cada escritor também refletem a sua cultura literária e os seus característicos pessoais, pois a inspiração divina fortalece e não neutraliza a personalidade. A literatura representa pontos de vista diferentes, por exemplo, nos ensinos religiosos dos sacerdotes e profetas, e também mostra progresso no entendimento geral dos atributos de Deus, especialmente da santidade, do amor e da justiça, revelados cada vez mais claramente pelas atividades do Senhor na história de Israel. Não obstante a variedade das experiências religiosas e das vicissitudes históricas que influenciaram a vida e a literatura dos escritores, o Velho Testamento apresenta evidências copiosas da unidade, coerência e continuidade da história da comunidade religiosa do povo de Israel. O princípio unificador desta literatura singular na história das religiões da humanidade revela-se nas atividades do Senhor no espírito e na vida do povo que tinha libertado, redimido e escolhido para representar o seu amor o a sua graça entre as nações e os povos do mundo. Os israelitas sempre estavam positivamente certos de que o Senhor Iavé os tinha libertado do poder do Egito por grandes milagres sem qualquer esforço da sua parte. Nunca vacilaram na certeza de que o Senhor os tinha escolhido como o seu povo peculiar. Israel ficou igualmente certo de que o Santo Deus tinha estabelecido com ele o concerto da graça no Monte Sinai Ao povo nunca foi permitido esquecer por completo o propósito do Senhor na sua eleição. Encontram-se na literatura de todos os períodos da história de Israel sublimes experiências pessoais e nacionais do amor imutável e da fidelidade do Senhor no cumprimento das promessas do concerto, apesar das vacilações e das infidelidades de Israel. De geração em geração os escritores e pregadores transmitiram ao seu povo o conhecimento revelado do caráter e das exigências éticas da justiça divina, sempre insistindo na fidelidade de Israel no cumprimento das suas responsabilidades como o povo escolhido do Senhor. Em todos os períodos da história, o único Deus, Criador de todas as coisas e Governador da história, está sempre falando ao povo de Israel. Criou o homem à sua própria imagem, capaz de gozar comunhão com ele e de reconhecer e entender a revelação da vontade divina. Os profetas reconheceram a impossibilidade de descobrir a Deus com os seus poderes intelectuais, pois o homem, como criatura, é inteiramente dependente do seu Criador. A sua felicidade e o seu bem-estar dependem da obediência à vontade' do Senhor, como lhe é revelada pelo próprio Deus.

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A Doutrina de Deus Como se pode avaliar os ensinos teológicos do Velho Testamento? Propriamente entendidas, as suas doutrinas teológicas geralmente levam, no seu apelo ao espírito humano, o reconhecimento da sua validade. Os escritores declaram, com inabalável convicção, que têm conhecimento de Deus somente porque ele se lhas revelou em santidade, justiça e amor, como o eterno e o único Deus, Criador de todas as coisas. O cometimento apaixonado dos profetas às verdades recebidas e verificadas pela comunhão pessoal com Deus, reforçou o poder dos seus ensinos e o sentido de responsabilidade perante o Senhor, de aplicá-los à vida política e social de Israel. A fé válida repousa na realidade, naquilo que é, não naquilo que não é. Este é o ponto de vista da religião do Velho Testamento. A fé de Israel baseou-se na experiência de contato direto da consciência de homens de fé com a consciência de Deus. Os israelitas não eram cientistas no sentido moderno da palavra, nem filósofos e nem psicólogos científicos, mas as suas crenças básicas suportam a prova da razão, da filosofia, da história e da psicologia. Embora não seja possível provar cientificamente a verdade de quaisquer crenças religiosas, quando as doutrinas fundamentais do Velho Testamento são submetidas à razão, elas não são incompatíveis com os fatos verificados ou conhecidos pela ciência moderna em qualquer esfera de conhecimento. Segundo a Bíblia, o conhecimento de Deus não é descoberto, verificado, e assim estabelecido pelo processo de raciocínio, mas pela comunhão pessoal com Deus. O Senhor Iavé, o Deus de Israel, não chegou a ser conhecido pelos pensamentos ou pelas idéias dos homens formuladas a respeito dele, mas pela experiência deles na consciência, e pelo desejo ardente de descobrir e fazer a vontade de Deus. O profeta Jeremias entendeu este fato quando disse: “Pensas tu que reinas porque excedes no uso de cedro? O teu pai não comia e bebia, praticando a retidão e a justiça? Então tudo lhe corria bem. Julgou a causa do pobre e necessitado; então ia bem. Não é isto conhecer-me? diz o Senhor” (22.15,16). O processo pelo qual os profetas do Antigo Testamento receberam o seu conhecimento de Deus é reconhecido e praticado, pelo menos em parte, por cientistas modernos. Contrário ao ponto de vista comum de que o conhecimento precede a fé, os psicólogos e cientistas sabem que a fé precede o conhecimento e abre a porta de entendimento de todos os ramos da ciência. A fé, definida como “convicção à parte de, ou em excesso de provas”, é o guia de todos os grandes inventores e cientistas. O Velho Testamento é o fruto desta qualidade de fé. Os filósofos se esforçam para descobrir um princípio básico e unificador para explicar todos os mistérios do universo. Os escritores do Velho Testamento, com a “convicção em excesso de provas”, apresentam o Senhor Deus, Criador do universo, como alvo final da busca filosófica. O Senhor da Bíblia é o Deus Vivo, sempre ativo na direção e na obra de seus dedos, habilitando e ajudando o homem, que criara um pouco abaixo da divindade, nas lutas que enfrenta no esforço de cumprir o propósito divino visado na criação. Apesar da obstinação, das fraquezas e da inconstância de Israel, o Senhor Iavé, no seu amor imutável, atuava constantemente em todas as épocas da história deste povo fraco, para conseguir o propósito de estabelecer o seu reino de amor e justiça entre todos os povos da terra. Ainda opera assim na história de todos os povos, por intermédio das forças morais e espirituais daqueles que se submetem à sua direção e procuram fazer a sua vontade. “O Deus que nos interessa é Um que combina poder genuíno e amor perfeito. Este é um conceito que é perfeitamente compreensível para as pessoas que pensam, mesmo quando não O aceitam, porque pode ser apresentado com o mínimo de ambigüidade e de incerteza. Refere-se ao Deus Vivo, que é objetivamente real, o objeto de adoração, e que pode ser conhecido, em parte, como pessoas finitas são conhecidas”. 175 Este é o Deus da Bíblia. A santidade de Deus, segundo o Velho Testamento, além de representar a sua transcendência, e a separação de tudo que ele criou, significa também a pureza e a perfeição da sua natureza moral, a 175

David Elton Trueblood, Philosophy of Religion, p. 86.

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antítese de tudo no homem que é contrário à sua vontade. O profeta Isaías estremeceu na presença da santidade do Senhor, não por causa da sua fraqueza humana na presença do poder divino, mas porque era homem pecaminoso na presença do Deus Santo. No seu horror, ele reconheceu logo que o pecado não pode viver na presença da Santidade. Ia perecendo até que fosse tirada a sua iniqüidade e perdoado o seu pecado. Segundo os profetas do Antigo Testamento, Deus revela o seu caráter nos seus atos, o seu propósito moral na orientação da vida do seu povo. Este é um dos característicos distintivos da fé de Israel. Deus é justo, e, portanto, exige justiça do seu povo. “Assim a religião de Israel é ética na sua essência, e não meramente nas suas exigências”. 176 Foi discutido em várias relações nesta obra, o hesed, o amor firme, constante e eterno do Senhor. São insondáveis os recursos deste amor. No Egito o Senhor revelou a sua compaixão a sua amorável benignidade ao povo de Israel na miséria da escravidão. O profeta Oséias desenvolveu o significado do hesed do Senhor. Na tragédia da sua própria experiência, ele entendeu e interpretou o amor do Senhor para com o povo infiel de Israel. Os profetas interpretaram todas as atividades do Senhor na sua história como manifestações do amor divino. A eleição de Israel foi uma das maravilhas do amor do Senhor, e os profetas deram ênfase às responsabilidades que este alto privilégio acarretava. Na exposição do propósito moral de Deus para o mundo, os profetas reconheceram a gravidade das faltas do povo escolhido quando não refletia o caráter do Senhor na sua vida interna. Quando os pecados desenfreados de Israel revelavam o seu desprezo do amor do Senhor, o seu caminho não podia prosperar. Tinha que sofrer as conseqüências da infidelidade, não porque Deus ficasse ofendido com ele, mas porque a disciplina divina é uma expressão do caráter e do amor persistente do Senhor. Assim a felicidade e o bem-estar do homem resultam da comunhão com Deus, da gratidão pelo seu amor e da obediência à sua vontade. A Doutrina do Homem Os ensinos do Velho Testamento sobre a natureza e as necessidades do homem, embora antigos, são de valor permanente para todos os homens. Muito do conhecimento das ciências sociais, descoberto pelos cientistas modernos, foi reconhecido e apresentado pelos escritores bíblicos. São coerentes e persistentes os ensinos da Bíblia sobre o caráter paradoxal da natureza humana. De um lado, é “criado à imagem de Deus”, “pouco abaixo da divindade” (Elohim), coroado “de glória e honra”, com “domínio sobre as obras” das mãos de Deus. Por outro lado, “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida; e o homem se tornou um ser vivente”. Também os animais são denominados almas ou seres viventes. É verdade, que o corpo do homem é composto dos elementos do pó, e neste sentido é semelhante aos animais. Todavia, nesta história antropomorfa, o homem é distinguido dos animais pela sua natureza moral, a responsabilidade de obedecer às ordens do seu Criador. A mortalidade é sinal da sua natureza corrompida. Na sua natureza espiritual, e na sua semelhança divina, o homem tem a capacidade de entender a verdade, de distinguir entre o bem e o mal, de trabalhar e assim aproveitar-se dos bens da terra, de frutificar, multiplicar, encher e subjugar a terra. O realismo do ponto de vista bíblico do homem, com o conhecimento das suas fraquezas morais e as suas potencialidades intelectuais e espirituais, apresenta um contraste chocante com o pessimismo cínico das nações dos chefes do comunismo sobre “o homem econômico”. O homem, como criatura, tem o privilégio e a responsabilidade de amar e servir ao seu Criador. “Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é Um. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt 6.4,5). “Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; Procurai a justiça, restringi o opressor; fazei a justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Is 1.16,17). Em toda parte do Velho Testamento a vontade divina para com o homem apresenta-se como a expressão do amor de Deus. “Agora, pois, se diligentemente obedecerdes à minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha própria possessão entre todos os povos; pois toda a terra é minha” (Êx 19.5). 176

David Elton Trueblood, Philosophy of Religion, p. 86.

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A dignidade do homem, a sua capacidade de gozar comunhão com Deus, as suas potencialidades espirituais são dons e privilégios conferidos pelo Criador, que ele pode aproveitar e desenvolver ou pode menosprezar e negligenciar. Pode ter comunhão com Deus na condição de que a vida dele reflita a bondade do Senhor, e que tenha prazer em curvar-se diante dele em adoração e amor. Esta comunhão espiritual com Deus não foi reservada só para os profetas. O profeta podia ficar cheio do Espírito e habilitado para falar a palavra de Deus, enquanto outros podiam receber o poder do Espírito para fazer a obra do Senhor. Deus escreve a sua lei no coração, segundo o Novo Concerto e o reino futuro de Deus na terra constará do restante fiel. O Velho Testamento ensina em toda parte, direta ou indiretamente, que o homem é favorecido com o livre arbítrio, ou a liberdade moral, e que pode usar esta liberdade para resistir aos apelos do Espírito do Senhor ou desobedecer arrogantemente à vontade de Deus para a sua vida. Todavia, os limites da liberdade do homem são reconhecidos. Sendo apenas uma criatura, a sua liberdade é delimitada pelas obras da natureza e pelas imposições de outras criaturas. Todavia, é livre para obedecer ou rejeitar o apelo do Espírito de Deus à sua consciência moral. A Bíblia mantém a posição da experiência geral dos homens, a reconciliação entre a liberdade moral e o determinismo. “Pela fé na criação do homem, Israel resolveu o dilema da liberdade e necessidade”. 177 O Velho Testamento dá ênfase à solidariedade social de Israel. O israelita sentia-se unido por laços fortes com a família, a tribo e o povo. Libertados como grupos e organizados como nação pelo Senhor Iavé como o seu próprio povo, e assim incumbidos do serviço sacerdotal para todos os povos da terra, o israelita individual sentia-se unido por laços espirituais não somente com os seus próprios patrícios, mas também com as gerações do passado e do futuro, com o sentido profundo da sua responsabilidade social. Com esta responsabilidade sacerdotal, surgiu o conceito bíblico da história, o primeiro e o mais aceitável das várias filosofias da história. Mas o israelita nunca se considerou somente como membro da sociedade. É por causa do fracasso do povo como nação sacerdotal que os profetas Jeremias e Ezequiel deram tanta ênfase à responsabilidade pessoal A verdade é que a nação fracassou principalmente por causa do excesso da má influência dos reis e outros indivíduos que desprezaram os ensinos dos profetas, os servos do Santo de Israel. A Doutrina do Pecado O Velho Testamento oferece aos homens modernos ensinos de valor para todas as gerações sobre a natureza e a influência, do pecado. O estudante cuidadoso das Escrituras não pode deixar de observar que houve desenvolvimento do conceito de pecado, na longa história do povo de Israel. Baseando-se em Amós 5.25 e Jeremias 7.25, alguns teólogos modernos crêem que as noções sobre as coisas devotadas (Js 7), as comidas proibidas (Lv 11, e seg.) e algumas das leis cerimoniais se originaram com os cananeus e deles foram adotadas pelos israelitas. Seja qual for a força desta interpretação, é claro que o conceito de pecado apresentado pelos profetas canônicos tem elementos de valor permanente. Segundo o Velho Testamento, não há nada pecaminoso na natureza física ou no corpo do homem como tal. Não há pecado na satisfação legítima da fome física do homem. A natureza sexual, por exemplo, é dada ao homem para que possa continuar a procriação da raça (Gn 1.26-28), de acordo com o propósito divino. O cientista moderno concorda com este ensino bíblico sobre o corpo do homem. Todavia, o Antigo Testamento vai além da ciência física, e ensina claramente que o pecado tem a sua origem na vontade do homem, na sua revolta contra a vontade de Deus. Um conceito de pecado que se apresenta no Velho Testamento é a perda do alvo divino para qualquer pessoa, a disposição ou o procedimento que despreza a dignidade, ou o propósito de Deus para a sua vida. A universalidade e o poder destruidor do pecado são plenamente reconhecidos. O Velho Testamento também reconhece que há no espírito do homem impulsos bons e maus, e que ele tem a capacidade de escolher entre eles. Enquanto não se encontra no Antigo Testamento o ensino da depravação total do homem no sentido absoluto, a influência corrutora do pecado é sempre reconhecida.

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Otto J. Baab, op. cit., p. 265.

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Todos os atos pecaminosos são anormais, porque operam contra as influências positivas da vida. O homem justo é reto, o pecaminoso é torcido. O pecado é destruidor, é doença que na sua plena força mata o homem. É a violação de qualquer contrato, ou o repúdio de qualquer responsabilidade pessoal, porque a vida é sustentada e protegida pelo cumprimento das obrigações morais em todas as relações humanas, dentro da família e da sociedade em geral. O pecado opera contra os esforços daqueles que protegem a comunidade e trabalham a favor dos interesses e do bem-estar da sociedade em geral. A representação bíblica da realidade, da gravidade, do poder destruidor do pecado, em todas as formas criminosas de opressão, crueldade e injustiça nas relações sociais, econômicas, políticas, e até nas relações internacionais que resultam nas guerras, no genocídio, na fome e na miséria, são fatos terríveis das experiências amargas de todos os povos do mundo. Mas a mais lastimável de todas as conseqüências do pecado é que separa o homem da presença do Criador e Senhor da sua vida. A Esperança Eterna Mas através do Velho Testamento o homem é reconhecido como criatura de Deus, capaz de arrepender-se dos seus pecados, e aceitar voluntariamente a salvação que Deus, no seu amor persistente lhe oferece de graça. Assim o homem pode conhecer a Deus, e submeter-se a ele no amor e serviço, desfrutando eternamente das ricas bênçãos desta comunhão espiritual com o seu Senhor vivo. Os escritores do Velho Testamento, com o seu profundo conhecimento do poder e das conseqüências do pecado, nunca perderam esperança de que o Senhor, Criador justo, nos infinitos recursos do seu amor persistente e imutável, havia de estabelecer finalmente o seu reino vitorioso, apesar de todas as forças dos inimigos da justiça divina.

Escaneado e revisado por Antônio Carlos Gonçalves Bentes. Foram acrescentados alguns tópicos de outros livros (ver as notas de rodapé). CRABTREE. A. R. TEOLOGIA DO VELHO TESTAMENTO. 2ª ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1977. 221 Cra-Teo Crabtree, Asa Routh Teologia do Velho Testamento. 2ª edição. Rio de Janeiro, JUERP, 1977. 310 Páginas (O original). 1. Velho Testamento – Teologia do I. Título. CDD – 221.01

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