Confraia Van Gogh - Mirian Cavalcanti - Semente Editorial

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mirian cavalcanti

1 ª edição Rio de Janeiro/2010


© 2010 by M irian Cavalcanti

1ª edição junho 2010 Direitos desta edição reservados à semente editorial ltda

Av. José Maria Gonçalves, 38 – Patrimônio da Penha 29.590-000 Divino de São Lourenço/ES Tel.: (28) 3551-1912 Rua Soriano de Souza, 55 casa 1 - Tijuca 20.511-180 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2567-2777 (21) 8207-8535 lara@sementeeditorial.com.br www.sementeeditorial.com.br Os trechos das cartas de Van Gogh citados nas aberturas de capítulos são provenientes de “Mestres da Pintura”, Abril Cultural, 1977, e “Cartas a Théo”, L&PM Editores, 2007; o livro-tema, “A Vida Trágica de Van Gogh”, de Irving Stone, foi publicado no Brasil pela Editora José Olympio Ltda. Produção Editorial: Estúdio Tangerina Revisão: Edna S. Cavalcanti, Tânia M. S. Cavalcanti Projeto Gráfico e Diagramação: Lara Kouzmin-Korovaeff Capa: Lara Kouzmin-Korovaeff

C366c Cavalcanti, Mirian da Silva, 1944Confraria Van Gogh: a vida secreta de um livro de biblioteca pública / Mirian Cavalcanti. Rio de Janeiro: Semente, 2010. 148 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-63546-00-5 1. Ditadura militar - Ficção. 2. Gogh, Vincent van, 1853-1890 - Ficção. 3. Biblioteca pública - Ficção. 4. Livros e leitura - Ficção. 5. Ficção brasileira. I. Título. 10-1907.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)3


Às memórias de

JOÃO DE ARAÚJO CAVALCANTI,

meu pai, pela herança da paixão e da literatura;

CORDOLINO ANTERO DE SOUZA,

revisor do JB, anos 60 e 70, pela doçura e dignidade que irradiava;

ALEX XAVIER PEREIRA, FERNANDO AUGUSTO DA FONSECA, KLEBER LEMOS DA SILVA, LINCOLN BICALHO ROQUE, LUCIMAR BRANDÃO GUIMARÃES, MARCOS NONATO DA FONSECA, ROBERTO SPIGNER,

ex-alunos do Colégio Pedro II /RJ, anos 60 e 70, pelas vidas precocemente interrompidas.



À guisa de prefácio*

deodato b. “[...] É isso. A arte tem esse poder. Estou falando de unir, trazer prum campo comum. Porque quando a gente admira uma obra de arte... não, é mais do que admirar... quando a gente é tragado por uma obra de arte, a gente se nivela à beleza existente nessa obra... E aí... ah, mas antes é pra lembrar que beleza não se liga obrigatoriamente a harmonias, coisas boas e certas e corretas e ideais e felizes, sei lá... a arte trata também da miséria humana, e de uma forma que nos convoca e incomoda e compromete e inclui... Bem... voltando a esse nivelar-se de que ia te falando: a arte nos alça do patamar de simples pessoas ao patamar da beleza. E quem vivencia esse voo descobre o que é gratidão. Gratidão pelo artista que lhe deu asas; asas a simples cidadãos como somos cada um de nós, e que nos fazem chegar até aonde não chegaríamos com as próprias pernas. O artista é isso, Soares. E nisso de Ser Humano, ele, pra mim, está numa categoria acima. Porque voa. Mas principalmente porque nos leva no voo. Talvez eu não esteja me exprimindo com clareza... Não se trata de mergulhar na fantasia dele, ou coisa assim... Quando o artista assume seu patamar, sua humanidade pessoal puxa toda a humanidade com ele. Quer dizer: toda a humanidade que se dá conta desse... porque, quantos de nós esbarra distraído em maravilhas? [...] Aí é que entra esse poder da arte; poder de unir. Vamos imaginar dois indivíduos de povos em confronto. [...] Que


seja: um norte-americano e um soviético. E Gorki e Armstrong. O norte-americano que leia Gorki e o russo que ouça Armstrong têm possibilidades de descobrir com outros olhos aquele que é visto como antagonista devido unicamente à nacionalidade. E é aí que o sentimento natural de gratidão... você sempre estranha quando falo isso, não é, Soares? pois não tenha dúvida de que é o sentimento que brota, mesmo quando não identificamos... Mas continuemos... assim, tal gratidão, mesmo inconsciente, pode fazer com que ele se desarme... E aí vem o ponto principal: talvez ele se desarme não especificamente em relação a Gorki ou Armstrong, mas ao Outro de uma forma mais ampla. [...] Exatamente, Soares. Gostei de saber. [riso] Então, de tanto me ouvir falar do Van Gogh, você foi procurar no mapa da Europa onde fica a tal Holanda? Ah, meu amigo... [ fala inaudível, risos] É, também vejo holandeses com simpatia. E sem dúvida o Van Gogh tem a ver com isso... Agora, então, me diz uma coisa: se, por exemplo, Brasil e Holanda entrassem em guerra, [risos] você não acha que olharíamos a questão de um modo diferente da de quem tivesse sido habituado a ver na Holanda o Grande Inimigo? [sons de xícaras, pires] Pois indo por esse caminho, a gente pode mergulhar mais fundo ainda. Já viu dança folclórica de um outro país? [ fala incompreensível] Deve ter sido uma emoção incrível, não? Você, como brasileiro, se descobriu universal. Porque a emoção tem esse dom. Nunca esqueci aquela dança do Anthony Quinn em Zorba, o Grego. Nem vou esquecer. E tanta coisa que pode aproximar, tanta... Fernando Pessoa, Neruda; nossa Cecília... E pode-se ir mais longe ainda, se quisermos... Pegar, mesmo, o esporte. Repara só na expressão de homens e mulheres naqueles filmes ruin-


zinhos da Copa de 58. Diante dos dribles do Garrincha é pura felicidade... Veja bem: não se trata de plateia brasileira... O esporte tem também esse dom, sem dúvida. [ fala inaudível] Sim, sim... bem lembrado! Por causa daquele time do Santos, uma guerra na África chegou a ser interrompida, pois os dois lados queriam ver Pelé e Coutinho. Bem lembrado, Soares... Que time, hein?! Arte pura... [...] Talvez se devesse falar de gênios, em vez de esporte ou arte. Gênios têm esse dom. Por transcenderem, levam a humanidade junto. E podem aproximar, a partir do estalo que se tenha sobre pontos comuns a dois. Convergências fortalecidas podem enfraquecer divergências. [sons de cadeiras arrastadas] Isso de ser tão brasileiro é que me faz do mundo... Porque cada vez que me descubro no outro, ou vice-versa, uma luz se acende. E não tenho como não pensar no nosso planetinha azul girando solitário no espaço, quando me vêm essas coisas à cabeça... Todos nós tão próximos e tão distantes... [risos] Acho que a gente está ficando velho, Soares...

* Deodato B.(funcionário público/INPS) e L. Soares (garçom/ Leiteria Bol) — trechos de conversa registrada em fita cassete.



O moinho n達o existe mais; O vento continua . Van Gogh



SUMÁRIO

a moça........................................................................................ 13 a tia-avó..................................................................................... 25 o estudante................................................................................ 37 o senhor avô.............................................................................. 51 a outra moça............................................................................. 63 o não-avô................................................................................... 77 o rapaz....................................................................................... 89 o recruta .................................................................................. 103 o outro rapaz........................................................................... 107 a funcionária........................................................................... 117 as amigas................................................................................. 125 a funcionária, mais uma vez................................................. 133 Sobre Van Gogh ............................................................... 141 Algumas Palavras............................................................ 145 Agradecimentos ............................................................... 147


“Mas precisamente porque o amor é forte,

nós geralmente não somos fortes o suficiente

durante nossa juventude

(quero dizer, 17, 18, 20 anos)

para conseguir segurar firme nosso leme.

Veja, as paixões são as velas do barco.

E alguém com vinte anos abandona-se

inteiramente a seus sentimentos,

apanha vento demais nas velas e

seu barco faz água — e naufraga — a não ser que ele se recupere.

[...] Ah! Mas então ele reconsidera e

imagina poder utilizar uma outra força; ele pensa na vela até então desprezada

que sempre tivera guardada no porão.

E é esta vela que o salva.

A vela ‘amor`deve salvá-lo,

e se ele não a içar, não chegará nunca.“ Van Gogh

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a moça Não fosse a vivacidade adolescente, deslizaria quase invisível pelos corredores da Escola Nacional de Belas-Artes. Passos leves e rápidos, uma olhada por uma e outra porta, e afinal lá estava, folheto nas mãos. Os passos de volta, agora, eram lentos, na medida justa de uma leitura que garimpava informações que esperava bem diferentes das que se alinhavam no papel. Enfim!... Não há curso noturno, concluiu, ar decepcionado. Mas como que ignorando a porta que se fechava, olhou de relance as matérias do vestibular. Nada que fosse impossível. Mas não havia curso noturno, porém, e isso era definitivo; isso, sim, tornava impossível a pretensão que a levara até ali. Caminhos determinados pela vida nos poupam da aflição da escolha, das opções difíceis, descobria. Saiu porta afora pela Araújo Porto Alegre e parou um instante, respirando fundo e devagar. Era como um sentimento de luto, impactante apesar de pressentido, e se deixava submergir como se num sonho em câmara lenta. A saia cinza e a blusa de um xadrez miúdo, preto e branco, gola branca estreita, como que faziam dela um ser apagado no rebuliço do verão. Na moda, porém; mesmo que ao seu jeito discreto. E, por ironia, de braço dado com a arte. Op art. Aquilo era moda op art. Mas — luto pressentido ou não — sentiu-se muito sóbria. Muito sóbria para quem pretendia prestar vestibular para Belas-Artes. Muito sóbria para quem pretendia dedicar-se à pintura. E, à lembrança inevitável de Van Gogh sempre que falava em pintura, salvou-se, os olhos ganhando luz. Com a alma explodida em girassóis, tragada pelo azul do verão, 15


repensou o dia, e seus passos a conduziram naturalmente em direção à Biblioteca Castro Alves, o ritmo se vitalizando à medida que caminhava, em sintonia com um novo estado de espírito. Desceu as escadas que levavam ao subsolo e num instante encontrava-se na Biblioteca. Entregou a bolsa na recepção, sem esquecer de separar o cartão de empréstimo, onde a 3x4, solene, mostrava um rosto moreno, cabelos escuros escorregando maciamente pelo pescoço. Cumprimentou a funcionária e desapareceu entre as estantes. O caminho não tinha erro: seção Biografias, segunda estante, quarta prateleira. A Vida Trágica de Van Gogh. A lombada típica de encadernações — aquela imitação de couro com letras douradas — não a fazia desaparecer entre tantos outros volumes de iguais dimensões. Ao contrário: para ela, fosse verão ou inverno, irradiava luz própria. Com suavidade retirou-o da prateleira e, colando-o ao peito, buscou um lugar vazio em alguma mesa menos percebida. A folheada rápida foi como um abraço de amigos. Lá estavam. Todos. Conferiu a data da última devolução: menos de um mês. Sua Confraria Van Gogh. Quem sabe algum deles estaria ali, naquele momento? Olhou em volta. O senhor de terno cinza, por exemplo, barba escanhoada, parecendo irmão do Pixinguinha... Bem que poderia ser seu Francisco. Já aquele outro, sobrancelhas grossas, as mangas da camisa dobradas próximo ao cotovelo... todo um jeito de seu Aurélio. “Vamos pra casa?”, falou baixinho, e com a mente mergulhando naquela história que trouxera a paixão à sua vida, dirigiu-se à fila do balcão de empréstimos.

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Sua primeira leitura havia-lhe caído como avalanche, num ritmo galopante, e vezes sem conta largara o livro de lado e buscara a varanda para olhar as árvores, recuperar o fôlego e aquietar o coração. Isso acontecera há quase dois anos. A paixão por Van Gogh inundou-a a ponto de procurar por semelhanças entre seu quarto e o dele (a partir das linhas da sua velha cama Patente) e de decidir ter um filho de nome Vincent. (Vicente, decidiria depois. Mais brasileiro.) Aquele exemplar passava por muitas mãos, mas só alguns leitores formavam a Confraria Van Gogh. Ela fora criada — mesmo sem que soubessem — por seu Francisco ou seu Aurélio, pois quando do primeiro empréstimo as marcações de ambos já existiam. Frases sublinhadas a caneta preta impecável de seu Francisco e caneta verde nos riscos ondeados de seu Aurélio. Encantara-se. Imaginara rostos, jeito que teriam, o que faziam... Achou que não se tratava de pessoas jovens. Algum ligeiro tremor nos sublinhados fora a primeira pista; os ondeados apresentaram-se, consequentemente, como recurso inconsciente para escapar de revelação semelhante. Aposentados, talvez. Com preferências bem definidas no tocante a marcações. Seu Francisco era atraído pela história familiar de Van Gogh, em especial as confabulações e interferências do irmão Théo. Já seu Aurélio sublinhava as passagens focadas na inspiração, mencionando esboços e telas do artista. De início, baseando-se nos traços cuidadosos e discretos, percebeu-os apenas como pessoas cultas. A polidez de um e a irreverência de outro só se revelariam mais adiante, colocadas à prova pelo furacão que seria a chegada de Ivan. Juntar-se a seu Francisco e seu Aurélio nas marcações no livro fora uma tentação abortada mal pegara a caneta. Uma 17


coisa era fazer anotações e destaques nos próprios livros — hábito antigo — mas nos de uma biblioteca era diferente. Além do mais, caso descobertos, os dois teriam a favor a idade, que lhes conferia certos direitos e charme nas transgressões; já ela... Estudantes em tempos de ditadura tinham poucas chances de se explicar. E daquela primeira leitura ficara apenas a impressão de que tinha dois amigos que não conhecia e que não sabiam de sua existência. Mas perderia a conta das releituras e folheadas quase amorosas, como se as páginas fossem as de um álbum de fotografias. O grupo crescera e o batizara de Confraria Van Gogh. E batizara cada integrante. Além de seu Francisco, seu Aurélio e ela própria, mais dois haviam se incorporado. A entrada de Ivan sacudira tudo e trouxera à vida o espírito do grupo. (Isso percebia pelo que lhe acontecera.) Ele simplesmente blocava trechos imensos em amarelogirassol e de forma desordenada, excedendo o paquê. Parágrafos completos ligados às crises e transtornos de Van Gogh. A força com que usava o lápis cera imprimia ao papel uma textura acetinada brilhante. Podia-se dizer, quase, que prescindia da cor amarela para se destacar. Aquela espécie de cartão de visitas acendeu o sinal amarelo. De imediato ela se percebeu em estado de atenção, de alerta. As passagens subsequentes de Ivan como que fariam eclodir uma gritaria páginas afora, chamando um e outro, sacudindo de sua cerimônia até o pacato seu Francisco. E Artur foi o primeiro a falar. E logo com quem: com seu Aurélio! À margem de um dos trechos suavemente ondea18


dos em verde, Artur fizera dois traços paralelos, verticais, caneta vermelha, e fora bem seco na sua letra em fôrma, de traçado moderno: “em desacordo”. Provocado por Artur, seu Aurélio mostrou um lado irreverente que até ali não se manifestara. Algo assim no espírito de cresça, menino!. E Artur, sem perceber, mordeu a isca. E começaram ali as conversas. Foi a partir desse estágio que ela se animou a entrar. Tímida a princípio, num pontilhado de caneta azul, tentando estabelecer contatos pessoais ao agregar a nova cor à escolha de cada um, mas sem deixar, contudo, de se apresentar individualmente, a partir de marcações solitárias. Marcações apenas, sem comentário ou sequer reticência. A Confraria, agora, não mais se restringia a monólogos coloridos carinhosamente acompanhados pelos demais integrantes, mas também a acalorados diálogos — apesar da parcimônia de palavras, convém admitir — onde nem sempre imperava a convergência de opiniões. E a cada vez que se deparava com trechos em que confluíam praticamente todas as marcações, reclinava-se de puro prazer a observálos, adiando ao máximo a virada de página. Nesses momentos via-os a todos, juntos, conversando animados — amigos, quase íntimos. E dali por diante, na velha escrivaninha, beirando rotina sempre que possível, o precioso livro — âncora e leme, porto e vela. Conhecer melhor os integrantes da Confraria, aprimorar a percepção a respeito de cada um aconteceu naturalmente, e foi se desenvolvendo a partir da observação da natureza dos 19


textos selecionados — dos dados concretos aos delírios, da biografia à análise das telas; e também da forma como se dava — de discretas palavras a parágrafos inteiros. Não ignorava, ainda, a forma como acontecia — cuidadosa ou derramandose pela página, nem a frequência da comunicação. Entretanto, a letra de cada um, nas frases curtas cada vez mais incluídas, talvez fosse o ponto principal. (A de seu Francisco, por exemplo, lembrava a elaborada caligrafia de um escrivão.) E há menos de um ano, aos poucos, começara a se dar conta de que se apaixonava por Artur. Apaixonava-se pela segurança com que ele se comunicava com todos — tão diferentes entre si! Apaixonava-se pelo que vislumbrava atráves das poucas letras manuscritas que irrompiam em meio às de fôrma: a paixão sempre à espreita para tomar da intelectualidade as rédeas nas falas. E comovia-se ante o insucesso dele, que não conseguia camuflar a afetividade neste constante confronto com o racional. Chamava-lhe a atenção a forma como Artur se protegia, fosse consciente ou não. Ah... e ela? Nunca saíra dos pontilhados, e às vezes se perguntava se saberiam que era uma mulher. Bem, Ivan era outro que não saíra do lápis cera. Precisava? Já quanto à escolha dos nomes, essa percepção analítica nem sempre influiu. Dava-se intuitivamente. E isso ficara muito claro a partir da entrada de Elisa. Ah, sim, a Confraria crescera. Há algum tempo, surpreendera-se com um pontilhado de lápis de cor vermelho, finamente apontado, seguindo paralela e rigorosamente os riscos retos de caneta vermelha de Artur. Acompanhando, apenas. E (claro!) muda, sem palavra; nenhum sinal de pontuação a insinuar sentimentos. Propositalmente instigante, sem dúvida. 20


O sexto sentido acendeu um sinal de alerta. Mulher; era mulher. E sedutora, ardilosa: a escolha do pontilhado, deixando transparecer que percebera aquele como o traço feminino no grupo; o fato de ter se comunicado apenas com Artur; a escolha da cor, decerto confirmando mais que afinidades. Vermelho não era a cor da paixão? Outra mulher... e, além de sedutora e ardilosa, deixando evidente que elegera alguém. Nem precisaria ter se dado ao luxo de alinhar seu traço unicamente ao dele! O nome “Elisa” veio espontâneo. Romântico, beethoveniano. Isso nem a intuição revelava pistas. Pois para ela, que passeava entre pautas e telas, ouvir Pour Élise a remetia à suavidade dos impressionistas, não a Van Gogh. E muito menos àquela Elisa, que teimava em se insinuar com aquele nome. Seria um réquiem? Para si própria, talvez; com certeza não para a intrusa Elisa. E a partir da entrada dessa nova personagem, logo acrescida de frases curtas numa letra de arabescos discretos mas sensuais, foi acompanhando toda uma trama de sedução desenrolando-se paralela à comunhão do grupo. Sofria, impotente, recriminando-se por se ter mantido tão à sombra, tão impessoal na sua feminilidade. O que esperara, meses a fio? Algum sinal de Artur que a encorajasse a se revelar e se aproximar de outro modo? Às vezes se perguntava se os demais percebiam o que se passava (vez em quando sonhava desabafar com seu Francisco ou seu Aurélio), e por vezes acreditou que sabiam. Seu Aurélio, sem dúvida! Quando Elisa se mostrava mais sinuosa, ele não resistia e largava lá suas exclamações, interrogações e reticências que, no mínimo, davam um ar intrigante ao 21


conjunto, quebrando de certa forma a intimidade dos quase cochichos amorosos a que estavam se reduzindo os contatos dela com Artur. * “A próxima.” No balcão de empréstimo, finalmente, chegou a vez de ser atendida, interrompendo seus pensamentos. “Vou levar. Um mês.”, falou à recepcionista, num tom que — sempre — pretendia casual. A funcionária pegou o livro, carimbou a data de entrega no cartão que o acompanhava e colocou-o no escaninho de devoluções na prateleira às suas costas; pegou a seguir o cartão da leitora, carimbou igualmente a data de entrega, e colocou-o no pequeno envelope colado à parte interna da contracapa. Tudo do jeito que pretendia: casual. Funcionária e leitora quase não levantaram os olhos dos apetrechos em questão. Tudo se dera como gestos automáticos de ações cotidianamente vividas. A moça se foi e a funcionária permitiu-se um longo suspiro. Vai ser um baque para ela, pensou. Caminhou devagar pela Rio Branco como se em direção à Presidente Vargas. Retrocedeu, contudo, dirigindo-se à Cinelândia. Queria dar uma olhada na Feira do Livro. A volta pelas bancas era sua volta ao mundo. Ali comprara a Antologia do Conto Húngaro, o Novos Autores Chineses e até uma inusitada pequena antologia de contistas árabes. Mas as esporádicas aquisições estavam sempre aquém dos títulos anotados numa página especial da agenda, a página de sonhos a realizar. Viu a coleção de Lobato e sorriu. Uma certa nostalgia da infância cheia de belas certezas. 22


Deu-se conta do calor doce da biografia de Van Gogh junto ao peito quase que ao mesmo tempo em que vislumbrou um banco vazio. A sombra animou-a a uma breve pausa. Sentou-se e folheou, desta vez com calma, o que já se tornara um documento da Confraria. Foi acompanhando as folhas, quase que uma a uma, e já ia fechar o livro quando uma marcação diferente chamou-lhe a atenção. Números, e não letras. Em vermelho. Ao lado de paralelas vermelhas, na margem. Fechou-o bruscamente, negando-se a admitir o que a intuição revelara. Ficou alguns instantes de olhos fechados, o corpo reduzindo-se aos dedos em torno do livro. Parecia sozinha na praça. Parecia sozinha num único banco no centro da Cinelândia, sem pombos sem nada. Aos poucos foi abrindo os olhos, o livro, a página. Lá estavam: uma data e um horário, mais nada. Que dia é hoje? Ah, daqui a dez dias. Na Biblioteca, talvez. Em frente a determinada estante, talvez. Num justo momento, duas pessoas vão buscar A Vida Trágica de Van Gogh. E, quando os braços se estenderem para a prateleira, homem e mulher vão se reconhecer. “Vim devolver. Eu me precipitei. Tenho que estudar. Vestibular, sabe?” Anos de assiduidade, e nunca falara tanto. Mas seus olhos desmentiam a ação aparentemente corriqueira. Agora, nem a gola branca conseguia iluminar a delicadeza dos traços. “Entendo.” A funcionária queria fazer alguma coisa, queria abraçá-la, dizer que as dores da paixão passam. Cicatrizam. Olhou em direção ao senhor de terno cinza. O jeito carinhoso de avô podia fazer toda a diferença naquele momento. Acolher sua dor, ao menos, que é tudo o que se pode fazer 23


em situações assim. Era um deles, e ela nem sabia. Voltou a atenção para a moça, ao perceber que lhe falava. “... ainda agora mesmo. Por isso, se a senhora permite, eu mesma posso recolocá-lo de volta na estante.” Isso era absolutamente contra o regulamento, para evitar colocações equivocadas. Antes que se desse conta, porém, surpreendeu-se concordando: “Sim, sim.” Alguma coisa na expressão da jovem trouxe-lhe à lembrança outro leitor, o do lápis cera amarelo. Não aparecia há muito tempo; talvez tivesse se internado de novo. Uma ausência maior, dessa vez. O que a preocupava. Mas a vida à frente continuaria a se desdobrar em histórias, sabia. Tantos leitores se ligavam àquele livro! E Van Gogh era mesmo singular, muito mais que um gênio europeu do século passado. Hoje, nos trópicos, transcendia sua arte, entranhando-se em vidas anônimas ou volteando-as como um mistral, atordoando-as até que exalassem seus próprios perfumes. O prazer que a imagem dos perfumes exalados lhe provocou fez com que despertasse. Não podia ficar divagando desse jeito, fugindo, justo quando a moça... E buscou-a com o olhar. Em passos lentos, seguia pelo caminho mais longo em direção à estante certa. Livro abraçado ao peito, ela e ele um corpo só, deteve-se quieta no único recanto da Biblioteca naturalmente iluminado. Uma fita de luz entrava pela janela, e o brilho da poeira que dançava parecia querer absorvê-los para uma outra dimensão. Com suavidade, colocou o exemplar na prateleira. Em sua mente, o caminho do livro feito pela primeira vez às 24


avessas, com suas próprias mãos, era como um filme que se rebobinasse, desfazendo ações, apagando histórias. Depois, caminhou da luz para a sombra. Despedia-se para sempre da sua Confraria Van Gogh.

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“Em vez de sucumbir de saudades, eu disse:

‘O país ou a pátria estão em todos os lugares`.

Em vez de me deixar levar pelo desespero,

tomei o partido da melancolia ativa

enquanto tinha a potência de atividade; ou, em outras palavras,

preferi a melancolia que espera e

que aspira e que busca,

àquela que embota e, estagnada, desespera.” Van Gogh


a tia-avó A vida inteira procurara seguir dentro da lei, nos menores detalhes. E tem mais: não apenas a lei dos homens, mas principalmente as leis de Deus, bem claras através dos Dez Mandamentos. E devido a essa dignidade, vinha com um problema de consciência há algum tempo; na verdade, desde a internação do sobrinho-neto. Ele fora levado mais uma vez, e, como em todas as outras, sua irmã caíra num mutismo que a tornava inútil em casa, nem mais participando das tarefas domésticas. E pouco adiantava lembrar-lhe que doença era um desígnio de Deus, que Ele poderia curá-lo, e que nem ela, que era apenas a avó, nem a mãe, que já descansava na santa paz do Senhor, podiam se considerar culpadas de nada. E as conversas sempre terminavam da mesma forma: “Eu, tia-avó desse cristão, acompanhei tudo desde que ele nasceu e posso dizer que vocês duas não tiveram culpa de nada.” A palavra culpa definia o eixo de sua relação com o mundo, e suas considerações, fossem de que natureza fossem, desembocavam de modo invariável em se ser ou não culpado. Mal o pobre-cristão era internado, ela arregaçava as mangas e se punha a faxinar o quarto. Arrumava armários, vasculhava gavetas (sabe-se lá em busca de quê. “É meu dever”, justificava-se), sacudia cobertas colocando-as ao sol, passava pano com creolina no chão até as tábuas clarearem. Trabalho maior, a parede em frente à cama. O pobre-cristão colara páginas e páginas de revistas de alto a baixo, e não admitia que se tocasse nelas. A poeira era percebida mal se assomasse à porta. Suas narinas castigadas pela rinite alérgica (não diagnosticada, evi27


dentemente), então, se revoltavam. Antes de amarrar o lenço úmido no rosto para transformar aquele num local habitável e respirável, ela às vezes se punha a olhar aqueles desenhos. Ah, não eram desenhos, sabia, o pobre-cristão lhe dissera uma vez; eram quadros. Ela achava aquilo bonito por demais, mesmo que o moço pintor não se desse conta do tanto de tinta que usava no pincel. Mas artista é assim mesmo. Seu cunhado não havia lhe contado que tinha um surdo que fazia músicas? Pois é, vai ver esse dos quadros não enxergava direito. Ou então podia ser rico, e não se importar com o desperdício. Mas que era bonito era. Às vezes até se imaginava passeando por aqueles lugares, e achava que talvez por isso apreciasse mais paisagens do que retratos. Ela podia ir por dentro daquele colorido até lugares que nem sabia que existiam. Passeava, passeava. Sentia que o pobre-cristão se mostrava satisfeito com seu apreciar, e quando ela percebia isso gostava mais dele ainda, como se ambos ali calados olhando os quadros ficassem mais iguais, mais iguais do que eram pelo fato de serem do mesmo sangue. Por isso não tinha coragem de lhe dizer que o pincel com tanta tinta assim fazia as pessoas não parecerem tão bem pintadas quanto as paisagens. Nas paisagens aquele tanto ficava mais disfarçado. (Paisagem fora outra palavra que aprendera com o pobrecristão. Antes falava lugares.) E tarefas cumpridas, alternava-se entre quarto e quintal, apreciando paredes empapeladas agora brilhantes e cobertores ondulando ao sol — “hora de lamber a cria”, dizia para si mesma, com satisfação. Tentava incluir a irmã num prazer tão singelamente usufruível, mas aquela se mantinha inalcançável.

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Foi na última arrumação que encontrou o livro. Era de pouca leitura, o suficiente contudo para perceber que não pertencia ao sobrinho-neto, devido ao cartão da Biblioteca com foto, grudado à contracapa. Ficara longo tempo olhando aquelas feições, bonitas que nem as do avô. Ali ainda não estava doente. E estudava. Como sua irmã tinha orgulho desse neto! Além de tudo, nele continuavam vivos o marido e a filha. Por isso sucumbira quando aquela doença aparecera: ela lhe tomava mais que o neto. Ela fazia com que perdesse marido e filha pela segunda vez. Pela segunda vez, todos os dias. Talvez lidar com a morte dele tivesse sido menos doloroso para a irmã, pensava às vezes corajosamente. Bem, mas ela, que era só tia-avó do pobre-cristão, encontrara o tal livro. E não largou mais de pensar naquilo. Sabia que tinha que ser devolvido, pois se não o fizesse a polícia da Biblioteca poderia bater na porta deles e isso ia ser uma vergonha. Elas, que sempre foram pobres mas honestas, é que iam ser consideradas culpadas, pois o pobre-cristão tinha se perdido da ideia e a família é quem paga pelos doentes. Mostrou o tal livro para o vizinho. (Estudante, devia saber lhe dizer o que fazer.) Em princípio tudo bem: olhando o endereço, viu que daria para ele mesmo devolver o livro até antes da data marcada. Não, senhora, tenho certeza de que nem precisa dizer que o rapaz está internado; o que eles querem nesses casos é que o livro seja devolvido no prazo. Esquisito, não é, meu filho? Pois ainda acho que se eles ficam sabendo disso, eles vão até saber que se não fosse esse problema o livro já tinha sido devolvido há muito mais tempo. Que o menino é cuidadoso quando está bom 29


da cabeça. Você tem certeza de que não é preciso mesmo contar a eles? Porque se eles colocam isso na ficha dele — porque deve ter uma ficha, você não acha? hoje em dia as pessoas dizem que tem ficha da gente em todo lugar — quer dizer, se ficar escrito isso lá, acho que vai ser melhor pra ele depois, eles ficam com a certeza de que é de uma família temente das leis. Não, não era preciso, o rapaz lhe reassegurava, num tom quase carinhoso, enquanto começava a folhear o livro. De repente sua expressão mudou. Espanto, excitação. O que foi? O que não foi? Pois ela não tinha visto? E lhe mostrou: tudo riscado, pintado; a lápis, canetas... Ela se assustou. Estava todo estragado, meu Deus! Mas, entusiasmado, o rapaz folheava e falava, falava e folheava, e ela simplesmente não entendia o significado de reação tão estapafúrdia. Então o moço lhe explicou que as pessoas não estragaram nada não, o que acontecera é que alguns anotaram o que tinham gostado muito, e por isso a gente via trechos em preto, verde, azul, amarelo, vermelho... mais amarelo... Ela sobressaltou-se, ao lembrar do tanto de lápis amarelos espalhado em tudo quanto era gaveta do sobrinho. A vista chegou a escurecer. Apoiou-se no braço do rapaz, que ainda folheava o livro. Respirou fundo, olhos fechados por instantes, e pôs-se depois a espiar com mais atenção ainda. Não, não podia entender outra coisa além do que os olhos viam. Levou a palma da mão à boca, no gesto inconsciente de travar alguma fala comprometedora. Se o moço estudante não achava que aquele livro estava todo estragado, era porque ele também devia ser igual ao seu pobre-cristão! No dia seguinte lá se foi ele com o livro. E à noite lhe trouxe o cartão do sobrinho-neto de volta e mostrou o carimbo de 30


devolução. Tudo bem? Tudo. Não brigaram? Claro que não! Eles nem olharam! Aí começara seu martírio. Se nem olharam... Vai ver que depois que fecham a tal Biblioteca fica algum polícia lá olhando tudo, pois esses lugares devem ter muitos estudantes e hoje em dia onde tem estudante tem polícia. A gente não pode ficar falando isso, mas sabe que é assim. E ficou com aquilo tudo semeando a ideia pelo resto do dia. À noite, na cadeira de balanço rangedora, terço na mão, procurou analisar os fatos à luz dos conhecimentos que tinha. Pela lei de Deus, buscava os 10 Mandamentos e não sabia como encaixar uma questão como aquela. O Sétimo Mandamento (parece que era esse mesmo) falava em não roubar. Bem, o pobre-cristão não roubara. Mas será que um livro estragado não era quase a mesma coisa que um livro roubado? Pois se o livro deixava de existir direito, era como se tivesse deixado de existir. De verdade mesmo, ele não tinha estragado tudo. Talvez só nos pedaços amarelos. E se parecia que eram muitos pedaços era porque o raio daquela cor era escandalosa por demais, assim do jeito de quem quer se mostrar. Isso até doutor juiz podia ver; Deus, então, nem se fala. Tem outra coisa: se juntasse os estragados dos outros vai ver que dava muito mais do que os amarelos. E Deus, como é justo, deve prestar atenção nisso também. Pelos Dez Mandamentos o menino só tinha pecado nesse. Puxou pela memória, buscando lembrar em ordem os outros nove. Daí surgiu a dúvida. Pensando assim que estragar pode ser parelha com roubar, um outro mandamento um pouco parecido podia ser “não cobiçar a mulher do próximo”. 31



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