Contos
© 2014 by Pablo de Avicena 1ª edição março 2014 Direitos desta edição reservados à semente editorial ltda. Av. José Maria Gonçalves, 38 – Patrimônio da Penha 29590-000 Divino de São Lourenço/ES Tel.: (28) 999.99.82.89 Rua Soriano de Souza, 55 casa 1 – Tijuca 20511-180 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2578.44.84 (21) 982.07.85.35 contato@sementeeditorial.com.br www.sementeeditorial.com.br Produção Editorial: Estúdio Tangerina Preparação de Originais: Mirian Cavalcanti Revisão: Mirian Cavalcanti Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Lara Kouzmin-Korovaeff Ilustração da Capa: Fran Junqueira Editora Responsável: Lara Kouzmin-Korovaeff e Constantino Kouzmin Korovaeff A968c Avicena, Pablo de Contos mínimos / Pablo de Avicena; ilustração de Fran Junqueira. Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2014. 136 p. : il. ; 21 cm ISBN 978-85-63546-23-4 1. Contos brasileiros. I. Junqueira, Fran. II. Título. CDD: 869.3
À memória de Odette, minha mãe, que me ensinou a leitura.
Segundo Ignácio de Loyola Brandão, em entrevista recente, livros de contos estão ficando mais raros no mercado, salientando que nele próprio o escritor de contos cedeu espaço ao cronista. Há exceções, contudo. Este Contos Mínimos é uma delas. Pablo de Avicena, embora sempre se tenha destacado em redação quando aluno do Colégio Pedro II, voltou-se profissionalmente para a química e aprofundou-se na fascinante “alquimia do vidro”. Reconciliou-se com seu talento original de contador de histórias após ter realizado — no final do último milênio e já depois dos 50 anos de idade — a portentosa peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela, percorrendo 820km em pouco menos de 40 dias e muita introspeção, contemplação, emoção e aprendizado, sem falar dos múltiplos encontros com pessoas inesquecíveis.
Em 1999 Pablo publicou R uta Jacobea — O Caminho de Santiago de Compostela, onde relata em detalhes a sua transcendental experiência ao longo dos campos da Espanha. Agora oferece-nos este delicioso Contos Mínimos, uma coletânea de vinte pérolas geradas por sua imaginação de contista. Nos contos de Pablo, o que chama a atenção de imediato são os personagens e cenas inusitadas entrevistos no cotidiano do país — em especial do Rio de Janeiro — nas últimas décadas. Trazidos por meio de um fraseado propositalmente simples, que realça as tiradas poéticas, ou de humor e ironia, personagens e cenas vão se apresentando e garantindo espaços nas lembranças literárias de cada um de nós. Nesse estilo e temática que certamente despertam reações semelhantes às despertadas por Orígenes Lessa, as histórias de Pablo de Avicena vão nos envolvendo e intrigando, diante da grata experiência de revermos nosso próprio cotidiano a partir dos olhos dos personagens. “... não se dispôs a caminhar e pegou um ônibus. Ao entrar no veículo, observou que todos os assentos estavam ocupados, e que era o único passageiro de pé, dando-se conta de que vivia uma experiência nova, desagradável. Todos acomodados de forma, a bem dizer, confortável, e ele em pé, exposto, diferente, fragilizado, inferiorizado, observado, único. Mas, é uma situação momentânea — pensou — logo no próximo ponto alguém sai
e me cede o lugar, ou alguém entra e me faz companhia. Mas nada aconteceu, e por quatro pontos sentiu a solidão de ser o único passageiro em pé.” E quando escapa ao cotidiano é para nos presentear, entre outras histórias, com o irretocável “Fora do Tabuleiro”, merecedor de constar das melhores antologias desse país. Um primor.
Enfim, como se por sobre um mosaico rico e colorido, a visão proporcionada pela leitura de Contos Mínimos é a de um passeio em que o real e o surreal, a modernidade e o anacrônico, o animado e o inanimado andam de mãos dadas, restabelecendo nossa fé no surpreendente, para além de todas as tecnologias e de todo o avanço de nosso campo de conhecimento.
Semente Editorial Verão/2014
T
udo começou no domingo de carnaval de 1950, ano que seria marcado pela inauguração do estádio do Maracanã e a derrota do Brasil na Copa do Mundo de Futebol. O bloco de carnaval se aproximava, e um pivete de seis anos, magrinho, esperto e com um sorriso banguela, aguardava com ansiedade na beira da calçada. Menino pobre, filho de lavadeira e garrafeiro — antiga profissão de negociante de garrafas de porta em porta, que puxava um carrinho de mão conhecido como “burro-sem-rabo” — ele morava com os pais, a avó e um irmão bem mais velho, em casa de cômodos na Rua dos Arcos, no bairro da Lapa, cidade do Rio de Janeiro. Ainda não estava na escola, e passava o dia brincando na rua, contando histórias mirabolantes para os vizinhos,
e desenhando colorido, com os lápis e caderno que ganhara do Papai Noel no último Natal. Era muito bom desenhista. O bloco chegou com uma animação além das expectativas do menino, que ficou encantado e se deixou levar pelo carnaval, não percebendo que ultrapassava os limites de seu pequeno mundo. O grupo de carnavalescos cruzou a Lapa e já ia pela Rua do Catete em direção ao Largo do Machado, quando começou a escurecer, e o guri deu-se conta de que estava perdido. Entrou em pânico, não contendo o choro. Mas logo parou um carro, e o motorista, um médico que morava por perto, veio em seu socorro. Como o menino estava muito nervoso e não sabia dizer onde morava, o médico decidiu levá-lo para casa, onde o esperavam esposa e filha. Foi então que Lauro conheceu Laurinha. Já mais calmo, o menino lembrou-se de um detalhe que parecia importante para a localização de seu endereço, e pediu lápis e papel. Laurinha estava justamente brincando de desenhar — ela era linda! — e sorriu para ele, um sorriso também banguela, que tocou o seu pequeno coração com um sentimento emocionante, desconhecido, fazendo-o até esquecer-se momentaneamente de que estava perdido de casa. Mas, de posse do lápis e papel, desenhou de forma caprichada os Arcos da Lapa, que foram facilmente identificados pelo médico. Já era noite quando foi levá-lo para casa; mas, pouco an-
tes de chegar a sua rua, o menino pediu que parasse o carro e, num gesto repentino, abriu a porta e saiu correndo sem dar chance ao médico de se despedir e de conhecer a casa de cômodos. Ele tinha vergonha de morar onde morava. Em casa levou uma surra de correia, para não mais se deixar levar pelo canto do carnaval. Doeu, mas estava contente pela aventura, por ter conhecido Laurinha. E, recordando sua imagem, fez um desenho colorido da menina em um jardim, em que as pétalas das flores tinham o formato de coração. Ainda desenharia a menina muitas outras vezes. Sozinha e, depois, de mãos dadas com ele. Com o passar dos dias ele foi ficando jururu, parecia doentinho, e a avó atestou: o menino estava de espinhela caída; precisava ser rezado. Ela mesma o rezou, mas não houve melhora. Então as vizinhas, a avó e a mãe concordaram que era um caso de quebranto, e precisava de reza mais forte. E lá foi a avó com o menino para a casa de uma velha rezadeira na Rua dos Inválidos. Mesmo depois de preces e passes com ervas específicas e fedorentas, o menino não se aprumou, e o episódio terminou finalmente com uma consulta médica no posto de Saúde Pública da Rua do Rezende. E que surpresa! Foram atendidos pelo pai de Laurinha. O médico então se lembrou que ainda tinha consigo um desenho feito por sua filha, que era para ter sido entregue ao menino no dia em que se conheceram — mas não houvera tempo, o menino fugira.
Laurinha desenhara uma casa cor-de-rosa com um número na porta, e a rua era bem retinha, com árvores muito altas de ambos os lados. Troncos lisos, sem galhos. O desenho era muito bonito, a menina desenhava tão bem quanto o menino. Aquele desenho tecera um fio — embora tênue — entre a menina e ele, que se sentiu feliz e sarou.
Já estava na época de entrar para a escola, e, graças à conversa de sua avó com o diretor e a ajuda financeira do irmão, foi estudar em colégio particular, de elite, no próprio bairro da Lapa. No primeiro dia de aula, outra grande surpresa: o encontro com Laurinha, também matriculada naquele colégio. A troca de desenhos tornou-se frequente, bem como as brincadeiras no recreio. O menino não se continha de felicidade e decidiu que um dia ia se casar com a menina. Mas não queria ser garrafeiro, puxar aquele burro-sem-rabo pela rua, que nem seu pai. Por isso, logo no primeiro mês, destacou-se, tendo o seu nome ocupado o primeiro lugar no quadro de honra do colégio.
Mas sua felicidade durou pouco: sua querida avó faleceu subitamente, e quase ao mesmo tempo Laurinha saiu do
colégio. O pai fora chefiar um posto de saúde no bairro de Copacabana, levando a filha para estudar próximo ao seu trabalho. O vínculo rompera-se, e Lauro perdera-se definitivamente de Laurinha. Naqueles dias, as pessoas choravam pelas ruas, a cidade estava em comoção, e ele pensou que choravam pela morte de sua avó, que choravam pela sua infelicidade, mas na verdade o choro era pela derrota do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol, em jogo decisivo contra a seleção do Uruguai, em pleno Maracanã. Mas a vida seguiu, e com o amparo do irmão e maior aproximação de seus pais, o menino foi crescendo, foi deixando de ser menino. Sem, no entanto, esquecer Laurinha. No último ano do ginásio, revendo com saudades o primeiro desenho que ela fizera, e com o discernimento que não tinha aos seis anos de idade, a maior de todas as surpresas revelou-se. Aquela rua retinha, com palmeiras em ambos os lados, era única nas redondezas, e talvez até na cidade. Descobrira o endereço da menina.
Vestido com a camisa da seleção brasileira, o garotinho sai correndo do quarto para a sala, onde familiares e amigos comemoram o pentacampeonato mundial de futebol que o Brasil acabava de conquistar. O alegre garotinho banguela dirige-se ao avô e lhe entrega um desenho muito bem feito, de uma casa verde e amarela, com um número na porta, e tendo
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