Revista Competência 2011/1

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Revista da Educação Superior do Senac-RS

V.3 - N.2 - Dezembro 2010 - ISSN 1984-2880

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial Porto Alegre Rio Grande do Sul


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Competência: Revista da Educação Superior do Senac-RS/ Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial do Rio Grande do Sul. - Vol. 1, n. 1 (dez. 2008) - Porto Alegre: Pallotti, 2008- . v. ; 21 x 28 cm. Semestral (julho e dezembro) ISSN 1984-2880 Nota: A edição de julho de 2009 é v.2, n.1 1.Tecnologia da Informação 2. Gestão 3. Negócio 4. Moda 5. Turismo 6. Meio Ambiente 7. Ensino Superior 8. Educação I. Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial do Rio Grande do Sul II. Título CDU 001 Bibliotecária responsável: Marisa Fernanda Miguellis CRB 10/1241


Revista da Educação Superior do Senac-RS

V.3 - N.2 - Dezembro 2010 - ISSN 1984-2880 Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial do Rio Grande do Sul Presidente do Sistema Fecomércio e Presidente do Conselho Regional do Senac: Zildo De Marchi Diretor Regional: José Paulo da Rosa Gerente da Educação Superior: Fabiane Franciscone Diretores das Faculdades Senac-RS: - Carla Fichtner Patines - Nara Beatriz Lopes Pires da Luz - Roberto Sarquis Berte Conselho Editorial: - Acacia Zeneida Kuenzer – UFPR - Avelino Francisco Zorzo – PUCRS - Claisy Maria Marinho-Araújo – UNB - Daniel Gomes Mesquita – UFU - Dieter Rugard Siedenberg – UNISC - Edegar Tomazzoni – UCS - Fábio Gandour – IBM - Fernando Vargas – Cinterfor (Colômbia) - Francisco Aparecido Cordão – CNE, Conselho Nacional de Educação - Jacques Alkalai Wainberg – PUCRS - Jorge Antonio Menna Duarte – UniCEUB - Jose Clovis de Azevedo – Centro Universitário Metodista, do IPA - Leda Lísia Franciosi Portal – PUCRS - Léa Viveiros de Castro – Departamento Nacional Senac - Marta Luz Sisson de Castro – PUCRS - Margarida Maria Krohling Kunsch – USP - Milton Lafourcade Asmus – FURG

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- Profª. Me. Marion Velasco Rolim (Univ. Anhembi Morumbi-SP) - Profª. Drª. Mérli Leal Silva (Inst. de Desenv. Social Brava Gente) - Prof. Dr. Pedro Luiz Juchem (UFRGS) - Profª. Renata Pinhão (UNESP) - Profª. Drª. Susana Gastal (UCS) - Profª. Drª. Suzana Matte Silveira Martins (PUCRS) Bibliotecária Responsável: - Marisa Miguellis CRB 10/1241 Projeto Gráfico - Jaire Passos e Paula Jardim Diagramação - Ana Paula Moura de Miranda Revisão em português: - Maria Araújo Reginatto

Editora Científica: - Anaí Zubik Camargo de Souza

Revisão em inglês: - Julio Carlos Morandi

Pareceristas convidados para a edição: - Prof. Dr. Alexandre Luzzi Las Casas (PUC-SP) - Prof. Me. Alexandre Damas (Ftec-POA) - Profª. Drª. Bettina Steren dos Santos (PUCRS) - Profª. Drª. Cristina Schmidt Pereira da Silva (Univ. Mogi das Cruzes) - Prof. Dr. Edegar Tomazzoni (UCS) - Prof. Dr. Fábio Gonçalves Teixeira (UFRGS) - Profª. Me. Fabíola Wust Zibetti (USP) - Profª. Drª. Gisela Grangeiro da Silva Castro (ESPM-SP) - Prof. Me. Júlio Carlos Morandi (SENAC-RS) - Profª. Me. Kelly Lissandra Bruch (ULBRA) - Profª. Drª. Márcia Paul Waquil (UFRGS) - Profª. Drª. Maria Helena Menna Barreto Abrahão (PUCRS)

Revisão em espanhol: - Gladys Miriam Fama Tiragem: 1.000 exemplares Impressão: Gráfica Editora Pallotti Periodicidade: Semestral (julho e dezembro) Os artigos para publicação devem ser encaminhados para: Competência – Revista da Educação Superior do Senac-RS - Av. Alberto Bins, 665/7º andar – Centro – Porto Alegre – 90030-142 Fone: 51-3284-1925 E-mail: competencia@senacrs.com. br Os conteúdos dos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. Indexada em ICAP (Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos).



Su m á r i o Editorial......................................................................................................................................................................9 Histórias de Vida de Educadores: uma contribuição para a formação de professores reflexivos.............11 Maria Helena Menna Barreto Abrahão Para Formar Jardineiros para cuidar do Planeta.................................................................................................31 Attico Chassot Formação de Professores em Cursos de Pós-Graduação em Nível de Especialização: buscando repensar a atividade de aprender na prática docente.........................................................................................................47 Lílian Rocha Gomes Tavares Relendo Paulo Freire na EJA: mediações cotidianas.........................................................................................61 Adriana R. Sanceverino Losso Uma Análise dos Currículos de Administração em EAD no Brasil: currículo instrucional e humanístico. ...................................................................................................................................................................................81 Sandro Coelho Moreira Pinto, Luana Rebeca Matos Lins Andrade A Língua Inglesa como um Produto Consumível: a prática do convencimento no imaginário capitalista.. ...................................................................................................................................................................................97 Thiago Ingrassia Pereira, Giovani Forgiarini Aiub Aproveitamento da Cultura Popular como Referência de Planejamento em Moda, Consumo e Comunicação........................................................................................................................................................................113 Nicele de David Branda, Lucia Isaia O Design de Joias e a Qualidade: diferenciais competitivos para as organizações joalheiras...................129 Maria da Graça Portela Lisbôa, Leoni Pentiado Godoy, Taiane Rodrigues Elesbão Reconfiguração de Ambientes Virtualizados....................................................................................................143 Avelino Francisco Zorzo, Ana T. Winck, Elder Macedo Rodrigues, Leandro Teodoro Costa, Duncan Dubugrás Ruiz A Carreira Profissional e a Motivação do Trabalhador do Comércio de Porto Alegre.............................159 Fabio Irigoite, Lisiane Boscardin Wolff, Luiz Touguinha Thomé



Edi t o r i a l

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ompetência, Revista da Educação Superior do Senac-RS, tem divulgado em suas quatro edições conteúdo técnico-científico de qualida-

de acadêmica e, ao mesmo tempo, de utilidade ao campo profissional. A Interdisciplinaridade permeia a publicação desde o volume de lançamento, em 2008. No final do ano seguinte, tínhamos mais duas edições, com textos que trouxeram à discussão assuntos como as novas tecnologias na área da educação, gestão de projetos, preservação ambiental, educação informal, educação tecnicista versus educação humana, ciência de serviços no Brasil, a estratégia na organização educacional e muitos outros temas de igual importância. Em 2010, com apenas um ano de publicação, iniciamos com a classificação de nosso periódico no Qualis da Capes, motivo de grande satisfação para a educação superior do Senac-RS. Competência foi reconhecida pelo Qualis, o referencial da produção intelectual apresentada pelos programas de pós-graduação do país, com o estrato C nas áreas Interdisciplinar; Administração, Ciências Contábeis e Turismo. Nesta quinta edição, divulgamos a indexação da Revista no ICAP - Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos, trabalho realizado pela Biblioteca Senac-RS, além dos artigos que abordam temas atuais, de comprovada maturidade acadêmica e, sem dúvida, sempre com foco na visão humanística do mundo do trabalho e da educação.

Me. Anaí Zubik Camargo de Souza Editora Científica

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Histórias de Vida de Educadores: uma contribuição para a formação de professores reflexivos LIFE STORIES OF EDUCATORS: A CONTRIBUTION TO THE EDUCATION OF REFLECTIVE TEACHERS Maria Helena Menna Barreto Abrahão *

Resumo Este artigo aborda a formação de professores, em especial a que ocorre na universidade. Ao lado de teorias sobre professores reflexivos, adotamos a tese de que pesquisas feitas na universidade com professores que atuam em escolas, a exemplo da pesquisa-ação que se refere ao erro construtivo, mencionada no presente artigo, é um modo de trabalho que a universidade pode utilizar na formação continuada do professor. Do mesmo modo, as pesquisas com Histórias de Vida de educadores são uma rica fonte para a formação em serviço, bem como para a formação inicial de professores e, por extensão, para educadores em geral e, muito especialmente, para pesquisadores em História da Educação Brasileira e em Formação de Professores. Ambas as pesquisas são uma maneira de contribuir para a educação de um professor reflexivo. Um exemplo da última é relatado neste artigo, em que se pode visualizar os objetivos da pesquisa, o método de investigação com Histórias de Vida e os achados a que chegamos. Palavras-chave: Educação Brasileira. Pesquisa na Universidade. Formação de Professores. Histórias de Vida.

Abstract This article focuses on teacher education, mostly the one that takes place at university. Besides the theories on reflexive teachers we adopted the thesis that researches done by universities on teachers who act in schools -for example, the action-research about constructive error mentioned in this article - are ways for the university to be able to work on continued teacher education. In the same way, researches on Life Stories of educators are a rich source for in-service as well as for initial teacher formation, and, furthermore, for educators in general, and mainly for researchers on the History of Brazilian Education as well as on Teacher Education. competência

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* Professora titular e Pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Docente na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, Pesquisadora 1 CNPq, Doutora em Ciências Humanas – Educação. maria-helena@uol. com.br


Both these researches are a way to contribute with reflexive teacher education. An example of the latter is talked about in this article and makes it possible to see the objectives, the research methodology using Life Stories and the gathered results. Keywords: Brazilian Education. Research at the University. Teacher Education. Life Stories.

1. Introdução Como compreender, na plenitude, as características, a natureza, as finalidades, as teorias, as práticas da educação, do ensino e da formação de educadores exigidas na atualidade, visando à construção histórica de uma sociedade humanizada, justa, inclusiva, bem diferente daquela em que hoje vivemos, altamente excludente? Sabemos que a educação é instância da superestrutura da sociedade condicionada pela instância da infraestrutura, mas sabemos, igualmente, que a educação traz em si – pela própria natureza que a define – os elementos e as potencialidades para, especialmente ela, exercer influência na instância condicionante, proporcionando possibilidades de superação de estruturas desumanas, mesmo em sociedades complexas e em tempos de acirrada crise. Vivenciamos momentos de crise: crise de valores, crise de identidade, crise na educação e na sociedade como um todo; na ciência, vivenciamos crise de paradigmas. No entanto, a realidade social não é só caracterizada por condicionantes negativos. Ela também se caracteriza por possibilidades impulsionadas por sonhos e esperanças; por utopias que podem e devem tornar-se topias, isto é, lugar de efetiva realização, dentro de possibilidades concretas que cabe aos cidadãos, em geral, e aos educadores, em particular, saber produzir. Vale, por isso, apostar no “inédito viável” de que nos fala Paulo Freire (1996). Isto, porque a realidade social não é monolítica, pronta e acabada; ao contrário, ela é histórica e socialmente produzida. Cabe a nós, educadores, sabermos como construir elementos de ação teórico-práticos a serviço da produção de uma sociedade consentânea com nossos ideais de justiça social e de solidariedade humana. Sem querer caracterizar educadores e educação como os únicos ou como os principais responsáveis pela construção histórica da sociedade que almejamos, até porque reconhecemos os condicionantes estruturais da macroestrutura, é que centramos na educação e no educador o vetor de busca de superação 12_ competência


de estruturas sociais arcaicas e desumanizantes em estruturas que permitam a universalização da fruição dos bens culturais, científicos, tecnológicos e materiais que as sociedades modernas já produziram e aqueles que venham a produzir. É com esse entendimento que trazemos alguns elementos teóricos para que possamos trabalhar a ideia da implicação da educação e de educadores na atualidade e, por consequência, a formação de educadores na universidade, tanto no que tange à formação inicial, como no que concerne à formação continuada, em serviço. Esses elementos são construídos junto a autores que tratam da educação no âmbito das relações sociais e da prática social em geral, mediadas pela cultura, como um processo que se desenvolve por toda a vida da pessoa. Nesse sentido, cabe lembrar teses que pensam o professor como um educador social (QUINTANA CABAÑAS, 1994). Educador social na perspectiva deste autor tem uma concepção muito mais abrangente do que simplesmente uma pedagogia para as classes populares. Trata-se de uma pedagogia que proporcione alternativas de formação, tanto na dimensão pessoal como comunitária que seja impulsionadora de transformações sociais, sempre que necessárias. Também queremos nos referir ao profissional da educação, em particular, como um pesquisador que exerça sua prática pedagógica com base na constante reflexão sobre ela, mediante diálogo com teorias que auxiliem no seu esclarecimento e, sempre que necessário, no seu redirecionamento, bem como se preocupe em manter-se atualizado no assunto específico da disciplina que ministra, seu relacionamento com as outras disciplinas e com as estruturas e burocracias das instituições de ensino e com a dinâmica da sociedade em que vivemos.

2. O professor como educador social e profissional reflexivotransformativo O que estamos advogando é a importância do docente não só para difundir conhecimentos de cunho científico, tecnológico e cultural, estatuídos na bagagem universal, mas para entendê-los com uma visão historicizada, (res)significando-os e mediando a construção de saberes própria de cada aluno, em prol de uma formação autônoma de estudantes e de educadores, com reflexão crítica dos contextos em que estão inseridos e desenvolvimento de capacidades de ações transformadoras desses contextos sempre que esses estejam divorciados de compreensões, relações e ações não emancipatórias. Este será, na realidade, o professor como pesquisador, como profiscompetência

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sional reflexivo de que nos falam Quintana Cabañas (1988), Schön (1992), Zeichner (1993), Zeichner e Liston (1993), Giroux (1990), Carr e Kemmis (1988), Carr (1991), entre outros autores. Essas características, que adotamos como dimensões iniciais para a discussão sobre a formação de professores, estarão presentes em quem tem a responsabilidade social de educar em uma sociedade repleta de antinomias, na qual as tecnologias de ponta e a acumulação de bens culturais, sociais e econômicos concorrem para que significativa parcela da população não possa usufruir desses bens. Como reflexo dessa sociedade antinômica, Quintana Cabañas (1988, p. 219-253), certamente sem esgotar as possibilidades, aponta-nos uma série de antinomias na educação: o determinismo da herança cultural e as influências do meio ambiente; a possibilidade e a dificuldade de educar; a tarefa de informar e a de formar; a hetero e a autoeducação; a atitude receptora e a atividade criadora; a característica mediadora entre os impulsos espontâneos e a vida reflexiva; uma ação determinante e uma ação de simples apoio; o propósito manipulador e a ação libertadora; a tecnologia e a arte; o esforço provocado e o interesse espontâneo; a racionalidade e a afetividade; a disciplina repressora e a permissividade na liberação de impulsos; a obediência e a liberdade; a salvaguarda do objetivo e do subjetivo e do absoluto e do relativo; uma construção mecânica e uma atividade espiritual; a atividade intelectual e a atividade amorosa; os interesses do indivíduo e os da sociedade; a função adaptadora e o desenvolvimento da originalidade pessoal; o futuro e o presente do educando; o dever e o direito. Quintana Cabañas (1988) posiciona-se levando em conta os dualismos apresentados por uma teoria que denomina de “concepção antinômica da educação”, a qual, segundo ele, difere da teoria dialética da educação por despir-se de posições extremadas, apresentando-se, portanto, mais moderada porque mais realista. É uma teoria que produz, na sua concepção, uma “pedagogia feita de equilíbrio, prudência, compreensão e flexibilidade” (p. 255). Dessa maneira, o autor propõe chegar a uma pedagogia ponderada e omnicompreensiva, mas não desprovida de radicalidade, pois “atenta a todas as possibilidades da pessoa e também a todas as suas limitações; uma pedagogia eivada de latente insatisfação, mas reconfortada com a segurança de evitar erros fundamentais” (p. 256). Não obstante Quintana Cabañas já fosse conhecido como pedagogo social quando publicou, em 1988, o livro Teoria de la educación: concepción antinómica de la educación, talvez essa concepção de educação tenha conduzido o autor a um 14_ competência


entendimento de educação social mais abrangente do que aquele que a concebia especialmente como processo de educação não-formal ou de educação para a classe popular, geralmente em situações cujas necessidades a educação formal não pôde ou não soube atender. Esse entendimento mais abrangente ele explicita, em 1994, na obra Educación social, na qual, sem desprezar o entendimento tradicional, amplia-o, abarcando o papel do professor como o de educador social também no sentido de ser ele um cidadão preocupado e ocupado em desenvolver no aluno conhecimentos e capacidades para o exercício de uma prática social consciente, cidadã. Esse entendimento nos conduz à necessidade de promovermos instituições de ensino que não podem mais ser pensadas como lugares neutros onde só se passam informações, mas, sim, como locus democráticos, onde o fazer docente seja da responsabilidade de educadores e estes possam exercer sua prática no sentido de potenciar o educando e a sociedade. Para tanto, exige-se um professor reflexivo de sua própria prática e do sentido que essa prática adquire no conjunto do social. O pensar a prática tem, na visão de Schön (1992), as seguintes dimensões: conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação, reflexão-sobre-a-ação e reflexão-sobre-areflexão-na-ação. Essas dimensões não são independentes, mas complementares. O conhecimento-na-ação reflete-se no saber fazer, com o conhecimento do motivo por que se faz, constituindo-se em um conhecimento dinâmico, podendo resultar em reformulação da própria ação; a reflexão-na-ação traduz-se no pensamento prático simultâneo com a ação concreta, estabelecendo com

essa ação uma relação

dialógica, podendo, igualmente, resultar na reformulação imediata da ação; a reflexãosobre-a-ação é o processo que permite analisar o conhecimento na ação e a reflexão na ação inseridos no contexto da própria ação; a reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação é o processo de observação e descrição realizado após a ação ter sido executada. Trata-se de meta-análise a respeito da ação concreta, pela aplicação de elementos conceptuais, visando de forma intencional à compreensão e reconstrução da prática concreta. Essa perspectiva de ensino como prática reflexiva leva Schön (1992, p. 45) a desenvolver o conceito de “praticum”, derivando-o de pressupostos diferentes dos existentes na literatura. Esses pressupostos referem-se à perspectiva do ensino como prática reflexiva, a ação docente competente como um “saber de referência do ensino e da formação de professores”. A formação profissional de professores tem, pois, para esse autor, a perspectiva centrada na investigação a partir das próprias práticas. Zeichner e Liston (1993) ampliam o conceito de praticum esposado por competência

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Schön, por acreditarem-no muito restrito, uma vez que Schön tem como foco o indivíduo – o professor reflexivo – profissional que, como indivíduo, pode mudar sua prática em sala de aula face aos mecanismos e estágios de reflexão já expostos. Os dois autores, tendo em vista limitações institucionais e sociais da prática pedagógica transformativa, propõem a ampliação da concepção de Schön no sentido de incluir ações e deliberações cooperativas, “outorgando menor interesse às mudanças que os professores possam efetuar exclusivamente em sala de aula” (p. 103), pois acreditam que, para que se desenvolva nas escolas “uma prática reflexiva competente, há que se examinar, primeiro, e, por último, mudar as condições nas quais se desenvolve a escolarização” (p. 104). Com vistas a traduzir esse alargamento do entendimento de praticum, Zeichner e Liston (1993) propõem a ação reflexiva para além dos muros da escola, de forma a integrar os aspectos relacionados com a comunidade na formação multicultural do professor. Advogam que “o alargamento do praticum para além das fronteiras da escola é o aspecto fundamental da formação de professores” (p. 128). Para eles, é fundamental “sensibilizar os professores para valores, tipos de vida e culturas diferentes das suas e a desenvolver o seu respeito pela diversidade humana” (p. 129), visto que são candentes os problemas relacionados com raça, classe social, gênero. Na visão desses autores, os padrões vigentes das relações escola/comunidade devem ser alterados de modo a favorecer a construção de ambientes escolares mais democráticos, o que um praticum nos termos por eles propostos pode proporcionar. Essas reflexões introduzem a questão do professor como intelectual transformativo, já que a reflexão não tem um caráter contemplativo. No entanto, é Giroux (1990, em especial p. 171-178), fundamentado em Gramsci, que dedica estudos completos tratando dessa questão. Giroux ressalta que a categoria de intelectual “oferece uma base teórica para examinar o trabalho dos docentes como uma forma de tarefa intelectual por oposição a uma definição do mesmo em termos puramente instrumentais ou técnicos”, ao mesmo tempo em que encerra uma “forte crítica às ideologias tecnocráticas e instrumentais subjacentes a uma teoria educativa que separa a conceptualização, o planejamento e o desenho dos currículos dos processos de aplicação e de execução” (p. 176). Para Giroux, a questão do professor como intelectual está imbricada com a da escola como lugar econômico, social e cultural, além de espaço em que se verificam questões de poder e de controle. Giroux (p. 177) explicita o componente que julga central da categoria “intelectual transformativo”: o pedagógico sendo mais político e o político mais pedagógico, o que traz a perspectiva 16_ competência


de a reflexão e ação críticas se converterem “em parte de um projeto social fundamental para auxiliar os estudantes a desenvolver uma fé profunda e duradoura na luta para superar as injustiças econômicas, políticas e sociais e para humanizar-se a si próprios mais plenamente como parte dessa luta” (p. 178). Ademais, ainda segundo esse autor (p. 177), se lhes cabe educar os alunos para serem cidadãos críticos e ativos, os professores devem, eles próprios, converter-se em intelectuais transformativos. Esse entendimento é reinterpretado por Carr e Kemmis (1988) e Carr (1991), à luz da Teoria Crítica, com base, em especial, no pensamento de Habermas (1982; 1984). Para esses autores, a prática docente, além de ser reflexiva, há de ter natureza de reflexão crítica, isto é, deve possibilitar ao educador situar-se no contexto de sua prática pela problematização, de natureza sócio-histórica, não só da própria prática educativa reflexionada, mas, igualmente, de sua relação como produto/produtor inserido no âmbito das práticas educativas institucionalizadas, histórica e socialmente produzidas. A prática reflexionada com essa base teórica é que, na concepção desses autores, traz as potencialidades para relacionar a prática reflexiva com o compromisso crítico de analisar as condições sociais e históricas sob as quais se formaram nossos modos de entender e de valorizar a prática educativa, problematizando, assim, o caráter político da prática reflexiva centrada tão-somente na sala de aula e minorando a influência de caráter ideológico em que essa prática se gesta e se realiza. Na visão de Carr (1991) e de Carr e Kemmis (1988), a reflexão crítica é a que encerra maiores possibilidades de se conseguir um salto de qualidade entre a autonomia do docente em sala de aula e a emancipação do educador enquanto sujeito consciente da prática pedagógica e social. Dada a complexidade do pensamento e da ação pedagógica reflexivo-crítica com vistas à emancipação dos sujeitos, não se pode deixar de lembrar a responsabilidade e a função social da universidade nesse processo. Tanto no que respeita à formação inicial, como no que se refere à formação continuada do educador, há que se trabalhar na formulação e compreensão de categorias de análise na referida perspectiva, o que implica a adoção de um paradigma em ciência que rompa com racionalidades esclerosadas e alienantes. A esse novo paradigma Sousa Santos denomina de “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”, isto é, o conhecimento deve não apenas ser consubstanciado em “um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)” (SOUSA SANTOS, 2001, p. 37). competência

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A primeira, uma pesquisa-ação metodologicamente baseada em Carr e Kemmis (1988) e intitulada “Refletir e agir com professores: um estudo do erro construtivo numa perspectiva libertadora”, levou-nos a trabalhar com professores de escolas municipais, refletindo e teorizando sobre as práticas docentes, as intervenções dos professores em sala de aula a respeito dos erros cometidos pelos alunos, e sobre como transformar esses erros em positivas possibilidades de real aprendizagem. Buscamos, numa pesquisa com a escola, fugir de uma pesquisa sobre a escola apenas e exercer, conforme Carr e Kemmis, a “espiral autorreflexiva”, elemento constitutivo da pesquisa-ação, para os citados autores. Na segunda pesquisa, “Profissionalização docente e identidade – narrativas na primeira pessoa”, trabalhamos com a construção de Histórias de Vida de destacados educadores, pois acreditamos que elas contêm elementos muito significativos de valor formativo para os docentes que participam da pesquisa, ao proporcionarem aos pesquisadores e aos próprios destacados educadores a autorreflexão sobre sua formação, seu fazer docente, o valor social de sua ação, etc., além de trazerem aportes para a formação de novos educadores. As histórias de vida foram construídas com base em narrativas e documentos proporcionados tanto pelos próprios educadores, como por outras pessoas-fonte,

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Em duas pesquisas que realizamos com mestrandos, doutorandos e bolsistas de Iniciação Científica no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, uma sobre o erro construtivo na elaboração de conceitos e a outra referente à História de Vida de destacados educadores sul-rio-grandenses1, trabalhamos essas questões, não só em relação aos autores e dimensões anteriormente citados, mas também tendo presente Nóvoa (1995) e Freire (1979), em especial as reflexões do primeiro sobre a profissão de professor e as do segundo sobre a questão da conscientização. Para Freire, conscientização tem um sentido mais amplo do que o de apenas estar consciente da realidade opressora. Significa que, uma vez tendo-se apercebido da realidade opressora, o sujeito deve procurar meios possíveis para transformá-la (o “inédito viável” freireano, conforme já referido). Tanto na pesquisa sobre o erro construtivo na elaboração de conceitos, desenvolvida com professores de escola da rede municipal, como na pesquisa com os destacados educadores, pudemos observar características nos docentes que corroboram a ideia de que a universidade pode e deve representar um papel decisivo na formação regular e na formação continuada de educadores, inclusive despertando-os para o trabalhar a própria prática docente numa dimensão crítico-autorreflexiva. A primeira das pesquisas, apoiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs), nos fez perceber, como resultado desse trabalho conjunto universidade-escola, substantivas transformações na reflexão e na prática docente, e sua maior contribuição para o alargamento da discussão sobre essas práticas e, em especial, sobre o que representa o erro do aluno e a intervenção do professor em sala de aula. Seus resultados estão relatados em artigos e no livro que publicamos (cf. ABRAHÃO, 2000a; 2000b; 2001a). A segunda, intitulada “Identidade e Profissionalização Docente: narrativas na primeira pessoa” foi apoiada pelo CNPq e nos possibilitou trazer visibilidade à história pessoal e profissional de destacados educadores sul-rio-grandenses, mediante a construção de suas Histórias de Vida. Cada história é um elemento elucidador da história da educação e da docência no estado, formando seu conjunto um acervo para utilização de estudiosos e para referência na formação de educadores reflexivos (cf. ABRAHÃO, 2001b; 2001c; 2002a; 2002b). Por limitação de espaço, o presente artigo traz apenas alguns elementos observados na leitura transversal que fizemos das 12 histórias de vida dos destacados educadores sul-rio-grandenses, integrantes dessa segunda pesquisa2. 18_ competência


3. Formação, vida profissional/pessoal e construção identitária: dimensões das histórias de vida de destacados educadores sul-riograndenses Sem querermos ser saudosistas nem messiânicas a ponto de pensar que as Histórias de Vida de destacados educadores eram/são a salvação, partimos do pressuposto de que os profissionais por nós estudados apresentavam/apresentam características que hoje são apontadas mundialmente como atributos que devem estar presentes e ser cultivados no educador hodierno. Esses atributos referem-se ao professor como um in-

tendo como base teórico-metodológica, entre outros, os autores Nóvoa, Santa Marina e Marinas, e Pujadas. Acreditamos que pesquisas como essas são um exemplo de trabalho que a academia pode realizar, inclusive com a intenção de concorrer significativamente para a formação continuada de educadores, tanto os da escola como os da universidade.

telectual crítico-reflexivo-transformativo no exercício da função social de sua profissão. A distribuição geográfica das áreas de vivência e atuação dos 12 educadores estudados permitiu uma situação de equilíbrio, uma vez que 6 deles viveram/vivem, atuaram/atuam e marcaram/marcam gerações em diferentes localidades. Os demais viveram/vivem e atuaram/atuam na capital gaúcha, igualmente com forte significação. Na linha do tempo, os destacados educadores preenchem espaços que se estendem de nascimentos ocorridos de 1895 a 1955, com vida útil de 1902 a 1979, no que respeita à formação escolar (sem considerar a formação continuada), e de 1922 até os dias atuais, no que se refere à atuação profissional. Isso significa que esses educadores vivenciaram, no conjunto, diferenciadas e importantes fases da conjuntura sociopolítico-econômico-cultural brasileira e sul-riograndense, com profundos reflexos na sua educação e formação, assim como, dadas as características de intelectuais crítico-transformativos evidenciadas nas diferentes Histórias de Vida, condicionaram/condicionam, também eles, a instância superestrutural condicionante, em especial nas diferentes comunidades em que se formaram e atuaram. A História de Vida de cada um desses educadores é, pois, riquíssima do ponto de vista individual e social. Podemos perceber, por meio das narrativas e dos documentos consultados, que cada história se fez e refez fortemente influenciada e condicionada, no período correspondente, pelo quadro conjuntural do Rio Grande do Sul, numa dialética em que a história individual e a história social se imbricam e se implicam de tal modo que essa razão dialética pode permitir-nos “alcançar o universal e o geral (a sociedade) a partir do individual e do singular (o homem)” (FERRAROTTI, 1988, p. 30). Das Histórias de Vida construídas emergiram três dimensões comuns a tocompetência

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A pesquisa, que continua sendo longitudinalmente desenvolvida, conta atualmente com 36 Histórias de Vida já construídas e com mais 12 em construção até julho de 2011. Em todas, destacamos as dimensões encontradas nas 12 primeiras Histórias de Vida destacadas no presente artigo.

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A leitura transversal foi feita considerando elementos das próprias Histórias de Vida já construídas pelas pesquisadoras, bem como de todo o material disponível: narrativas dos destacados educadores e das pessoas-fonte, documentos, material impresso, fitas de vídeo, publicações.

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das elas: Formação, Vida Pessoal/Profissional, Construção de Identidade. Na dimensão Formação, encontramos: Origem Socioeconômico-Cultural, Influência Familiar, Influência Religiosa, Educação Formal, Educação Não-Formal; em Vida Pessoal/Profissional: Opção pela Profissão, Trajetória Pessoal e Profissional, Influências Sofridas e Exercidas, Produção, Distinções, Honrarias; em Construção de Identidade: Identidade Pessoal e Profissional, Vida Afetiva, Concepções Pedagógicas, Concepções Filosóficas. Essas dimensões entrelaçam-se com aquelas que havíamos pensado a priori, relativas ao professor como o educador social, o profissional crítico-reflexivo-transformativo. Em todas as dimensões fica clara a imbricação entre o eu pessoal e o eu social, permitindo “reconstruir os processos que fazem de um comportamento a síntese ativa de um sistema social a interpretar a objetividade de um fragmento da história social a partir da subjetividade não iludida de uma história individual” (FERRAROTTI, 1988, p. 30). 3.1 Formação O olhar transversal pelas Histórias de Vida3 permite desvelar elementos comuns. Quanto à Formação dos educadores estudados, quer a formal, quer a não-formal, quer a inicial, quer a continuada apresentam elementos eivados de influência do meio sociocultural, da família, da formação de cunho religioso, das ideias pedagógicas e filosóficas de cunho humanista, das influências auferidas nas relações interpessoais e da formação autônoma própria da cada um. Essas características de formação refletiram-se/refletem-se na prática profissional desses destacados educadores, os quais construíram/constroem uma trajetória de compromissada prática, tanto em sala de aula como em movimentos de transformação mais geral dessas práticas nas instituições de ensino, ou, ainda, no sistema educacional como um todo e/ou em instâncias representativas da categoria profissional. Reflete-se e é reflexo, igualmente, na (e da) construção identitária de cada educador. A pesquisa demonstra a inequívoca influência familiar exercida sobre esses educadores, em todos os aspectos da vida. Um olhar paralelo pelas subdimensões Origem Socioeconômico-Cultural e Influência Familiar evidencia que os pais desses educadores eram, de modo geral, integrantes da classe social média e, até mesmo, média alta e de famílias bem estruturadas, muitas delas oriundas de culturas euro20_ competência


peias, que proporcionavam aos filhos, mesmo quando residentes no interior, como na maioria dos casos, grande riqueza de estímulos intelectuais, culturais, artísticos e afetivos no seio da família, o que se refletia nos estudos que realizavam. Nas artes, a música parece ter sido a expressão mais cultuada, tanto é assim que duas das educadoras pesquisadas também cursaram Belas-Artes, além de graduações em ou-

Seis de nossos educadores realizaram a formação inicial em cidades do interior do estado, três fizeram-na em Porto Alegre e três fizeram a primeira formação no exterior, no país de origem.

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tras licenciaturas, uma delas, inclusive, vindo a atuar na área; dentre os educadores, dois participam de corais; a totalidade cultivava/cultiva o gosto artístico nas horas de lazer. Havia, também, um cultivo forte de valores religiosos no lar, além de formação acadêmica em escolas confessionais ou, mesmo, em seminários de formação sacerdotal ou marista. No caso de alguns desses educadores, estes valores são perpetuados. Isso fica evidente nos discursos de formatura quando paraninfaram turmas de formandos, em trabalhos publicados, nas narrativas que fizeram aos pesquisadores. Alguns dos educadores estudados sofreram as restrições de um sistema educacional de ensino ainda precário, principalmente no interior do estado4. Muitas vezes, os primeiros estudos eram ministrados no lar, pela mãe, que alfabetizava os filhos, os quais só mais tarde frequentavam uma escola formal. Alguns, mercê da situação econômica e/ou da localização geográfica do domicílio (interior do estado), necessitaram, em relação à formação inicial, cursar estudos seminarísticos, quando do sexo masculino, mesmo que sem a intenção de seguir a vida sacerdotal ou religiosa, pois nas décadas iniciais do século XX não havia interiorização do ensino ou esta era precária. No que tange à formação para a docência, utilizavam-se de estudos e exames de Suficiência (estes sem restrição de sexo), promovidos pela Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (Cades), para obter o registro do Ministério da Educação para lecionar. Esse registro era obtido para mais de uma disciplina, na maioria das vezes de áreas diferentes do saber, desde que efetuados os cursos e exames específicos para cada caso. Ou, então, eram pessoas cuja formação profissional inicial era realizada em cursos para outra profissão, sendo que passaram, por gosto ou por necessidade, a exercer docência em escolas, via de regra, situadas em cidades do interior do estado. Posteriormente, com alterações nas condições de oferta de cursos no ensino superior, em especial pela interiorização desse nível de ensino, essas pessoas cursaram Pedagogia ou outra licenciatura e, até mesmo, em alguns casos, a pós-graduação5. Relativamente às educadoras, a maioria fez a formação profissional inicial já em cursos específicos para o magistério, seja na modalidade de Estudos Complementares, o que à época correspondia ao Ensino Normal, seja na Escola Normal, posteriormente checompetência

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Percebe-se assim que a formação de nossos educadores, em especial a formação inicial para o magistério, fazia-se de modo tortuoso, principalmente para aquelas pessoas que viviam em cidades interioranas. Para os mais jovens, o ensino regular, das primeiras letras à universidade, foi o caminho seguido.

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Essa educadora disse que desejava ser pediatra, mas que à época era muito difícil que uma adolescente pudesse sair para estudar em outra cidade, onde fosse oferecido o curso desejado. O pai sonhava em ter uma filha professora e “casadoira”.

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gando a realizar estudos em curso superior na área, e, em alguns casos, a pós-graduação. Assim, não obstante os condicionantes descritos, observamos na trajetória escolar dos educadores estudados uma rica e diversificada educação formal, o mesmo se verificando em relação à educação continuada, enriquecida quer pelo hábito de leitura que desenvolveram, quer por viagens de estudo no exterior que realizaram, quer, ainda, pela continuação de estudos feitos no sistema de ensino regular após a graduação.

Narrativa de uma outra educadora.

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3.2 Vida pessoal/profissional No que diz respeito à dimensão Vida Pessoal/Profissional, destacamos alguns aspectos muito interessantes. Assim como a família influenciou sobremaneira na formação intelectual, cultural e religiosa dos destacados educadores, de modo geral também influenciou na escolha da profissão, em especial no caso das pessoas do sexo feminino. É emblemática a parte da narrativa em que uma destacada educadora aborda essa questão: “O sonho dos meus pais era ter uma filha professora, pois o sonho dos pais na época era que a filha fosse professora e que se casasse. Devia fazer o Curso Normal pois, se ela precisasse, trabalharia e, se não, seria uma boa mãe, já que os cursos na época, além de uma formação didático-pedagógica, também ensinavam a ser ótimas donas de casa” 6. Igualmente, em outras histórias de vida das destacadas educadoras, pode-se perceber que, no contexto, o ser professora, “sobretudo na sua dimensão de missão educativa, correspondia aos ideais no que respeita ao papel social pretendido para a mulher, predominantemente nas comunidades interioranas” 7, ideologia enraizada no seio das famílias, quer de modo explícito, quer implicitamente aceita. Mesmo aquelas que deixaram de explicitar especificamente a influência familiar e se reconheceram vocacionadas desde cedo para a profissão, certamente receberam direta ou subliminarmente essa influência, o que não elide a vocação para o magistério de todas as educadoras, comprovada pela paixão pela educação e a identidade profissional que fortemente evidenciaram. Já as pessoas do sexo masculino tiveram a opção profissional resolvida pela congregação religiosa que os formou – certamente não sem antes estarem seguras de seus talentos – ou, então, o fizeram por motivos circunstanciais. Dois deles, inclusive, abandonaram a profissão em que se haviam formado por não se sentirem à vontade nas respectivas carreiras. Um deles, bacharel em Direito, deixou a advocacia quando, segundo afirma, “tornou-se óbvia para mim a incompatibilida22_ competência


de entre o meu temperamento e o exercício da advocacia” – o que nos lembra justificativa semelhante em Paulo Freire. O outro, engenheiro, ao deixar essa profissão para abraçar a de professor, disse à esposa, de modo jocoso: “Abandonei a Engenharia porque não tenho coragem de passar sobre a única ponte que construí”. Da mesma forma que a formação inicial, foi tortuoso o início da trajetória pessoal/profissional dos destacados educadores, dadas as circunstâncias da época, já referidas, tais como a dificuldade de interiorização do ensino, em geral, e da formação de professores, em particular, o que exigia corpo docente formado nos grandes centros. As pessoas, de modo geral, iniciavam a trajetória profissional no interior, mesmo as que moravam na capital. Há histórias de educadores que, ao abraçarem a profissão, se sujeitavam a deslocar-se para a escola da maneira que fosse possível, até mesmo em “lombo de cavalo”, o que acontecia também com as mulheres. Muitas vezes, ficavam morando em casas de famílias que os abrigavam. Há uma educadora, por exemplo, que, ao iniciar a vida profissional no interior, em uma localidade de colonização alemã, ficou hospedada com uma família de imigrantes alemães. Ela ensinava aos membros da família e aos alunos Língua Portuguesa e eles lhe ensinavam Língua Alemã. Para vir visitar a família na capital, desenvolvia um trajeto que compreendia a necessidade de três modalidades de deslocamento: a cavalo, de barco e, finalmente, de trem. O retorno, obviamente, compreendia esses mesmos sistemas de transporte. Profissionalmente, esses educadores desempenharam/desempenham variadas atividades de magistério, em diferentes níveis de ensino, bem como no ensino nãoformal, e em funções correlatas – de administração, de atividade em associação de classe, de educação social, de movimentos culturais, de atividades comunitárias – de forma a mais competente. Também a variada gama de disciplinas que ministravam/ministram, com inegável competência, muitas delas de áreas diferenciadas do saber, demonstra a formação multicultural e polivalente, a cultura geral sólida, auferidas por esses educadores. Para citar um exemplo, há entre eles uma educadora que, além de atuar como alfabetizadora no interior do estado e de lecionar Educação Física na Grande Porto Alegre e Filosofia em Porto Alegre, em educandários tanto da rede particular como da rede estadual de ensino e na universidade, criou duas modelares escolas, foi secretária de Estado da Educação, presidente do Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cepers) e conselheira do Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul. A vida dos demais educadores apresenta semelhante diversidade funcional e riqueza de experiência, bem como comprometimento, paixão pela profissão e pela competência

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educação, o que se reflete nas demais vivências da vida pessoal. Isto é, também, decorrência do entrelaçamento coerente de valores e de ações que formam/formaram a totalidade subjetiva/objetiva desses educadores. Percebe-se claramente pelas narrativas o quanto aprenderam e o quanto influenciaram/influenciam as comunidades em que atuaram/atuam, não só diretamente aos seus alunos, mas indiretamente aos familiares dos alunos e integrantes de comunidades, em geral, pelos ensinamentos, pelas relações interpessoais de respeito e de troca, pela criação de escolas e de outras instituições, enfim, pelo mais substantivo envolvimento como pessoa, como mestre, como expressão de cidadania. São pessoas que souberam e sabem criar e estreitar laços indeléveis. Não raro, nunca se aposentaram, verdadeiramente. Após a aposentadoria formal, continuaram/continuam em plena atividade, quer desenvolvendo atividades comunitárias, quer prestando novo concurso para o magistério e iniciando “nova” carreira docente, quer, ainda, prestando serviço em outras instituições que não a de origem, conforme o caso e as circunstâncias específicas. Como referência máxima, trazemos o exemplo de um professor que completa em 2003, com orgulho e indubitável dedicação, cinquenta e sete anos de atividade docente e administrativa e oitenta e um anos de existência, continuando, além disso, como aluno, pois está realizando mais um curso na universidade, o de Língua Espanhola! Quanto às influências sofridas pelos educadores em nosso estudo, nossa intenção primeira era no sentido de descobrirmos influências teóricas por meio da explicitação de autores que os inspirassem. Apenas três declinaram o nome de autores: Paulo Freire, para uma, Piaget, para outro, e Dom Bosco, para o terceiro. Os demais declinaram nomes de antigos professores, de colegas, de amigos, de familiares – em especial, da mãe –, o que nos fez ver a importância das relações interpessoais para esses educadores. No entanto, se levarmos em conta o período de formação escolar da quase totalidade dos educadores, podemos inferir a influência de uma pedagogia tradicional, em alguns casos com elementos escolanovistas e uma filosofia humanística de educação, de homem e de sociedade, também presentes, de maneira geral, nas falas e concepções explicitadas pelos educadores. De outra parte, como profissionais reflexivos, conforme mostraram ser, essa influência na formação não impediu que, com base na reflexão crítica sobre a prática, pudessem eles propor e desenvolver inovações e ações educativas transformadoras, visando à criatividade, libertação e autonomia de seus educandos, personificando, em nosso entender, a conscientização no sentido freireano. A influência exercida por esses educadores se acha no âmbito de alunos, pais, 24_ competência


colegas, contemporâneos, como se pode perceber pelas narrativas das pessoas-fonte8. Quanto à produção acadêmica realizada pelos destacados educadores, tínhamos imaginado atentarmos apenas para escritos por eles publicados. Mas, ao estudarmos as Histórias de Vida, olhadas transversalmente, pudemos constatar que devido a fatores circunstanciais, alguns dos educadores publicaram livros, artigos em periódicos, hinos que compuseram. Outros não publicaram, mas deixaram-nos, além de

Na qualidade de pessoas-fonte, além do educador em pauta, ouvimos narrativas de familiares, amigos, colegas, o que nos permitiu triangular os dados e situações a que as narrativas se referiam.

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discursos, relatórios de pesquisa, polígrafos, entrevistas, como material escrito9, e um legado de escolas e instituições de pesquisa por eles criados, criação de corais, etc.. No que respeita a Distinções e Honrarias, não faltou reconhecimento aos destacados educadores. Todos eles, sem exceção, tiveram o mérito reconhecido pelas comunidades em que atuaram/atuam, pelas instituições que ajudaram a promover, pelos governantes e até por governos de outros países. Reconhecimento que foi expresso de diversas formas: destaque artístico, prêmios-destaque, professor-destaque, integrante de livro de memória de escola, patronímico de escola, presidente de honra de comissões, representações, patrono de auditório, patrono de sala de professores, professor do ano, paraninfos de formandos, títulos de professor emérito, mérito educacional, nome de rua, gaúcho honorário, cidadão de Porto Alegre, cidadã-destaque, prêmios, medalhas, medalha do Estado Espanhol, hóspede oficial de governos de outros países. 3.3 Construção identitária Valores como amizade e respeito pelos alunos, pelos colegas; afetividade, sinceridade, fraternidade; amor pela profissão, paixão pela educação, utopia, idealismo, crença na educação; responsabilidade, empenho, dedicação, busca de maior competência no fazer pedagógico; simbiose entre vida pessoal e vida profissional, coerência entre o eu pessoal e o eu profissional e uma gama de valores morais, muito claros e fortes, são os ingredientes construtores da Identidade dos destacados educadores. São pessoas que se mostraram/mostram empreendedoras – fundam escolas, cursos, corais e/ou atuam em associações de classe, por exemplo; valorizam a construção diuturna do conhecimento –, são eternos aprendentes; são pessoas integradas e integradoras que souberam, de alguma forma, superar a influência de uma formação mais calcada num fazer pedagógico tradicional. São profissionais que valorizam a liberdade de pensamento, de expressão e buscam o desencompetência

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Materiais a que tivemos acesso franqueado por familiares ou instituições.

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volvimento do pensamento crítico e do potencial transformativo dos alunos. São, antes de tudo, crítico-reflexivo-transformativos da própria prática e das concepções teóricas que a sustentam, o que nos remete ao referencial teórico já enunciado, especialmente representado por Freire, 1979; Quintana Cabanãs, 1988; Carr e Kemmis, 1988; Giroux, 1990; Schön, 1992; Liston e Zeichner, 1993; Freire, 1996. Esses elementos, certamente, são igualmente propulsores de superação de uma educação calcada em forte construção identitária forjada segundo ideais individuais e sociais relativamente ao papel social da mulher, o que pode explicar a determinação e o relevante papel de “mulheres muito à frente de seu tempo” realmente desempenhado por nossas educadoras, muito diferente daquele pretendido pela cultura machista que herdamos, em especial no primeiro quartel do século XX. De igual forma, não obstante a influência familiar e religiosa para a escolha da profissão ter exercido, conforme o caso, relevante papel, a identidade profissional apresenta uma construção desde a infância com representações em brincadeiras do tipo “brincando de ser professor” ou com a intuição de que “eu tinha, desde cedo, queda para ensinar”, “fui feito para ser professor”, “escolhi a profissão por afeto”, “por opção de vida”. Construção essa que se constituiu em rico processo de permanente, mas crescente e cada vez mais qualificada identificação (“educador eterno estudante”) a ponto de, em todos os casos, mostrarem-se imunes à desestabilização de que fala Huberman, citado anteriormente. Nossos destacados educadores, por entenderem a docência como “ato criativo que dá muito prazer”, por considerarem o magistério “um privilégio” e por acreditarem nos valores já mencionados, permaneceram/permanecem educadores, inclusive iniciando “nova” carreira docente, após aposentados. De outra parte, acreditamos que a vida afetiva dos destacados educadores tenha igualmente influenciado construções identitárias consistentes. O material das narrativas permite perceber que foram/são significativamente ricas em afetividade as relações de amizade e amorosidade com alunos, colegas, amigos e familiares. Muitos educadores participaram/participam de “grupos da saudade” com ex-colegas e ex-alunos. Mesmo um deles, cujo prazer nos relacionamentos mostrou-se “tardio”, soube deles auferir carinho e admiração, bem como catalisar atenções da família, dos amigos, dos colegas, dos alunos. Nossos educadores, na quase totalidade, são, como já explicitado, fruto de uma formação alicerçada numa concepção tradicional de educação. Alguns sofreram alguma influência do escolanovismo. Não obstante, os destacados educadores que 26_ competência


motivaram nosso estudo, mesmo que adotassem com seus alunos um modo de trabalho influenciado por aquele que tiveram, este não se mostrou eminentemente tradicional. Pelo contrário, desde os mais “clássicos” até os mais “inovadores”, os destacados educadores procuravam/procuram desenvolver metodologias que incluem: pressupostos teóricos embasadores de posturas e de ações interdisciplinares, mais direcionadas às intersubjetividades, à reflexão sobre a própria prática para reformulála quando necessário; adoção de estratégias combinadas com os alunos e de inovações como a utilização de videotecas educativas; abordagens positivas visando elevar a autoestima dos alunos; presença dos pais na escola, chegando até, por esses meios, de uma forma ou outra, ao estabelecimento de uma prática pedagógica dialógica. Em alguns casos, pudemos perceber, de parte dos destacados educadores, uma filosofia própria, distinta, ideais não identificados com algum veio teórico específico, mas uma identidade alicerçada no convívio com outros educadores que também os influenciaram grandemente pelo amor à profissão e possibilidades disponíveis num tempo de construção, bem como na interação com os alunos, o que lembra Lessard (1986) e Derouet (1988). Alguns educadores estudados, que permanecem entre nós, até mesmo citam com muito mais veemência e entusiasmo as influências que receberam/recebem de outros educadores e de alunos com os quais conviveram/convivem e que os auxiliaram/auxiliam na construção da própria identidade pessoal e profissional, do que propriamente a influência de teóricos estudados em livros. Esta pesquisa é instigante e desafiadora, pois nos faz refletir o quanto é significativo o “modelo vivo” na formação da identidade do educador, construindo-se esta muito mais mediada pela convivência com outras pessoas do que pela reflexão oriunda de leituras técnicas ou de ordem filosófica. Não que a reflexão com base teórica tenha deixado de imprimir sua marca. É interessante perceber, mercê da triangulação dos dados das narrativas e documentos, aspectos distintos de personalidade de cada educador. Ficam evidenciados conflitos existentes entre o ideal e o real, entre o desejo e o fato. Em meio a diversidades ideológicas, há um crescimento no pensamento dos educadores estudados. Como elemento recorrente, ficou ainda claramente evidenciado que, apesar da grande capacidade argumentativa e de comunicação, esses educadores nunca impunham/impõem o próprio ponto de vista, mas exerciam/exercem a docência demonstrando profundo respeito pelo aluno. Consubstanciam-se em sujeitos históricos que conseguiram/conseguem harmonizar as exigências de seu contexto com competência

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valores pessoais, revelando personalidade distinta, realizando no dia a dia seus ideais. A pesquisa evidenciou, igualmente, que os destacados educadores, ainda que tenham se formado e mesmo até atuado com base em outro paradigma, demonstravam/demonstram grande capacidade crítico-reflexiva na convivência com seus alunos e em sua atuação no contexto social mais abrangente. Os educadores estudados desenvolveram/desenvolvem acurada sensibilidade estética, senso ético, compromisso político-educacional e social, afetividade e liderança.

4. Conclusão Em síntese, o que as Histórias de Vida deixam transparecer é que os educadores selecionados, mesmo desconhecendo o referencial teórico aqui abordado, relativo ao professor como profissional reflexivo-transformativo, caracterizavam-se/caracterizam-se como intelectuais críticos, repensadores de sua própria prática, emoldurada por uma visão de mundo que se poderia dizer “revolucionária”, no sentido de pensar e criar condições para uma educação e um ensino humanizantes e transformadores. Diante de todas essas constatações, este artigo pretende ser um motivador/ desencadeador para a nossa própria reflexão a respeito de nossas práticas e de como nos tornarmos mais conscientes do valor da função social de nossa profissão e de, permanentemente, nos construirmos como profissionais realmente identificados, inspirados no rico material, tanto em posicionamentos de ordem conceitual, como na factual, que as Histórias de Vida dos destacados educadores sul-rio-grandenses nos permitiram auferir. Nesse sentido, nunca será demais sublinhar a importância e pertinência de se adotar, na formação de professores que se realiza na universidade, a participação em pesquisas autorreflexivas (como a que estudou o erro construtivo) e em pesquisas de caráter (auto)biográfico (como no caso das Histórias de Vida de destacados educadores) como elementos formativos do mais substantivo valor. No entanto, é a interpretação de cada leitor, ao extrapolar os constructos por nós elaborados, que permitirá a construção do real significado que as Histórias de Vida apresentadas terão em sua formação continuada de educador. Ao refletir sobre a vida pessoal, profissional e social de cada destacado educador, estará ele refletindo sobre sua própria circunstância vivencial. Essa foi a contribuição que um estudo acadêmico pretendeu dar para a formação de atuais e futuros professores. Sua análise está sendo feita em nossa universi28_ competência


dade, em diferentes turmas do curso de Pedagogia, bem como no mestrado e no doutorado, como mais um elemento formativo teórico-prático.

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PARA FORMAR JARDINEIROS PARA CUIDAR DO PLANETA PARA FORMAR JARDINEROS PARA CUIDAR DEL PLANETA Attico Chassot *

Meu conceito de jardim determina o que é praga ao redor de mim (Afonso Romano de Sant’Ana em Textamentos)

Resumo O Planeta está em crise. É preciso cuidá-lo, aceitemos ou não a hipótese Gaia de Lovelock. Parte-se da utopia que professores de qualquer nível de ensino e em qualquer área do conhecimento podem/devem em suas aulas serem formadores de jardineiros para cuidar do Planeta – uma metáfora para mulheres e homens envolvidos em alfabetização científica. Elencam-se algumas ações que podem ser facilitadoras para isto: preocupações com o plantio de eucaliptos, chamando de florestas a desertos verdes; os créditos de Carbono quais indulgências verdes; agricultores que preservam milho caipira; o uso de organismos geneticamente modificados; a atenção para a enganação de certos comerciais; a sedução pela neopatia; os cuidados com os desperdícios; e, por fim, a maior e a mais precisa ação ambiental: ações para reduzir a fome. Palavras-chave: Hipótese Gaia. Florestamento. Créditos de Carbono. Neopatia. OGM. Redução da Fome.

Resumen El Planeta está en crisis. Debemos cuidarlo, aceptemos o no la hipótesis Gaia de Lovelock. Se parte de la utopía que los profesores de cualquier nivel de educación y, en cualquier área del conocimiento, pueden / deben, en sus clases, ser formadores de jardineros para cuidar el Planeta - una metáfora para mujeres y hombres que participan en la alfabetización científica. Se enumeran algunos aspectos que pueden facilitar esto: la preocupación sobre las plantaciones de eucaliptos, llamando de florestas a los desiertos verdes; los Créditos de Carbono cuales indulgencias verdes; agricultores que conservan las semillas de maíz original; el uso de organismos genéticamente modificados; el llamado de atención sobre el engaño de ciertos comerciales; la competência

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* É graduado em Química. Mestre em Educação. Doutor em Ciências Humanas. Fez pós-doutorado em Sociologia da Educação. É professor e pesquisador do Centro Universitário Metodista do IPA nas áreas de alfabetização científica e História e Filosofia da Ciência. Escreve diariamente em mestrechassot. blogspot.com achassot@gmail. com


CHASSOT, Attico. Blogues como artefatos culturais pós-modernos para fazer alfabetização científica. Competência: Revista da Educação Superior do Senac-RS. p. 11-28. V. 2, N. 2, Julho de 2009, ISSN 1984-2880.

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seducción por la neopatía; el cuidado con los desperdicios y, finalmente, la acción más grande y más precisa para el medio ambiente: acciones para reducir el hambre. Palabras Claves: Hipotésis Gaia. Repoblación Florestal. Créditos de Carbono. Neopatia. Reducción del Hambre.

Estou diante de uma tela em branco por desvirginar. Tenho que começar um artigo. Mesmo que, a cada dia escreva um blogue e esteja muito envolvido na produção de mais um livro, não é trivial, num tempestuoso ritmo de fim de ano, produzir um novo artigo. Em outro texto1 nesta revista, trouxe alternativa para vencer a inércia da folha em branco: uma prática de nossas avós, que a biopirataria das multinacionais que dominam o mercado dos galináceos sequestrou de nossos cotidianos: usar um indez, que pode ser um caramujo ou uma pedra semelhante a um ovo para atrair galinhas em postura para que coloquem ovos em determinado ninho. Meu indez – um excerto de texto que escrevi antes – constitui-se em uma alternativa para dar a partida. Devo escrever algo sobre Educação Ambiental. Propus à Editoria de Competência fazer um texto um pouco intimista. Desejava trazer reflexões marcadas pela celebração de meu 50º aniversário de professor neste março de 2011. Busco conexões. Revisito outros textos (CHASSOT, 2001 e CHASSOT & RIBEIRO, 2008). Devo fazer tessituras. Contextualizar a escrita em meio aos meus fazeres. Meu dezembro de 2010 começou em Boa Vista. Era a 23ª de 25 viagens profissionais em 2010, em que realizei 72 falas, excluídas bancas e aulas. Pela primeira vez, eu, que habito a capital mais meridional do Brasil, estava naquela mais setentrional. Ali recém chegara na madrugada de uma segunda-feira, com 25 horas de atraso, e fui procurado por coordenadoras de outro evento. Na Universidade Federal de Roraima, no 1º Workshop de Ensino em Química de Roraima - WEQR minha agenda já comportava duas palestras, uma mesa-redonda e um minicurso de 4 x 2 horas. A Prefeitura de Boa Vista realizava a Semana Municipal de Educação para a Igualdade e os organizadores solicitaram que eu falasse sobre Educação Ambiental. Sugeri o título que é o mesmo deste texto: Para formar jardineiros para cuidar do Planeta. ‘Professor, aqui os projetos de horta na escola são incipientes, jardinagem nem pensar’. ‘Aguardem!’ Assim, na superquarta, que inaugurava o dezembro de 2010, cum32_ competência


pri uma agenda que começava com a visita ao 7º BIS – um batalhão de fronteira que reúne cerca de 1.200 militares do exército brasileiro, em Roraima. O local há 10 anos mantém um Minizoo formado por animais que sofreram maustratos pelas atividades ilegais e pelo tráfico de animais silvestres e hoje são cuidados pelo Batalhão e pela prefeitura de Boa Vista. Minha visita tinha como objetivo conhecer propostas de zooterapia para portadores de deficiências. A acolhida foi por uma tenente, médica-veterinária que nos conduziu ao encontro protocolar com o Tenente-Coronel, comandante do 7º BIS. Colhi mais um ineditismo deste périplo amazônico: ser recebido por um comandante militar. Visitamos então os animais. A proposta é poder entrar na maioria das gaiolas. Claro que não na gaiola das onças, por exemplo. Tenho fotos com araras, papagaios, tucanos, macacos e veado em meus ombros. Depois desta visita, fiz a solicitada palestra extra no evento da prefeitura. Falei para cerca de 200 professoras e professores que trabalham com turmas de 1ª a 4ª série do ensino fundamental. Na parte da tarde, ministrei as três últimas horas de aula, de um total de oito, no minicurso A História e Filosofia da Ciência facilitando ações transdisciplinares. Foram, então, discutidas duas revoluções muito polêmicas: darwiniana e a freudiana. As atividades da noite previam avaliar e classificar 3 dos 16 trabalhos apresentados no 1º WEQR. Surpreendi-me por quatro dos trabalhos terem entre as obras de referência o meu livro A Educação no ensino de Química (1990). Impressiona-me a ainda vitalidade daquele que foi, provavelmente, o primeiro livro da área de Educação Química publicado no Brasil. A Pró-Reitora de Graduação da UFRR pediu que eu apensasse em um surrado exemplar, que já foi matriz para incontáveis cópias, uma dedicatória. Fiz emocionado. Às 19h iniciava minha palestra para a qual havia proposto o título: As três perguntas capitais: O que ensinar em Química? Por quê? E como? Que é um dos capítulos da obra A Educação no ensino de Química. Parecia-me um título ‘velho’ que evocava dezenas de palestras que fiz no século passado. Propus a troca por A indisciplinaridade como alternativa para alfabetização científica. Por mais de uma hora falei a um atento auditório acerca das modificações na Escola e trouxe uma leitura ao avesso da disciplinarização. Fiz todo este relato de minha quarta-feira para chegar à atividade que se relaciona com este texto: a mesa-redonda “Como formar jardineiros para cuicompetência

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http://www. verdestrigos.org/ religare/2005/05/ milagres-acontecem-por-leonardo-boff.asp acessado em 10 de julho de 2005. Texto datado de 14 de maio de 2005.

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dar do Planeta”, com Prof. Dr. Antonio Alves de Melo Filho (UFRR), Profa. Dra. Ivanise Rizzatti (UERR) e eu. O singular é que os organizadores do 1º WEQR foram buscar no segundo capítulo do meu livro Sete escritos sobre Educação e Ciência (2008) inspiração para uma proposta de discussão. No livro, conto que numa destas surfadas quase aleatórias pela rede mundial de computadores encontrei um texto poético de Leonardo Boff. Trago, no livro, um breve excerto de Milagres acontecem2, com o qual o renomado teólogo não apenas inspirou o título de reflexões, mas terminou por definir o escopo daquele capítulo. Ele diz: Em 2003 visitei pela primeira vez a ilha de Fernando de Noronha, prova de que um pouco do paraíso terrenal ainda perdura. A população, em grande parte, cumpre o preceito divino dado a nossos pais originários, o de serem jardineiros e cuidadores daquela herança sagrada. Contrariei a sabedoria popular: falei do santo, mas não conto do milagre. (BOFF, 2005)

O Prof. Antonio e a Profa. Ivanise trouxeram excelentes considerações, fazendo Educação com posturas preocupadas com o ambiente natural. Eu trouxe excerto da fala que fizera pela manhã, apresentando uma contribuição para formar jardineiros: professoras e professores de Ciências que sejam cuidadores do Planeta. Tenho começado algumas de minhas palestras com aquela que foi a primeira foto do Planeta Terra. A legenda é do próprio autor, Yuri Gagarin: A terra é azul.

A terra é azul! (Gagarin, 1961).

E acrescento: a senha é 350. Alerto que o Planeta está com febre. Justifico que 350 ppm é o limite de concentração de carbono (sob forma de gás carbônico) na atmosfera que o mundo deve adotar para evitar uma catástrofe am34_ competência


biental, medido em partes por milhão (ppm). Na era pré-industrial, o valor atingia 278. Hoje, 381. Assim, se o Planeta está com febre, é preciso fazer algo. Podemos até não aceitar a hipótese Gaia3, mas vale a pena pensarmos no Planeta Terra como um ser vivo e cuidá-lo como cuidamos de peixes em um aquário ou como cuidamos de uma planta que está debilitada. Eis o alerta de Sir James Lovelock (*1911): “Temos que ter em mente o assustador ritmo da mudança e nos darmos conta de quão pouco tempo resta para agir, e então cada comunidade e nação deve achar o melhor uso dos recursos que possui para sustentar a civilização o máximo de tempo que puderem”. (www.ecolo.org/lovelock)

A título de blague, costumo mostrar esta peça fotográfica, como prova do aquecimento do Planeta.

Nós, professoras e professores da Educação Infantil à Pós-Graduação, de qualquer área do conhecimento, podemos/devemos nos engajar na formação de jardineiros que sejam cuidadores do Planeta? A preocupação com o nosso ecossistema não é apenas dos especialistas em Ciências Biológicas. Há vários temas que podem ser trazidos, não como ‘conteúdo’, mas como pano de fundo em diferentes discussões e áreas do conhecimento. A polêmica acerca do chamado reflorestamento com eucalipto se presta para excelentes análises. Plantar eucaliptos para quê? Para produzir celulose para os países centrais transformarem em papel, e para tal destroem o solo dos países periféricos4. Reflorestamento com eucaliptos sim/não? Este assunto está mais extensamente discutido no capítulo A vingança da tecnologia, do meu livro Sete escritos sobre Educação e Ciências. Trago uma vez mais algo polêmico ou pelo menos apresento competência

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3 A hipótese (de) Gaia, também denominada como hipótese biogeoquímica, é hipótese controversa em ecologia profunda que propõe que a biosfera e os componentes físicos da Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de modo a formar um complexo sistema interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas preferivelmente em homeostase. Originalmente proposta pelo investigador britânico James E. Lovelock como hipótese de resposta da Terra, ela foi renomeada, conforme sugestão de seu colega William Golding, como Hipótese de Gaia, em referência à Deusa grega suprema da Terra – Gaia. A hipótese é frequentemente descrita como a Terra como um único organismo vivo. Lovelock e outros pesquisadores que apoiam a ideia atualmente consideram-na como uma teoria científica, não apenas uma hipótese, uma vez que ela passou pelos testes de previsão. O cientista britânico, juntamente com a bióloga estadunidense Lynn Margulis analisaram pesquisas que comparavam a atmosfera da Terra com a de outros planetas, vindo a propor que é a vida da Terra que cria as condições para a sua própria sobrevivência e não o contrário, como as teorias tradicionais sugerem.Vista com descrédito pela comunidade científica internacional, a Teoria de Gaia encontra simpatizantes entre grupos ecológicos, místicos e alguns pesquisadores.


Com o fenômeno do aquecimento global e a crise climática no mundo, a hipótese tem ganhado credibilidade entre cientistas. Fonte: Wikipédia.

um tema usualmente sonegado em nossas salas de aula: A vingança da tecnologia. Agradeço a Edward Tenner (1997), autor de livro homônimo, que me emprestou o título e catalisou muitas das discussões que pretendi desencadear nesse capítulo. O assunto se interconecta bastante com o capítulo anterior, no qual me aventuro na propositura de um assunto que, a cada dia, tem um sabor de no-

Países centrais são aqueles que detêm maior poder político, econômico e militar. São eles que produzem novas tecnologias, exportam produtos culturais e bens de alto valor. Países periféricos são aqueles que dependem dos países centrais, têm economias pouco desenvolvidas, possuem pouca influência no cenário internacional.

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vidade: A educação nas fronteiras do humano e as relações curriculares. As ilustrações das cada vez mais imperceptíveis fronteiras entre o humano e o não-humano. Procuro mostrar como usamos, por exemplo, buscadores para localização de assuntos na rede mundial de pesquisa e fazemos destes os nossos auxiliares de pesquisa. Eles desempenham com mais facilidade e eficiência aquilo que antes era ocupação de humanos. Trago comentários acerca de ciborgues,­entendidos como qualquer forma de acoplamento entre ser humano e máquina, e alguns exemplos da robótica, partindo de uma discussão quase bizantina sobre batizar ou não robôs. Na tessitura deste texto para Competência, me aventuro trazer situa-

Enviado a Zero Hora em 15 de maio de 2007 e não considerado; publicado na Folha do Meio Ambiente, Brasília, p. 29, 01JUN2007.

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ções que são polêmicas nos dias atuais, fazendo minha adesão a posturas usualmente perdedoras. Sonho fazer uma concorrência com os assim chamados formadores de opinião, que exercem seus fazeres com recursos tão privilegiados. Ilustro aqui, com pequeno texto que tentei publicar5, sem sucesso, com justificadas razões – em jornais locais. Eucaliptos: Reflorestamento ou ‘florestamento’. E, então, o pequeno Davi se propôs a enfrentar o poderoso Golias usando uma funda contra um muito bem armado gigante. Muita celulose já foi gasta nos últimos meses num duelo desigual que se trava no Rio Grande do Sul. Reflorestar ou não com eucaliptos a metade sul do Estado, ou, numa outra leitura mais atenta do mesmo embate: capturar investimentos fabulosos para instalarmos papeleiras ou legar para os filhos de nossos filhos desertos. É salutar que Zero Hora tenha aberto espaço para os dois lados. Isso há de ajudar na tomada de decisões mais sábias. Não vou discutir aqui se é florestamento ou reflorestamento. Parece não ser nenhum dos dois. Deve ter havido, há milênios, uma ação antrópica que transformou florestas em nosso pampa. Então, seria um reflorestamento. Não, pois em florestas deve haver biodiversidade. Em uma monocultura, não há florestas. Mas isso é quase uma irrelevante questão semântica. Trago algo que aprendi muito recentemente com uma produtora de finas castas de uva. Isso aumenta em mim ser contrário a fazer de parte do Rio Grande um deserto verde. Uma das regiões atingida pela gana dos ‘produtores de celulose’ para os países centrais é aquela que mais recentemente

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os viticultores encontraram como muito apropriadas a uvas mais nobres, na bacia do Camaquã (Encruzilhada do Sul, Bagé, Caçapava...). Plantações de eucaliptos prejudicam as terras lindeiras usadas para viníferas em duas outras situações (que não aquelas já conhecidas de extrair água e nutrientes do solo). Uma, as imponentes árvores, que podem chegar a mais de 50 metros, produzem extensas regiões de sombra várias vezes maiores que a sua altura; sabemos o quanto a ‘incidência de sol’ é uma exigência necessária para a qualidade da uva. A outra, as partículas odoríficas emanadas quando da floração do eucalipto ‘contaminam’ a videira quando de sua florescência, transferindo assim para a uva e, desta para o vinho, sabores indesejados. São os mesmos aromas que fazem o mel originado de floradas de eucaliptos ser tão apreciado. É preciso recordar que existem substâncias com efeitos alelopáticos, ou seja, compostos orgânicos desprendidos por vegetais que prejudicam outras plantas e as impedem de estabelecer-se na vizinhança. Na maioria dos casos pode se tratar de eteno, de óleos etéreos, de derivados de fenóis ou da cumarina, de alcalóides, de glicosídeos, todos liberados em profusão no ar. São os aromas que apreciamos em um mato de eucalipto. As espécies de Eucalyptus são importantes fontes de emissão de substâncias alelopáticas. Não é sem razão que a legislação ambiental no mundo inteiro exige uma separação grande – uma área de “amortecimento” – entre as culturas de Eucalipto e a paisagem nativa ou outros tipos de cultivo. Vale estar atento a mais esse prejuízo que a daninha plantação de eucalipto pode trazer a terras hoje destinadas a cultivares mais nobres.

A propósito da vingança da tecnologia e de falsos reflorestamentos, onde matos de eucaliptos – nos quais não pousam um pássaro e em cujo solo não cresce mais nada – são transmutados, enganosamente, em florestas, vale cada vez mais estarmos mais atentos para não nos deixarmos seduzir pelas indulgências verdes. Acerca desta muito bem posta metáfora, permitome inserir um texto de Marcelo Leite, editor de Ciências da Folha de S. Paulo. Indulgências verdes Marcelo Leite Está fazendo falta um Lutero para sacudir a igrejinha verde de nossos tempos Em 1517, a Reforma foi deflagrada por causa do envio do frade dominicano Johann Tetzel de Roma à Alemanha para vender indulgências - uma espécie de letra de câmbio papal, com a qual se resgatavam na Casa do Tesouro do Mérito os pecados cometidos. Era pagar e ir para o céu. Martinho Lutero discordou do esquema, escreveu suas 95 teses e pregou-as na porta da igreja do Castelo de Wittenberg. O resto é história. A compra e venda de indulgências, no entanto, segue firme. Mudou

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de ramo, aplacando agora consciências recém-convertidas ao credo ambiental por meio da neutralização de carbono. Parece bem lucrativo, e por ora não se vislumbra o risco moral de um Lutero verde no horizonte. Os jornais diários são a oração matinal realista do homem moderno, já disse Hegel. Com efeito, foi nas páginas do “Los Angeles Times” que encontrei -após uma dica da página de internet ksjtracker.mit.edu- um desafio frontal ao papa da santimônia ecológica, Al Gore. No foco da denúncia, o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, já criticado aqui em 19 de novembro de 2006. Outros jornalistas tinham pegado no pé de Gore por causa da conta de eletricidade de sua casa, que monta a milhares de dólares. O gasto excessivo de energia estava em contradição com as mudanças de comportamento que ele prega, destinadas a reduzir emissões de carbono de cada indivíduo preocupado com o aquecimento global e o futuro do planeta. A própria produção do filme, porém, provocou o lançamento de muito gás do efeito estufa na atmosfera. A cada viagem de jato do pregador Gore, por exemplo, o querosene queimado nas turbinas lança no ar compostos -como o gás carbônico- que ajudam a engrossar a camada de gases que retêm calor na atmosfera, aquecendo-a. O fenômeno é análogo ao que esquenta o ar dentro de uma estufa de plantas (daí o nome “efeito estufa”). Como Gore e sua trupe são ecologicamente corretos, preocuparam-se em “neutralizar” tais emissões. Funciona assim: alguém contabiliza todas as atividades relacionadas com o filme que emitem gases-estufa, converte-as para toneladas equivalentes de gás carbônico e paga para algum corretor de títulos de carbono comprá-los no mercado livre. Se você está achando a coisa toda muito parecida com a compra e venda de indulgências, bem, é isso mesmo. Pelo menos é o que se depreende da reportagem de Alan Zarembo no “LA Times” de domingo passado: os 496 dólares e 96 centavos que os produtores de “Uma Verdade Inconveniente” pagaram para neutralizar as 41,4 toneladas de carbono geradas pelo filme não serviram para grande coisa. O intermediário, uma firma chamada Native Energy, empregou o dinheiro para comprar e repassar -com lucro provável de quase 10 dólares por tonelada- títulos de projetos que haviam economizado emissões de gases estufa na Pensilvânia (geração de eletricidade a partir de metano de esterco de vaca) e no Alasca (eletricidade produzida com turbinas de vento). O galho, descobriu o repórter Zarembo, é que ambos os projetos iriam ser feitos de qualquer jeito, com ou sem os títulos de carbono. O dono das vacas pretendia ganhar direito vendendo eletricidade extra para a rede e aceitou alegremente, sem negociar, a primeira oferta da Native Energy para comprar as reduções. Algo de similar aconteceu no Alasca. Johann Tetzel e Al Gore que nos perdoem, mas está fazendo falta um Lutero para sacudir a igrejinha verde de nossos tempos. Folha de S. Paulo. Mais Ciência. São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007.

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Assim como no começo dos tempos modernos se pecava e depois se comprava indulgência e se tinha o céu garantido, agora se queima combustível a rodo e então se calcula o gás carbônico gerado, compram-se créditos de carbono e se tem a consciência ecológica redimida. Por convenção, uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) corresponde a um crédito de carbono. Este crédito pode ser negociado no mercado internacional. A redução da emissão de outros gases, igualmente geradores do efeito estufa, também pode ser convertida em créditos de carbono, utilizando-se o conceito de Carbono Equivalente. Os créditos de carbono podem ser gerados, por exemplo, pelo plantio de árvores, mesmo que estas sejam eucaliptos. Mas o Planeta tem solução? Soluções existem, só que algumas organizações não querem “pagar o preço”. Uma possibilidade é pensarmos em um novo modelo de uma agricultura não predadora... Por exemplo, porque plantarmos tanta soja. Para quem a plantamos? Para os países centrais convertê-la em ração para engorda de animais. A propósito, uma alternativa poderia ser mudarmos o nosso sistema alimentar, por exemplo, diminuindo o consumo de carne vermelha. Algo muito significativo é ficarmos atentos à biopirataria. Temos que defender o que é de domínio da humanidade, por exemplo, galinhas, milho, papaia... Acerca deste muito significativo assunto, vou, de uma maneira muito panorâmica, narrar como Antônio Valmor de Campos (2007) mostrou o quanto agricultores que cultivam milho crioulo são pesquisadores e por esta razão detêm propriedade intelectual sobre as sementes às quais agregam valores. Ouso posicionar esta produção como uma significativa produção ligada à etnociência. A ‘Etnociência tem sido um paradigma de pensamento e de práticas científicas contrapostos àquele denominado de Ciência Moderna ou Ocidental: pensadores e pesquisadores costumam falar em paradigma clássico para se referirem aos saberes e às práticas da Ciência Ocidental e em paradigma antropológico para se referirem aos saberes e às práticas da Ciência Total – total no sentido de integral. Ou ainda, para diferenciar os dois universos contrapostos de pensamento, se fala em Paradigma da Ciência e Paradigma da Etnociência’ (CHASSOT, 2009)6.

Antônio é graduado em Biologia e em Direito. Em 14 de agosto de 2006, se fez mestre em Educação. Obteve seu título no mestrado Interinstitucional que a URI realizou com a UNISINOS. Desde 2010, é professor do Departamento de Educação, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus de Chapecó. A disserta-

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Texto, no prelo, que conjuga duas participações do autor no ‘França-Brasil- 2009: Colóquio Educação em Ciências e Matemáticas: Perspectivas Interdisciplinares, na UFPA, em Belém do Pará: 1) o segmento ‘Um caminho ao avesso: das disciplinas à indisciplina’ na mesa-redonda ‘Etnociência’ no dia 18 de junho; 2) a palestra de encerramento ‘Educação em Ciências e Matemáticas: Perspectivas Interdisciplinares’, em 20 de junho de 2009.

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ção “O reconhecimento de agricultores do município de Anchieta-SC, que cultivam sementes de milho crioulo, como pesquisadores e detentores de direito da propriedade intelectual sobre a melhoria dessas sementes” narra o trabalho de agricultores de Anchieta, SC e de municípios lindeiros, na seleção e na produção de sementes de milho crioulo. Esses resistem aos oligopólios das sementeiras que seduzem os agricultores para que adiram ao plantio de milho híbrido, cujas ‘sementes não são sementes’ pois nas safras seguintes são estéreis, obrigando-os a comprar, a cada plantação, novas sementes. Antônio acompanhou durante quase um ano o processo de seleção de mais de uma dezena de variedade de semente de milho e o cruzamento destas para a produção de novas variedades que apresentam características nutricionais e de resistência a pragas com vantagens, se comparadas, inclusive, com as alardeadas sementes híbridas. Uma característica fundamental destas sementes caipiras ou crioulas: por não serem patenteadas por transnacionais, elas continuam sendo patrimônio da humanidade, como foram/são há milênios. Lamentavelmente, aqui não se pode colocar o tempo verbal serão. Em uma analogia com os softwares livres na área de informática, na dissertação foi defendida a busca de alternativas para que esses agricultores tenham seu trabalho de pesquisa protegido pela outorga de propriedade intelectual sobre o mesmo, para a preservação contra a biopirataria. No trabalho trazido à defesa, foi destacado como homens e mulheres que resistem ao ato predador das apátridas empresas de sementes não estão apenas defendendo a biodiversidade de espécies, mas estão lutando pela não ruptura cultural. Esta consequência danosa determinada pelo oligopólio sementeiro tem custo ambiental difícil de mensurar. Também no caso das sementes, e vale também para as matrizes animais como as galinhas ou suínos, estamos cometendo um epistemicídio, pois se está terminando com toda uma cultura a respeito da preservação da biodiversidade. Não é sem razão que Anchieta, SC hoje é reconhecida como capital nacional do milho crioulo. O trabalho foi reconhecido pela banca que o avaliou como de profundo significado político e ético, destacando o consistente balizamento teórico-metodológico, recomendando a publicação do mesmo. Quando, enquanto orientador da dissertação, visitei com o Antônio os agricultores do Oeste Catarinense, apenas me convenci o quanto aqueles homens e mulheres que resistem à sedução do milho híbrido que encantou a nossos avós assim como as sereias seduziram a Ulisses e seus navegadores, como aprendemos na Odisséia. Elas e eles são realmente geneticistas que repetem com mi40_ competência


lho aquelas experiências que monge agostiniano Gregor Mendel fazia com ervilhas nos jardins do monastério onde vivia há 1,5 século (CHASSOT, 1994). Não sei quantos dos leitores deste texto conseguem imaginar o que significa resistir à promessa de lucros fáceis quando se passa a usar sementes produzidas por empresas biopiratas. Ainda um adendo ao relato daquela que é muito provavelmente entre as produções de mestres e doutores que orientei a mais significativa. A dissertação se fez livro7. O Antonio soube tornar um texto acadêmico, às vezes árido, em livro muito palatável: “Milho crioulo: sementes de vida. Pesquisa, melhoramento e propriedade intelectual”. Tive o privilégio de escrever a apresentação. Conclui assim o prefácio do livro: “Esse é um livro que vale a pena, pelo menos, pelo desafio que traz: oferecer opções para ações possíveis. Ouçamos o Antônio nos dizer. Ousa fazer diferente. Não deixa que apenas os poderosos digam qual o caminho. Então, uma muito boa leitura.” Se em nosso exercício de formar jardineiros a semente é algo mítico, lamentavelmente hoje há muitas sementes que não são sementes, pois são programadas para serem estéreis. Discuto isso em um dos capítulos de Educação conSciência (2003). E mais, uma mídia perversa faz enganação. Há razões para sermos surpreendidos pelo poder de uma empresa de capital apátrida como a Monsanto. Em comercial, ela alterou perversamente a sigla OGM: Organismos geneticamente modificado para Organismos geneticamente melhorado. Penso que há uma hipótese – atenção, estou falando em uma hipótese - que merece uma séria atenção: abandonarmos a seleção natural para enveredar para uma ‘seleção artificial’, o que poderia ser uma tragédia. Não há como não recordar o excelente Frankenstein, de Mary Shelley, no qual a criatura sobrepuja o criador. Aliás, numa leitura bíblica, o demônio não é uma criatura criada por Deus? Não vou assumir uma postura catastrofista, mas é possível pensar em uma hipótese de uma evolução artificial que poderia nos levar a gerar monstros. Acerca disso, é preciso nos conscientizarmos de que há uma brecha cada vez maior que se estabelece entre os que têm acesso ao conhecimento e os marginalizados. Hoje a diferença ente pobres e ricos – pessoas e países – não se refere apenas ao fato de que os pobres tenham menos bens, mas sim que estes têm menos acesso ao conhecimento. Temos de diminuir o número daqueles que ainda pertencem ao Movimento dos Sem @rroba (isto é, não têm um endereço eletrônico). Há uma cartilha produzida pelo Ministério da Agricultura sobre agroecologia que teve sua distribuição impedida. A cartilha “O Olho do Consumidor”, que competência

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A obra pode ser obtida diretamente com o autor: campos@uffs. edu.br

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Esta cartilha pode ser acessada em http://www. agricultura.gov.br/ images/MAPA/ arquivos_portal/ ACS/cartilha_ziraldo.pdf. Acessada em 12/dezembro/2010.

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conta com ilustrações de Ziraldo, foi lançada para divulgar a criação do “Selo do SISORG” (Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica) que pretende padronizar, identificar e valorizar produtos orgânicos, orientando o consumidor. O livreto, que teve tiragem de 620 mil cópias, foi objeto de uma liminar de mandado de segurança, fruto de ação movida pela transnacional Monsanto, que impediu sua distribuição. Setores do Ministério ligados ao agronegócio também não ficaram contentes com as informações contidas na cartilha. O arquivo foi inclusive retirado do sítio do Ministério. A Cartilha “O OLHO DO CONSUMIDOR”8 merece ser conhecida por aqueles que querem fazer Educação Ambiental. A proibição ocorreu por conta do item 5 da página 7, onde se lê: “O agricultor orgânico não cultiva transgênicos porque não quer colocar em risco a diversidade de variedades que existem na natureza. Transgênicos são plantas e animais onde o homem coloca genes tomados de outras espécies”. Em autêntica desobediência civil e resistência pacífica à medida de força, nos juntamos a todos aqueles que estão fazendo esta denúncia e divulgando eletronicamente a cartilha – como se faz neste artigo –. É significativo buscarmos mais informações. A base dos transgênicos Monsanto, resumidamente, é: ela coloca em suas plantas um gene de resistência a um pesticida chamado RoundUp, produzido pela própria Monsanto. O que significa que o agricultor tem que tratar suas terras com RoundUp, assim tudo que é natural morre e só o que é transgênico, com o gene de resistência a esse pesticida, continua crescendo. Os agricultores assinam um contrato em que não podem reutilizar as sementes, têm que comprá-las todos os anos para poder replantar. Além disso, o RoundUp é extremamente eficaz e seu efeito é duradouro. Ou seja, no ano seguinte, mesmo que o agricultor não queira mais comprar sementes da Monsanto, ele não tem outra opção, porque sementes normais não vão crescer em suas terras. Além disso, o vento e animais difundem as sementes transgênicas pela natureza, que vão germinar em outras partes. O pólen dessas plantas, também levado pelo vento, pode “cruzar” com plantas “normais”, criando ainda outras variações, que também serão resistentes ao RoundUp. José Lutzenberger (1980), em sua obra ‘Manifesto Ecológico Brasileiro’, destacava o potencial destrutivo das novas tecnologias na agricultura, principalmente daquelas propostas por empresas transnacionais e que buscam o “domínio da natureza”. Diz ele haver um entusiasmo pueril por parte dos especialistas das ciências do 42_ competência


solo, buscando um monopólio da verdade sobre o assunto, sem proporcionar oportunidades para críticas. Sentem-se proprietários dessa verdade e desprezam conhecimentos antigos que comprovadamente são benéficos tanto para a natureza quanto para o ser humano. Para ele, nossa visão incompleta do mundo faz com que sejamos agressivos com aquilo que deveríamos proteger. Daí a proposta de ajudar a formarmos cuidadores do planeta. Ainda mais alguns exemplos de ações nesta direção: sermos consumidores cada vez mais críticos acerca da origem dos alimentos que consumimos. Mesmo que as megaempresas do setor alimentício soneguem informações, o leite de uma vaca alimentada com rações feitas com soja transgênica pode ser geneticamente modificado. Há que não nos deixarmos enganar por ‘certos’ comerciais... quem aceitaria que uma agência funerária Bom Descanso fizesse comerciais em um aniversário infantil ou em uma festa de batizado? Não me parece diferente quando a maior multinacional do tabaco patrocina o caderno semanal ‘Meio Ambiente’ de um grande jornal diário ou uma transnacional papeleira seja a patrocinadora do ‘Dia da árvore’. Há não muito em uma fala para alunos do curso médio de uma escola técnica, perguntei quantos tinham telefone celular. Em meia centena, dois não possuíam. Perguntei mais, quantos aparelhos cada um já havia tido. Três, quatro, cinco. Uma adolescente diz, sem nenhum constrangimento: dezesseis. “És uma Neopata!”, bradei. Meu precário diagnóstico me permitia inferir que ela era vítima, em estado grave, de neopatia9 – a doença moderna, cuja característica é ter sempre tudo novo. É um neopata quem tem (ou sonha em ter) o último modelo de aparelho de televisão, com uma tela de plasma que, fazendo o mesmo que nosso televisor atual, tem a tela mais delgada e ainda confere maior status a seus possuidores; o último carro (hoje, por questão de segurança, isso se altera), o último computador; a última versão do Windows; o último telefone celular; a última câmera digital. A última parafernália eletrônica, que, em breve o mercado definirá qual seja. Quantas pessoas, no final de 2010, fizeram vigílias em lojas (que necessidade determinou isso?) para serem as primeiras a terem – um dos verbos mais mágicos – um Ipad, um produto mágico e revolucionário, por um preço incrível, de R$ 1.649,00 (conforme um anúncio). Um sintoma muito próprio dessa doença é fazer o novo subitamente velho. Assim, um telefone celular de dois anos é ‘mais velho’, leia-se obsoleto, que um telefone fixo de 20 anos. Lateralmente, devo professar que não apenas resisto, mas combato a neopatia. Aliás, parece ser fácil aceitarmos que é o mercado que define a competência

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Vi a palavra neopatia usada por primeiro pelo prof. dr. Guy Bajoit, da Universidade Católica de Louvain, em 9 de setembro de 1998, então professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos.

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moda do momento para bombar nossos desejos. A ação verbal, ainda não dicionarizada, mas de muito trânsito entre os neopatas, foi escolhida com muita propriedade. A neopatia nos atinge gravemente em nossos afazeres. Ela é a vilã que não apenas erode nossas economias, mas também colabora para a degradação do planeta. Poderíamos nos perguntar por que os carros elétricos, que estão em evidência na mídia, não entram em produção por grandes montadoras. Há vários motivos que explicam o interesse crescente por ess­es veículos: eles poluem menos do que carros movidos à gasolina ou a álcool, tornando-se uma alternativa ambientalmente saudável, especialmente nas cidades. Mas, há razões obscuras, pelas quais o carro elétrico é sabotado por grandes empresas. Algo que sempre é primordial nas campanhas de Educação Ambiental é a necessidade de nos conscientizarmos em relação ao lixo que produzimos, separação doméstica, embalagens desnecessárias, pilhas, vidros, metais, sacolas plásticas. Não me estendo aqui, pois sobre o tema há extensas produções. Apenas destacaria que, na seleção doméstica do lixo, antes dos méritos de sua destinação, está uma exemplar situação de educação familiar. Encerro com aquele que é o primeiro e mais significativo problema ambiental. A minimização da fome. Esta ação começa pela minimização do desperdício. Jairo Viera Brasil (2008) mostra o quanto colocamos bens de valor (= comida) fora. Primeiro são as sobras de nossas mesas. Há uma ou duas gerações, as famílias tinham um porco ou galinhas que recebiam as sobras. A lavagem era a primeira água passada nos pratos que se destinava aos animais. Hoje, as sobras, embaladas cuidadosamente, certamente encontrarão destinatários. Para as sobras de restaurantes, seria necessário que houvesse revisão em determinações que impede os restaurantes de destinar a comida limpa (não necessariamente restos, mas sobras) para entidades beneficentes (creches, asilos...). Outro local de desperdício de comida de qualidade são as salas VIPs de aeroportos, especialmente quando têm terceirizados diferentes. Na troca de turno de um para o outro se coloca no lixo alimentos, sem que mesmo os serviçais possam levá-los. A referência a restaurantes enseja a condenação de duas práticas muito correntes, em especial no Rio Grande do Sul, que se constitui em um esbanjamento de alimentos que deveria ser proibido em um país onde tantos passam fome: os espetos corridos e os cafés coloniais. Quando recebo forasteiros, se acaso manifestem desejo de conhecer estas incivilidades pantagruélicas, ou os dissuado ou não os acompanho. 44_ competência


Acredito que tenha ajudado a preparar alguns canteiros para ajudar formar jardineiros para cuidarmos melhor do Planeta. Este é propósito deste texto. Só valerá a pena se juntos conseguirmos. Vale tentar. Nossos filhos e netos agradecerão.

Referências BRASIL, Jairo Vieira. A noção do desperdício: narrativas de uma visão docente em três níveis do ensino básico. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Unisinos, 2008. CAMPOS, Antônio Valmor de. Milho crioulo: sementes de vida. Pesquisa, melhoramento e propriedade intelectual. Frederico Westphalen: Editora da URI, 2007. CHASSOT, Attico. A Educação no Ensino de Química. Ijuí: Editora Unijuí, 1990. ______. A ciência através dos tempos. 23. Ed. (1. ed. 1994, 14ª reformulada em 2004). São Paulo: Moderna, 2010, 280 p. ______. Educação conSciência. (2. ed. 2007 e Reimpressão, 2010). Santa Cruz do Sul: EdUNISC, 2003. ______. Sete escritos sobre Educação e Ciências. São Paulo: Cortez, 2008, 285 p. ______. Uma dimensão ambiental como uma alternativa para um ensino mais político. In: SANTOS, J.E.; SATO, M.. (Org.). A contribuição da educação ambiental à esperança de Pandora. 1. ed. São Carlos: Rima, 2001, v. 1, p. 397-412. CHASSOT, Attico; RIBEIRO, Vândiner. Formar jardineros para cuidar del Planeta. Alambique. Didáctica de las Ciencias Experimentales, Barcelona, Octubre - Diciembre 08, n. 58, p. 19-27 ISSN: 0104-8899. LUTZENBERGER, José Antonio. Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro. Porto Alegre: Movimento, 1980. TENNER, Edward. A vingança da tecnologia: as irônicas conseqüências de várias inovações mecânicas, químicas, biológicas e médicas. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM CURSOS DE PÓSGRADUAÇÃO EM NÍVEL DE ESPECIALIZAÇÃO: BUSCANDO REPENSAR A ATIVIDADE DE APRENDER NA PRÁTICA DOCENTE LATO SENSU TEACHER TRAINING COURSES AT GRADUATE LEVEL: TRYING TO RETHINK THE ACTIVITY OF LEARNING IN TEACHING PRACTICE Lílian Rocha Gomes Tavares *

Resumo Este trabalho tem como objetivo repensar a formação de professores em cursos de pós-graduação a partir de um estudo de revisão bibliográfica com base na Psicologia Histórico-Cultural, na Teoria da Atividade e na Teoria Desenvolvimental, enfocando o papel da linguagem e da atividade no desenvolvimento mental dos sujeitos. Os autores russos estudados, respectivamente, Vygotsky, Leontiev e Davidov, ao analisarem aspectos fundamentais do processo de aprendizagem dos alunos, têm contribuído para a prática da autora enquanto professora na busca por novas possibilidades para um trabalho mais efetivo nos processos de formação continuada de professores. Palavras-chave: Formação de Professores. Psicologia Histórico-Cultural. Linguagem. Formação Continuada.

Abstract This paper aims to rethink teacher education graduate courses from a bibliographic review on the basis of Historical-Cultural Psychology, in Activity Theory and Developmental Theory, focusing on the role of language in the mental development of subjects. The Russian authors studied, respectively, Vygotsky, Leontiev and Davidov, by examining key aspects of the learning process, have contributed with the practice of the author as a teacher in the search for new possibilities towards a more effective work concerning the processes of continued teacher education. Keywords: Teacher Education. Sociocultural Psychology. Language. Continuing Education. competência

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* Mestre em Educação pela UFPel. Graduada em Psicologia pela UCPel. Professora em cursos de Especialização em Docência na Educação Profissional da Faculdade de Tecnologia Senac-Pelotas e Psicopedagogia Clínica e Institucional, Educação Especial e Orientação e Supervisão Educacional pelo Instituto Educar Brasil-Portal Faculdades. litavares_psi@ yahoo.com.br


1. Introdução Este trabalho tem por objetivo apresentar as contribuições dos autores russos Vygotsky, Leontiev e Davidov, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, da Teoria da Atividade e da Teoria Desenvolvimental em minha prática profissional como professora de cursos de Pós-Graduação em nível de Especialização. Há cerca de quatro anos, tenho desenvolvido um trabalho que atualmente percebo ter uma certa proximidade com esta fundamentação teórica. Em contato com professoras e professores, identifico que uma parcela bem expressiva destes constituem suas práticas muito mais em suas intuições ou na reprodução da forma como foram ensinadas do que na reflexão deste seu fazer. Moura (2002) faz-nos reconhecer que o professor pode aprender o saber fazer apostando numa teoria que possa servir e servir-se da prática de ensinar. Por isso, este texto visa descrever como o tema aprendizagem contribuiu para minha prática enquanto professora, sendo necessário, inicialmente, uma retomada desta fundamentação teórica citada acima, para, a seguir, pensarmos em possibilidades para um trabalho mais efetivo nos processos de formação continuada de professores.

2. Uma releitura dos autores que discutem Vygotsky, Leontiev e Davidov Para pensarmos na questão da aprendizagem, nada mais oportuno que examinarmos o conceito de conhecimento, visto ser um dos principais objetivos dos professores em sua relação com os alunos a transmissão dos conhecimentos. O primeiro autor a ser revisado é Wells (2001). Reflete que, se como professores e formadores de professores quisermos realizar alguma melhora significativa na prática educativa, um primeiro passo muito importante é tentar clarificar nossa própria compreensão do que se supõe ser CONSTRUÇÃO e RECONSTRUÇÃO do conhecimento. Trazendo ideias da Teoria da Aprendizagem baseada na linguagem proposta por Vygotsky e por Halliday, pensa que uma das principais afirmações plausíveis desta lógica de pensamento é de que as mesmas possibilidades de conversações que dão a oportunidade de as crianças aprenderem a linguagem, também lhes oferecem a oportunidade de aprender por meio da linguagem. Assim, busca respostas para se entender o que é conhecimento na compreen48_ competência


são de sua natureza, adentrando no enfoque genético do desenvolvimento do conhecimento, sustentado por Vygotsky. Analisa os distintos modos de conhecer na história humana o desenvolvimento do conhecimento teórico, o metaconhecimento, o conhecimento como representação, onde detalha os seis modos de conhecer, relacionando cada um a uma forma característica, do individual até a atividade social. Trabalha com a ideia de natureza do conhecimento como uma atividade intencional de indivíduos que, como membros de uma comunidade, empregam e produzem representações no esforço colaborativo de compreender melhor seu mundo para transformá-lo. Começando pela natureza do conhecimento, Wells (2001) afirma que existem dois impedimentos para se progredir na compreensão de sua natureza. Primeiro é a ampla gama de maneiras com que se emprega este termo, por um lado, desde as peças isoladas de informação ou feitos até conceitos específicos sobre, por exemplo, a energia, a saúde/doença...e, por outro, fazendo referência a “atitudes” – ações que uma pessoa pode realizar com eficácia -, a “estratégias” que se empregam para guiar a execução das tarefas e o “metaconhecimento” sobre o emprego do conhecimento conceitual e estratégico e sobre princípios que subjazem a estas atuações hábeis. Analisa que seria importante pensarmos na relação existente entre saber realizar alguma ação e ser capaz de representar esse conhecimento de uma maneira discursiva e como uma influi na outra e sugere que seria mais frutífero centrar-se nas distintas atividades em que intervém o conhecimento e no desenvolvimento destas atividades em lugar de centrar-se nos termos. Trata-se do enfoque “genético” proposto por Vygotsky (1998) e desenvolvido posteriormente por uma grande variedade de estudiosos dentro da tradição cultural-histórica, que nos ajuda a resolver a polêmica questão da relação existente entre o indivíduo e seu entorno social e cultural. Ao centrar-se na atividade mediada, realizada conjuntamente como lugar tanto de continuidade como de mudança, destaca a relação mutuamente constitutiva entre a atividade vista como um sistema histórico-cultural contínuo por um lado, e os participantes, as práticas e os artefatos por meio dos quais se concentra esta atividade por outro. Também este enfoque nos permite ver que o conhecimento tem uma história, pois há desenvolvimento nos nossos modos de conhecer e na maneira de construir o conhecimento. Em suas origens, o conhecimento está intimamente vinculado com a atividade e tem uma natureza essencialmente social. Aqui, estamos adentrando no pensamento de Leontiev (1981), que propõe que os seres humanos constroem seu conhecimento de mundo essencialmente mediante a atividade conjunta orientada a objetos e, além disso, que o valor competência

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desse conhecimento é que serve para mediar em sua posterior atividade conjunta, ou seja, a atividade do indivíduo só tem significado no sistema das relações sociais. Importante até aqui é pensarmos que Gordon Wells está nos dizendo que o conhecimento não existe, pois é uma abstração. O que existe são representações do que estamos vendo, permitidos pela linguagem. Assim, ele fala da atividade de conhecer, que logo adiante vai tratar como modos de conhecer que vão do individual até o mais colaborativo, dizendo que, desde o início da história humana, é possível distinguir, inicialmente, quatro modos diferentes de conhecer e depois mais dois, que entravam em jogo ao participar da gama de atividades que constituíam a vida cultural, por mais primitiva que fosse. Vamos a eles! O primeiro modo de conhecer, denominado instrumental, parte da premissa de que, mesmo sabendo pouco a respeito de nossos antepassados, muito antes da aparição do Homo sapiens, eles já haviam desenvolvido uma certa habilidade nas atividades de que participavam através do emprego de instrumentos para mediar essa atividade. Pensa-se, pelas provas disponíveis que temos, que esses nossos antepassados não viviam isolados, mas, sim, em grupos com uma estrutura social bem desenvolvida. Através de demonstrações ou explicações ou mediante uma combinação delas, os membros mais hábeis do grupo colocavam seus conhecimentos instrumentais à disposição dos demais para que os imitassem e se apropriassem deles. Isso exige alguma medida de análise reflexiva e da construção de um conhecimento procedimental consciente, conseguida por meio de uma comunicação simbólica expressada por gestos miméticos e uma fala rudimentar. Aí está o segundo modo de conhecer. O terceiro modo de conhecer surge da complexidade das atividades, exigindo dos participantes não só a capacidade de descrever suas propostas, senão também de explicá-las e justificá-las de acordo com a relação existente entre os fins e os meios e as causas e as consequências. Este modo de conhecer, chamado substantivo, cuja necessidade vai mais além da situação concreta, supõe o emprego da linguagem. Correndo até certo ponto paralelo a esta forma de reflexão e de projeção imaginativa da ação prática futura feita em colaboração, está o quarto modo de conhecer: o conhecer estético. A construção de mitos, legendas, rituais e outros modos de entender a experiência do grupo mediante a narração, o baile, a canção também proporcionam um marco explicativo para interpretar, compreender e avaliar determinados eventos. Assim, até aqui, o conhecimento a princípio se derivava diretamente de viver em um mundo social-material habitado pelo grupo cultural e se 50_ competência


construía, em grande medida, mediante a participação nas atividades do grupo e mediante a interação cara a cara, ou seja, a origem e a função do conhecimento estavam vinculadas com o aumento da participação e com a crescente compreensão da relação existente entre as ações e as situações vividas. Porém, foi a invenção da escrita baseada na linguagem o que constituiu o avanço mais importante para a conservação do conhecimento, proporcionando uma nova forma de construção. Neste novo modo de conhecer, o conhecimento substantivo é embebido na atividade prática que se converte em material para uma forma de construção de conhecimento mais objetivo e independente do contexto, onde os artefatos de conhecimento criados em um ciclo, atuavam como “instrumentos” mediadores em um segundo ciclo de atividade de construção de conhecimento. Isso marcou o início do que se pode chamar de conhecer teórico. Um outro modo de conhecer referido pelo autor chama-se metaconhecer, no sentido de refletir sobre a compreensão desenvolvida mediante outros modos de conhecer, sendo um precursor importante e necessário do conhecer teórico de todo tipo. Também tem suas origens evolutivas na atividade conjunta, quando os participantes refletem conjuntamente sobre por que atuam e pensam no como fazem. Assim, a maneira mais adequada de entender o conhecer “é como a atividade intencional de indivíduos que, membros de uma comunidade, empregam e produzem representações no esforço colaborativo de compreender melhor seu mundo compartilhado e transformá-lo”. (WELLS, 2001, p. 96). Desta forma, ao final do capítulo, o autor retoma o desenvolvimento do conhecimento na perspectiva ontogenética para abordar a questão do ensino sistemático de responsabilidade da escola, propondo que professores ponham à disposição dos estudantes práticas e instrumentos mediadores através de ações e interação colaborativas para que a atividade de conhecer se dê. Assim, expõem quatro oportunidades diferentes para construir significados que os indivíduos encontram dentro e fora da escola: experiência, informação, construção do conhecimento e compreensão, propondo alguns princípios que guiem as mudanças que as escolas necessitam realizar: a compreensão como objetivo principal da educação, alcançada mediante o trabalho colaborativo, pensando que conhecer com os outros e para os outros deveria ocupar um lugar de honra nas atividades de aula, sendo o potencial dialógico o que se deve destacar. No capítulo “O discurso e o conhecer na aula”, Gordon Wells (2001) proporá que as aulas deveriam se converter no que ele chama de COMUNIDADES DE competência

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INDAGAÇÃO. Considera que o currículo se cria de uma maneira emergente nos muitos modos de conversação entre professor e aluno, onde estes compreendem de uma maneira dialógica temas de interesse individual e social por meio da ação, da construção de conhecimento e da reflexão. Retomando a contribuição de Vygotsky à nossa compreensão do papel fundamental da linguagem para o desenvolvimento mental do indivíduo, apoiada na analogia entre signos e artefatos que funcionam como instrumentos mediadores da atividade produtiva conjunta, podemos concebê-la, assim como outros sistemas semióticos, como “instrumentos psicológicos” que transformam radicalmente as orientações dos participantes. Nesta perspectiva, Wells (2001) revisa os modos de conhecer explicitados no capítulo anterior de seu livro para, fazendo coro ao pensamento de Halliday (1978), dizer que os recursos da linguagem falada em que nos baseamos na conversação hoje representam um “potencial de significado” rico e multidimensional que enriquece mais do que substitui o potencial dos modos pré-linguísticos da comunicação. Pensando na importância para a educação da teoria da mediação semiótica de Vygotsky, ou seja, nas conexões que ele estabeleceu entre as distintas escalas do tempo (filogenética, histórico-cultural e ontogenética) em que se produz o desenvolvimento e entre a mediação intermental e intramental, baseada em signos da atividade no nível ontogenético, Gordon Wells descreve que o desenvolvimento intelectual individual não é resultado da maturação gradual das funções mentais superiores preexistentes e inatas, mas, sim, um processo de transformação das funções biologicamente dadas na apropriação de processos interpsicológicos semióticos encontrados na interação entre as pessoas e colocando Bakhtin na roda, mostra a primazia que dava à expressão ou unidade da fala na comunicação linguística. Dizia que a experiência da fala exclusiva de cada pessoa se desenvolve em contínua e constante interação com as expressões individuais de outras pessoas: as palavras dos outros ajudam na construção de sua própria expressão. Assim, revisando brevemente estes autores, percebe-se que a relação existente entre linguagem e o conhecer é muito mais complexa do que podemos supor. Mesmo sendo a linguagem o principal meio pelo qual se exerce o trabalho educativo, ainda é utilizada como transmissão e recepção. Mas os significados construídos estão muito influenciados pelo contexto do discurso em que se produzem, porque as ideias não existem independentemente dos processos semióticos que se formulam e se comunicam para fins concretos em ocasiões particulares. Além disso, sen52_ competência


do a comunicação um processo dialógico, os significados que constroem os falantes, os ouvintes, os escritores e os leitores em relação com as expressões individuais estão muito influenciados pelo contexto do discurso em que se produzem. Portanto, “o conhecer, é, ao mesmo tempo, situado e dialógico” (WELLS, 2001, p. 121). A discussão da construção do conhecimento e o discurso progressivo entram aqui mostrando a necessidade de pensarmos efetivamente que a confiança na capacidade dos estudantes para desempenhar um papel ativo em sua própria aprendizagem é um requisito essencial para a introdução da construção colaborativa do conhecimento e que, para que valha a pena, o discurso deve supor algo mais do que um simples compartilhar opiniões. Deve acarretar um progresso no sentido de conduzir a “uma nova compreensão que todos os implicados considerem superior a sua própria compreensão prévia” (BEREITER, 1994a, p. 6), sendo esse discurso progressivo o que caracteriza as comunidades de construção de conhecimento científicas e de outros tipos. Também enaltece a importância da escrita, tendo em vista as limitações do discurso falado, como aquela que proporciona uma mediação potente que capacita o grupo, assim como o escritor individual, ao progresso real na construção do conhecimento pela sua permanência, podendo ser repassado, reempregado e revisado, atuando como um objeto melhorável. Partindo para o final desse capítulo, o autor retoma o termo indagação, mostrando que não se refere a um método ou a um conjunto genérico de procedimentos para a realização de atividades, mas a uma postura ante as experiências e as ideias. É uma pré-disposição a interessar-se pelas coisas, a estimular questionamentos, onde, através de um trabalho colaborativo, busca-se encontrar as respostas. Ao mesmo tempo, o objetivo da indagação não é o conhecimento isolado, mas a predisposição e a capacidade de empregar as compreensões assim obtidas para atuar de uma maneira responsável e em situações de seu atual momento de vida e de seu futuro. Proporciona uma maneira de superar a separação, tanto na prática quanto na teoria, entre o conhecimento escolar, muitas vezes inerte, e o conhecimento-ação. Outra questão extremamente importante é a relação feita entre o espaço educativo como comunidades de indagação onde o objetivo é uma compreensão construída mediante a ação, que guia a ação futura não só na sala de aula, mas também em situações fora dela, e a carga afetiva envolvida nesse processo. Quando aqueles que participam de uma indagação têm uma significação pessoal, existe uma satisfação e um entusiasmo adicionais, derivados do compartilhar as atividades com os demais, da competência

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observação ao que os demais estão fazendo e da relação que se pode fazer entre essas atividades. Destaca que a indagação não se aplica somente a estudantes até o ensino médio, mas também aos professores e administradores, que são os responsáveis diretos pela educação e àqueles que são responsáveis pela preparação inicial e do posterior desenvolvimento profissional destes professores e administradores. E, no final propriamente dito deste potente capítulo, Wells (2001) destaca que várias vezes, em páginas anteriores, chamou a atenção sobre o papel especial que desempenha o texto escrito na construção do conhecimento. A criação de um texto escrito é uma maneira especialmente poderosa de chegar a compreender o tema sobre o que se escreve, sobretudo se escrever não se emprega para comunicar o que já se compreende, mas para chegar a compreender neste processo e mediante ele. É a ativação da escrita como “dispositivo do pensamento”. Partindo deste tema, destaco o artigo de Damiani (2008), no qual a autora tem o objetivo de discutir as relações entre linguagem e cognição a partir da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, enfocando especialmente as influências mútuas entre a linguagem escrita e o pensamento no contexto universitário. Apresenta a análise de um texto produzido por um estudante do curso de Pedagogia, motivada pela preocupação com a qualidade da escrita destes estudantes, principalmente por serem os responsáveis pelo ensino da escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Percebe um alto grau de dificuldade para expressar ideias de maneira clara, avaliando a escrita desses universitários como precária em termos de coerência, estrutura gramatical, ortografia, vocabulário e pontuação. Sua discussão teórica retoma as ideias de Vygotsky (1982) e Luria (1986) sobre o papel essencial da linguagem na formação da consciência humana, pois, através dela, os seres humanos desenvolvem o pensamento abstrato, categorial, dando um salto do sensorial para o racional. Propõe uma versão fraca sobre a relação entre pensamento e linguagem para tentar escapar do determinismo linguístico sobre o pensamento, entendendo a estrutura linguística de um sujeito como algo que influencia e não determina sua percepção, sua memória e seu pensamento no curso das operações mentais. Trazendo outros autores que reverberam a importância da escrita para o desenvolvimento mental dos sujeitos, mostra que o ato de escrever envolve atividades mentais como: estabelecimento de objetivos, planejamento, busca de con54_ competência


teúdos na memória, resolução de problemas, avaliação e diagnóstico de conteúdos e formas de escrita. Não desenvolve recursos novos de pensamento, mas produz consciência sobre aqueles que os seres humanos já dispõem (OLSON, 1994). Até aqui, os textos teóricos eram fundamentados basicamente pela Psicologia Histórico-Cultural de Vygotsky. Agora, os estudos que se seguem discutem as ideias de Leontiev e, posteriormente, Davidov. A leitura de parte da dissertação de mestrado de Odete Cascone (2009), sobre o livro didático como um dos principais materiais de apoio à organização da atividade docente, utiliza inicialmente a Teoria Histórico-Cultural centrandose nos conceitos principais: aprendizagem e desenvolvimento, conceitos espontâneos e científicos, objetivação e apropriação e conceitos enquanto instrumentos simbólicos. Justifica a escolha desta abordagem como sendo, dentre as teorias sobre aprendizagem e desenvolvimento, a que dedica especial atenção à escolarização como fator essencial do desenvolvimento humano no atual contexto histórico. Vygotsky, tentando superar as explicações inatistas e ambientalistas sobre o desenvolvimento do psiquismo humano, incorporou as teses marxistas ao estudo da psicologia e formulou uma nova concepção teórica, buscando em Marx os aportes teóricos para fundamentar suas reflexões, compreendendo o homem como um sujeito situado num determinado contexto social que seria o responsável pela constituição de seu psiquismo. Para ele, somente por meio de uma abordagem histórica e cultural, seria possível explicar as funções psicológicas superiores, pois estas são constituídas no decorrer da história social do homem em sua relação com o mundo. Quanto ao tema aprendizagem e desenvolvimento, Vygotsky (2001, p. 304) conclui que “(...) a aprendizagem pode ir não só atrás do desenvolvimento, não só passo a passo com ele, mas pode superá-lo, projetando-o para frente e suscitando nele novas formulações.” E afirma que quando uma criança aprende, ocorre um salto significativo no seu desenvolvimento. Assim, para explicar o aprendizado escolar, Cascone (2009) diz que se faz necessário compreender o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, entendido como aquele espaço onde deve incidir o trabalho do professor, onde estão as funções em brotos ou flores e, que, inicialmente, para aprender, a criança precisa de ajuda para, logo a seguir, poder agir sozinha. A seguir, o enfoque é dado aos conceitos espontâneos e principalmente aos conceitos científicos, trazendo para o debate os conceitos de objetivação e apropriação de Leontiev, refletindo acerca da característica do conteúdo escolar e do significacompetência

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do de sua apropriação a partir da Teoria da Atividade. Para Leontiev (1981), a atividade humana determina a forma de ser e de pensar do homem, distinguindo-se dos outros animais através de sua atividade vital, o trabalho. Assim, no momento em que o homem trabalha, seus conhecimentos vão se cristalizando nos seus produtos. A esse processo, Leontiev chama de OBJETIVAÇÃO. O conceito de APROPRIAÇÃO, ligado diretamente ao de objetivação, nos mostra que, quando um objeto natural é transformado pelo homem, passa a ser social e, ao se apropriar desse objeto, os demais homens que não participaram de sua produção incorporam as experiências e conhecimentos acumulados objetivados nesse objeto produzido historicamente e, desta forma, através desse processo de apropriação, é que ocorre o desenvolvimento humano. Leontiev mostra que o sujeito, ao assimilar a experiência realizada socialmente, adquire com ela significações, apropriando-se de um conhecimento historicamente produzido, incluindo, aqui, o processo de transmissão da experiência social pelo sistema educativo. A autora, ao final deste capítulo, reflete sobre a importância de se discutir o papel da escola como instituição responsável pela transmissão dos conhecimentos científicos como conceitos elaborados mediante uma atividade mental derivada de uma atividade prática. E assim, finalizando esta revisão bibliográfica, serão discutidos textos de Libâneo (2004) que debatem questões referentes à aprendizagem escolar e à formação de professores na perspectiva de Vygotsky, Leontiev e Davidov. Neste trabalho, Libâneo convida o leitor a pensar em possibilidades teóricas de renovação das práticas de formação inicial e continuada de professores, a partir da psicologia histórico-cultural da aprendizagem escolar, pois compreende o trabalho do professor como atividade teórica e prática. Este texto mostra as ideias de Davidov e sua Teoria Desenvolvimental, onde educação e ensino são formas universais de desenvolvimento mental. O ensino propicia a apropriação da cultura e o desenvolvimento do pensamento. Para ele, a aprendizagem é a atividade principal da criança na escola e sua função é a de propiciar a assimilação das ciências, da arte, da moralidade e da lei, consideradas formas de consciência social mais desenvolvidas. Aprendizagem, aqui, é relacionada ao conteúdo, ou, como é designado, conhecimento teórico. Dele derivam os métodos para organizar o ensino, ou seja, uma estrutura da atividade do aprender incluindo uma tarefa de aprendizagem, suas ações, acompanhamento e avaliação que visam à 56_ competência


compreensão do objeto de estudos e suas relações. O objetivo do ensino é que os alunos aprendam a pensar. A pensar teoricamente sobre um objeto de estudo, formando um conceito teórico desse objeto para que aprendam a lidar praticamente com ele em situações concretas da vida. Além disso, na estrutura psicológica da atividade descrita por Leontiev, acrescenta o desejo como “núcleo básico de uma necessidade” (DAVIDOV, 1999, p. 40-41). Para ele, por detrás das ações humanas, estão as necessidades e emoções, antecedendo a ação, as relações com os outros, as linguagens. As emoções capacitam a pessoa a decidir se possui meios para atingir seu objetivo. Em discordância com Leontiev, Davidov afirma que as ações são conectadas muito mais nas ações baseadas em desejos do que em motivos, embora continue destacando seu papel. Outro aspecto importante da teoria desenvolvimental de Davidov é que o pensamento teórico se caracteriza como o método da ascensão do abstrato para o concreto, ou seja, de uma relação geral subjacente ao assunto ou problema, deduzemse mais relações particulares. Segundo Libâneo (2004), o que se verifica nesse processo de formação do pensamento teórico é uma clara alusão ao movimento que vai do geral para o particular, vinculados a duas tendências fortes na pedagogia contemporânea: o método de resolução de problemas e o método do ensino com pesquisa. Como último aspecto debatido pelo autor deste texto está a formação profissional de professores como atividade de aprendizagem em contextos socioculturais. Libâneo argumenta que, se a atividade principal do futuro professor é a de promover a atividade aprendizagem de seus futuros alunos, nada mais oportuno que o professor aprenda sua profissão na perspectiva em que irá ensinar aos seus alunos. Então, se a base do ensino desenvolvimental é a estrutura psicológica da atividade, seria importante estabelecer as características da atividade profissional do professor, de modo que isso se constitua como referência para o currículo. E também que os próprios professores precisam dominar estratégias de pensar e de pensar sobre o próprio pensar, sendo a teoria desenvolvimental compatível com essa demanda. Esta possibilita a aquisição do conhecimento teórico e das ferramentas cognitivas, desenvolvendo as competências do pensar, para compreender o próprio pensamento, refletindo de modo crítico sobre sua própria prática e, também, de aprimorar seu modo de agir, seu saber-fazer, à medida que internaliza novos instrumentos de ação. Para isso, segundo o autor, o ensino deve ser compreendido como o objeto principal da atividade docente, decorrendo daí as ações e operações a serem realizadas por meio da atividade orientadora do ensino, a execução e o controle, consicompetência

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derando, é claro, os contextos concretos onde se dão esses processos de formação.

3. Considerações finais Conforme já havia dito na introdução, este trabalho tem como objetivo mostrar os efeitos que as discussões sobre o tema aprendizagem causaram em minha prática profissional, a partir de um estudo de revisão bibliográfica dentro da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural. Desde os tempos em que trabalhava como professora alfabetizadora, passando pela formação de profissionais em cursos de graduação de licenciatura, até este momento em que tenho atuado especificamente na formação de professores em pós-graduação em nível de especialização, percebia que o modelo tradicional de atuação do professor não satisfazia a minhas necessidades e, principalmente, meu desejo. Aulas que podem ser pensadas, como nos mostrou Wells (2001), como COMUNIDADES DE INDAGAÇÃO têm sido a base de minha experimentação enquanto professora. Também considero que o currículo se cria de uma maneira emergente nos muitos modos de conversação entre professor e aluno, nos quais estes compreendem, de uma maneira dialógica, temas de interesse individual e social por meio da ação, da construção de conhecimento e da reflexão, pois vejo, nos cursos de pós-graduação, a grande vantagem de o aluno, pelo menos conscientemente, estar naquele espaço de aprendizagens por interesse pessoal e que, partindo dele, pelo trabalho colaborativo, estimula o interesse que também é social, pois é do grupo. Mas este não é um trabalho fácil. Exige dedicação, planejamento e atuação do professor como mediador desse processo de aprendizagem e não como o detentor do conhecimento que deverá ser transmitido ou um mero figurante que lança os conteúdos a seus alunos e espera, nos trabalhos de pesquisa, o resultado pronto de todo um percurso que poderia ser percorrido pelo trabalho colaborativo. Hoje, o que percebo é que, concordando com Libâneo (2004, p. 138), nós, professores, muitas vezes, se não refletirmos sobre nossa prática, poderemos meramente repetir, reproduzir ações conforme fomos educados, sendo “necessárias estratégias, procedimentos, modos de fazer, além de um sólido conhecimento teórico, que ajudam a melhor realizar o trabalho e melhorar a capacidade reflexiva sobre o que e como mudar.” Apreciei muito a ideia do autor de que “as mudanças nas formas de aprender afetam as formas de ensinar, em vista da subordinação das práticas de ensino à ativida58_ competência


de de aprendizagem e às ações do aprender e do pensar (...)”, pois é exatamente isso que insisto constantemente em meu trabalho com formação de professores. O autor diz que podemos pensar que o que esperamos da aprendizagem dos alunos também deverá ser esperado de um programa de formação dos próprios professores. Nesse sentido, sinto falta de que os programas de pós-graduação também trabalhem com essa lógica de desenvolver os processos cognitivos de seus alunos, professores ou futuros professores. Também tenho pensado muito no destaque ao papel das emoções no processo de aprendizagem, concordando com Libâneo (2004) quando diz que a importância desse ponto de vista é obvia, pois põe em relevo a relação entre afetividade e cognição e sua integração na subjetividade. Mas, em minha experiência na prática com formação de professores, ainda percebo que muitos desconsideram a importância das emoções para o processo ou atividade de aprender. Acredito que isso se deva ao fato de que há bem pouco tempo falar, pensar ou reivindicar a importância das emoções soava como algo piegas, do campo do empirismo, do não científico. Isso, atualmente, está cada vez mais esclarecido pelos estudos da área da neurociência, onde as emoções no processo de aprendizagem figuram no papel de ator principal, já que estão diretamente relacionadas com as memórias. E, para isso, a formação permanente dos profissionais da educação, já considerada fundamental, pode ser enriquecida com uma proposta de pensarmos, mas principalmente atuarmos na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, mostrando, através de nossa prática, o lugar de importância do papel do ensino, na figura do professor, estimulando nossos alunos a pensar sobre seus modos de conhecer e como estão interferindo nos modos de conhecer de seus alunos. Acredito que esta seja nossa tarefa enquanto responsáveis pela formação de professores: despertar o interesse pelo reconhecimento de sua importância, da linguagem, da escrita como produtoras de desenvolvimento mental. Fomentar, a partir de nossas próprias aulas, espaços dialógicos onde o ato de conhecer se dê do social para o individual. Assim, quem sabe, as mudanças ocorridas nos professores tenham efeitos mais concretos na aprendizagem de seus alunos.

Referências BEREITER, Carl; SCARDAMALIA, Marlene. The Psychology of Written Composition. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1987. competência

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RELENDO PAULO FREIRE NA EJA: MEDIAÇÕES COTIDIANAS RELEYENDO PAULO FREIRE EN LA EJA: MEDIACIONES COTIDIANAS Adriana R. Sanceverino Losso *

Resumo O presente trabalho revela parte do caminho percorrido em pesquisa de doutorado em educação sobre a mediação como categoria pedagógica articulada com campo de atuação docente da educação de jovens e adultos (EJA). É baseado na prática pedagógica em formação e coordenação da educação de pessoas jovens e adultas em rede municipal de ensino de Santa Catarina – Brasil. Contribui com o desvelamento de algumas diretrizes de reflexão e ação que contribuam para auxiliar os professores da EJA a estabelecerem com mais solidez suas abordagens teórico-metodológicas, bem como a subsidiarem mais conscientemente a política para sua práxis. Até onde caminhou o trabalho investigativo, já se pode perceber que, sem a compreensão da constituição da realidade concreta do ser social na sua totalidade e como ele se articula nesse contexto, é impossível entender as mediações. Palavras-chave: Mediação. Prática Docente. Educação de Jovens e Adultos. Pedagogia Freireana.

Resumen Este estudio revela parte de la trayectoria seguida en la investigación de doctorado en educación, sobre la mediación como categoría pedagógica combinada con el campo de actuación docente de la educación de jóvenes y adultos (EJA). Se basa en la práctica docente en la formación y coordinación de la educación de los jóvenes y adultos en la red municipal de enseñanza de Santa Catarina – Brasil. Contribuye al descubrimiento de algunas pautas de reflexión y de acción que favorecen el auxilio a los profesores de la educación de adultos para que establezcan más solidez en sus planteamientos teóricos y metodológicos, así como subsidiar más conscientemente la política de su práctica. Hasta donde se dirigió el trabajo de investigación, ya se puede ver que, sin una comprensión de la constitución de la realidad concreta del ser social en todos sus elementos y cómo se articula en este contexto, es imposible entender las mediaciones. competência

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* Doutoranda em Educação, Unisinos, RS, Brasil. Agencia Financiadora: CAPES/PROEX. adrianalosso@ gmail.com


Palabras Claves: Mediación. Práctica Educativa. Educación de Jóvenes y Adultos. Pedagogía Freireana.

1. Introdução A produção científica na área da educação em meio a intensas, necessárias e salutares polêmicas, tem avançado na discussão sobre a orientação teórica epistemológica e prática da formação docente, bem como do modo de ser do professor na sua área específica de atuação – a Educação de Jovens e Adultos. Essa função, na experiência da qual participo em rede municipal de ensino no estado de Santa Catarina/ Brasil, tem registrada em seu projeto a categoria mediação, que aporta nesse debate contemporâneo, trazida por necessidades sócio-históricas expressas nas várias abordagens educacionais, assumidas pela demanda posta aos profissionais da educação. Mas, comecei a perceber através dos estudos das relações de trabalho, das observações em encontros, seminários, palestras na área da educação de adultos, nas produções científicas, nos discursos, nas falas de autores na área da educação e da maioria dos educadores que, do ponto de vista teórico-metodológico, a categoria mediação foi muito divulgada, mas ainda encontra-se despida de uma fundamentação teórico-filosófica mais sólida dentro da sua fonte primária – a dialética marxista, o que redundou em usos pouco precisos. De uns dez anos para cá, tornou-se mais frequente o uso do termo mediação em contextos como aquele que afirma a função do professor como o mediador da aprendizagem do aluno. Mas raramente paramos para refletir um pouco mais sobre o sentido concreto dessa expressão. Os saberes que giram na escola apontam para o significado de que mediar é facilitar o conhecimento – situação em que o professor veicula o conteúdo programático de forma harmônica durante o processo de ensino e aprendizagem. E, na maioria das vezes, parece que se pretende relacionar a própria função do professor com uma tarefa de mediar a aprendizagem do aluno. Parece também que há a intenção, com isso, de situar a categoria mediação como inerente exclusivamente à função docente, quando na verdade ela, a mediação, é inerente a todos – alunos e professor – a qualquer totalidade complexa. Como categoria do real (constitutiva do ser social), não podemos limitar sua existência apenas a uma função social, ou seja, à função do professor. Nem tampouco conceber a relação de ensino e aprendizagem como harmoniosa, pois assim 62_ competência


estaríamos impedindo que a mediação se desenvolvesse numa perspectiva dialética. Esse paradoxo coloca em cheque não só a necessidade de mudança de papel para a qual o professor é chamado a assumir nesse momento de aceleradas transformações sociais, cuja sociedade é chamada a repensar os processos educativos, como também a necessidade de mudança no papel do aluno. E na EJA esse quadro se complexifica. Assim, parti do pressuposto de que o discurso pedagógico na EJA está, hoje, eivado de uma profunda indefinição teórica, que a divulgação das propostas metodológicas e curriculares escolares e extraescolares, cujos discursos reducionistas (expressões, enunciações e afirmações) já foram assimilados como princípios teórico-práticos, e, inclusive, já se tornaram corriqueiros nessa modalidade de ensino. O estudo é um recorte das reflexões que venho desenvolvendo no meu projeto de tese de doutorado sobre a categoria mediação na educação de jovens e adultos. Constituirá esforço de apreensão do conteúdo dessas orientações e de suas interpretações, partindo de uma análise das formas de apropriação e divulgação do pensamento de Paulo Freire, realizadas pelos educadores do campo da EJA. Por conseguinte, como suas implicações podem se destinar à prática mediadora no processo de ensino e aprendizagem da EJA.

2. Os sentidos da mediação pedagógica: desafios para prática docente na EJA Tenho como expectativas de análise o contexto ideológico do liberalismo como lugar comum onde deságuam as expectativas dos discursos dos professores, especialmente daqueles imersos no universo empírico a ser analisado, o que tem se dado pelo descompasso entre o dever ser (dito e escrito) e a realidade (práticas pedagógicas e discursos dos professores). Na minha experiência cotidiana como coordenadora e formadora de educadores da EJA, bem como nos discursos em eventos de educação de adultos e em publicações na área, tenho ouvido e lido afirmações como estas: “a atividade pedagógica na EJA deve ter como ponto de partida a realidade desse aluno concreto que, agente de seu próprio conhecimento, deve ser respeitado na sua cultura, individualidade e ritmos”. E mais, “o professor da EJA não deve ensinar, ele deve fazer mediações.” Além dessas afirmações proclamadas no discurso pedagógico, atualmente configura-se uma situação bastante problemática, uma vez que são formas por meio das quais vem se dando a sua difusão e apropriação no contexto da Educação de Jocompetência

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O conceito de cotidiano e não cotidiano é abordado aqui a partir da filósofa húngara Agnes Heller como parte de uma teoria na qual o desenvolvimento do indivíduo não se efetiva plenamente se sua vida reduzir-se à esfera cotidiana. Ressalta-se aqui que o conceito de cotidiano não é sinônimo de dia-a-dia, isto é, aquilo que ocorre diariamente. A diferença é apontada por Heller (1977, p. 21) a partir de alguns exemplos que seguem: Thomas Mann diariamente escrevia algumas páginas de seus livros. Para Heller, essa atividade, ainda que realizada diariamente, não era uma atividade cotidiana. Em outras palavras, quando Thomas Mann escrevia, estava produzindo obras literárias, estava produzindo no campo da arte, das objetivações genéricas para si. Tratava-se, portanto, de uma atividade não-cotidiana, ainda que fosse realizada todos os dias. Igualmente podemos ter atividades que não são realizadas todos os dias, mas que são atividades cotidianas, isto é, fazem parte da reprodução do indivíduo. Por exemplo, ir ao banco sacar ou depositar dinheiro não é algo que o indivíduo realize todos os dias, mas é uma atividade pertencente à vida cotidiana. Também para Heller (ibid. p.100-102 ), vida cotidiana não é sinônimo de vida privada, ainda que a maioria das atividades constitutivas da vida cotidiana, na sociedade contemporânea, pertençam ao

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vens e Adultos no Brasil como divulgadoras do pensamento de Paulo Freire. São representações por meio das quais os educadores da EJA compreendem a realidade e elaboram as justificativas que conferem relevância às atividades desenvolvidas junto aos alunos da EJA. Contudo, esses educadores acabam por distanciar-se da própria matriz teórica que afirmam tomar como direção. É preocupante que estejam proliferando tantas publicações que se apresentam como sendo o pensamento de Paulo Freire. Não estamos afirmando que não exista, dentre os educadores e pesquisadores em educação de jovens e adultos no Brasil, um esforço de estudar Paulo Freire e sua grandiosa obra de forma aprofundada. Esse esforço existe, mas o que tem predominado em termos de divulgação do pensamento de Freire, sobretudo em palestras, cursos de formação, seminários, trabalhos e outros eventos da EJA são afirmações e discursos que tomam de forma superficial a sua obra, como também a percepção de problemas reais com frequencia constitui o lastro da ausência de uma reflexão mais profunda sobre o pensamento desse pesquisador/educador. E, consequentemente, sobre as características definidoras do professor e do aluno concreto, inserido no movimento de homens reais. Parece que um estudo aprofundado das obras de Freire pode também fazer frente às tentativas de se “expurgar” o pensamento desse educador do seu “viés” marxista. Como educadora, pesquisadora, me coloco dentre aqueles que estão iniciando o estudo do pensamento desse autor e quero somar esforços com todos os que buscam nele contribuições para a continuidade da construção de uma pedagogia crítica e historicizadora para a educação de pessoas jovens e adultas. É oportuno ressaltar que entendo que a obra de Freire não pode ser bem compreendida ao se tentar separá-la de seus fundamentos filosóficos, especialmente aqueles mais diretamente ligados ao universo da filosofia marxista. E nesse sentido, passo a questionar, nos desdobramentos dessas afirmações, até que ponto desses discursos formulam-se ações de EJA escolarizada onde os conteúdos ensinados na escola devem ter por base uma correspondência direta com as experiências vivenciadas pelos alunos no cotidiano1. Como se constituem as práticas mediadoras nesse contexto? Se os educadores da EJA defendem a necessidade dessa correspondência promovem a equivalência de ambos. Porém, ocorre que o caráter dos conteúdos escolares é universal, uma vez que esses se baseiam no conjunto de conhecimentos sistematizados ao longo da história pela humanidade. Portanto, dá-se o oposto quanto às experiências vivenciadas pelos alunos, experiências que dizem respeito somen64_ competência


te a uma determinada pessoa, nesse caso, o aluno da EJA. Para Klein (1996, p. 51): Há, sim, que se pensar se o conteúdo da educação que está sendo oferecido corresponde às necessidades da sociedade no seu processo de desenvolvimento de novas forças produtivas, ou não. Está é, seguramente, a questão fundamental que se coloca hoje para os educadores e para a sociedade, e é de tal importância que não pode ser reduzida, enveredando-se como se está pelos caminhos bem estreitos do maniqueísmo, a considerações unilaterais e particularizantes.

âmbito da vida privada, o que para a autora é decorrência das relações sociais alienadas.

Homogeneizar é entendido aqui no sentido proposto por Lukács e por Heller: um processo de passagem da heterogeneidade da vida cotidiana para homogeneidade das esferas não-cotidianas de objetivação do gênero humano.

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Não se trata de homogeneizar2 os alunos através da educação escolar, anulando sua individualidade. Mas, de compreender a homogeneidade das esferas nãocotidianas de objetivação do gênero humano3 como um processo necessário à relação do indivíduo com a ciência, a arte, a filosofia, a moral e a política4. Assim como, também, se não se trata, evidentemente, de se atribuir um caráter homogêneo à sociedade, mas de identificar, na luta que se trava no seu interior, quais são as forças que efetivamente estão orientando essa luta na direção da sua transformação. Conforme Duarte (2001, p.33), o desenvolvimento das objetivações científicas constitui um avanço do gênero humano, mas isso não significa que os conteúdos concretos dessas objetivações não reproduzam alienação. Ademais, para Heller, o cotidiano não é sempre e necessariamente alienado. Pois, para a autora citada por Rossler (2004, p. 112): (...) a alienação não constitui uma característica ontológica inerente ao ser social na sua dimensão cotidiana. O cotidiano torna-se alienado apenas em uma sociedade cuja forma de organização limita o pleno desenvolvimento dos indivíduos, quando a cotidianidade ao invés de exercer a função de infraestrutura da vida individual sobre a qual o indivíduo pudesse se realizar em níveis cada vez mais elevados, torna-se uma barreira limitante, um obstáculo ao relacionamento entre os indivíduos e as esferas de objetivação genéricapara-si (ciência, arte, filosofia, moral e política); aí sim, estamos diante de um cotidiano alienado. O cotidiano torna-se sinônimo de alienação quando sua dinâmica impede os homens de se apropriarem da generecidade-para-si, quando o indivíduo está preso ao reino daquelas necessidades materiais e psíquicas estritamente indispensáveis para reproduzir-se como indivíduos.

É nesse sentido que, para Heller (2008, p. 57-59), se por um lado não existe vida humana sem vida cotidiana, por outro, a redução da vida humana à esfera cotidiana é equivalente à redução da vida humana ao reino da necessidade. Na perspectiva freiriana, é preciso considerar a realidade social que está pautada na tra-

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As objetivações do gênero humano é uma teoria de Agnes Heller. Teoria que ocupa papel fundamental na compreensão da teoria sobre a vida cotidiana.

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Sobre essa abordagem, ver Duarte (2007, p. 31-41).

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No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se desenvolve e se cria como produção social do homem [...]. Estudar um objeto é concebê-lo na totalidade de relações que o determinam, sejam elas de nível econômico, social, cultural, etc. (CIAVATTA, 2001, p.132). E nesse sentido,totalidade, universalidade e generalidade são sinônimos. A generalidade abrange uma totalidade e a universalidade é o caráter do que é total, totalidade da realidade humana, que é diferente de todos os fatos reunidos.

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ma das relações e das correlações de forças que formam a totalidade social. É preciso perceber as particularidades na totalidade, porque nenhum fato ou fenômeno se justifica por si mesmo, isolado do contexto social onde é gerado e se desenvolve. À luz desse contexto teórico, trago para esta tese o entendimento de uma concepção de educação escolar de jovens e adultos como mediadora na formação do indivíduo, entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não-cotidianas da objetivação do gênero humano. A relação entre o caráter universal e a experiência vivida pelo aluno não pode se dar de modo direto, mas somente por meio da mediação. Isto porque essa relação se pauta pela negatividade. É a mediação que preserva tanto o polo da universalidade quanto as experiências individuais, ao mesmo tempo em que provoca mudanças tanto no âmbito da singularidade quanto da universalidade expressa na particularidade. Esclarecendo essa questão do mais complexo e do menos complexo, pode-se dizer que o todo é necessário pela parte. Mas também da parte se chega ao todo. A particularidade e totalidade5 estão em conexão íntima numa tensão e jogo dialético em que não podem ser identificadas nem podem ser separadas. Aqui está

Sobre essas três categorias em que se funda a mediação: a generalidade, a particularidade e a singularidade, vamos dialogar, a seguir com Lukács, 1978, quando refletiremos sobre a mediação e suas dimensões – base teórico-metodológica.

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o germe da discussão dialética. Parte e todo não são diferentes e nem são somente iguais. Ao contrário, são iguais e diferentes ao mesmo tempo, pois não podem ser separadas e nem identificadas. O que as faz existirem é a tensão constante de ambas. Nesse sentido, a teoria e a prática não se separam e nem são a mesma coisa. Assim, do ponto de vista da absolutização de um único polo, isto é, da centração na individualidade do aluno, a relação de ensino e aprendizagem não pode ser compreendida na sua totalidade. Esta só se constitui quando se estabelece uma mediação, uma oposição entre o ensino e a aprendizagem. Didaticamente falando, em linhas gerais, no campo da universalidade situa-se o gênero humano - a generecidade humana e os conhecimentos sistematizados pela humanidade ao longo da história, que se constitui em conhecimentos científicos, traduzidos na forma de conteúdos curriculares. No campo da singularidade situa-se o conhecimento do senso comum, conhecimento das experiências cotidianas do indivíduo que são singulares. No campo da particularidade situa-se a educação, que é expressão particular do vínculo entre o conhecimento sistematizado, científico, que é geral, universal e o conhecimento dos saberes, das experiências da vida cotidiana dos educandos que são singulares. (LOSSO, 2004, p. 112). Segundo Lukács, o processo pelo qual as categorias da universalidade, singu66_ competência


laridade6 e particularidade se resolvem e se transformam uma na outra sofre uma alteração: “tanto a singularidade quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade.” (LUKÁCS, 1978, p. 161). Compreendida dialeticamente, deve-se considerar que ela, a mediação, requer a superação do imediato no mediato, onde o conhecimento teórico, movimento de dupla direção, vai de um extremo ao outro, tendo como termo intermediário a particularidade como função mediadora entre os termos. Ou seja, a particularidade constitui o ponto central organizador do processo de educação. Quando se extingue esta oposição, a relação entre ensino e a aprendizagem não ocorre. Isto porque não se instala a fundamental e necessária mediação entre os campos da universalidade e da singularidade. Ou porque a aprendizagem se sobrepõe ao ensino e nesse caso o professor não ensina, ou porque o ensino subordina à aprendizagem, e nesse caso o aluno não aprende. Evidentemente que ao organizar as ações de ensino, a atividade orientadora, o professor também é educado, ele também se forma. Para Vazques (1977), esta é uma das condições para a existência da atividade pedagógica como particularidade da práxis. E a despeito das severas críticas já feitas à Escola Nova, de suas aproximações com o construtivismo e das preocupações com o caráter histórico do aluno, o que transparece nos discursos, hoje, é que as relações sociais perderam lugar para o indivíduo. No dizer de Klein: (...) a valorização do indivíduo, ou, mais precisamente do indivíduo das classes populares se efetiva na apologia de uma capacidade subjetiva deste indivíduo de criar, construir, saber e decidir. A afirmação desse sujeito que tudo pode na sua individualidade, desse sujeito que se eleva acima de suas relações sociais. (...) desse sujeito para quem a presença do outro mal é suportada, a ponto de o professor ter que quase desculpar-se por saber coisas que ele ainda não sabe; a afirmação desse sujeito permite vislumbrar, nas entrelinhas, do não dito, uma reminiscência da crença de que o homem se explica por um dom da natureza, ou pela graça do Divino. (KLEIN, 1996, p.78).

Essa análise deságua também em uma enunciação muito difundida na EJA, que aponta para a necessidade de respeitar a cultura desse aluno, observada no seu modo de falar, de vestir, seus interesses, seu ambiente. Sobre o respeito à cultura do aluno, também busco em Klein (1996) uma aproximação para refletir sobre o meu objeto de pesquisa, qual seja, a EJA escolarizada. A autora chama a atenção para a competência

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contradição disseminada nessa posição que, de um lado declara-se à intenção de uma educação em favor das classes populares, porém, de outro, respeita-se, exatamente, aquilo que, nos alunos das classes populares, é expressão da expropriação. E, categoricamente, a autora afirma: Se estamos convencidos de que a sua condição de vida é fonte de todo Bem e Verdade, não se explica nossa luta por mudanças sociais. Penso ser necessário invertemos o eixo das nossas preocupações: é preciso respeitar o homem, opondo-se às condições reais de vida que o condicionam a um estado de miséria, ignorância, doença etc. Por respeito ao homem, é preciso ‘desrespeitar’ sua cultura, enquanto expressão da expropriação das melhores condições de vida que essa sociedade comporta. (KLEIN, 1996, p. 88).

Por isso, é fundamental que tenhamos um olhar vigilante para o problema que reside na onda dos modismos teóricos na nossa educação que trariam respostas concretas para os problemas da sociedade e, portanto, da escola. E na análise empreendida por Mészaros (2000), quando este nos alerta acerca das proporções inéditas assumidas pela crise estrutural do capital que têm agudizado ainda mais as formas de exploração e alienação do homem. O autor lembra que estas se refletem na escola através dessas propostas educacionais extremamente sedutoras, implicando (ROSSLER, 2000), uma forma alienada que não se constitui na forma crítica e reflexiva de estarmos nos relacionando com a nossa existência. As propostas sedutoras apontadas por Mészaros (2000) são ampliadas nas análises de Rossler (2000, p. 17) quando esse autor discute as origens do poder de atração do ideário construtivista de educação. O autor nos chama a atenção para o potencial sedutor dos modelos educacionais, sobretudo, quando eles se apresentam como uma teoria investida de prestígio científico, nos lembrando esse fenômeno histórico generalizado numa sociedade de classes, e que surge no interior dos processos de alienação das relações humanas e, nesse sentido, é contrário à formação de indivíduos livres e conscientes. Essas reflexões nos remetem a Arce (2000, p. 41-52) que, ao abordar a formação dos professores sob a ótica construtivista, esclarece que a mesma não aceita que exista conhecimento objetivo, universal, e que a atribuição de sentidos e significados para a realidade é fruto de construtos pessoais. Para a autora, esse é o cerne da questão pós-moderna presente no construtivismo que acaba por transformar o conhecimento numa construção individual. 68_ competência


Essa análise crítica vai de encontro às reflexões empreendidas por Guareschi (2001) para o qual há uma ‘individualização’ do social e um endeusamento do individual. O autor questiona a moralidade dessas práticas, que são assim legitimadas por determinadas teorias nas ciências sociais e afirma que dessas concepções derivam práticas atuais de culpabilização psicológica. Por isso, alerta que, irracionalidades globais tais como exclusão de milhões de pessoas e até mesmo genocídios, não podem ser compreendidas a partir dessa visão individualista. Afinal, para essas teorias, o social não existe, pois as pessoas são responsabilizadas individualmente e por uma situação econômica diversa e injusta. Com efeito, a visão reducionista do ser humano e explicações históricas dos fenômenos fornecidas por tais teorias não abrem espaço à inclusão de uma responsabilidade social. Para Arce (2000, p. 51), negar a capacidade do ser humano conhecer a realidade objetiva e, consequentemente transformar o conhecimento em uma construção individual é destruir toda a possibilidade de conhecimento racional e de uma visão que possibilite abarcar a totalidade da produção humana, o que resulta, segundo a autora, na impossibilidade de um processo de controle coletivo consciente dos rumos da sociedade como um todo. É exatamente nesse ponto, que “pós-modernos e construtivistas disponibilizam para o neoliberalismo uma ferramenta poderosa para explicar as diferentes condições socioeconômicas dos indivíduos que não são mais frutos da história, mas artimanhas do destino, do cotidiano fragmentado, do presente”. (ibid, 52). Parece que com isso está se fazendo uma inclusão subordinada, uma redução ontológica que destrói o caráter de totalidade para reincluir o fragmento, para incorporar. A educação, portanto, ironiza a autora, “não precisa também ser a mesma para todos já que cada um percebe o mundo ao seu redor de modo diferente”. (id). Por isso, assegura a autora: (...) o construtivismo, alicerçado nas discussões pós-modernas, pode afirmar de modo categórico que a educação escolar deve ter como fonte principal do processo de ensino-aprendizagem a construção individual do conhecimento, a negociação de significados, centrando no cotidiano, os conteúdos, não falando em privação cultural, mas em diferenças culturais, assim como o discurso neoliberal não fala em exploração econômica, mas em diferenças econômicas saudáveis, fruto da competitividade do mercado. (id).

A pedagogia da moda parece assentar suas bases na desvalorização da teoria da formação dos professores, na sua desintelectualização, o que se torna ferramenta importante para o capital. Parece importante que ela não o ultrapasse que competência

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se mantenham os limites estritamente baixos de uma cultura vulgar, onde esse professor tenha como seu mediador a TV, que ele ache estranho ler livros, que é impossível o aluno ler livros. Desse modo, o trabalho educativo se reduz a um simples meio para reproduzir a existência da cotidianidade alienada desse professor. Um trabalho docente dessa natureza, alerta Duarte (1996, p. 56), “não poderá se efetivar enquanto mediação consciente entre o cotidiano do aluno e a atuação desse aluno nas esferas não cotidianas da atividade social”. Com efeito, a atividade educativa também se transformará “numa cotidianidade alienada que se relacionará alienadamente com a reprodução da prática social”. (id) Esse modelo educacional leva ao esvaziamento dos conteúdos e dos conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade. Fala-se da sociedade do conhecimento, mas o grande paradoxo é o esvaziamento do conhecimento, haja vista que estas teorias acabam promovendo e perpetuando o esvaziamento da função social da escola e do professor. A preocupação, justificada nos discursos de formação em EJA, de que o aluno deve ser agente de seu próprio conhecimento tem assumido um caráter de tal forma dogmático que praticamente anula os outros elementos implicados na aprendizagem: o professor e o conteúdo. Parece evidente ressaltar que, no ato de aprender, o aluno da EJA precisa desempenhar papel ativo, pois é também sujeito daquele acontecimento, não pode ser e não é um ser passivo em cuja cabeça se ‘depositarão’ informações que ele docilmente se encarregará de memorizar. Contudo, isso não pode ser propalado, de forma pouco clara que possibilite, no dizer de Klein (1996, p. 82), “confundir com um processo subjetivo, individual, de dentro para fora, que secundariza, nesse ato, a importância dos objetos de conhecimento e dos outros homens que, à sua volta, já se constituíram na forma da sociedade que os produziu”. Partindo desse entendimento, vou ao encontro de Freire (1996, p.91-126) quando esse autor em uma de suas obras, a Pedagogia da Autonomia, faz uma reflexão sobre a formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativa em favor da autonomia dos educandos. Abordarei, a seguir, algumas das teses nas quais o autor trata de algumas das questões como: o ensino dos conteúdos, o papel do professor e o papel do aluno como sujeito da produção de sua inteligência e a importância da escuta no ato de ensinar. Essas são algumas das dimensões referenciadas em sua obra e que vêm sendo confundidas por aqueles enunciados, os quais referi acima, cuja imprecisão de algumas dessas formulações são bastante corriqueiras nos textos 70_ competência


da área educacional e que sem uma profunda compreensão de sua contribuição para o pensamento e a prática pedagógica, ao invés de promover a autonomia, o diálogo mediatizador e, portanto, libertador dos sujeitos, como pretende Freire, acaba na ausência de uma profunda reflexão, promovendo a exclusão destes. Passo, agora, a partir de alguns fragmentos de sua obra, a considerar o que de fato Freire afirma. Para Freire, o professor não pode duvidar um momento sequer, durante sua prática educativo-crítica, que a educação como experiência especificamente humana é uma forma de intervenção no mundo. “Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto um esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento.” (FREIRE, 1996, p.98, grifo meu). Ele exclama que não é possível o professor ensinar o que não sabe, portanto, não pode ajudar o educando a superar sua ignorância se não superar permanentemente a sua. Para o autor, a prática docente coloca ao professor a possibilidade de que ele deve estimular através de perguntas várias e que, para tanto, precisa se preparar ao máximo para, de outro, não ter que afirmar o que não sabe. Freire chama a atenção para a presença do professor como uma presença em si política e, sendo política, não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola. E alerta que o professor não pode ser professor sem se achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de sua disciplina. Assim como, também, por outro lado, ele não pode reduzir sua prática docente ao puro ensino daqueles, os conteúdos. E explica que tão importante quanto o ensino dos conteúdos, é seu testemunho ético ao ensiná-los, a decência com que o faz. O autor fala-nos da importância da preparação científica revelada sem arrogância, com humildade. Esse é um dos aspectos em que a mediação está muito presente, embora Freire não trate dessa categoria na sua metodologia de ensino e aprendizagem. Aqui ele fala da preparação do professor, seu refinamento para a curiosidade do aluno, que deve trabalhar com sua ajuda, com vistas a que produza sua inteligência do objeto ou do conteúdo de que fala o professor. Seu papel como professor, ao ensinar o conteúdo a ou b, não é apenas o de se esforçar para, com clareza máxima, descrever a substantividade do conteúdo para que o aluno o fixe. Mas, fundamentalmente ao falar com clareza sobre o objeto, é iniciar o aluno a fim de que ele, com os materiais que o professor ofereça, produza a compreensão do objeto em lugar de recebê-la na íntegra. Nesse ponto, estão presentes as três espécies de mediação constitutivas da psicologia:7 a consciência (ou atividade mental), a socialidade (ou cooperação social) e os instrumentos (ou tecnologia). competência

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Essas espécies de mediações foram postuladas por Ratner (1995, p.14-18) e serão analisadas nesse trabalho quando abordaremos as dimensões da categoria mediação base teóricometodológica.

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Indubitavelmente, do ponto de vista freiriano, os elementos implicados na aprendizagem - conteúdo e professor não são revogados, pelo contrário, o que ele propõe é um ensino e conteúdo que promovam uma compreensão mais crítica da situação de opressão e exclusão. Mas também alerta que esta, por si só, não muda nada. Ao desvelá-la, só será possível sua superação no momento em que houver um engajamento na luta política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão e a exploração. A tomada de consciência da realidade, então, deve estar articulada com a práxis, isto é, com o processo de ação-reflexão-ação. E é o diálogo que está na centralidade da ação pedagógica, e este tem na linguagem papel material mediador, pela qual se ampliam ao infinito as possibilidades de relações interlocutivas. O autor defende uma educação democrática e dialógica, que respeite a cultura e a história de vida dos educandos, na qual educadores e educandos, conjuntamente, (re) signifiquem a realidade histórica que os cerca, discutindo-a criticamente, sem desvincular os conteúdos da vida cotidiana. O que não significa ficar no limite dessa cultura ou desse cotidiano. Mas “é respeito jamais negado ao educando, pois, no seu saber de ‘experiência feito’ que busco superar com ele”. (FREIRE, 1996, p.103, grifo meu). Nessa linha de raciocínio, tomemos a fala de alguns educadores quando difundem essa representação: o professor da EJA não deve ensinar, ele deve fazer mediações” formulam uma proposta de educação de jovens e adultos cujo ponto central é a supressão do anacronismo e do autoritarismo daquilo que se convencionou chamar de “ensino tradicional”. Referindo-se, nesse caso, ao termo designativo do autoritarismo e do exercício da transmissão do conhecimento. Os professores da EJA justificam as equivalências ora apresentadas na representação “ensino tradicional”, principalmente, pelos escritos de Paulo Freire, como fonte de força dessa representação. Freire utiliza o termo mediação em sua obra, porém, não aborda essa categoria para fundamentar o seu pensamento, mas no livro a Pedagogia do Oprimido (Freire, 1981), em que ele expõe a sua proposta metodológica para a alfabetização de adultos, a mediação está presente, por exemplo, no uso das palavras geradoras e as imagens que são associadas a elas. O aluno se alfabetiza quando se apropria do universal, por meio da particularidade que estas palavras revelam, e esta particularidade, ao se relacionar com o singular de cada um dos alunos, se configura. Logo, a relação entre o universal e o singular nessa obra de Freire não é direta, ela compreende a mediação propiciada pelas palavras geradoras. 72_ competência


Evidentemente há uma relação de ensino/aprendizagem entre sujeitos sociais, relação essa na qual o educador/professor e aluno/aprendiz se identificam com sujeitos de uma dada relação humana, mas se distinguem como polos dessa mesma relação. Como afirma Klein (1996, p. 121), “o ensino e a aprendizagem não guardam identidade; um não é mero reflexo do outro; o aprendido não é, mecanicamente, o ensinado, na sua forma pura. Contudo, ensino e aprendizagem estão em relação, constituem uma relação necessariamente articulada.” Nesse sentido, defendemos que o processo de conhecimento também comporta uma dimensão de transmissão, tanto quanto de construção desse conhecimento. Nas palavras de Klein (1996, p.121), “o aprendiz pode não aprender exatamente o que foi ensinado e como foi ensinado, mas, evidentemente, o que aprendeu foi aprendido a partir do que foi ensinado”. O que parece é que a questão do ensino/aprendizagem e mediação, da forma como está sendo colocada para a EJA, e sobretudo pela forma como vem sendo, equivocadamente, vinculada ao pensamento de Freire, não está suficientemente clara. Nesse sentido, entendemos que é preciso devolver à expressão ensino e mediação a amplitude que lhes cabe. Tomá-las enquanto designativas das mais diversas situações de exercício e transmissão das produções humanas. Enquanto práxis, desenvolvidas com finalidades. No que se refere à mediação, os educadores da EJA, ao defenderemna, ou em substituição ao ensino ou quando admitem a necessidade de mediação na relação entre o ensino e a aprendizagem, geralmente consideram que ela ocorre no vínculo que se estabelece entre o professor e o aluno e não na ligação entre estes termos. Pelo exposto, na perspectiva que aqui defendo, ensinar e aprender estão em relação necessariamente articuladas e é a mediação o termo de ligação entre os dois termos, que preserva os dois polos, e, ao mesmo tempo, provoca mudanças tanto em um polo quanto no outro. Nosso educador pernambucano vai afirmar que: ensinar e aprender têm que ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor deve deflagar. (FREIRE, 1996, p.119, grifo meu).

É nesse sentido que Freire nos diz que ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É assim que se impõe ao professor escutar o aluno em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. competência

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E ao escutá-lo, aprender a falar com ele. No sentido aqui discutido, escutar significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura da fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Mas, alerta Freire, não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao que o outro fala. Ou seja, a verdadeira escuta não diminui no professor em nada a sua capacidade de exercer o direito de discordar, de se opor, de se posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que ele se prepara para melhor se colocar do ponto de vista das ideias. Ressalta-se, pois, nessas ideias de Freire, que o professor não é aquele sujeito que tudo aceita e o processo de ensino e aprendizagem não é algo em que tudo cabe, um laissez faire, como querem os educadores da EJA, ao se utilizarem, em meu entendimento, equivocadamente do pensamento desse autor/educador brasileiro. Sua obra compreende, sim, no exercício da docência, os elementos implicados na aprendizagem: a existência de uma personagem que temos nos acostumado a chamar de professor, o ensino e os conteúdos. Como expressivamente vimos na seguinte afirmação: É preciso, por outro lado, e sobretudo, que o educando vá assumindo o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o de recebedor. (...) ao ensinar-lhe certo conteúdo, desafiá-lo a que se vá percebendo na e pela própria prática, sujeito capaz de saber. Todo ensino de conteúdo demanda de quem se acha na posição de aprendiz que, a partir de certo momento, assumindo a autoria também do conhecimento do objeto. O professor autoritário, que recusa escutar os alunos, se fecha a esta aventura criadora. Nega a si mesmo a participação neste momento de boniteza singular: o da afirmação do educando como sujeito de conhecimento. É por isso que o ensino dos conteúdos, criticamente realizado, envolve a abertura total do professor, a tentativa legítima do educando para tomar em suas mãos a responsabilidade de sujeito que conhece. (...) É nesse sentido que pode afirmar que não se pode separar a prática de teoria, pensamento de ação, linguagem de ideologia, quanto separar ensino de conteúdos de chamamento ao educando para que se vá fazendo sujeito do processo de aprendê-los. (...) Ensinando matemática que ensino também como aprender e como ensinar, como exercer a curiosidade epistemológica indispensável à produção do conhecimento. Ele precisa se apropriar da inteligência do conteúdo para que a verdadeira relação de comunicação entre em mim. (FREIRE, 1996, p. 124-125, grifo meu)

Essa abordagem me obriga a esclarecer que “não há, nunca houve e nem poderá haver educação sem conteúdo” e, além disso, que o ensino de conteúdo não exclui o desvendamento da realidade. Ambos fazem parte do mesmo ato de ensinar e se complementam. Simultaneamente, ensinar para Freire (1996, p. 53) não é o ensino do objeto por si mesmo, ou melhor, não se ensina a votar indo apenas às urnas, não se ensina 74_ competência


ecologia fazendo ativismo, mas reconhecendo o objeto cognoscível e sua razão de ser. Assim, conhecer, na teoria freireana, é uma aventura pessoal num contexto social. A noção da construção do conhecimento de Freire tem como ponto de partida as necessidades populares, o conhecimento científico como ponto de chegada. Freire aponta o conhecimento como produto das relações entre os seres humanos e destes com o mundo. Os seres humanos devem buscar respostas para os desafios encontrados nestas relações. Para isso, devem reconhecer a questão, compreendê-la e imaginar formas de respondê-la adequadamente. Daí outras questões se colocam e novos desafios aparecem. É nesse sentido que se constitui o conhecimento, ou seja, a partir das necessidades humanas. O autor aponta também o conhecimento relacional e nos diz: O envolvimento necessário da curiosidade humana gera, indiscutivelmente, achados que, no fundo, são ora objetos cognoscíveis em processo de desvelamento, ora o próprio processo relacional, que abre possibilidades aos sujeitos da relação da produção de inter-conhecimentos. O conhecimento relacional, no fundo, inter-relacional, “molhado” de intuições, adivinhações, desejos, aspirações, dúvidas, medo a que não falta, porém, razão também, tem qualidade diferente do conhecimento que se tem do objeto apreendido na sua substantividade pelo esforço da curiosidade epistemológica. Estou convencido, porém, de que a finalidade diferente deste conhecimento chamado relacional, em face, por exemplo, do que posso ter da mesa em que escrevo e de suas relações com objetos que compõem minha sala de trabalho com que e em que me ligo com as coisas, as pessoas, em que escrevo, leio, falo não lhe nega o status de conhecimento. (FREIRE, 2001, p. 53).

É, também, nesse sentido que Freire fala do respeito à leitura de mundo do educando, sinalizando que respeitá-la significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humanidade, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. O autor afirma que: (...) é preciso que ao respeitar a leitura de mundo do educando para ir mais além dela, o educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz metodicamente rigorosa. Leitura de mundo que revela, a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo e o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo. (FREIRE, 1996, p.122, grifo nosso).

Por isso, saber escutar, nessa perspectiva, não significa concordar com a leitura de mundo do aluno, ou mesmo a ela se acomodar, assumindo-a como sua. E nesse competência

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MARX, Karl. Crítica a Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Grijalbo, 1977, introdução.

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sentindo, não é também um jogo tático com que o educador procura tornar-se simpático ao educando. A maneira correta que tem o educador para com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo é mostrar ao educando que o uso ingênuo da curiosidade altera a sua capacidade de achar e gerar obstáculos à exatidão do achado. (FREIRE, 1996, p.122). Quanto à questão pertinente à cultura do aluno, o que Freire (2001, p.78) propõe é uma educação que se inicia de uma discussão da compreensão do fenômeno cultural, na qual o educando poderia saber que cultura é o resultado da intervenção que o homem e a mulher fazem no mundo e, o que é mais importante, que todos, mesmo os excluídos, podem fazer cultura e mudar o mundo da cultura, que também é o mundo do social, da política e da economia. O que deseja combater é o determinismo, a ideologia fatalista, segundo a qual Deus ou o destino são os responsáveis pela péssima vida do explorado, contrariamente, demonstrando que são as relações de produção que explicam sua vida. Por isso, para Freire (2001, p.182), a educação deve ser radical, no sentido defendido por Marx, quer dizer, ser radical é ir à raiz das coisas. Isso significa que não devemos escamotear a realidade ou simplesmente dizer que está sendo assim porque vivemos sob uma ética do mercado que desumaniza as pessoas e as forçam a oprimir e explorar. Ao contrário, ir à raiz das coisas é desvelar, com uma postura teórica, técnica, política e ética, os nexos dos problemas do sistema socioeconômico capitalista. Nessa perspectiva, a educação, mesmo possuindo limites, pode contribuir para a formação de cidadãos críticos, na medida em que denuncia e anuncia os processos de opressão e exclusão, despertando os jovens e adultos para a necessária transformação social. Mas, para tanto, nossa compreensão é que os princípios e procedimentos próprios da EJA não podem ser travestidos de uma aparente criticidade, de um caráter pretensamente revolucionário. Se o seu compromisso é com a mudança social, esses princípios não podem distanciar-se da própria matriz teórica que afirmam tomar como direção, ou mesmo não pode haver distorções que como se pode ver na análise empreendida acima, e que parece ter origem na distância entre o referencial teórico que informa a elaboração desses princípios e a massa do professorado da EJA. A superação desses percalços demanda um compromisso com a radicalidade, tal como apontada por Freire (2001, p. 182) e como a define Marx (1977)8: A força material deve ser dominada pela força material, mas a teoria transforma-se, ela também, em força material quando penetra nas massas. A teoria é

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capaz de penetrar nas massas desde que faça demonstrações ad hominem e faz demonstrações ad hominem quando se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz e a raiz do homem é o próprio homem. (MARX, 1977, p. 09).

Ao assumir tal pressuposto, intentei desenvolver essa análise à luz de uma compreensão histórica dos fatos humanos como lugar onde se analisa a realidade objetiva, na qual identifico o eixo de investigação que vai orientar o encaminhamento da pesquisa teórica e empírica. Qual seja: A base teórico-metodológica da mediação e as dimensões mediadoras que fundamentam e determinam a prática pedagógica da EJA. Reflexões que se encontram em processo de desenvolvimento.

3. Considerações Finais Socializar nesse trabalho alguns caminhos percorridos durante a minha pesquisa de doutorado fez-me refletir sobre a importância de se ir à “raiz das coisas”, ou seja, às categorias fundantes do fenômeno. A análise que venho fazendo no adentramento da práxis permitiu que eu pudesse construir algumas categorias básicas para o estudo investigativo. As quais se encontram em processo de análise e desenvolvimento. Acompanhando os atores, professores e alunos em seus cenários – salas de aula da EJA– e, voltando às questões da mediação no processo de ensino e aprendizagem e das relações que envolvem a mediação como categoria fundante do processo educativo em sala de aula, venho aprofundando a qualificação teórica de algumas categorias como uma necessidade de compreendê-las em seus desdobramentos para interpretá-las nessa pesquisa. Isso ocorre na medida em que essas categorias articuladas entre si localizam e desvelam totalidades que estão em íntima e interdependente relação, sem o determinismo desta ou daquela posição, em múltiplas conexões, relações e contextos diferenciados. O desvelamento de algumas diretrizes de reflexão e ação que contribuam para auxiliar os professores da EJA a estabelecerem com mais solidez suas abordagens teórico-metodológicas, bem como a subsidiarem mais conscientemente a política para sua práxis é o nosso intento. Até onde caminhou o trabalho investigativo, já se pode perceber que, sem a compreensão da constituição da realidade concreta do ser social na sua totalidade e como ele se articula nesse contexto, é impossível entender as mediações. competência

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Nesse processo, a mediação como categoria pedagógica fundante, revelada e compreendida nas várias totalidades, a partir das posições e das relações que os professores e alunos constroem nas suas práticas. Não há como determinar fórmulas, ou estabelecer conexões para a ocorrência dessa ou daquela ação. Nessa fase da pesquisa, algumas aproximações estão sendo elaboradas como sínteses interpretativas, com a consciência de que este trabalho é um recorte da prática pedagógica. O caminho que venho percorrendo nessa pesquisa é o encontro com reflexões e reconstruções extremamente necessárias, pois a partir dessa jornada, a minha compreensão de mediação, no mínimo, não poderá mais correr o risco de enveredar pelo viés de uma compreensão reducionista desta categoria. Esses reducionismos têm que ser combatidos cada vez mais na formação dos profissionais da educação, profissionais dos quais se exige hoje um aprofundamento teórico-metodológico continuado que lhes permita superar equívocos e consolidar conquistas, na perspectiva de possibilitar o acesso dos sujeitos ao que há de mais desenvolvido num determinado momento histórico, em termos de suas produções socioculturais. Com efeito, corroborar com a apropriação por esses sujeitos daquilo que define o grau máximo que pode alcançar o desenvolvimento dos indivíduos numa dada sociedade.

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UMA ANÁLISE DOS CURRÍCULOS DE ADMINISTRAÇÃO EM EAD NO BRASIL: CURRÍCULO INSTRUCIONAL E HUMANÍSTICO UN ANÁLISIS DE LOS CURRICULOS DE GESTIÓN EN ENSEÑANZA DIRIGIDA EN BRASIL: CURRICULO DE INSTRUCCIÓN Y HUMANISTA Sandro Coelho Moreira Pinto * Luana Rebeca Matos Lins Andrade * *

Resumo O trabalho propõe-se a abordar o latente trade off entre os conteúdos instrucionais e humanísticos presentes no curso de Administração em EAD, o que é exposto em seu início. No segundo momento, tem lugar o referencial metodológico utilizado. O caráter dialético deste artigo emerge com a exposição de autores que defendem a prevalência dos conteúdos instrucionais e de autores que optam pelo privilégio aos conteúdos humanísticos no arcabouço teórico selecionado. Em seguida, são apresentados dados do levantamento dos currículos de cursos de Administração em EAD de quatro IES brasileiras que denotam a grande predominância das disciplinas instrucionais sobre as humanísticas. Na sequência, os dados são analisados e comparados com as ideias centrais contidas no referencial teórico apresentado. Por último, os autores do artigo demonstram ter atendido os objetivos propostos e concluem que urge a busca pelo equilíbrio nos currículos em voga ou a redistribuição de papéis entre o ensino médio profissionalizante e o ensino superior. Palavras-chave: Currículo Instrucional. Currículo Humanístico. Educação a Distância. Ensino. Conteúdos.

Resumen En el documento se propone abordar la contradicción entre el contenido de instrucción y el contenido humanista en el curso de Administración en Enseñanza Dirigida, como se expone al principio. En la segunda etapa se refiere al marco metodológico utilizado. El carácter dialéctico de este artículo surge con la exposición de los autores que sostienen la prevalencia de contenidos de instrucción y de los autores que optan por la primacía a los contenido humanista, en el marco teórico seleccionado. competência

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* Universidad Del Mar, matriculado no programa de Doutorado em Educação; Mestre em Administração Estratégica. sandrocmpinto@ gmail.com ** Faculdade Dom Pedro II, matriculada no curso de graduação em Administração. luanalins08@ hotmail.com


A continuación se presenta un estudio de los planes de cursos de Administración en la Enseñanza Dirigida de cuatro instituciones de educación superior de Brasil, que denota el gran predominio de las asignaturas de Instrucción sobre las de carácter de Humanidades. Continuando, los datos actuales son analizados y comparados con las ideas centrales contenidas en el marco teórico presentado. Por último, los autores muestran que el artículo ha cumplido los objetivos propuestos y concluyen que es necesario buscar el equilibrio entre los planes de estudios actuales o la redistribución de funciones entre la escuela de formación profesional y la educación superior. Palabras Claves: Plan de Estudios de Instrucción. Plan de Estudios Humanista. Educación. Enseñanza Dirigida. Contenidos.

1. Introdução Examinando a história da educação no planeta e, mais especificamente, a evolução das discussões acerca do tema currículo, é notória a constante presença de duas correntes que representam em si duas tendências contraditórias. Uma dessas correntes aponta para a priorização das disciplinas técnicas, que capacitam o egresso do curso a assumir as funções demandadas pelo mercado. No canto oposto dessa disputa, encontra-se a corrente que briga pela priorização das disciplinas humanísticas, que não capacitam tecnicamente o egresso, mas buscam tornálo um cidadão mais completo, mais comprometido com o resultado geral de suas ações e mais engajado nas lutas pelas demandas sociais. Esta balança, é óbvio, pende mais para um lado que para outro, de acordo com a natureza do curso, com o perfil da instituição de ensino superior – IES que oferta o curso, com o momento vivido pela sociedade na qual estão inseridos a IES e o próprio curso. Este trabalho estreita o seu escopo e tem delimitada a sua área de pesquisa no campo do ensino da Administração em nível superior na modalidade de educação a distancia – EAD por conta da expansão por que passa a referida modalidade de ensino, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, conforme apontam autores trazidos à tona ao final deste capítulo. Tendo sido definido o trabalho em voga, no que tange ao seu alcance acadêmico, surgiu a necessidade de limitar também o seu alcance geográfico e elegeu-se o território nacional brasileiro para a realização desta pesquisa. 82_ competência


Dessa forma, o objetivo geral erigido para a confecção deste trabalho fica definido como descrever o atual cenário do ensino da Administração em EAD no Brasil, no tocante ao trade off entre os conteúdos instrucionais e humanísticos. A fim de viabilizar o pleno atendimento do objetivo geral apresentado no parágrafo anterior, o mesmo foi fracionado em objetivos específicos agora listados: (a) Apresentar arcabouço teórico que lastreie a discussão proposta; (b) Apresentar levantamento de dados sobre o trade off em epígrafe; (c) Analisar dados levantados a fim de permitir ao autor dissertar conclusivamente sobre o assunto. O autor e então ministro brasileiro da Educação, Fernando Haddad (2009), afirma que a EAD é um dos pilares da reestruturação da educação no Brasil, pois está o seu uso diretamente relacionado ao intensivo uso das inovações tecnológicas e metodológicas disponíveis no mercado global, além disso, a EAD tem a seu favor, toda a facilitação gerada para a comunicação no trabalho pedagógico e ainda apresenta grande capacidade de prestar importante contribuição à ampliação da oferta de educação num país continental como o Brasil, na qualidade de ferramenta que atenda a demanda pela interiorização da educação. Em concordância com o discurso de Haddad (2009), traz-se à luz o discurso de Barreto (2009). O autor aponta alguns indicativos, que segundo o próprio, tornam clara e nítida a importância verdadeiramente central da EAD no panorama da educação contemporânea em todo o mundo e mais específicamente no Brasil. O autor em pauta destaca a questão do irrefreável avanço da tecnologia disponível, sobretudo na área das comunicações, que exerce papel fundamental na perspectiva de levar a educação aos recantos de mais difícil acesso, sem abrir mão da qualidade e com custos bastante módicos. Essas características credenciam a EAD a alcançar um target outrora impensável. O autor aponta, ainda, o crescimento exponencial da demanda por uma educação mais completa e sofisticada, que seja, ao mesmo tempo, mais humanística e mais especifica como fator de fomento ao crescimento da EAD. O mesmo Barreto (2009) ressalta a necessidade de a EAD estar focada na especialização do egresso, nas demandas do mercado de trabalho e do ritmo da vida moderna, que, como é notório, limita o tempo de dedicação das pessoas aos estudos, mas que, em hipótese alguma, negligencie o desenvolvimento do homem enquanto ser social. A colocação do autor destaca a sua neutralidade no que tange à questão central proposta neste trabalho. Barreto (2009) afirma também que essa realidade torna-se ainda mais lacompetência

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tente num país de dimensões continentais como o Brasil e no qual a EAD vem firmando-se há décadas como ferramenta indispensável à correção de distorções existentes no ensino formal. O Brasil tem regiões de dificílimo acesso, cidades incrustadas em florestas, com acesso por estradas sem asfalto e, muitas vezes, com acesso exclusivamente por via hidroviária, o que se transforma em obstáculos naturais para milhares de estudantes, carentes por educação, que muitas vezes abandonam a escola ou mesmo nem começam a estudar por falta de oportunidade.

2. Metodologia da pesquisa realizada Este estudo apropria-se do recurso da dialética entre pesquisadores que pregam a prevalência das disciplinas instrucionais e entre aqueles que defendem a prevalência das disciplinas humanísticas, que apresentam a sua argumentação quanto à discussão em pauta. A dialética está vinculada ao processo dialógico de debate entre posições contrárias e baseada no uso de refutações ao argumento por redução ao absurdo ou falso. Segundo J. Stalin (1982), antigamente, era considerada a arte de chegar à verdade, mostrando as contradições dos argumentos do oponente e superando essas contradições. (RICHARDSON, 1999, p. 45).

Richardson (1999) reafirma a sua assertiva de que a essência da dialética consiste na investigação das contradições da realidade. As peculiaridades aquí descritas acerca do método dialético apontam para o atendimento pleno dos objetivos eleitos para este trabalho. O arcabouço teórico necessário à promoção da dialética proposta é advindo da pesquisa bibliográfica realizada. Segundo Cervo (2002), a pesquisa bibliográfica tem o objetivo precípuo de tornar nítidos os conceitos acerca de um tema, tomando como base as referências teóricas publicadas em documentos diversos. Severino (2007) aduz que a pesquisa bibliográfica utiliza-se de dados e de categorias teóricas anteriormente apresentadas por outros pesquisadores, evidentemente, quando se encontram devidamente documentados. Dessa forma, o autor em epígrafe ensina que os textos assumem o importante papel de fontes de informação sobre os temas relacionados na pauta descrita para as pesquisas a serem desenvolvidas. Assim sendo, o pesquisador lastreia o seu trabalho nas contribuições dos autores de estudos analíticos descritos nos textos pesquisados. 84_ competência


O estudo de mais de um caso, ou estudo de casos múltiplos, que coaduna com a proposição feita para esta pesquisa, encontra respaldo nas obras de Yin (2005) e de Gil (2009). Gil (2009) alerta para o fato de que o grupo de casos selecionados para um estudo múltiplo não carece de representatividade do universo a ser pesquisado, como uma amostragem estatística, cabendo ao pesquisador selecionar casos que prevejam resultados semelhantes. Por sua vez, Yin (2005, p. 68) acresce: O mesmo estudo pode conter mais de um caso único. Quando isso ocorrer, o estudo utilizou um projeto de casos múltiplos, e esses projetos aumentaram com muita freqüência nos últimos anos. Um exemplo comum é o estudo de inovações feitas em uma escola (como o uso de novos currículos, horários de aula reorganizados ou novas tecnologias educacionais), no qual cada escola adota alguma inovação.

3. Fundamentação teórica O presente capítulo destina-se a abrigar as contribuições realizadas por autores diversos acerca dos temas que envolvem os objetivos erigidos para a construção deste artigo. 3.1 Currículo Benvenutti e Bendix (2008) afirmam que o panorama atual da articulação dos currículos com o mundo do trabalho diminui a quantidade disponível de empregos fixos de longa duração e em tempo integral, que são substituídos por novos formatos, a exemplo do trabalho temporário, por projetos e outros que demandam maior versatilidade por parte do trabalhador. Os autores apontam, ainda, que as novas formas de trabalho, ditadas pelas inovações tecnológicas, exigem o envolvimento com o mundo do trabalho e a habilidade de transformar desafios em oportunidades. Essas habilidades referem-se aos mais diversos fatores de transformação, como as crises econômicas, que exigem grande rol de habilidades que serão obtidas apenas através da formação ampla e abrangente. A escola deve assumir o papel de propiciar o ambiente adequado para desenvolver as potencialidades dos futuros trabalhadores, que precisarão comprecompetência

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ender o novo cenário global, dominar suas ideologias e mecanismos, em muitas situações, sucumbindo às suas forças, no entanto, preservando o seu discernimento, a sua capacidade de questionar e o grande potencial de transformação dessa realidade. Flores e Flores (1998) apontam que a ação de fomentar a inovação curricular nas escolas é papel do professor, o que reforça a pregação de Flores (1997), que afirma que o papel do profesor como técnico ou executor já não mais existe, este deve, hoje, assumir o seu papel como interveniente ativo e decisivo no cuidadoso proceso de inovação curricular. Concluindo a introdutória exposição sobre o tema, vale refletir: Serve como apoio a esse argumento o recente informe do Clube de Roma intitulado ‘A primeira revolução global’. Nele, se assinala como um dos problemas que afetam a educação o que ‘a enorme magnitude do saber acumulado em todos os campos significa que já não sabemos escolher o que é que se deve transmitir’. Isso faz com que, na opinião dos especialistas, redatores desse informe, a educação escolar tenha que estabelecer os seguintes objetivos: combinar a aquisição de conhecimentos, a estruturação da inteligência e o desenvolvimento das faculdades críticas; desenvolver o conhecimento de si próprio; avivar, de forma permanente, as faculdades criativas e imaginativas; ensinar a desempenhar um papel responsável na sociedade; ensinar a comunicar-se; ajudar os estudantes a prepararem-se para mudar e capacitá-los para adquirir uma visão global. (HERNÁNDEZ e VENTURA, 1998, p. 49).

3.1.1 Sem pender a balança Entrando na discussão central deste trabalho, Benvenutti e Bendix (2008) pregam que as exigências do mercado de trabalho provocam discussões quanto às qualificações profissionais necessárias para a absorção de egressos do sistema educacional. Assim, o trabalhador busca esta qualificação para pleitear a oportunidade que carece. Para estes profissionais, o privilégio das disciplinas técnicas vem ao encontro das suas necessidades, para que possam adequar-se às exigências do mercado de trabalho. O contraponto apresentado pelos autores em pauta refere-se a dois tópicos. Primeiro tópico, o desempenho inferior apresentado pelos egressos de sistemas educacionais que privilegiam o ensino de disciplinas instrumentais, por conta da deficiência do ensino recebido. Já o segundo tópico, levantado pelos autores supracitados, traz à tona a impossibilidade de um profissional alcançar o sucesso no mundo moderno sem desenvolver a sua inteligência emocional.

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3.1.2 Pendendo para o caráter instrumental Deixando transparecer a predileção pelas disciplinas instrucionais sobre as humanísticas, aflora: “Um país condizente com o mundo moderno precisa de pessoal capacitado para empreender a marcha da qualidade e da produtividade”. (NISKIER, 1998, p. 199). Já Flores e Flores (1998, p. 86) apontam a escolha pelo caráter técnico: “A inovação curricular tem, portanto, uma vertente pragmática que remete ao desenvolvimento e recontextualização do currículo sob uma óptica de adaptação às dinámicas locais e regionais.” Também em sua contribuição que pesa sobre o ensino da Administração, Pizzinatto aponta sua tendência pelo caráter técnico do ensino, conforme é possível notar: No caso específico do curso de administração, no Brasil, a discussão sobre o perfil do profissional passou por várias etapas, exigindo das instituições de ensino superior adaptações constantes, em especial por que o egresso desse curso atua em cenários em constantes mutações. (PIZZINATTO, 1999, p.174).

3.1.3 Pendendo para o caráter humanístico Em pesquisa intitulada ‘Perfil e habilidades do administrador’, a Associação Nacional de Cursos de Graduação em Administração – ANGRAD (1996) publicou pesquisa realizada com uma centena de coordenadores do curso de graduação em Administração que apresentou em seu topo a visão global e humanística enquanto ferramenta fundamental para a correta tomada de decisões no mundo moderno. Já a formação técnica do administrador ficou com o segundo posto da pesquisa, o que envolve os aspectos técnicos e práticos. A seguir, vieram a ética, o empreendedorismo, o aperfeiçoamento profissional e a interdisciplinaridade. Livingston (1971) já criticava a formação eminentemente instrumental do administrador quando afirmava que a formação da época já servia como deseducação, vez que, distorcia as habilidades dos egressos do curso, pois não existia discussão da prática cotidiana e nem a contextualização dos conteúdos abordados no curso. Birochi (2000) define a sua predileção analisando o documento produzido pelo Congresso de Locarno, realizado pela CIRET-UNESCO, em 1997, e afirma competência

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que o documento em epígrafe ressalta que a crescente especialização que fomentou o desenvolvimento de grandes avanços na ciência não contribuiu para o desenvolvimento do homem e acabou por formar grandes especialistas que mal conseguem interagir e que este caminho direciona o homem, mais para um vazio do saber que para uma elevada compreensão da realidade. É dessa forma que se revela hoje a mais verdadeira antítese do conhecimento humanista, surgido a partir do renascimento europeu, que adotou forte caráter universalista. Em paralelo, nota-se grande avanço do conhecimento científico, de caráter positivista, iniciado no século XIX e potencializado pelos grandes benefícios sociais gerados pelo desenvolvimento das ciências, mas que terminou por gerar grande prejuízo à visão holística da realidade. Os maiores desafios da nossa época, como por exemplo, os desafios de ordem ética, clamam cada vez mais por competências. No entanto, a soma dos melhores especialistas em suas respectivas áreas só pode engendrar uma incompetência generalizada, pois a soma de competências não é competência: no plano técnico. A intersecção entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio. Ora, o que é um líder, individual ou coletivo, senão aquele que é capaz de levar em conta todos os dados do problema que examina? (CONGRESSO DE LOCARNO, 1997, apud BIROCHI, 2000, p. 84).

Assim, conclui o autor supracitado: “Neste sentido, áreas do saber como a ética, a filosofia e a antropologia, que deveriam ser a base e o ponto de congruência de onde parte o conhecimento, ficam relegadas a segundo plano,” (BIROCHI, 2000, p. 84). Explicação para o inconteste fato apontado por Birochi (2000) é apresentada por Apple (2006), o autor afirma que ciências como a matemática recebem muito mais financiamentos que ciências como a arte, por dois motivos. O primeiro é a utilidade econômica das ciências instrucionais, com relação às ciências humanísticas, o conhecimento técnico pode rapidamente gerar renda. A segunda questão é a valorização de conteúdos que podem ser isolados, modulados, que apresentam estrutura estável, que pode ser mais facilmente ensinado e que pode ser testado. Outros autores a criticar o compartilhamento do saber e engrossar as fileiras daqueles que querem fazer a balança do trade off levantado pender para o lado humanístico são Hernández e Ventura (1998), que assumem posicionamento contrário e trazem à ágora trade off diverso, que envolve a polêmica questão da especialização ou da interdisciplinaridade dos currículos, que, por sua vez,

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remete à questão da autonomia dos campos de saber ou da sua sobreposição. Closs, Aramburu e Antunes (2009) afirmam que é excessiva a ênfase no ensino das técnicas orientadas para aplicação em grandes organizações, prejudicando o desenvolvimento de competências como a criatividade, a crítica, a cultural geral, o grau de consciência e de responsabilidade, o que gera insensibilidade em relação a valores sociais e humanos. O panorama descrito no parágrafo anterior pode também ser confirmado na seguinte citação: A lógica capitalista que vem subjugando todos os pressupostos de orientação da vida humana, sob a égide de um racionalismo comprometido com o modo de reprodução e com o discurso hegemônico do capital, constitui-se na grande ‘maré’ da sociedade ocidental. (BARROS e PASSOS, 2000, p. 172).

Em consonância com o discurso de Barros e Passos (2000), e lançando um olhar sociológico sobre o tema, Apple (2006) esclarece que uma sociedade desigual usa artifícios como a transmissão da cultura corrente com o objetivo de manutenção do status quo, e que utiliza-se da escola e da sua grande importância enquanto ponto de referência social. Assim, segundo o autor, a perpetuação do estado de desiguladade é facilitada pela prevalência de conteúdos instrucionais, desprovidos de conotação social, que não fomentam as discussões desse caráter. Para justificar o seu posicionamento, Apple (2006) evoca os preceitos utilizados pelos teóricos críticos da Escola de Frankfurt, que, segundo o autor, pregam que o contexto no qual são percebidos os fenômenos sociais e a hierarquização individual dos valores que cada homem constrói, pode mascarar o seu interesse em servir à preservação do status quo. À pregação de Barros e Passos (2000) e Apple (2006), alinha-se Sacristán (2006), que aponta ser o currículo o protetor de uma série de esquemas de racionalidade, crenças, valores, entre outros, que condicionam a teorização sobre o próprio currículo, pois nenhum fenômeno é indiferente ao contexto em que surge. 3.2 EAD A credibilidade da EAD cresce no Brasil e no mundo. O inconteste fato advém do reconhecimento do seu relevante papel social, que decorre do potencompetência

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cial de levar a educação a limites geográficos antes improváveis. A EAD tem colaborado também na educação de crianças, jovens e adultos, desde os menos escolarizados até mesmo os pós-graduados. Ainda sem conhecer os seus limites, a EAD abre enormes possibilidades de levar educação de melhor qualidade a um número crescente de interessados, sendo assim percebida como ferramenta de democratização do saber e difundindo a ideia de que o processo educativo nunca se encerra, pois é continuamente necessário (SOUSA; OLIVEIRA; REZENDE, 2006). Especificamente no caso brasileiro, Niskier (2009) preconiza que foi a LDB/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1996, que abriu espaço para a EAD. O autor aponta que o capítulo que trata da educação superior, em seu artigo 37, parágrafo 3º, aponta a obrigatoriedade da frequência de alunos e professores, ressalvando apenas os programas de EAD. Já no artigo 80, há a indicação de que caberá ao poder público fomentar o desenvolvimento da produção e da veiculação de programas de EAD. O artigo 87 prevê ainda a realização de cursos em EAD para jovens e adultos insuficientemente escolarizados.

4. Levantamento de dados Para a realização desta pesquisa foi realizado levantamento dos currículos de quatro cursos de Administração em EAD, todos oferecidos no Brasil com a chancela do Ministério da Educação e Cultura - MEC. As IES envolvidas na pesquisa estão abaixo relacionadas. UNIFACS - Universidade Salvador. IES de caráter particular, com sede em Salvador. Referência em educação superior na região nordeste do Brasil. UNOPAR - Universidade do Norte do Paraná. Também de caráter particular, esta IES detém hoje um dos maiores e mais capilarizados sistemas de EAD do país. UNITINS - Fundação Universidade do Tocantins. Também esta IES administra outro entre os maiores e mais capilarizados sistemas de EAD do país. FEA/USP – Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. IES de caráter federal, é referência nacional em educação superior.

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4.1 Metodologia do levantamento De posse dos currículos, através dos correspondentes websites, as disciplinas citadas foram classificadas e agrupadas como instrucionais, humanísticas ou neutras, de acordo com o seu título e, quando necessário, com a sua ementa. As disciplinas classificadas como instrucionais visam capacitar o egresso às atividades práticas inerentes à sua profissão. Já as disciplinas relacionadas entre as humanísticas têm como objetivo dotar o egresso de capacidade de contribuir com a sociedade. Enquanto as disciplinas rotuladas como neutras são aquelas que não tiveram o seu perfil claramente definido entre instrucional e humanística. Foram classificadas como instrucionais, disciplinas ligadas a Contabilidade, Direito, Empreendedorismo, Estatística, Estratégia, Finanças, Gestão, Informática, Logística, Marketing, Matemática, Produção, Recursos Humanos, entre outras. E como humanísticas, disciplinas como Filosofia, Sociologia, Ética, Responsabilidade Social, entre outras. 4.2 Resultados do levantamento O currículo coletado no website da UNIFACS indica o maior equilíbrio entre os quatro casos estudados. 75% das disciplinas do curso de Administração desta IES são dotadas de caráter instrucional, enquanto 10% dessas disciplinas foram classificadas como neutras, restando a 15% das disciplinas ofertadas assumirem o papel de disciplinas humanísticas. Já o currículo apresentado no website da UNOPAR aponta para a menor participação de disciplinas instrucionais e a maior participação de disciplinas neutras, que podem ser administradas de acordo com a necessidade da IES. Nesse caso, 72% das disciplinas foram classificadas como instrucionais, a representatividade das neutras chegou a 21%, enquanto as disciplinas de caráter humanístico estão resumidas a 6% do currículo apresentado. Quando pesquisado o currículo oferecido pela UNITINS, encontra-se grande participação das disciplinas instrucionais, além de uma participação representativa das disciplinas neutras, em detrimento das disciplinas humanísticas. Esta IES oferta 77% de disciplinas de caráter instrucional, já as disciplinas classificadas como neutras chegam a 14%, enquanto as de caráter humanístico representam 9% do currículo em competência

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pauta. Por fim, o currículo disponível no website da FEA/USP aponta para uma prevalência absoluta das disciplinas instrucionais, que atingem a representativa marca de 94% das disciplinas ofertadas, ao tempo em que 4% delas foram classificadas como neutras e as disciplinas de caráter humanístico ficam com ínfimos 2% do currículo oferecido por esta conceituada IES.

5. Análise de dados apresentados Através da observação dos dados obtidos e apresentados, torna-se nítida a predominância das disciplinas instrucionais sobre as disciplinas humanísticas. A predominância das disciplinas instrucionais é clara, pois os percentuais de sua representatividade nos currículos estudados varia entre 72% no caso da UNOPAR e 94% no caso da FEA/USP. Enquanto a representatividade das disciplinas humanísticas varia entre 2%, no caso da FEA/USP e 15% no caso da UNIFACS. Comparando os currículos em pauta, é possível afirmar que aquele com maior direcionamento para a iniciativa privada, que exige as disciplinas instrucionais, foi o da única IES de financiamento público que compõe este estudo, a FEA/USP. O direcionamento que pode ser interpretado do currículo em voga entra em absoluta consonancia com as obras de Niskier (1998) e Pizzinatto (1999), além de Flores e Flores (1998) . Os autores afirmam que a inovação ocorrida nos currículos é carregada de pragmatismo e reforça a evolução dos currículos em função de sua adaptação às dinâmicas locais. Enquanto o currículo que denota, segundo este estudo, uma maior preocupação com o homem inserido em seu meio, pois dedica uma maior atenção às disciplinas humanísticas, quando em comparação com os outros casos em pauta, é o da UNIFACS. O currículo da única IES nordestina citada nesta obra, a UNIFACS, aponta para a convergência com as ideias apresentadas no Congresso de Locarno (1997) e defendidas nas obras de autores como Hernández e Ventura (1998), Birochi (2000), Barros e Passos (2000), Apple (2006) e Closs, Aramburu e Antunes (2009). Birochi (2000) afirma que os grandes avanços científicos na humanidade formam superespecialistas em seus temas de pesquisa, mas que são seres humanos incapazes de interagir com outros seres humanos, o que levará a humanidade a um vazio do saber e não a uma elevada compreensão da realidade. 92_ competência


6. Conclusões O primeiro objetivo específico eleito para este trabalho foi: Apresentar aracabouço teórico que lastreie a discussão proposta; o atendimento desse objetivo deu-se no decorrer do terceiro capítulo. Já o segundo objetivo específico proposto: Apresentar levantamento de dados sobre o trade off em epígrafe; foi apresentado no quarto capítulo. Por fim, o terceiro objetivo apresentado: Analisar dados levantados a fim de permitir ao autor dissertar conclusivamente sobre o assunto foi atendido em duas partes, a análise de dados teve lugar no quinto capítulo, enquanto a conclusão ficou para o trecho final do presente sexto capítulo. Perante o atendimento dos objetivos específicos, entende-se como plenamente atendido o objetivo geral deste artigo: Descrever o atual cenário do ensino da Administração em EAD no Brasil, no tocante ao trade off entre os conteúdos instrucionais e humanísticos. Diante do exposto neste artigo, é possível concluir que urge a busca pelo equilíbrio entre ambos os conteúdos nos cursos de Administração em EAD. Tal posicionamento passará pela diminuição da representatividade das disciplinas técnicas ou instrucionais e pela ampliação da representatividade das disciplinas humanísticas, que formam egressos mais preparados para interagir em suas comunidades e para agir perante as problemáticas do mundo moderno. No entanto, a busca pelo equilíbrio entre os conteúdos dos cursos de graduação não é o único caminho que pode ser trilhado para a solução do trade off em epígrafe. A formação instrucional é uma demanda do mercado, que precisa de pessoas com as mais diversas capacidades técnicas para as empresas. Mas a capacitação eminentemente técnica pode e, em muitas profissões, tem lugar no ensino secundário, na forma do ensino profissionalizante. Por sua vez, a formação humanística, capaz de transformar o administrador num cidadão socialmente responsável é também conteúdo indispensável à sociedade. Assim, caso a solução de debruçar o foco do ensino secundário sobre o conhecimento instrucional fosse adotada, o ensino superior ficaria livre da carga instrucional, abrindo o espaço necessário à formação humanística mais completa e abrangente do egresso do curso superior. Findado o trabalho proposto, é válido apontar que a realização de pesquisa análoga que envolva a comparação entre os currículos dos cursos de Administração competência

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em EAD utilizados no Brasil, alguns dos quais foram objeto dessa pesquisa, com os currículos do mesmo curso, utilizados por IES estrangeiras franquearia uma leitura crítica quanto ao posicionamento dos currículos nacionais perante os currículos adotados em outras nações.

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A LÍNGUA INGLESA COMO UM PRODUTO CONSUMÍVEL: A PRÁTICA DO CONVENCIMENTO NO IMAGINÁRIO CAPITALISTA ENGLISH LANGUAGE AS A CONSUMABLE PRODUCT: THE PRACTICE OF CONVINCINGNESS IN THE CAPTALIST IMAGINARY Thiago Ingrassia Pereira * Giovani Forgiarini Aiub * *

Resumo Atualmente, o ensino do idioma inglês tem ocupado um lugar privilegiado, não só no âmbito da educação regular, mas principalmente em cursos especializados no ensino de línguas, uma vez que, no cenário mercadológico, a língua inglesa é influente, devido às demandas de um mundo globalizado. Nesse sentido, o aprendizado do inglês não é visto como um processo de desestabilização subjetiva, que tira o sujeito de seu universo logicamente estabilizado pela língua materna, mas é apenas, estrategicamente, diferenciar-se na busca por posições de liderança no mercado. Nesta lógica individualista e concorrencial, a produção discursiva publicitária acaba construindo o imaginário de que não há espaço destacado sem o domínio pleno da comunicatividade no idioma inglês. Neste viés, sob a ótica da Análise do Discurso francesa dialogando com a contextualização sociológica do período atual do capitalismo, este artigo faz um esboço desta conjuntura e analisa alguns slogans publicitários de um curso de idiomas a fim de apresentar como a língua é vista como um produto a ser consumido. Palavras-chave: Língua Inglesa. Sujeito. Capitalismo.

Abstract Nowadays, English teaching has occupied a privileged space not only in regular schools, but in specialized language courses as well. In the market scenario, the English language is influential due to demands of a globalized world. Thus, learning English is not understood as a subjective destabilization process, one that takes the subject out of his/her stabilized world by the mother language, but learning English is strategically just a search for a leading position in the market. Inside this selfish competência

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* Sociólogo, Doutorando em Educação pela UFRGS, Professor Assistente da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim/RS. thiago.ingrassia@ uffs.edu.br ** Mestre em Estudos da Linguagem pela UFRGS, Professor de Língua Portuguesa e Inglesa na Educação Básica das redes pública e privada de ensino. gioaiub@gmail. com


thinking and competitive approach, the advertising production ends up constructing the imaginary that there is no outstanding position without an absolute competence in English speaking. Therefore, from the perspective of French Discourse Analysis in a dialogue with sociological context of the current period of capitalism, this paper tries to outline this development and analyzes some slogans of a given language course in order to show how the language is seen as a product to be consumed. Keywords: English Language. Subject. Capitalism. Consomem-se línguas como se fossem mercadorias, objetos que nos tornam consumíveis num mercado de trabalho seletivo e exigente (CORACINI, 2007, p. 10).

1. Palavras Iniciais Tratar a língua como mero instrumento de comunicação já é, por si só, elidir o caráter singular que ela exerce na constituição subjetiva. Não há como pensar a língua sem lidar com o sujeito, e não há como mobilizar a categoria do sujeito sem refletir sobre a língua. Ambos estão imbricados, pois é pela língua que se tem acesso à constituição dos sentidos, e por que não dizer dos sentidos no ato da (não)-comunicação? Não é possível que se possa ter a ilusão de que em todo o ato de comunicação há um perfeito entendimento entre “emissor” e “receptor” (para usar as palavras de Jakobson, 2005). Mesmo que seja em língua materna, mesmo que seja numa mesma comunidade linguística, a língua é suscetível a deslizes, a falhas, a desentendimentos. O que se poderia dizer então dos desentendimentos em língua estrangeira? Em princípio, eles seriam muito mais comuns, uma vez que, neste processo de aprendizagem, há uma experimentação do novo. Desde novas formas de dizer – tanto no que diz respeito a estruturas linguísticas, quanto a novos fonemas – às palavras desconhecidas que passam a fazer parte do vivido. Tudo isso começa a entrar em cena. Nesse sentido, não se pode supor “falar” como apenas comunicar-se, pois “falar é sempre um processo cuja complexidade estrutural supera o mero exercício de habilidades visando à ‘comunicação’ de mensagens ou à resolução de ‘problemas’ operacionais” (SERRANI-INFANTE, 1997, p. 65). Assim, supor a língua como instrumento de comunicação pode ser o primeiro passo para tomá-la como objeto mercadológico, um objeto de venda. Hoje em dia, no contexto educacional brasileiro, o ensino de línguas estrangeiras tem se pautado por uma visão mercadológica e comunicacional, e não como 98_ competência


uma outra possibilidade de constituição do aprendiz enquanto sujeito. De acordo com Revuz (1998, p. 217), “toda tentativa de aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com as palavras da primeira língua”. Portanto, este questionamento que a língua estrangeira impõe, todo esse embate que ela causa, todo esse confronto que desestabiliza o mundo já organizado pela língua materna faz parte da constituição do sujeito. Características essas que, num mundo do “salve-se quem puder”, sequer são consideradas, pois a língua estrangeira passa a ser mais uma mercadoria a ser consumida, dando a possibilidade de lucros para quem a vende. Nesta perspectiva, no prisma dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso francesa e num diálogo com a contextualização sociológica deste período particular do capitalismo, faremos um esboço desta conjuntura e tomaremos como base slogans publicitários de um curso especializado no ensino de línguas (veiculados na mídia virtual) para mostrar como a língua inglesa se sobrepõe às demais línguas estrangeiras. Além disso, pretendemos mostrar como este idioma passa a ser visto como um instrumento (ferramenta) para a ascensão profissional, sendo assim mais um artefato de venda.

2. A sociedade capitalista da globalização neoliberal: o “Salve-se quem puder” poderá salvar quem? A realidade tem se apresentado de forma contraditória e, em certo sentido, paradoxal. Convivemos com a produção de riquezas e o desenvolvimento tecnológico ao lado de um número fantástico de excluídos de toda a ordem. Segundo Antunes (2005, p. 68-9), a sociedade do consumo destrutivo e supérfluo, ao mesmo tempo em que cria necessidades múltiplas de consumo fetichizado, de fato impossibilita que amplos contingentes de trabalhadores, os verdadeiros produtores da riqueza social, dela participem sequer como apêndice, nem mesmo como membros das sobras do consumo. Como disse limpidamente um participante do Movimento dos Sem Teto do Rio de Janeiro: “se somos nós quem construímos os shoppings, por que não podemos sequer visitá-los?”.

Esta realidade tem seu ponto de partida mais explícito pela denominada Revolução Científica Tecnológica, definida por alguns autores (ANTUNES, 2005; competência

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Para Ianni (2004, p. 313), “o neoliberalismo compreende a liberação crescente e generalizada das atividades econômicas, compreendendo a produção, distribuição, troca e consumo. Funda-se no reconhecimento da primazia das liberdades relativas às atividades econômicas como pré-requisito e fundamento da organização e funcionamento das mais diversas formas de sociabilidade; compreendendo não só as empresas, corporações e conglomerados, mas também as mais diferentes instituições sociais”.

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FRIGOTTO, 2003; VIZENTINI, 1999) como a Terceira Revolução Industrial, que é marcada pelo uso de tecnologia informatizada e da robótica, desenvolvendo-se com maior nitidez no início da década de 1980. A reestruturação produtiva do trabalho coloca em xeque a organização do modelo taylorista-fordista que disciplinou as relações de trabalho desde o início do século XX. Com base em um novo paradigma de produção, que tem seu protótipo na fábrica japonesa Toyota (toyotismo), o mundo do trabalho começa a conviver com a flexibilização, a parcialização, a polivalência e a terceirização como fatores constituintes de um novo momento (ANTUNES, 2003, 2002). Essa nova realidade do mundo do trabalho está intimamente associada com o processo de questionamento das bases do modelo de bem-estar social que ordenou as relações Capital/Trabalho, principalmente, no pós-Segunda Guerra. O mundo do trabalho conheceu, a partir do final da década de 1980, um movimento de reestruturação de sua dinâmica operacional, já que o modelo taylorista-fordista passava a ser questionado em sua eficácia para manter o lucro (uma das características essenciais do capitalismo). Assim, este momento histórico aconteceria marcado pela transição do fordismo para a acumulação flexível, ensejando mudanças profundas na organização do capital e do trabalho. No campo político e da gestão da esfera pública (Estado), ganha força a ideologia neoliberal1, ratificando as premissas do livre mercado e da preponderância do privado em relação ao público, ou seja, do indivíduo racionalmente articulado em detrimento do coletivo. Com a queda simbólica do Murro de Berlim (1989), a Guerra Fria encontra seu desfecho e abre-se (renova-se) a crença no capitalismo como sistema hegemônico e verdade absoluta: fora dele, não há salvação. Nesta etapa particular do capitalismo, a estratégia neoliberal de gestão econômica se espraia a todos os campos da vida, prevalecendo o ideário da competição e da maximização dos lucros, atacando a intervenção estatal na regulação da economia e das relações de trabalho. Como ficam as pessoas diante disso? Os efeitos do neoliberalismo se expressam de diferentes formas a partir do contexto social produzido pelas transformações do mundo do trabalho e pelas práticas da teoria neoliberal, de diminuição das prerrogativas do Estado, e da Terceira Via, que busca a reforma do Estado redirecionando-o a atividades específicas, agravou o contingente de excluídos no mundo inteiro. De acordo com Mészáros (2005, p. 73), 100_ competência


Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mínimos para a satisfação humana são insensivelmente negados à esmagadora maioria da humanidade, enquanto os índices de desperdício assumiram proporções escandalosas, em conformidade com a mudança da reivindicada destruição produtiva, do capitalismo no passado, para a realidade, hoje predominante, da produção destrutiva.

O quadro societário atual pode ser entendido pela visualização dessa enorme contradição entre a produção de riquezas e tecnologia e a sua precária distribuição que fomenta o abismo social contemporâneo. Os dados a seguir são ilustrativos da continuidade e até do aumento dos problemas sociais causados pelo capitalismo: segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, o 1% mais rico do mundo aufere tanta renda quanto os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere aos rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viviam com menos de dois dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma forma apropriada de serviço de saneamento, e uma em cada seis crianças em idade de freqüentar a escola primária não estava na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não-agrícola esteja desempregada ou subempregada (MINQ LI apud MÉSZÁROS, 2005, p. 73-4).

Esta realidade esboçada na pesquisa da ONU não é algo natural, obra do destino ou castigo de Deus. Isso é fruto de uma conjuntura histórica de opções políticas e de decisões que representam interesses de segmentos da sociedade em detrimento de outros. Talvez seja por isso que Freire (1996, p. 128) defende que “o sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadeza intrínseca”. Dessa forma, algumas questões se prestam para a análise crítica e podem ser levantadas: a) de que forma o contexto atual, nos campos da economia e da política, tem afetado o processo de subjetivação das pessoas, ou seja, qual o impacto ao nível da compreensão e da ação dos sujeitos das redefinições entre os âmbitos públicos e privados? b) quais as estratégias midiáticas que os discursos hegemônicos utilizam-se na propagação do racionalismo neoliberal? c) por quais canais tem-se materializado a ideologia da globalização neoliberal? competência _ 101


Pontualmente, este trabalho analisa um dos mais incisivos discursos que expressa esse cenário descrito brevemente. A competitividade e o discurso da qualificação permeiam o mercado de trabalho e colocam diante das pessoas demandas para seu acesso e/ou permanência nele. O domínio da língua inglesa é um dos aspectos mais destacados pelo discurso ideológico do capitalismo atual, fazendo com que o avanço cognitivo em busca da compreensão de um outro idioma diferente do materno seja muito mais uma ferramenta pragmática (dentro de uma lógica racional de resultados) do que uma busca curiosa pelo conhecimento enquanto expressão da libertação humana.

3. A prática do convencimento: o discurso publicitário e seu mundo ideal(izado) Para melhor compreendermos o processo atual, no qual slogans publicitários de escolas de idiomas aparecem sob uma ótica neoliberal, mostrando um mundo alegórico, vale voltar o olhar ao processo de constituição de alguns mitos sobre o ensino de línguas estrangeiras, em especial a língua inglesa. No que diz respeito à história do ensino de línguas estrangeiras no Brasil, Chagas (1967) afirma que foi em 1837, no colégio Dom Pedro II, que aqui tivemos oficializada esta disciplina na grade curricular escolar. Segundo ele, As línguas modernas ocuparam então, e pela primeira vez, uma posição análoga a dos idiomas clássicos, se bem que ainda fosse muito clara a preferência que se votava ao latim. Entre aquelas figuravam o francês, o inglês e o alemão de estudo obrigatório, assim como o italiano, facultativo; e entre os últimos apareciam o latim e o grego, ambos obrigatórios (CHAGAS, 1967, p. 105).

Assim, cabe dizer que no Brasil o ensino de línguas estrangeiras ocupou um lugar privilegiado nas escolas de ensino regular desde o início do século XIX, principalmente com o ensino da língua francesa, uma vez que havia uma forte influência da França em nossa cultura e ciência. Entretanto, de acordo com Paiva (2003), após a Segunda Grande Guerra, o Brasil passou a ser cultural e socialmente dependente dos Estados Unidos da América. Assim, a necessidade e o desejo pela língua inglesa se sobrepôs à língua francesa. Mesmo com o interesse em aprender a língua inglesa, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 retirava a obrigatoriedade do ensino de línguas estrangeiras no que hoje seria o Ensino 102_ competência


Básico (PAIVA, 2003). Deste modo, crescem os cursos privados de ensino de línguas, principalmente os de língua inglesa, fortalecendo o imaginário de que não é possível aprender língua estrangeira na escola regular, principalmente a pública. Por esse curto espaço de tempo, não se pode dizer que a história sempre faz progredir, mas ela regride também, nem sempre o que há é um progresso histórico. Como exemplo, até 1961 mais de uma língua estrangeira era obrigatória no currículo da Educação Básica, depois este componente curricular passa a ser opcional. Mais tarde, em meados da década de 1990, ocorre a implementação da Lei 9394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que torna o ensino de pelo menos uma língua estrangeira obrigatório. Em seu artigo 26, inciso quinto, a lei diz o seguinte: na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição (BRASIL, 1996, p. 10).

Feita esta referência, não é de se espantar que a língua estrangeira implantada no currículo da maioria das escolas públicas foi a língua inglesa, pois esta circula no imaginário de alguns professores e alunos como uma língua que dá prestígio e abre portas no mercado de trabalho (AIUB, 2009). Além disso, para corroborar com este imaginário de língua, Oliveira (2007, p. 76) afirma que “um dos discursos que justificam o ensino da língua inglesa é que ele é fundamental para o sucesso profissional e acadêmico. Os professores falam, os alunos repetem e os pais falam, também”. Nessa perspectiva, é relevante ressaltar que, juntamente com esse imaginário de que a língua inglesa “serve” para o mercado de trabalho, ou seja, ela funciona meramente como um instrumento a ser adquirido, como se fosse um bem de consumo, há outro: o imaginário de que na escola regular não se aprende essa língua. Aí cabe pensar no que se quer dizer com aprender. Será que se está mencionando o fato de as condições na escola regular para falar a língua estrangeira, neste caso a inglesa, não são favoráveis? Muitas vezes essa pergunta pode ser respondida de forma afirmativa, pois aprender uma língua estrangeira implica, neste imaginário, saber apenas falar nesta língua. Entretanto, pelo ponto de vista aqui adotado, não é possível pensar em aprendizado apenas quando se “fala” em língua estrangeira, pois muitas vezes, falar (e também escrever) se resume a repetir frases prontas, ou estruturas a serem preenchidas com um léxico previamente memorizado. Entre outras coisas, aprender uma língua estrangeira significa dar lugar para a desconstrução daquele mundo logicamente estacompetência _ 103


Vale dizer que estes conceitos vão de encontro às concepções que subjazem o discurso publicitário de cursos especializados no ensino de línguas.

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bilizado pela língua materna, em outras palavras, trata-se de um desassossego do sujeito. Para corroborar, Bohn (2009, p. 176) afirma que “a língua estrangeira muda a relação do aprendiz com a sua língua materna, há a entrada do ‘outro’ nessa relação. Até certo modo, aprender uma língua estrangeira é fazer uma regressão, voltar ao estado do infans”.

Refere-se à concepção estruturalista de língua (cf. Saussure em o Curso de Linguística Geral).

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Assim, voltando a pensar a composição de fatores positivos para os cursos de língua, há um contexto muito favorável ao ensino da língua inglesa nestes cursos especializados e, juntamente com o crescimento da procura pela língua inglesa, há a produção publicitária, que, na forma de slogans, pode ser entendida como um gênero discursivo. Nesta perspectiva, cabe dizer que não partilhamos da concepção de gênero discursivo cuja caracterização primordial se dá pelas suas marcas linguísticas formais, ou seja, pela estrutura linguística. Aqui, tomamos o gênero do discurso pela forma com que as palavras circulam, ou seja, a maneira pela qual as palavras se inscrevem nos modos de produção, nas relações de produção. Neste viés, é relevante dizer que “os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso são correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua” (BAKHTIN, 1992, p. 285). Nesse sentido, pensando o gênero do discurso fora de estruturas da língua, iremos focar conceitos caros à teoria da Análise do Discurso francesa (doravante, AD), uma vez que por esta teoria podemos mobilizar um sujeito cindido, interpelado ideologicamente e uma concepção de língua sujeita a falhas e rupturas2. Dizer que um trabalho se filia à AD é dizer que ele não está apenas preocupado com o produto (texto), e sim com o processo (discurso), mas que usa esse produto como uma materialidade analítica. É dizer que o trabalho não se faz estritamente na língua sistêmica3, mas que, através dela, envolve também o sujeito e a historicidade. Entendese, portanto, que o sujeito se faz na e pela linguagem, e esta, por sua vez, só faz sentido “porque se inscreve na história” (ORLANDI, 2005, p. 25). Em outras palavras, “a linguagem é condição sine qua non da constituição do sujeito” (CHNAIDERMAN, 1998, p. 55). Linguagem essa que também está sujeita a falhas, ao furo, à opacidade, ao equívoco, pois quem lhe atribui o(s) sentido(s) é o sujeito, ou seja, este está atrelado àquela. Além disso, o sujeito, nesta perspectiva teórica, é ideológico, e não idealista, pois não é visto “como origem, essência e causa, responsável em sua interioridade por todas as determinações do ‘objeto’ exterior” (ALTHUSSER, 1978, p. 68). Pêcheux e Fuchs (1997) afirmam que o sujeito está inscrito no funcionamento da instância ideológica, convencionalmente chamada de interpelação. Nas palavras dos autores (1997, 104_ competência


p. 165-6), interpelação é “o assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade”. A partir disso, portanto, pode-se dizer que o sujeito é descentrado, é assujeitado, é interpelado ideologicamente, enfim, é cindido, dividido. De acordo com Indursky (2000, p. 70), o sujeito não é o dono do seu dizer, mas “atua sob o efeito de duas ilusões: pensa ser a fonte do seu dizer e ser responsável pelo que diz”. Ainda no âmbito do sujeito, cabe trazermos à baila as formações imaginárias, pois, através delas se fundam as estratégias do discurso. Assim, a imagem que cada sujeito atribui para si e para o outro, ou melhor, a imagem que o sujeito tem de seu lugar, do lugar do outro, a imagem que o sujeito faz da imagem que o outro lhe tem, e assim, sucessivamente, é um processo que ocorre no âmbito dessas formações (as imaginárias). Além, ainda, da imagem que ambos (o sujeito e seu interlocutor) fazem do referente, o “objeto imaginário”. Dentro da formação imaginária, onde é possível esse jogo de imagens, ocorre uma “antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia do discurso” (PÊCHEUX, 1997, p. 84). Essa antecipação, vale lembrar, incide sobre a “capacidade que todo locutor tem de colocar-se na posição de seu interlocutor experimentando essa posição e antecipando-lhe a resposta” (ORLANDI, 2006, p. 16), ou seja, projetando a posição social no discurso. Assim, as formações imaginárias são sempre originadas de processos discursivos anteriores, ou seja, são atravessadas por todo um “já-dito” e um “já-ouvido”. Ainda sobre a antecipação, é neste espaço imaginário onde há maior possibilidade de argumentação, pois é prevendo todos os elementos de uma situação enunciativa que o sujeito tenta, por exemplo, a persuasão (ORLANDI, 2006; PÊCHEUX, 1997). No caso do discurso publicitário, há sujeitos (não-empíricos) que ocupam uma posição no discurso. O sujeito-publicitário, ao emitir determinado discurso ao público-alvo, tenta antecipar a imagem que eles fazem do referente, do objeto imaginário, para tentar melhor argumentar, persuadir o cliente de que tais e tais coisas são necessárias, de que a sua compra é uma “exigência” na conjuntura atual. Dessa forma, é possível dizer que a língua(gem) é perpassada pelo imaginário, representado pela formação imaginária e também pela ideologia, a partir das formações ideológicas. Portanto, é importante dizer que a ideologia trabalha no discurso, pois, de acordo com Pêcheux (1988, p. 160), O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições

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Neste ponto, vale lembrar que há outras pesquisas que analisam slogans publicitários de cursos especializados no ensino de língua inglesa. Para mais informações, ver Henge (2006).

ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).

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A partir do exposto, é possível dizer, então, que uma palavra (ou expressão, ou proposição, etc.) muda de sentido de acordo com a posição na qual o sujeito enunciador se coloca ao empregá-la, sendo assim, dizer que há um sentido literal é ocultar a ideologia que marca o sujeito. Deste modo, cabe questionar de que forma o discurso publicitário dos cursos mercadológicos de ensino da língua inglesa procura interpelar seu público-alvo, ou seja, seus futuros alunos? Há, sabemos, diversas formas de venda da mercadoria língua inglesa que são utilizadas pelas agências de publicidade4. É necessário, dentro de cenários competitivos, apostar em diferenciais, em quesitos que singularizem a mercadoria colocada à venda, pois, no mundo da competição exacerbada, não bastaria, por exemplo, saber o idioma inglês. É necessário sabê-lo colocando-se à frente dos demais. É, portanto, sob um viés mercadológico, individualista e concorrencial que circula a maior parte dos slogans publicitários, como podemos verificar logo abaixo: Curso W – Inglês com liderança. A ideia que subjaz este slogan ratifica a “disputa” intrínseca ao capitalismo como base material e simbólica da sociedade atual, buscando estabelecer uma relação hierárquica decisiva entre os indivíduos que sabem inglês daqueles que não sabem. Tanto o curso quanto os seus estudantes são/serão líderes. E liderar pressupõe ter alguém subalterno. Aqui, não escapa a “malvadeza intrínseca”, outrora referida por Freire, pois, para que um possa ganhar, é preciso que outros percam. Este mesmo curso (que estamos chamando de W) é o responsável por um outro slogan: Curso W – Você faz você vence. Neste caso, a lógica do vencedor estabelece, por consequência, perdedores que, no caso, se identificariam com as pessoas que não dominam o idioma inglês. Há uma relação direta entre a ferramenta língua inglesa e postos no mercado de trabalho com retorno financeiro garantido, pois não há espaço para a derrota. E é definitivo. 106_ competência


Quem faz o curso W vence, e para que alguém vença, é preciso que alguém perca. Mais uma vez aqui a lógica concorrencial que está nas bases do sistema neoliberal se faz presente e de forma bem expressiva. Nesse sentido, trazemos Tfouni (2003, p. 94), pois, segundo ele, “dentro do capitalismo, uma propaganda serve como discurso para reproduzir a base econômica, ou seja, serve para vender, fazer comércio e, com isso, reforça e reproduz a produção de mercadorias, sua distribuição e a acumulação de mais-valia”. Neste sentido, o discurso publicitário é responsável pela sedução. Ele é representativo de um imaginário de que com o “domínio pleno” da língua inglesa é possível ingressar no mercado de trabalho e, ainda por cima, liderar, vencer, ter subordinados. Neste viés, o aluno passa a ser visto como um cliente e o discurso publicitário, objetivando, não o ensino da língua inglesa, mas a venda de um curso nesta língua, procura atrair esse cliente em potencial. Para Coracini (2007, p. 245), O cliente-aluno se vê capturado na armadilha sedutora das vantagens e do lucro, ou melhor, dos valores materiais e dos resultados que poderão ser obtidos bem como no engodo de um ensino que se diz perfeito de uma língua que só promete felicidade, pois – conforme fazem crer os anúncios e a mídia em geral – o levará ao sucesso e à tão almejada melhoria de vida.

Dessa forma, para os objetivos expostos pelos slogans, formar líderes só é possível com professores que, estando neste elo entre cliente-aluno e curso de línguas, assujeitam-se (consciente ou inconscientemente) a métodos que pregam eficácia e fluência total. Como poderemos perceber a seguir, a publicidade trata estes professores como agentes de um processo cujo resultado é o triunfo, a glória, a sabedoria plena. Curso W – Em uma escola de campeões, só podíamos contar com professores vencedores. Aqui a imagem da superioridade é fortalecida pelo mito do falante nativo. O professor que é vencedor tem pleno conhecimento da língua inglesa, fluência total e jamais lhe escapa o desentendimento nesta língua estrangeira, pois, o professor é um “mágico” que garantirá “fluência desde o primeiro dia” 5, porque tempo é dinheiro e dinheiro (lucro) é o fundamento do sistema. Neste viés, é possível dizer que os slogans são os chamarizes, mas eles não surgem de uma inspiração ou de um dom divino do indivíduo que produz a publicidade. O discurso publicitário advém de um contexto social propício para estes dizeres entrarem com força na camada da sociedade, pois competência _ 107

Cabe dizer que este enunciado foi retirado do sítio do curso de idiomas em questão.

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as peças publicitárias se nutrem dos discursos que perpassam o imaginário social, e aqui incluímos os professores que atuam ou não nas escolas de língua, ao mesmo tempo em que nutrem o imaginário de professores e alunos, a quem se dirigem [...], constituindo amostras importantes da constituição heterogênea e conflitante dos discursos e do sujeito (CORACINI, 2007, p. 229).

Nesta perspectiva, podemos dizer que sujeito e sentido se constituem mutuamente, uma vez que se dão pela linguagem. Vale dizer que não se trata apenas do sentido de um determinado slogan, mas principalmente aqueles sentidos que emergem pelo processo de aprendizagem de uma segunda língua. Assim, não se pode levar em consideração que cursos especializados no ensino de línguas visem apenas o lucro, percebendo a língua como ferramenta para ascensão no mercado de trabalho, distante, neste caso, de pensá-la como constitutiva do aluno enquanto sujeito.

4. Breves considerações finais À guisa da conclusão, cabe dizer que a língua, tendo como característica a heterogeneidade, constituindo sujeitos cindidos, dispersos, não pode ser tratada como instrumento de comunicação, pois isto dá margens para que ela se torne um artefato a ser comercializado, com preço, data, local e horário. Neste sentido, ao tomarmos a língua inglesa (ou mais amplamente, as línguas estrangeiras) como simples meio de comunicação e ainda perpassada pelo mito de que com ela há a garantia de um bom lugar no mercado de trabalho, não mobilizaremos o fato de que aprender uma língua outra é sempre um “movimentar-se”, é sempre um perguntar-se (por que eu digo assim?). Assim, Defender o ensino da língua estrangeira baseando-se em argumentos tão simplistas é minimizar a dimensão educacional da aprendizagem de línguas estrangeiras, segundo a qual aprender uma outra língua contribui para que nos reconheçamos enquanto sujeitos pertencentes a uma cultura e reconheçamos nossa língua materna, contrapondo-a à língua e cultura estrangeiras (CARMAGNANI, 2001, p. 120).

Sobre outro aspecto deste trabalho, é relevante afirmar que as breves análises aqui apresentadas serviram como exemplos, pois elas não se esgotam. Serviram para mostrar como o discurso publicitário fetichiza a língua inglesa, fazendo uma alegoria a um mundo que, com a língua inglesa, não é passível de desentendidos, de falhas, não há derrotas. O que há é a assunção de uma posição de liderança frente aos demais que 108_ competência


não são capazes de falar a língua inglesa. Para finalizar, é relevante dizer que o discurso publicitário do curso de línguas aqui examinado trabalha com uma deformação da língua inglesa e a coloca num lugar de privilégio sobre as demais, sejam elas estrangeiras ou a materna.

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APROVEITAMENTO DA CULTURA POPULAR COMO REFERÊNCIA DE PLANEJAMENTO EM MODA, CONSUMO E COMUNICAÇÃO UTILIZATION OF POPULAR CULTURE AS A REFERENCE FOR PLANNING IN FASHION, CONSUMPTION AND COMMUNICATION Nicele De David Branda * Lucia Isaia * *

Resumo Esta pesquisa de final do Curso de Especialização em Moda, Consumo e Comunicação, visa demonstrar possibilidades de criações têxteis, pela preservação de patrimônio da cultura popular material do Rio Grande do Sul. Referenciados em objetos expostos na Mostra SOMOS – A Criação Popular Brasileira – Santander Cultural – Porto Alegre – agosto 2006 – fevereiro 2007, investigou-se sobre saberes e fazeres espontâneos. Os “Cavalinhos de Madeira”, brinquedos datados do século XIX e início do século XX, feitos por imigrantes teuto-italianos que se instalaram no Rio Grande do Sul, despertaram “memórias afetivas”, impulsionando a elaboração de um planejamento de ações, propondo a criação de bolsas e mochilas para crianças. Mesmo sendo objetos simples, feitos pelos pais para seus filhos brincarem, os “Cavalinhos” apresentam boas soluções formais. Aliando conhecimentos de Arte, Design, Patrimônio, Lúdica, Usos e Costumes, aspectos de grande relevância atual com sustentabilidade, preservação e valorização, foram observados. Pesquisas bibliográficas e dos objetos; reflexões sobre identidade, tradições e representações levaram a soluções estético-visuais que originaram a marca “A PIAZADA”. Elaborados os designs das peças, planejou-se a campanha de formatação promocional da marca, e de sua inserção no mercado. Além das finalidades específicas dos acessórios, esses vão proporcionar ações educativas, de conhecimento das tradições, bem como valorização da matéria prima natural, a lã do Rio Grande do Sul. Também despertarão a criatividade das crianças, uma vez que as peças poderão ser customizadas. Sendo assim, o resgate dos saberes e fazeres populares do estado, como a criação de peças têxteis, farão de objetos da exposição SOMOS, referências na promoção da Moda, através de uma adequada Comunicação, gerando Consumo.

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* Aluna do curso de Especialização em Moda, Consumo e Comunicação, PUCRS. nicelebranda@ gmail.com ** Orientadora Profª. Drª. do curso de Especialização em Moda, Consumo e Comunicação, PUCRS. isaialucia@yahoo. com.br


Palavras-chave: Cultura Popular. Lúdica e Patrimônio. Design Têxtil.

Abstract This research by the end of the Specialization Course in Fashion, Consumption and Communication, aims at demonstrating possibilities of textile creations, for the preservation of heritage material from the popular culture of Rio Grande do Sul. With a reference in objects shown at SOMOS exhibit – Brazilian Popular Creation - Santander Cultural - Porto Alegre - August 2006 - February 2007, spontaneous knowledge and practices were investigated. The “horse of wood”, toys dating from the nineteenth and early twentieth century, made by TeutonicItalian immigrants settled in Rio Grande do Sul, aroused “emotional memories”, boosting the development of an action planning, proposing the creation of bags and backpacks for children. Even as simple objects, made by parents for their children to play, the “horses” have good formal solutions. Combining knowledge of Art, Design, Heritage, Wunderlich, Habits and Customs, issues of great current relevance to sustainability, conservation and enhancement were observed. Literature researches and of the objects; reflections on identity, traditions and representations led to aesthetic and visual solutions that originated the brand “A PIAZADA”. Having elaborated the design of the pieces, the brand’s promotional formatting and its marketing insertion were planned. Besides the specific purposes of accessories, these will provide educational actions, knowledge of traditions and appreciation of the natural raw material: the wool from Rio Grande do Sul. They will also awaken the creativity of children, since the pieces can be customized. Thus, the rescue of popular knowledge and practices of the state, such as the creation of textiles, will make SOMOS exhibit’s objects into Fashion promotion references, through proper Communication, generating Consumption. Keywords: Popular Culture. Leisure and Heritage. Textile Design.

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“Reconhecer o valor da criação popular é estabelecer laços chamando cada um a olhar para si mesmo como parte de seu povo entendendo que o novo nessa criação é também o velho que ela transforma, ao lhe dar continuidade. Reconhecê-la como parte de nós mesmos é compreender que SOMOS a criação popular brasileira, pois só assim chegaremos a entender o significado de uma arte universal”. Janete Costa - curadora da Mostra Cultural SOMOS – A Criação Popular Brasileira - Santander Cultural - Porto Alegre - Agosto 2006/Fevereiro 2007.

Levando em consideração aspectos relevantes dos saberes e fazeres populares do RS, baseados no “fazer com as mãos” através de técnicas passadas de geração a geração, o presente trabalho de final do Curso de Especialização em Moda, Consumo e Comunicação propõe planejar ações visando criar acessórios têxteis direcionados a um público infantil - de 4 a 8 anos de idade. Como referência personificatória, o enfoque foi centralizado em artefatos brinquedos de madeira, coletados e conservados como patrimônio da cultura popular material do RS. A escolha desta temática reforça a atual e grande importância de humanização no consumo de moda. “O mais importante na informação e na comunicação não são as ferramentas nem os mercados, mas os homens, a sociedade e as culturas” (WOLTON, 2005, p. 18). Hoje o engajamento social, sustentabilidade econômica, ambiental, preservação, respeito ao entorno, à natureza e às pessoas precisam ser aplicáveis ao mundo da moda. Assim, o consumo, além de ser uma maneira de satisfação de desejos pessoais e fantasias, passa também a enriquecer consciências fazendo com que cidadãos nela envolvidos comuniquem-se melhor, com mais dignidade. Levando em consideração estes aspectos de grande relevância atualmente, proporemos ações visando formatar uma coleção de acessórios embasados no artesanato regional do Rio Grande do Sul, aliando design, sustentabilidade e preservação da cultura popular. A motivação e sensibilização que a mostra “SOMOS” proporcionou nos fez acreditar em reais possibilidades de também valorizarmos e difundirmos nossos patrimônios de cultura popular através da indumentária. Assim, ressaltou-se a importância do resgate da cultura regional e a inserção definitiva dos aspectos característicos do povo do estado do Rio Grande do Sul na educação e cultura do consumo, aliando tendências atuais de design com história e costumes tradicionais do povo gaúcho. Planejamos produtos contendo os elementos que definem uma acertada competência _ 115


composição: movimento, equilíbrio, cor e desenho, sempre referenciados nos “Cavalinhos de Pau” originários de saberes e fazeres dos imigrantes teuto-italianos vindos ao Rio Grande do Sul, alguns deles expostos na mostra SOMOS. Estas peças, em número de sete, recolhidas e pertencentes aos colecionadores Tina e Calito Moura, de Porto Alegre, são de autores anônimos, todas em madeira e datadas do século XIX e início do século XX. Objetos que apresentam soluções formais simples, mas plenamente adequadas a suas finalidades.

Figura 1 - Reprodução Jornal ZH – Caderno Cultura – 25 de novembro de 2006, p. 6.

Podemos considerá-las “peças de design”, por aliarem boas formas, com a objetividade do fim proposto. São balanços, brinquedos de uma ludicidade pura, considerando-se que era apenas isso que os pais – pobres imigrantes em início de nova vida no Brasil podiam proporcionar aos seus filhos como diversão. Mas, certamente, estes brinquedos desempenharam funções de diversão e fantasia para as crianças que deles usufruíram. “A imaginação permite que o sujeito exista, que se comporte em relação às coisas e aos outros, não só em função das suas necessidades, mas em função de um modelo, que não é um modelo previamente acabado, mas que é elaborado no próprio ato de imaginar” (MALRIEU, 2001, p. 237). Escolhemos a lã como matéria prima para confeccionarmos os acessórios. Essa lã, riqueza natural inestimável, com a acessibilidade e o baixo custo dos fios sintéticos, foi perdendo seu uso em vestes. Acabou tornando-se mais usada em utensílios 116_ competência


para a lida no campo, como baixeiro ou xergão. Lincando um assunto ao outro, isso foi decisivo na escolha do tema. Trazer para as crianças de hoje todo esse universo lúdico e especial que, muitas vezes, elas nem têm acesso. Para tanto, foram reunidos conhecimentos de design, moda, cultura e comunicação obtidos em nossa formação acadêmica (graduação e pós-graduação). Jodelet (2001) diz que a cultura popular é a legítima personalidade de uma sociedade. E isto se afirma através de atos criativos de um povo, formando a sua personificação identificatória. O RS possui uma diversificada cultura popular, uma vez que: O Estado passou por várias fases de ocupação para chegar à variedade cultural que se verifica nele atualmente. Esse processo de domínio do território começou com os jesuítas espanhóis, para depois ser assumido por portugueses e finalmente contar com a contribuição dos imigrantes alemães e italianos, entre outros (MAGNOLI; OLIVEIRA; MENEGOTTO, 2001, p. 31).

A existência de uma pecuária forte na região oeste do estado do Rio Grande do Sul, tendo a criação de ovinos como parte importante da economia regional, faz com que exista grande possibilidade de trabalhar com a lã desses animais. O artesanato feito com ela vem conquistando seu espaço e se destacando como uma das alternativas de fonte de renda baseada na ovinocultura. A lã é um ótimo material de trabalho, pois a cada ano há uma tosa, não precisando matar os animais para conseguir a matéria prima, que se renova naturalmente. Com a ascensão do setor, as artesãs da região sul têm se dedicado à produção de peças com divulgação e venda. Por essa razão, em agosto de 2004, o projeto “Lã Pura” foi idealizado e desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, Sebrae em parceria com a Emater/RS – Ascar nos municípios de São Borja, Uruguaiana, Livramento e São Gabriel. O “Lã Pura” reuniu 120 artesãs para participar do projeto, que teve como finalidade confeccionar produtos baseados em lã ovina da região. “O objetivo é inserir a genuinidade da cultura brasileira num contexto universal”. (BRAGA, 2006, p. 53). Criativos, coloridos e com cuidado visível nos detalhes, os acessórios agregam valor à lã e mostram que boa vontade e trabalho em equipe dão resultados além do esperado. Levando em consideração esses aspectos, propomos um trabalho com equipe de profissionais da área de Design, Moda e Cultura para treinar as pessoas que trabalham com a lã. Assim, ela poderá ser aproveitada e beneficiada de forma a extrair o que possui de melhor e posteriormente produzir produtos competência _ 117


com valor agregado, valorizando a cultura local. Neste caso, o que é mais importante, por serem produtos infantis, é a criação, para as próximas gerações, de uma consciência de uso sustentável da matéria prima, despertando um interesse por produtos politicamente corretos e com um design arrojado. A inserção de acessórios têxteis no cotidiano infantil, referenciados na cultura popular do Rio Grande do Sul, fará nascer gradualmente uma consciência de consumo embasada na preservação de bens patrimoniais, com histórias e tradições e não apenas na novidade efêmera do consumo. Com temática lúdica, também proporcionará brincadeiras. Brincar é essencial para a criança, pois é deste modo que ela descobre o mundo à sua volta e aprende a interagir com ele. O lúdico está sempre presente, o que quer que a criança esteja fazendo. Naturalmente curiosa, ela se sente atraída pelo ambiente que a rodeia. Cada pequena atividade é para ela uma possibilidade de aprender e pode se tornar uma brincadeira (ZATZ et al., 2006, p. 13).

Em relação aos métodos de coleta de dados para formatação deste artigo, foram efetuados extensos estudos bibliográficos sobre o assunto enfocado, com pesquisas e observações dos objetos a serem trabalhados como referência para coleção de acessórios têxteis. Adotamos também como metodologia, entrevistas com pesquisadores e colecionadores de Arte Popular e dos Usos e Costumes da Criação Artesanal Brasileira. Nesta etapa, pela diversidade de objetos disponíveis e suas contextualizações como manifestações sensíveis da criatividade do povo, os níveis de observação direcionaram-se para o segmento da Lúdica sul-rio-grandense, com destaque para os brinquedos em madeira coletados por colecionadores. Constando da exposição - SOMOS - A Criação Popular Brasileira - Santander Cultural - Porto Alegre, Rio Grande do Sul - agosto de 2006 a fevereiro de 2007, os brinquedos – Cavalos em madeira originaram a temática que escolhemos. A escolha específica dos objetos/brinquedos Cavalos deveu-se a grande simbologia e importância dada a este animal na cultura sul-rio-grandense. As análises destes objetos referenciais exigiram investigações de diferenciados assuntos. Tais como cultura popular, o “fazer com as mãos”, história dos usos e costumes de imigrações no Rio Grande do Sul, lúdica infantil, ergonomia. Assim, com entendimentos sobre a importância destes saberes e fazeres específicos do povo, decodificando-os, chegou-se ao planejamento de ações que integram as considerações desta pesquisa. Foram agregando-se conhecimentos de Design, Moda, Planejamento de Produto 118_ competência


e Gráfico, Campanha Publicitária, Marketing, Marca, Consumo e Comunicação. Após a realização destas etapas, análises propiciaram sugestões estético-visuais, que, desenvolvidas de forma integrada, originaram a formatação de um “Planejamento de coleção de acessórios têxteis” – bolsas e mochilas - para público infantil com idades compreendidas entre 4 e 8 anos. Desta maneira, foi possível completarmos a ideia com todos os passos na produção de um produto de moda que viesse a gerar consumo e comunicação. Sendo assim, temos como objetivo principal desenvolver as potencialidades regionais, inserir comunidades em um trabalho no qual o design tenha papel preponderante. Pretendemos, ainda, resgatar saberes e fazeres populares, criando acessórios têxteis para crianças que também desenvolvam uma consciência, a longo prazo, que prega um consumo lucrativo, mas principalmente sustentável. A busca de referências na Cultura ocorreu por ser esta uma atividade reconhecida como fundamental para quem procura qualificar seus produtos personificando-os. “Sem uma base de solidez cultural e persistência pela força de vontade de identificar e manter tradição, não há como edificar um conceito, nem mesmo um produto” (BRAGA, 2006, p. 42). Por isso, pretendemos traçar um plano de ação que acima de tudo desenvolva o interesse no resgate cultural a ser utilizado na educação dos futuros consumidores. Moda vem do latim modus e significa exatamente modo. Portanto moda, no sentido amplo e real da palavra, quer dizer maneira e comportamento. Moda é sobretudo linguagem, interação e sentido. Segundo Ronaldo Fraga, estilista que valoriza riquezas até então insuspeitas da nossa diversidade cultural, “Resgatar os valores que regem a dinâmica da vida social de um povo é, de certa forma, observar como as pessoas se reconhecem e afirmam a própria identidade” (FRAGA, 2007, p. 144). A tradição dos fazeres, apesar da efemeridade da moda, precisa manter-se mesmo que seja para o boom do consumo. A revitalização do imaginário local deve ser estimulada e, a cada troca de estação, dar continuidade à cultura regional, reescrevendo-o de forma interessante e consciente. Em 2006, Oskar Metsavaht, estilista brasileiro, junto com biólogos, ambientalistas e pesquisadores, criou uma organização não governamental- “e-brigade” para difundir o consumo correto com ações de preservação. Em reportagem na Revista L’Officiel, ele assim se expressou: “A moda como linguagem tem a força da transformação” (METSAVAHT, 2007, p. 121). Com isso, Metsavaht assume uma postura ativista com prol da coerência e o consumo passa a ser mais ordenado. competência _ 119


Além da consciência solidária, por vezes questionável em alguns pontos, nota-se uma grande divulgação desses trabalhos em veículos de comunicação específicos da área.“Sob as modas aparentes que se anulam e se recompõem na superfície fútil do tempo pseudocíclico contemplando, o grande estilo da época está sempre naquilo que é orientado pela necessidade evidente e secreta da revolução” (DEBORD, 2000, p. 109). Pensando em dar uma outra visão a peças artesanais têxteis para público infantil, uma mudança de atitude precisa de tempo para se consolidar. Antes mesmo de perceber e discutir o que é cultura, identidade cultural e cultura popular, é preciso refletir sobre o fenômeno da globalização. Além de trabalho manual, exercido no âmbito doméstico, a tradição do fazer, associando aspectos artísticos aos utilitários, também consta como uma das dimensões de significados pelo fato de o artesanato não ser criado em série. Com a Revolução Industrial, houve uma valorização dos produtos bem acabados, em contraposição aos produtos artesanais que eram considerados primitivos e rústicos, destinados a quem não tinha acesso ao equivalente industrializado. Atualmente, a busca por identificação pessoal e por exclusividade fez com que as peças produzidas artesanalmente ganhassem um significado contrário à massificação de produtos amplamente consumidos. O mundo foi integrado e pasteurizado com uma rapidez que nos deixou em uma aldeia global. Essas mudanças criaram uma busca pelo fazer manual, pela cultura espontânea. Porém, ela precisa de diferenciais, o que se encontra agregando ao artesanato noções de design, aliadas à pluralidade e riqueza cultural que o povo brasileiro tem para oferecer. Essa ideia de design exclusivo, solidário e sustentável surgiu em 1946, quando americanos foram pioneiros adquirindo looks de crochê de comunidades porto-riquenhas. Conforme Garcia (2005), na Europa, a entidade britânica Oxfam- Oxford Commitee dor Famine Relief, (organização não governamental cujo lema é: “União por um mundo mais equilibrado” (http://www.oxfam.org/), trabalha fazendo uma investigação de alto nível, análises e ações de incidência social e política), faz isso com intuito de trocar experiências entre os povos, assegurando que os menos favorecidos economicamente tenham os direitos, as oportunidades e os recursos necessários para melhorar suas vidas. Essa organização começou a vender artesanato produzido por refugiados chineses em 1950. Não eram exatamente peças que aliavam artesanato com design, mas já indicavam que algo estava por vir nesse meio tão saturado e massificado. Ela foi a precursora, vendendo-os em lojas especializadas, dando assim um apelo comercial aos produtos.

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Assumir uma etnografia reflete o desejo de captar o que a palavra teima em dizer e, a um só tempo, investigar a natureza desta representação de sociedade. Para tanto, é preciso pensar um pouco mais sobre a sociedade industrial-moderna-capitalista. Foi ela que, ao definir uma cultura planetária, acabou por inventar outra sociedade, refletindo um modelo de si mesma no espelho da Indústria Cultural (ROCHA, 1995, p. 101).

Hoje, com a preocupação de muitos na autenticidade e criatividade, temos de um lado o saber “acadêmico” de profissionais da área de moda, arte, arquitetura e design. De outro, o saber manual que passa de geração a geração. Juntos tornam essa riqueza imensurável, que pode ser transformada em produtos. O artesanato é um patrimônio inestimável que nenhum povo deve dar-se ao luxo de perder. Heloísa Crocco, responsável pelo Laboratório Piracema de Design – POA/RS, que é um núcleo de pesquisa da forma na cultura brasileira, afirmou: “Nosso objetivo é plantar sementes e multiplicar a metodologia de modo a chegar corretamente ao artesão com bons resultados entre o design e o artesanato” (CROCCO, 2007, p. 34). “Beber na fonte da tradição e transpirar contemporaneidade é o que reconhecemos como a melhor forma de dinamizar o panorama cultural, contribuir para o setor e fazer emergir o brilho renovador da identidade cultural brasileira” (CROCCO, 2006, p. 14). Portanto, aliando embasamentos assentados nas imagens, nas pesquisas bibliográficas, em dados relacionados à cultura popular da época das imigrações no RS, na lúdica infantil, em brinquedos e brincadeiras, foram-se elencando subsídios que forneceram dados necessários para as execuções das fases do planejamento têxtil proposto nesta investigação. Acreditamos que a cultura popular é importante fonte para referenciar moda. Sem contar com o valor agregado de pesquisar, registrar, divulgar e difundir saberes e fazeres da cultura espontânea, bem como brincadeiras e ações expressivas populares do Brasil. Essas são consideradas como bens patrimoniais pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), nos itens dos objetos populares materiais e bens imateriais. Desde 1997, a Unesco definiu que formas tradicionais populares e folclóricas, bem como as obras coletivas que emanam de uma cultura e se baseiam na tradição, são bens patrimoniais intangíveis. Desta maneira, correlações e entrelaçamentos entre tradições espontâneas e moda, podem gerar um consumo que tem muitas possibilidades de comunicar-se, pois os diálogos proporcionados pela cultura levam ao desejo das pessoas de também competência _ 121


envolverem-se, identificando-se com lugares, cenários, usos e costumes, vestuário, etc. “Preservar o patrimônio cultural é garantir que a sociedade tenha maiores oportunidades de perceber a si própria” (RODRIGUES, 2003, p. 17). Assim, podemos descobrir quem Somos, de onde viemos e tudo o que podemos ser, referenciando ações como as de criação em moda, nas maneiras de agir e pensar das pessoas de uma sociedade. “A cultura popular não se apresenta como uma cultura à parte da erudita ou dominante, mas como um modo no interior de outro, com o qual dialoga em diferentes comprimentos de onda” (COELHO, 1999, p. 121). Fazeres populares são detentores da expressividade que acompanha a trajetória dos que os praticam, reforçando fatos reais. São saberes do senso comum ou ainda saberes ingênuos, naturais. “Esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico. Entretanto é tida como um objeto de estudo tão legítimo quanto estes, devido a sua importância na vida social e a educação possibilitadora dos processos cognitivos e das interações sociais” (JODELET, 2001, p. 57). O artesanato seria o resultado qualificado pela mão de obra, pela ação direta do homem em elaborar, em manufaturar. Mesmo com avanços tecnológicos e em épocas de “hipermodernidade” (termo empregado por Gilles Lipovetsky), O incremento do artesanato em países industrializados revela que o progresso econômico moderno não implica eliminar as forças produtivas que não servem diretamente para a sua expansão, se essas forças tornam coeso um setor numeroso e ainda satisfazem necessidades setoriais ou as de uma reprodução equilibrada do sistema. Ao contrário e de forma complementar, a reprodução das tradições não exige fechar-se à modernização (CANCLINI, 2000, p. 37).

Refletindo sobre tradições, representações e identidades, Silveira relata: As representações que se voltam para a identidade cultural nacional vêm gozando de um crescente prestígio na indústria cultural. A prática de modernização das identidades opera na atualização e difusão de aspectos da cultura, principalmente nos níveis populares os quais se apresentam folclorizados sob novos códigos e por novos procedimentos tecnológicos. Muitas vezes, as representações operam despertando reminiscências antigas e já desaparecidas do cotidiano. Sua atuação consiste em atualizar conteúdos culturais subtraídos do contexto original (SILVEIRA, 2001, p. 34).

Acreditava-se que a industrialização iria acabar com o artesanato, e a glo122_ competência


balização com as expressões locais. Ao nos tornarmos cidadãos de um mundo sem território, houve uma profunda busca pelas raízes culturais e locais, com a necessidade de pertencimento a algum lugar. O artesanato exprime um valioso patrimônio cultural passado de geração para geração, criando assim raízes de pertença. Segundo Dario Caldas, sociólogo especialista em tendências, devemos ter, nos próximos anos, um aprofundamento da lógica que faz com que arte, design e moda se fundem na mesma esfera estética e de interesses, abrindo, com isso, novos territórios de posicionamento e tantas outras oportunidades de se criarem outras formas de relacionamento no mercado para as marcas e os profissionais envolvidos neste universo.

1. A Piazada Sugerimos o nome “A Piazada”, marca fantasia para crianças entre 4 e 8 anos, por estar nesta faixa etária a maior porcentagem da formação de personalidade. Com finalidades de aliar design com usos e costumes locais, inserindo os consumidores em um contexto muitas vezes desconhecido, e desenvolvendo o interesse por “desvendar esse mundo”. Pensamos na interatividade da criança com o vestuário, sendo oferecidos primeiramente acessórios (bolsas e mochilas), para familiarização com a matéria prima (lã), pois atualmente o tecido natural mais utilizado na indumentária infantil é o algodão. Os designers, integrados a programas de artesanato, sabem que estão ajudando e construindo um produto de referência cultural. Podem valer-se de elementos que remetam aos seus lugares de origem através do uso de certos materiais ou técnicas de produção, típicas da região, ou por empregar símbolos que façam menção às origens de seus produtos.

Figura 2 - Projetos para Bolsas e Mochilas com referências nos “Cavalinhos de Madeira”. Autoria: Nicele De David Branda.

Muitos consumidores de países mais desenvolvidos têm adquirido procompetência _ 123


dutos étnicos de locais longínquos, buscando neles signos de diferenciação entre sociedades nativas e identidades com o contexto em que o produto é produzido. Estão saturados das novidades descartáveis que, mesmo plásticas e de durabilidade material eterna, tem prazo de validade conceitual. A longo prazo, a marca “Piazada” visa exportação dos produtos, divulgando a cultura local em diversos povos. O desenvolvimento desse trabalho pode ser entendido como um processo de potencialização das oportunidades e características existentes em nosso território. Em face das diferenças geográficas, econômicas, sociais e culturais existentes, em especial aquelas referentes às atividades do Design, percebe-se uma participação considerável de profissionais comprometidos com suas regiões, não só contribuindo efetivamente na formulação de políticas que visem destacar e valorizar a produção e os produtos, como também contemplando em seus projetos as influências culturais e especificidades da região onde estão inseridos. Criaremos para a “PIAZADA” um “mascote”, o “CAVALITTO”, que, em linguajar de fácil entendimento, despertará nas crianças interesse por melhor conhecer a origem referencial da marca. Ele participará de ações promocionais dos produtos.

Figura 3 - Logomarca – A PIAZADA. Autoria: Nicele De David Branda

As peças da “Piazada” portarão etiquetas que seguem as normas ABNT e virão fixados “tags” do personagem “Cavalitto” em lonapet, com dicas sobre tradições e curiosidades da cultura sul-rio-grandense. Na forma de um quebra-cabeças em pet, ele agregará aspectos lúdicos e educativos ao produto. Além de todos atrativos da peça em si, por ser um produto diferenciado no mercado, terá uma parte educativa, fazendo com que os pais possam ter interesse em 124_ competência


adquiri-los. Essas peças em pet formam um interessante quebra-cabeças com pontuações que darão direito às crianças participarem do “Clu-Cavalitto”, sociedade virtual onde serão enviadas newsletters aos sócios, que poderão interagir diretamente, dando espaço a sugestões de novos produtos. Nesta reação ao globalizado, começamos a olhar o que temos ao nosso redor. Primeiramente devemos entender o que é cultura. Sabendo disso, veremos o que contribui para a formação destes valores. Através da diversidade cultural, aliada à criatividade dos artesãos, visamos mostrar a identidade, a individualidade e o regionalismo dos produtos. O artesanato têxtil está entre os segmentos que têm obtido grande destaque no mercado, inclusive por parte de empresas do exterior, o que tem proporcionado a expansão de negócios. O uso dos elementos lúdicos e interativos serão o grande atrativo dos produtos “Piazada”. O valor das tradições aparecem no fazer das peças, que é apresentado após várias etapas de construção artesanal, passadas de geração para geração. O tingimento da lã e o processo de fiação dão características diferenciadas ao produto, tornando os elementos rústicos aspectos pontuais e de rápida associação visual. Como estratégia promocional, em um primeiro momento, será enviado um release às escolas das principais cidades do Rio Grande do Sul, explicando o posicionamento da marca, os produtos disponibilizados e como inserir esse pensamento de resgate das tradições no cotidiano dos alunos, grandes responsáveis pelo consumo. Depois, será feito um evento de lançamento das peças, momento em que as crianças desmistificarão a ideia dos fazeres ao se depararem com peças interessantes, tomando conhecimento das etapas previamente concebidas. Para o lançamento da marca, será apresentado catálogo com os produtos dispostos de forma que permita a melhor leitura visual das peças. Quando vemos um produto funcionar magicamente é porque ele funciona, antes, dentro do anúncio. As vidas projetadas nos anúncios dão sentido absoluto ao produto, organizando a experiência do seu consumo. A necessidade é colocada dentro do anúncio. Vejamos o modelo: uma situação social é criada, o produto tem que estar nela e, por definição, vai resolvê-la. A imagem da vida (a história do anúncio) inclui um problema (falta, carência, necessidade), a economia de abundância acontece (o produto simplesmente está ali), resolvendo o problema (fim do anúncio) (ROCHA, 1995, p. 203).

Sendo assim, será necessário despertar o interesse pelos acessórios desde a

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concepção do produto, sendo mostradas no catálogo e em outros meios que possam vir a divulgar todas suas etapas. Por serem peças elaboradas, primeiramente estarão disponibilizadas apenas em “loja conceito” que reúnam, em um só espaço, referências culturais e de design para um melhor entendimento do que a marca se propõe. Com a finalidade de promover conhecimentos sobre a cultura espontânea, noções de preservação de bens patrimoniais e os brinquedos em si, procedimentos educativos serão oferecidos para as crianças, mostrando, através de vídeos, os brinquedos, fazendo-os reconstituírem o que viram, poderão também interagir nos acessórios, customizando-os às suas maneiras. Noções de moda, cultura popular, preservação do patrimônio serão explanadas e incentivados os fazeres manuais, criando necessidades de identificações personificatórias desses acessórios e das crianças em usá-las, como uma diferenciação de comunicação para o consumo, o que agregaria valores aos produtos. Essa é a proposta de um gênero de comércio que se encaixa na definição de misturar elementos com a preocupação de contextualizar os produtos. Assim, acessórios têxteis, carregados de representações culturais do rico patrimônio material da cultura espontânea de uma parte da história do Rio Grande do Sul, poderão transformar-se em Moda, Consumo e Comunicação. Despertar nas crianças o interesse pelo consumo consciente é importante, mostrando que nele podemos também aprender e ter interesse por tradições, aliando ludicidade e praticidade, que são os diferenciais para os produtos aqui apresentados.

2. Considerações Moda é a imitação coletiva de uma novidade regular, mesmo quando temos por álibi a expressão da individualidade, ou como se diz hoje, da “personalidade”, ela é essencialmente um fenômeno de massa, pelo qual os sociólogos acabaram por se interessar vendo nela o exemplo por excelência de uma dialética pura entre indivíduo e coletividade (BARTHES, 2005, p. 350).

O autor Goulart (1998) refere-se à importância de preservar ações do passado, incorporando-as ao presente para que constituam patrimônio cultural do futuro, contendo as permanências cotidianas, os fazeres e as tradições. “Daí que, quanto mais uma sociedade consegue manter os referenciais de sua cultura, mais ela preserva os seus valores inerentes” (GOULART, 1998, p. 19). Nos estudos de Auguste Comte (1798-1857), em seu curso de Filosofia Po126_ competência


sitivista já encontravam-se considerações referentes à percepção do conhecimento histórico. “Estudar o passado para entender o presente e melhorar o futuro” é a sua frase que define o comportamento de consumo proposto por este artigo. Através do resgate dos saberes e fazeres populares do Rio Grande do Sul, propusemos uma investigação estético-visual que definisse identidades, transformando–as em produtos viáveis, atrativos e de respeito às nossas tradições culturais e patrimoniais. Por isso, escolhemos o público-alvo infantil, que pode dar continuidade futura ao que lhes for incentivado. O presente está virando “um museu de grandes novidades”, como falou Cazuza na música “O tempo não pára” - (Composição: Cazuza / Arnaldo Brandão, 1987) satisfatórias apenas em um determinado e curto período de tempo. Melhorar o futuro? Bom, isso cabe a nós, profissionais da área. Podemos educar as próximas gerações demonstrando lhes o real valor do que vão consumir. Assim, poderão agregar noções preservacionistas e valorativas, em produtos que aliem Cultura e Design. E, através da Moda, eles poderão promover Comunicação, gerando um Consumo consciente.

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O design de joias e a qualidade: diferenciais competitivos para as organizações joalheiras 1 JEWELRY DESIGN AND QUALITY: COMPETITIVE ADVANTAGES FOR JEWELER ORGANIZATIONS Maria da Graça Portela Lisbôa * Leoni Pentiado Godoy * * Taiane Rodrigues Elesbão * * *

Resumo Este artigo é uma reflexão teórica que relaciona a qualidade e o design na produção de joias, procurando enfatizar este diferencial como elemento competitivo no mercado joalheiro. Muito mais que embelezamento de produto, o design pode ser conceituado como a excelência do processo de qualidade, pois envolve todos os atributos do produto. Ao inserir o design na produção de joias, busca-se criar produtos que possuam referência cultural, fazendo com que os mesmos adquiram identidade para serem assimilados pelo consumidor. O presente trabalho aborda questões referentes ao processo de elaboração de um produto pelo viés da qualidade, com vistas a satisfazer o consumidor. Conclui-se que o design pode ser considerado um sinônimo de melhoria contínua. Palavras-chave: Design. Joias. Qualidade.

Abstract This paper is a theoretical reflection that relates quality and design in the production of jewelry, emphasizing this as a differential competitive element in the jewelry market. Much more than beautification of a product, design can be conceptualized as the excellence of the quality process, which involves all the attributes of the product. Using design in the production of jewelry, we wish to create products having a cultural reference, in order to acquire identity so that they are assimilated by the consumer. This work discusses issues related to the elaboration process of a product from the perspective of quality, aiming to satisfy the consumer. It follows that design can be considered a synonym for continuous improvement. Keywords: Design. Jewelry. Quality. competência _ 129

Artigo extraído da Dissertação de Mestrado Design e Qualidade: uma análise do processo produtivo de ourivesaria (2009) Universidade Federal de Santa Maria – Centro de Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção

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* Mestre em Engenharia de Produção pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Maria. Bacharel em Design de Produto com ênfase na joalheria pelo Centro Universitário Franciscano – UNIFRA. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Mídias, Artes e Narrativas em Contextos Híbridos ou Fronteiriços da Universidade Federal do Pampa. mglisboa@yahoo. com.br ** Doutora e mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora Adjunta no Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Produção da UFSM. leoni_godoy@ yahoo.com.br *** Mestranda em Design - ênfase Design & Tecnologia pela UFRGS. Especializada em Design Gráfico – identidade visual do sistema-produto, na UNISINOS. Bacharel em Design de Produto com ênfase na joalheria pelo Centro Universitário Franciscano, UNIFRA. taianeelesbao@ gmail.com


1. Introdução A produção de joias tem despertado o interesse pelo debate sobre a qualidade, na medida em que há interferência do design no processo. A atuação de profissionais dessa área é, por excelência, um sinônimo deste atributo, pois interfere em todas as fases de produção, orientando o conceito das coleções, a escolha dos materiais, o processo produtivo e a própria comercialização do produto, conferindo identidade ao mesmo, para assimilação pelo consumidor. Neste artigo, visualiza-se a relação entre qualidade e design como elemento fundamental na produção de joias, capaz de se diferenciar e tornar competitivo um produto.

2. A busca da qualidade A busca pela qualidade nos remete aos povos pré-históricos no desenvolvimento das suas ferramentas, na produção dos seus utilitários, na evolução da humanidade e, nessa perspectiva, pode-se observar que está presente em todas as civilizações. Contudo, enquanto disciplina formal tem-se a origem da qualidade na contemporaneidade, seguindo a implantação das linhas de produção em série. Godoy et al. (2007) enfatizam o papel da revolução industrial como um divisor de águas no estabelecimento de processos de qualidade, a partir do início da automação e do surgimento do consumo de massa. Segundo os referidos autores, a criação de diversas indústrias e a concomitante concorrência entre elas desencadeou um processo de melhoria contínua que perdura até hoje, produzindo constantemente um aumento da eficiência na produção, como indispensável para a permanência no mercado. Não há forma de definir qualidade sem atentar para o atendimento integral ao cliente. Não há forma de atender ao cliente sem qualidade no processo produtivo. Dessa forma, a qualidade começa e termina no cliente, ela pode ser projetada, desenvolvida, gerada, acompanhada e controlada no processo produtivo, independentemente do tipo de produto (PALADINI, 1995, p. 13).

Paladini (1995) salienta a importância da qualidade no processo produtivo voltada para o consumidor final – o cliente. Para Godoy et al. (2007) a qualidade constitui-se em um processo essencialmente evolutivo. E se aplica perfeitamente 130_ competência


ao processo de produção de joias, pois, considera-se que são as novas técnicas e uso de materiais que impulsionam novas tendências. De certa forma, isto induz a pensar que o desenvolvimento técnico resulta no desenvolvimento de novos produtos. A literatura clarifica que o debate em torno da qualidade em seu início era vista como um diferencial de mercado. Na atualidade, com a evolução das empresas na busca pela melhoria contínua, podemos interpretar a qualidade como sendo uma obrigação de quem deseja manter-se. Mas, o que significa exatamente este termo, que é carregado de subjetividade e difícil de medir, sujeito a uma série de variáveis e ao julgamento das pessoas e o que tem estreita relação com o seu conhecimento, poder aquisitivo e experiência? Para exemplificar a noção de qualidade que está presente naquilo que se oferece a alguém, cita-se a construção de uma marca. Porque, quando se quer ocupar um espaço na mente do consumidor, um produto, serviço ou ideia necessita se cercar de atributos que sejam valorizados pelo seu público, denotando a ideia de qualidade. Juran (1992) sugere que o termo qualidade pode significar, para uma indústria, duas ideias que são complementares. A primeira delas diz respeito às características de um produto, pois aos olhos dos clientes, quanto melhores as características dos produtos, mais alta é a sua qualidade. As definições de qualidade acima não contam com uma aceitação universal. Muitas empresas chegaram a outras definições, que elas consideram consistentes com as necessidades de suas indústrias e com seu próprio dialeto. Suas definições muitas vezes se estendem aos “subconjuntos” – os ingredientes detalhados contidos nas definições amplas ( JURAN, 1992, p. 9).

Ao mesmo tempo, os mesmos clientes apontam que, quanto menos deficiências, melhor a qualidade. Desta forma, procurando detalhar os elementos que compõem a qualidade, Juran elaborou um quadro em que lista as principais características dos produtos, que, no entender do autor, atendem as necessidades dos clientes. Para este autor, a qualidade superior permite às empresas: a) aumentarem a satisfação dos clientes; b) tornarem os produtos vendáveis; c) enfrentarem a concorrência; d) acrescentarem a sua participação no mercado; e) obterem receita de vendas; f) garantirem preços melhores. competência _ 131


Para Juran (1992), o maior efeito que uma empresa gera ao auferir qualidade ao produto é sobre as vendas, aumentando-as. Ao mesmo tempo, considera que a qualidade superior custa mais, isto é, o processo de gerar qualidade gera custos em sua implantação, o que nem sempre o torna compatível com um dos itens que são elencados acima, ou seja, garantindo preços melhores ao consumidor. Em relação às deficiências, o autor elenca o que a qualidade superior gera para as empresas: a) reduz os índices de erros; b) diminui a repetição de trabalhos e desperdício; c) reduz as falhas no uso e os custos de garantia; d) reduz a insatisfação do cliente; e) reduz inspeções e testes; f) diminui o prazo de lançamento de novos produtos no mercado; g) aumentam rendimentos e a capacidade da empresa; h) melhora o desempenho das entregas. Para o referido autor, as políticas de qualidade estão na redução de custos, pois normalmente um produto com qualidade superior custa menos. Apesar de haver um custo inicial para a implantação de um processo de qualidade, este acaba se pagando naturalmente pela redução do custo em todas as fases do processo. Ao mesmo tempo, a satisfação do consumidor e sua manutenção como cliente não podem ser medidos em números exatos, mas mantêm a empresa no mercado. É neste sentido que qualidade deixou de ser um diferencial para ser uma obrigação de qualquer organização.

3. A qualidade e o consumidor A qualidade depende da visão de mundo que possui o consumidor. Martino (2005) considera que na sociedade capitalista esta visão está relacionada à mágica do consumo e aos produtos que ele consome, por exemplo, roupas, brinquedos, comidas, objetos, material escolar, mas, sobretudo imagens. Elas são vendidas a todo o momento pelos meios de comunicação, ampliando o conceito de fetiche da mercadoria, fazendo do cotidiano um espetáculo. Este universo simbólico da sociedade é, via de regra, influenciado pela mídia. Quanto maior o tempo de exposição à mídia, maior sua influência na defini-

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ção de consumo. Não apenas o consumo simbólico, mas também a posse material de bens de consumo é carregada de simbolismos e serve como mediação das relações sociais. O dado pode ser empiricamente comprovado pela visibilidade social dos produtos divulgados na televisão (MARTINO, 2005, p.43).

Os atributos conferidos aos produtos pela mídia e “adquiridos” pelo consumidor apresentam, de forma explícita ou implícita, uma noção de qualidade, ou seja, daquilo que é importante para o consumidor e seu grupo social, seja como utilidade ou como status. Para referenciar seu pensamento, Martino (2005) cita um dos maiores filósofos e estudiosos da era pós-moderna e das características da era do consumo, Walter Benjamin, que discursa sobre a necessidade de se identificar a “economia na cultura”, incluindo um natural vínculo político entre o produto e a sociedade que o produz. Ainda, ressalta como a cultura do espetáculo determina os padrões culturais e de consumo. Nesse universo construído sob a ótica da imagem e do espetáculo, o produto que se insere no mundo-show da estética denota qualidade. Por esta lógica, a qualidade adquire os contornos daquilo que comunica e que vai muito além do que o próprio produto apresenta como diferencial. Desse modo, tem-se no produto, serviço ou ideia o conceito que se elabora acerca do mesmo, incluindo noções de status inerentes à sua apresentação no mercado. Inseridos em um nicho específico de consumidores, o que estes apreciam como características positivas são as qualidades construídas pela comunicação que o produto estabelece com seu público. Peruzzolo (2006) reforça esta concepção ao definir que o mundo humano é a consequência de escolhas, sendo a sociedade também um resultado do modo de concebê-la e de organizá-la. Neste sentido, o modelo cultural da sociedade responde à necessidade de conjugar as ações de todos. Acontece que, quando o homem escolhe uma relação e ela lhe é agradável, prazerosa, e mesmo útil, ele passa a privilegiar essa relação. Quando privilegia uma dada relação, ele deseja e trabalha para que ela dure, permaneça e, permanecendo, ela se torna um uso, um costume, um hábito (PERUZZOLO, 2006, p.139).

No entender do autor supracitado, esta conjugação, constitui a cultura que se reproduz no consumo. Ainda, a institucionalização deste modo de ser é o que chamamos de cultura. E, no fenômeno cultural, há a institucionalização de relações pricompetência _ 133


vilegiadas e estabelecidas porque o homem tem necessidade de dar continuidade à sua comunicação. No jogo entre o universo das questões e o universo das respostas, há modos que se impõem assegurando a satisfação das exigências dos indivíduos e das sociedades. Os modos de fazer estruturam-se em modelos que não se instituem de forma isolada nem se mantém estanque numa sociedade. Pelo contrário, organizam-se segundo formas de interação dinâmicas, diluem-se uns nos outros, constituindo um nicho ecológico de regras de conduta e de sentidos (nicho culturológico) (PERUZZOLO, 2006, p.145).

Desta forma, todo produto cultural recebe peso simbólico dentro do conjunto do que já existe como cultura, de modo que ele ultrapassa a fronteira de ser apenas um objeto, e passa a constituir-se em um sistema de relações e de sentido. Transformar um pedaço de carne picada e um pãozinho num hambúrguer é muito mais que um simples processo de manipulação alimentar. Um hambúrguer, que não é senão carne e pão, é ademais, do ponto de vista do consumidor, um sistema de relação social, um tipo de experiência coletiva própria das cidades, uma filosofia de alimentação, uma forma específica de considerar o tempo. Tudo isso sem esquecer que é uma nova forma de etiqueta na medida em que a faca e o garfo desaparecem, permitindo ao consumidor que possa empregar suas mãos para comer (SEMPRINI apud PERUZZOLO, 2006, p.145).

A citação anterior, exemplificada com um hambúrguer, pode ser estendida a qualquer outro produto da contemporaneidade. Afinal, sua elaboração, distribuição no mercado e satisfação do consumidor, incluindo aqui o que ele determina em níveis de qualidade, assume a dimensão simbólica do que é importante em sua vida, seja construído de forma individual ou em grupo ou através da influência dos meios de comunicação de massa. Passar de uma junção de carne com pão, associada com mais alguns produtos para criar tipos de hambúrgueres diferentes, a uma condição de alimento necessário ou imprescindível e socialmente aceito ou valorizado, vai muito além das características do próprio produto. O que torna o hambúrguer diferente, ou melhor, não é o seu conteúdo físico (carne e pão), mas sim o seu conteúdo simbólico. Por este viés, torna-se oportuno situar a cultura no universo atual, dentro daquilo que alguns denominam de pós-modernidade. Trata-se de um período além da modernidade, em que os significados passaram do mundo real ao mundo da informação. Santaella (2003) considera a pós-modernidade como o período em que 134_ competência


emergiram novos caracteres formais na cultura, extensivos à emergência de uma nova ordem econômica e social, que pode ser chamada de sociedade pós-industrial ou capitalismo tardio ou multinacional ou sociedade das mídias ou do espetáculo, baseadas no que a autora chama de a revolução da informação. A revolução da informação não é simplesmente uma questão de progresso tecnológico. Ela também é significativa para a nova matriz de forças políticas e culturais que ela suporta. Os recursos tecnológicos de informação e comunicação estabelecem as condições para a escala e a natureza das possibilidades organizacionais [...] (SANTAELLA, 2003, p.73).

Neste novo contexto, qualquer produto é resultado deste conjunto heterogêneo chamado pós-modernidade, no qual o consumidor ajuda a produzir sentidos para aquilo que está adquirindo. Assim, a qualidade de um produto passa a ser a qualidade percebida pelos seus consumidores, que atribuem significados culturais aos produtos. De outro modo, em Juran (1992) podemos entender que a melhoria da qualidade deve ser analisada passo a passo, pois cada etapa do processo afeta a próxima etapa e assim sucessivamente. Entende-se assim, quando um produto ou serviço passa de um empregado para outro, o receptor do produto ou serviço é um cliente neste relacionamento, e o processo torna-se um encontro de necessidades. O foco para a melhoria da qualidade em Juran (1992) é o de concentrar esforços na prevenção de erros e de produtos defeituosos, examinando todo o processo produtivo desde o fornecedor de matéria-prima ao usuário final. Trata-se de um entendimento que centra o conceito de qualidade no processo produtivo e não nos atributos conferidos aos produtos pelos consumidores. Juran (1992) propõe três processos gerencias básicos para que a qualidade implantada nas empresas atinja os resultados esperados. Esses processos são conhecidos como a “Trilogia de Juran”, que se referem às seguintes atividades: - planejamento da qualidade: tem a função de fornecer aos meios de produção a capacidade de fazer produtos ou serviços que atendam as necessidades dos clientes; - controle da qualidade: exercido pelas equipes que receberam o planejamento, de maneira que não ocorram problemas inesperados durante a produção; - melhoria da qualidade: trata-se do aperfeiçoamento de alguns pontos que, apesar de previamente planejados, devem sofrer mudanças para que atendam a alguma nova exigência ou reclamação do consumidor.

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4. O design na produção de joias A palavra design é traduzida, de forma mais comum, como desenho, significando toda e qualquer interferência na realidade através de técnicas de composição do produto, cujo objetivo é o de oferecer forma e função ao objeto dentro de uma determinada concepção estética. Ao estudar a origem e o significado da referida palavra, Flusser (2007) chegou à conclusão de que ela ocupa um espaço importante em nossa cultura. Visto que pensamentos valorativos e científicos caminham juntos, justamente pelo fato de que exprime a conexão interna entre técnica e arte, tornando possível uma nova forma de cultura. Para este autor, o design não deixa de ser uma coincidência de grandes ideias que, provenientes da ciência, da arte e da economia, fecundaram-se e complementaram-se de maneira criativa. Quando se conseguiu superar a separação entre arte e técnica, abriu-se um horizonte dentro do qual se pode aperfeiçoar cada vez mais o trabalho dos designers. Uma contribuição importante para o tema é dada por Löbach (2007), para quem o design é uma ideia, um projeto ou um plano para a solução de um problema determinado, cuja corporificação se dá com a ajuda dos meios correspondentes, tornando visualmente perceptível a solução de um problema. Nessa ótica, pode-se entender o design como sendo um processo de soluções de problemas voltados para o homem e seu meio, contemplando questões estéticas, ergonômicas, funcionais, ecológicas, tecnológicas, viabilidade de produção, estudo dos materiais para a industrialização, considerando os aspectos da vida útil do produto e dos resíduos produzidos na sua elaboração, propondo soluções inteligentes, zelando pelo meio ambiente. No entender de Barbieri (2007), os termos referentes ao meio ambiente são entendidos como a preocupação que deve direcionar as diretrizes das atividades administrativas e operacionais, tais como planejamento, direção, controle, alocação de recursos e demais. Tudo isso para gerar efeitos positivos sobre o meio ambiente. Tais atividades fazem parte do contexto das organizações no cenário atual para cumprirem sua responsabilidade social com o planeta. A preocupação com o meio ambiente, antes restrita a pequenos grupos de artistas, cientistas e alguns políticos, extravasou para amplos setores da população de praticamente todo o mundo dado o elevado grau de degradação observado

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em todas as partes do Planeta. (...) As informações sobre as conseqüências das contaminações, tornadas possíveis pelas pesquisas e divulgadas pela grande imprensa, têm sido uma constante nessas últimas décadas, de modo que dificilmente alguém minimamente letrado desconhece a existência de problemas ambientais, principalmente os decorrentes da poluição, pois esses são os problemas que afetam mais diretamente as pessoas (BARBIERI, 2007, p. 21).

Desta forma, compreende-se que o design interfere em tudo que é realizado pelo ser humano, constituindo a sua tarefa no conjunto de atividades que têm por base o conhecimento humano em todas as áreas do saber. Isso não quer dizer, porém, que essa atividade seja o centro do conhecimento, mas que se inter-relaciona com as demais formas de apreensão da realidade, da mesma forma que a administração, por exemplo, utiliza os conhecimentos de design, aliado a outros, para o sucesso da organização. O designer, segundo Lisbôa (2006), com o senso artístico, a criatividade, experimenta novas formas, novas cores, novos materiais que sejam representativos e significativos para o consumidor, fazendo do design fator de diferencial na joalheria. Sua atuação pode ser uma estratégia de diferenciação e valorização do produto, constituindo-se num fator para ganhar os consumidores no mercado. Em joias, o design interfere na escolha dos usuários, por exemplo, cuja motivação concentra-se muito nas questões simbólicas, além da qualidade dos materiais, na ergonomia, na funcionalidade, na estética, entre outras. Observa-se na literatura cristalizada que a produção de joias no mundo nem sempre foi realizada através das técnicas do design. No entanto, atualmente, esta ciência pode contribuir para a qualidade e o aprimoramento de sua produção final por meio do desenvolvimento de tecnologia, exploração correta de metais e das gemas, melhor acabamento, maior precisão nos detalhes, pesquisa de novos materiais e combinações, noções de conforto e beleza, explorando as múltiplas possibilidades para chegar a um produto diferenciado e inovador. No mundo contemporâneo, pode se observar que as novas técnicas e as novas necessidades fizeram a produção joalheira repensar seus valores e os elementos dos projetos. A arte da joalheria, depois da 2ª Guerra Mundial, adaptou-se a uma clientela que ao adquirir a joia comprava não somente para uso, mas também como investimento. A ênfase passou a ser na qualidade das gemas, perfeitamente facetadas e montadas em peças de design de acordo com a moda (PEDROSA, 2008).

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Mesmo sem concluir se o momento que se vive é plenamente pós-moderno ou ainda moderno, sente-se que ele é de essencial importância, e que dirige a reflexão sobre si, principalmente pela tendência globalizadora da cultura. Se por um lado se constata este aspecto horizontal da rede de relações que se impõe, por outro, tem-se de reconhecer o aspecto vertical, ou, seja, o da especificidade localista (HILL, 2006).

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A autora referenciada aponta para o período que compreende a segunda metade do século XX, quando novas ideias e conceitos, assim como novos materiais passaram a ser utilizados pelos designers, como os metais titânio e nióbio, e também diferentes tipos de plásticos e papéis, buscando novos caminhos de expressão. Para facilitar a compreensão dos simbolismos que as joias transmitem inseridas culturalmente, dificultada pelo hibridismo e pela tendência globalizadora da cultura2, Lisbôa (2006), em sua coleção de joias denominada “Gauchidade” apóia-se na composição dos materiais e na temática regionalista como diferencial competitivo conferindo identidade e qualidade ao produto. O projeto da referida coleção propõe a inovação como forma de gerar competitividade nas organizações do segmento joalheiro em escala industrial e artesanal. De acordo com Pedrosa (2008), a joalheria mundial está voltada para o design, que deve ser criativo, identificável e corresponder a um mercado consumidor sempre crescente e ansioso por inovações. Cabe a todos os profissionais envolvidos, seja na produção artesanal, seja na produção industrial de joias, contribuirem para a qualidade do produto final, dentro da exigência deste mercado consumidor que premia a qualidade, a criatividade e o estilo diferenciado. Embora se perceba na atualidade que os processos de globalização e interpretação cultural criaram uma miscelânea, dificultando algumas vezes a identificação de raízes culturais definidas, a produção joalheira deve estar voltada para os valores culturais de cada sociedade, em que o global e o local estão interagindo na formação de uma cultura cosmopolita, na qual o design assume grande importância, pela possibilidade de reprodução em escala industrial e alcançando, pelo comércio internacional, uma escala mundial. Nessa perspectiva, podemos entender que as joias envolvem a produção de um artefato cultural, que representa a interferência criativa do designer sobre os materiais, levando em consideração suas características e possibilidades de utilização. Sem o designer, por exemplo, a gema é apenas uma pedra, que possui brilho próprio, mas não encanta o consumidor. Passa a ser considerada uma joia quando adquire significado nas mãos do profissional, ganhando relevância para compor o mundo de quem a usa. A joalheria contemporânea utiliza e manipula qualquer tipo de material, desde os metais nobres como a prata, o ouro, as gemas e os mais insólitos materiais como o plástico, a resina, o papel, o tecido, o couro, o osso, entre outros. Isto induz o joalheiro a aprender a trabalhar com variados materiais e inusitadas composições, o que é 138_ competência


válido em qualquer âmbito da criação, na qual a vaidade encontra espaço, do simples ao arrojado. O Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (2005), em uma pesquisa de tendências, deflagra um cenário onde a joia aparece como produto ainda associado ao luxo, ao poder, glamour e status. Em relação ao comportamento do consumidor, a pesquisa informa que este busca a essência da vida, o estilo único e preocupa-se com a natureza, o que nos induz a pensar que as pessoas podem incorporar as joias ao seu comportamento e estilo de vida3. A mencionada pesquisa ainda aponta o Brasil4 em posição de vanguarda no design joalheiro mundial. Em nossos dias, Machado (2008) entende que é preciso entender as joias além das teorias modernas que pretenderam confinar o valor dos objetos em seu cará-

“As pessoas devem incorporar a joia ao seu comportamento e estilo de vida, usando-a no dia a dia como um acessório indispensável para o seu visual.” (AJORSUL – Catálogo Oficial XVI, 2005).

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“Se antes a principal meta era acompanhar os outros países, agora o produto nacional passa a ter mais destaque entre os consumidores exigentes em todo o mundo” (ibidem).

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ter de produto do trabalho do homem, por ele chamadas de mercadorias visuais, realizando uma análise da própria anatomia destas, formulando uma teoria de valor mais adequada às produções contemporâneas. Segundo esta linha de pensamento, cada joia corresponde a um ciclo vital em permanente negociação, pois uma peça tanto poderá envelhecer e morrer de causa natural como ser isolada ainda em sua juventude ou, mesmo ainda, poderá ser revisitada, como se pode ver em muitas primaveras-verões/outonos-invernos produzidas pela moda. Para a referida autora, dentro de uma extrema valorização do individualismo, o uso das joias interage na construção das novas singularidades dos indivíduos. Mais do que simples adornos, essas significativas mercadorias visuais estão cada vez mais se misturando com o corpo que as expõe. Quase completamente humana, a joia hoje pode ser a sua cara (MACHADO, 2008). Esta tendência à individualização do consumo e ascensão de um consumidor mais educado, informado e consciente também é apontada por KPMG5 (2008), para quem o consumo passou a ser um instrumento de construção de identidade do consumidor. Considera-se que as pessoas estão mais voltadas para elas mesmas, profissional e emocionalmente, a partir de suas escolhas individuais. E, obviamente, o consumo de joias está ligado a esta perspectiva. Machado (2008) insiste nas novas leituras que se deve fazer para interpretar o significado das joias no mundo contemporâneo. Assim, é importante que aprendamos a ler, nos sinais que nos enviam as jóias, toda a riqueza da vida que elas comunicam, para que saibamos o que esperar das que já existem. E, sobretudo, saber o porquê, o para que e o

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A KPMG é uma empresa de consultoria internacional em qualidade. Cada letra corresponde ao nome de um dos membros fundadores. K = Klynveld; P = Peat; M = Marwick; G = Goerdeler. Sua missão consiste em transformar conhecimento em valor para benefício de seus clientes e do mercado de capitais.

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como criar as que ainda virão. (...) Respeitá-las, agora como sujeitos, é, sobretudo, aprender o seu idioma. E, finalmente, conseguir impedir as suas sistemáticas e precoces eutanásias. Tentar, enfim, evitar as exclusões desnecessárias, que a não compreensão da complexidade da relação jóia-moda vem efetuando nas novas companheiras: as jóias (MACHADO, 2008).

Nestas criações, pode-se pensar o valor artístico predominando sobre o técnico e que não existe uma uniformidade de estilo. Além disso, o progresso tecnológico tem sido contínuo, favorecendo diversas possibilidades e técnicas, proporcionando ao trabalho do designer elaborar projetos cada vez mais diferenciados no mercado.

5. Considerações finais O design como ciência possui uma história recente de sistematização e produção científica. Porém, na prática, ele acompanha o desenvolvimento do homem na evolução dos materiais e do processo produtivo artesanal e industrial. O projeto de um produto aliado à funcionalidade e estética, entre outros, pode ser definido como um processo de intercâmbio entre técnica e arte, em que ambos caminham juntos na produção cultural de significados ou como uma ciência que atua na solução de problemas determinados voltados para o homem e seu meio. A importância da participação do designer é premente em todas as fases do processo da produção do produto, mostrando que sua inserção no processo produtivo vai além da função estética, pois atua em todo o procedimento. O profissional do design não apenas agrega valor ao produto, mas se constitui no produto em si, pela interação e comprometimento até o resultado final do projeto. A visão de conjunto da peça produzida é percebida pelo consumidor, que não separa as diferentes áreas do conhecimento ao adquirir um produto ou uma joia para seu uso pessoal.

Referências AJORSUL. Catálogo oficial. 2005. BARBIERI, Jose Carlos. Desenvolvimento e meio ambiente: as estratégias de mudanças da Agenda 21. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

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FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Tradução de Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007. GODOY, Leoni Pentiado; LISBÔA, Maria da Graça Portela; LISBÔA FILHO, Flaví Ferreira; STEFANO, Nara. Cultural industrial e comunicação pelo viés da qualidade. III SIPECOM – Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação. Anais... Santa Maria: UFSM, 2007. HILL, Telênia. Homem, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEMAS E METAIS PRECIOSOS. Políticas e ações para a cadeia produtiva de gemas e jóias. Brasília: Brisa, 2005. JURAN, J. M. A qualidade desde o projeto: novos passos para o planejamento da qualidade de produtos e serviços. São Paulo: Pioneira, 1992. LISBÔA, Maria da Graça Portela. As representações simbólicas do estancieiro gaúcho do século XIX considerados na projeção de uma coleção de jóias. Trabalho Final de Graduação. Santa Maria: UNIFRA, 2006. ______. Design e Qualidade: uma análise do processo produtivo de ourivesaria. 164p. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Universidade Federal de Santa Maria 2009. ______. Coleção de jóias Gauchidade. Disponível em: http://www.mgjoiasdesigner. com.br. Acesso em 25 de junho de 2010. LÖBACH, Bernd. Design industrial. São Paulo: Edgard Blücher, 2007. MACHADO, Regina. Jóia: a vocação da permanência no tempo das efemeridades. Disponível em: < http://www.eco.ufrj.br/pretexto/sociais/soc3.htm>. Acesso em: 30.de setembro de 2008. MARTINO, Luis Mauro Sá. Comunicação: troca cultural? São Paulo: Paulus, 2005. PALADINI, Edson Pacheco. Gestão da qualidade no processo: a qualidade dos bens e serviços. São Paulo: Atlas, 1995. PEDROSA, Julieta. A história da joalheria. Disponível em: <http://www.joiabr.com. br/artigos/hist.html>. Acesso em 29 de setembro de 2008. PERUZZOLO, Adair Caetano. A comunicação como encontro. Bauru, SP: Edusc, 2006. SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-moderno: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

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Reconfiguração de Ambientes Virtualizados Reconfiguration of Virtualized Environments Avelino Francisco Zorzo * Ana T. Winck * * Elder Macedo Rodrigues * * Leandro Teodoro Costa * * * Duncan Dubugrás Ruiz * * * *

Resumo Este trabalho propõe a realocacão dinâmica de recursos em ambientes virtualizados a partir de requisitos derivados de Acordos de Nível de Serviço (Service Level Agreements - SLAs). A realocação utiliza algoritmos de mineração de dados sobre os resultados da execução de benchmarks. Estes algoritmos produzem modelos preditivos que sugerem, a partir de uma determinada configuração das máquinas virtuais, qual o melhor conjunto de parâmetros a ser modificado para melhorar o desempenho de todo o ambiente virtualizado. Estes modelos preditivos são utilizados por um subsistema de reconfiguração que combina os mesmos com as políticas estabelecidas nos SLAs. Palavras-chave: Acordo de Nível de Serviço. Máquinas Virtuais. Xen.

Abstract This work proposes a strategy to dynamically allocate resources on virtualized environments. This allocation is based on Service Level Agreements (SLAs) and uses data mining algorithms executed over a set of results generated by benchmarks. The data mining algorithms produce a predictive model that indicates, from the current virtual machines configuration, the best set of parameters to be changed in order to improve the performance of the whole virtualized system. This paper also presents a subsystem that uses the predictive model and the SLAs to reconfigure the virtualized environment. Keywords: Service Level Agreement. Virtual Machines. Xen.

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* Doutor em Ciência da Computação pela Universidade de Newcastle upon Tyne, Inglaterra. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Diretor da Faculdade de Informática da PUCRS. avelino. zorzo@pucrs.br ** Doutorando em Ciência da Computação pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação na PUCRS. *** Mestrando em Ciência da Computação pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação na PUCRS. **** Doutor em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Faculdade de Informática da PUCRS.


1. Introdução O uso de sistemas computacionais tem se tornado algo comum no cotidiano da sociedade. Cada vez mais vemos sistemas computacionais em diversos setores da economia. É difícil, senão impossível, imaginarmos a sociedade atual sem apoio de sistemas computacionais. Um exercício interessante que cada pessoa pode fazer é o de imaginar quanto de computação existe desde que saímos de casa até chegar ao trabalho. Se pegarmos um elevador, com certeza tem algum sistema computacional controlando o mesmo. Se abastecermos, com certeza a bomba de combustível será controlada por um sistema computacional. Ao pararmos em um semáforo, existe um sistema computacional controlando o mesmo. E assim por diante. Diante de uma sociedade dependente de sistemas computacionais como a que vivemos, cada vez mais, temos diversos computadores, milhares deles, executando estes sistemas. Muitas vezes, estes computadores não são utilizados em todo seu potencial computacional, mas mesmo assim consomem recursos (espaço físico, energia, pessoas, entre outros). O ideal seria podermos diminuir o número de computadores, e, portanto, os recursos necessários, e utilizar o máximo de seu poder computacional. Uma técnica que tem auxiliado para atingirmos este objetivo é o uso de virtualização. A virtualização é uma prática que tem sido explorada para permitir a execução simultânea de múltiplos Sistemas Operacionais (SOs) em um único computador (MERGEN, 2006). Diversas soluções de virtualização foram apresentadas nos últimos anos. Entre elas, o Qemu (BELLARD, 2005), Oracle VM (SINGH, 2009), Xen (BARHAMAL, 2003), Virtual Server (O’ROURKE, 2001) e o VMware (SUGERMAN, 2001) são algumas das ferramentas de virtualização utilizadas por grande parte das empresas. Apesar do VMWare ser um dos sistemas mais utilizados comercialmente, o Xen tem se destacado por ser um sistema de código aberto e portanto com possibilidade de melhorias pela comunidade científica de maneira muito mais rápida. O Xen é um paravirtualizador com uma arquitetura representada como uma camada de abstração sobre o hardware e que permite a execução de diversas máquinas virtuais (VMs), cada uma com seu próprio SO. Sua empregabilidade tem se destacado em datacenters, pois o conjunto de serviços oferecido aos clientes pode utilizar uma mesma infraestrutura computacional (CUNHA, 2007), reduzindo custos e melhorando a rentabilidade do negócio. Entretanto, como estes ambientes são altamente dinâmicos, eles precisam que os recursos compartilhados sejam constantemente ajus144_ competência


tados, para uma melhor utilização, sem prejudicar o serviço fornecido aos clientes. Em geral, os datacenters estabelecem acordos de níveis de serviço (Service Level Agreements – SLAs) com seus clientes. Um SLA é a declaração de expectativas e obrigações que existem no relacionamento de negócio entre duas organizações: o provedor do serviço e seu consumidor (GUPTA, 2006). Esta declaração especifica os níveis de qualidade de serviço que o fornecedor se compromete em disponibilizar, bem como as cláusulas legais e as consequências para cada parte se houver descumprimento destes deveres. Dessa forma, o SLA estabelece o nível de serviço requisitado, sendo utilizado para estabelecer uma compreensão comum sobre serviços, prioridades e responsabilidades entre provedores e clientes. Para propor melhorias no que se refere ao desempenho do Xen, respeitando políticas de SLA, a seguinte questão pode ser explorada: em qualquer momento, qual a melhor alocação de recursos para uma máquina Xen quando várias VMs estão sendo executadas em um mesmo computador? A Figura 1 exemplifica o problema em um ambiente virtualizado composto por quatro VMs (1, 2, 3, 4) executando em um mesmo computador. Cada uma dessas VMs tem necessidades diferentes de consumo, por exemplo, CPU e memória. Na Figura 1, as necessidades das VMs são ilustradas pelo tamanho do retângulo que representa cada VM. As linhas tracejadas representam a quantidade de recursos disponibilizada para cada VM. A área hachurada equivale aos recursos ainda disponíveis no computador e que poderiam ser alocados às VMs. Na Figura 1 temos a representação de uma situação típica em um ambiente virtualizado (a) e a situação ideal (b). A Figura 1a representa uma alocação de recursos sem a preocupação com SLAs, ou melhor, uso dos recursos de acordo com as necessidades de cada VM. Analisando-se a Figura 1a percebe-se que a VM 2 está subutilizando os recursos a ela disponibilizados, enquanto que as necessidades das VMs 1 e 3 é maior do que os recursos que elas têm à disposição. Desta forma, a VM 1 e 3 terão seu desempenho afetado, pois não terão os recursos necessários para a demanda que possuem, ao mesmo tempo que existem recursos disponíveis no computador. Para melhorar a utilização dos recursos disponíveis e também o desempenho global do Xen, espera-se que os recursos possam ser adequadamente redistribuídos, respeitando políticas de SLA previamente definidas. Este modelo ideal está representado na Figura 1b, onde é possível notar, pela linha tracejada, que os recursos computacionais estão distribuídos proporcionalmente à demanda de cada VM, sem excesso ou escassez, respeitando a disponibilidade global do ambiente. competência _ 145


Figura 1. Realocação de recursos no Xen

Para que a distribuição de recursos seja efetuada corretamente, é importante ter conhecimento sobre a demanda de cada VM e a disponibilidade do ambiente como um todo. Uma possível estratégia é fazer uso de resultados de testes de desempenho, obtidos através da execução de benchmarks sobre cada sistema operacional virtualizado. Através de benchmarks é possível obter dados sobre a real capacidade computacional à disposição em cada VM. Em geral, benchmarks geram resultados na forma de um relatório tabular, contendo métricas de desempenho de aplicações, sistemas operacionais ou equipamentos. Seus resultados servem como base para que sejam mapeados os níveis de recursos consumidos por uma aplicação sob determinada carga de trabalho. Contudo, devido à diversidade de configurações vigentes, bem como ao grande volume de métricas retornadas pelos benchmarks, torna-se difícil examinar, interpretar e aferir seus resultados manualmente. Uma das formas de minimizar o tempo de análise dos resultados de um grande conjunto de dados é através da utilização de algoritmos de mineração de dados. Estes algoritmos podem gerar informações relevantes a partir dos dados coletados. Trabalhos recentes, (JUNG, 2006); (PAREKH, 2006); (UDUPI, 2007) e (CUNHA, 2007), têm aplicado técnicas de mineração de dados para análise de desempenho em aplicações multicamadas. Por exemplo, (JUNG, 2006) e (PAREKH, 2006) buscam apontar gargalos e identificar, em que situações e com quais configurações pode ocorrer queda de desempenho nas aplicações. Outros dois trabalhos, (UDUPI, 2007) e (CUNHA, 2007), fazem uso de mineração de dados para definir políticas de SLA. Neste último trabalho, é citada a utilização do Xen em um datacenter como cenário. Apesar dos trabalhos supracitados proporem métodos para garantir determinada qualidade de serviço em ambientes virtualizados, nenhum deles possibilita manter este nível em situações de sobrecarga das VMs da estrutura, nem a possibilidade de utilizar recursos ociosos, estando as VMs sobrecarregadas ou não. 146_ competência


Assim, este artigo apresenta uma nova forma de distribuir recursos de um computador entre diversas máquinas virtuais. A proposta utiliza um conjunto de recomendações de novas configurações existentes em um modelo preditivo gerado por um algoritmo de mineração de dados. O modelo preditivo é gerado a partir de um conjunto de dados produzidos pelos benchmarks TPC-W (TPC-W, 2008) e Unixbench (UNIXBENCH, 2007). Este artigo está estruturado da seguinte forma: a Seção 2 apresenta o modelo do processo de realocação de recursos proposto, detalhando suas etapas. Na Seção 3 é mostrado como o processo proposto é validado. A Seção 4 apresenta os resultados obtidos com o modelo proposto. E, por fim, a Seção 5 relata algumas conclusões.

2. Modelo do Processo de Realocação de Recursos Proposto Esta seção apresenta o processo proposto para realocação de recursos para máquinas virtuais (VMs). O processo como um todo pode ser visualizado na Figura 2. Primeiramente são executados benchmarks sobre distintas configurações do ambiente virtualizado pelo Xen (a). Com estas execuções é possível definir SLAs através da decomposição de métricas de alto nível em métricas de baixo nível (b), e obter dados de desempenho de cada configuração (c). Sobre estes últimos dados são aplicados algoritmos de mineração de dados (d) que buscam identificar padrões e apontar, através de modelos preditivos (e), características quanto ao desempenho computacional do ambiente virtualizado. Estes modelos (e), em conjunto com a configuração atual das VMs sendo executadas pelo Xen (g) e com os SLAs (h), são utilizados por um subsistema de reconfiguração (f) para gerar uma nova configuração para as VMs executando no Xen (i).

Figura 2. Processo proposto para a reconfiguração de máquinas virtuais no Xen

competência _ 147


O restante desta seção descreve cada um dos blocos da Figura 1 de maneira detalhada, ou seja, como é feita a coleta e organização de dados gerados pelos benchmarks; como é feita a geração do modelo preditivo a partir de algoritmos de mineração de dados; e, como é realizada a reconfiguração das VMs, se necessário. 2.1 Fonte de Dados Um dos aspectos mais importantes da estratégia apresentada neste artigo é a construção de um modelo preditivo contendo as possíveis reconfigurações para as VMs e dos SLAs possíveis para o ambiente existente. Neste artigo utilizamos a execução de benchmarks como ponto inicial para a geração de dados que serão utilizados para a construção do modelo preditivo e dos SLAs. Os benchmarks utilizados, TPC-W (TPC-W, 2008) e Unixbench (UNIXBENCH, 2007), são executados sobre cada VM que compõe os distintos ambientes virtualizados. Os resultados do TPC-W são utilizados para a decomposição de SLAs, e do Unixbench são utilizados para compor um banco de dados com o desempenho de cada uma das configurações previstas. 2.1.1 Decomposição de SLA Um SLA pode especificar várias necessidades de um serviço, que inclui métricas como disponibilidade, tempo de resposta e processamento (UDUPI, 2007). Estes valores de níveis de serviços, quando expressos em um SLA, tomam a forma de Objetivos de Nível de Serviço (Service Level Objectives - SLOs) e são aplicados nas métricas de desempenho, conhecidas como Indicadores de Nível de Serviço (Service Level Indicators - SLIs). “Disponibilidade” e “tempo médio de resposta do serviço” são exemplos de SLIs utilizados em um SLA, enquanto que os valores 95% de disponibilidade ou 1,3 segundos de tempo de resposta são exemplos de valores de um SLOs (SAUVE, 2005). Apesar de SLOs e SLIs serem os mais importantes parâmetros, um SLA pode ainda possuir diversos outros, tais como penalidades a serem pagas pelo provedor do serviço quando este falhar em cumprir o nível de serviço prometido e recompensas que serão pagas pelo cliente do serviço quando o provedor do serviço superar as expectativas do nível de serviço acordado (MARQUES, 2006). Para uma definição precisa dos níveis de recursos que uma aplicação neces148_ competência


sita para atender as especificações de um SLA, alguns trabalhos (GUPTA, 2006), (CUNHA, 2007) propõem a decomposição das métricas de alto nível em métricas de baixo nível. Desse modo, uma métrica como tempo de resposta de uma aplicação é decomposta em métricas de baixo nível, com uso, por exemplo, dos seguintes atributos: largura de banda (lb), utilização do processador (up) e memória disponível (md). Para cada um desses são definidos valores mínimos a serem atingidos, onde vmlb, vmup e vmmd representam, respectivamente, valores mínimos para os atributos citados. Para atingirmos um indicador de nível de serviço (SLI) é necessário que, por exemplo, lb ≥ vmlb, up ≥ vmup e md ≥ vmmd. Para conhecermos estes níveis, precisamos submeter à aplicação a um conjunto de testes através da execução de benchmarks sob diversas configurações, com o objetivo de definir a quantidade de recursos, métricas de baixo nível, do sistema que cada componente monitorado consome. Deste modo, é possível determinar o volume de recursos consumidos por cada componente do sistema para suprir de maneira precisa cada SLI de um SLA. 2.1.2 Dados de Configuração e Desempenho Os dados extraídos das execuções de benchmarks servem para apoiar a tomada de decisão para a reconfiguração a partir da construção de um modelo preditivo. Para a construção deste modelo é necessário possuir uma grande quantidade de dados para que o algoritmo de mineração de dados utilizado consiga gerar um modelo o mais preciso possível. A execução dos benchmarks é planejada de forma a coletar informações que definem (WINCK, 2008): •

Configurações de ambientes. O tipo de paravirtualizador, de sistema

operacional e de hardware (destacando-se a memória disponível); •

Limites de consumo de CPU (em percentual) disponível para o am-

biente. Por conveniência, definimos limites que variam de 70% a 100%, com intervalos de 5% em 5%; •

Número total de VMs utilizadas. Os testes foram realizados com 4

VMs, mas esse número pode ser alterado de acordo com as necessidades do usuário e disponibilidade do ambiente; •

Limites de consumo para cada VM. Cada VM recebe uma fatia (CAP)

do percentual de CPU disponível. O critério empregado define que o valor mínimo de CAP é 10 e suas variações são múltiplas de 5; competência _ 149


Para cada combinação de CAP são atribuídas diferentes alocações de

memória em MB. A soma dos valores de memória das VMs resulta no total de memória disponível para o ambiente. O valor mínimo alocado é de 40 MB. Para fins de ilustração, a Figura 3 mostra duas situações com 7 configurações cada (configurações número 239 a 245 e 281 a 287). Cada configuração é composta por: (1) ambiente, contendo a memória disponível, o escalonador utilizado, tipo de hardware, entre outros; (2) CPU, representando o limite máximo de consumo de CPU disponível para as VMs; (3) VMs utilizadas; (4) quantidade de CAP disponível para cada VM; (5) memória (em MB) alocada para cada VM em cada uma das configurações.

Figura 3. Planejamento de execuções de benchmarks

Desta forma, para cada relação entre configuração e quantidade de memória utilizada por uma máquina virtual, existe uma execução de benchmark. Para o exemplo que mostramos neste trabalho, foram planejadas 539 configurações distintas, com 4 VMs cada uma, o que resultou em 2.156 execuções de benchmarks. 2.2 Mineração de Dados A mineração de dados é uma técnica que busca converter dados brutos em informação. Neste trabalho ela é empregada para identificar se é possível melhorar o desempenho de máquinas virtuais que estão executando no Xen. Neste sentido, optou-se em utilizar tarefas preditivas de mineração de dados, focalizando em algoritmos de classificação (TAN, 2006). Essas técnicas buscam construir modelos preditivos que apresentem a melhor combinação entre um conjunto de atributos, denominados atributos preditivos, e um dado atributo de interesse, denominado atributo alvo. A classificação utilizada descreve e distingue o atributo preditivo alvo (HAN, 2006), tal que os modelos resultantes possam ser utilizados para predizer a classe cujos atributos preditivos pertencem. Vale ressaltar que, 150_ competência


como sistema de apoio, optou-se em utilizar o algoritmo J48 (implementação de árvore de decisão C4.5) (QUILAN,1996) do ambiente Weka (WITTEN, 2008). Os modelos preditivos produzidos indicam, a partir da configuração vigente de uma máquina Xen, quais conjuntos de configurações, se alterados, podem fornecer ganho no desempenho. Para que esses resultados pudessem ser produzidos satisfatoriamente, os dados de configuração e desempenho, mencionados na Seção 2.4, foram adequadamente pré-processados, conforme descrito em Winck, 2008. Esta preparação é feita em duas etapas: a primeira para definir o atributo alvo, e a segunda para definir os atributos preditivos. O atributo alvo foi planejado, convenientemente, como binário, e sua definição é dada como segue. Primeiramente foram coletados os resultados de desempenho de cada VM (rdvm), em cada configuração. Tais resultados foram definidos por rdvmi, onde i é o número da VM em questão. Para obter o desempenho da configuração (dc) como um todo, foi efetuado o somatório do desempenho de cada VM em cada configuração, chegando-se a dcn = ∑ti = 1 rdvmi, onde n é o número da configuração e t é o número total de VMs para uma dada configuração. Para verificar se há benefício em reconfigurar, é definido um valor para o custo de reconfiguração de tal ambiente. De posse desse valor é verificado o resultado da diferença entre o desempenho de uma configuração inicial e o de uma configuração alvo. O resultado da diferença determinará o atributo alvo. Se a diferença for maior do que o custo, então significa que a configuração é benéfica e o atributo alvo é 1; se a diferença for menor ou igual ao custo, então não há benefício em reconfigurar, e o atributo alvo é 0. De posse desses resultados, é elaborada uma matriz quadrada, cujo tamanho corresponde ao total de configurações analisadas (no caso, 539), contendo os valores do atributo alvo. O valor de cada célula da matriz indica se mudança da configuração inicial para a configuração alvo é benéfica. Como efeito, essa matriz deve ser capaz de produzir um grafo dirigido, necessariamente acíclico, com as mudanças de configurações benéficas. Como a definição do atributo alvo é elaborada a partir da comparação da configuração inicial com as configurações alvo, é apropriado que o pré-processamento dos atributos preditivos siga o mesmo princípio. Esses atributos, que combinados com o atributo alvo correspondente, são utilizados pela mineração de dados. Para a seleção desses, foi obedecido o critério de que devem ser empregados apenas aqueles que correspondem aos parâmetros de configuração que se deseja alterar. competência _ 151


Nesse sentido, optou-se por utilizar os atributos referentes ao percentual de CPU, CAP e memória. Os modelos preditivos produzidos sugerem reconfigurações para esses parâmetros. Vale ressaltar que esses modelos não são gerados dinamicamente. 2.3 Monitoração e Efetivação da Reconfiguração O subsistema de realocação de recursos proposto busca melhorar a utilização do hardware e possibilitar a utilização de SLAs em ambientes virtualizados. Esse processo é realizado através da realocação de recursos entre VMs, tendo como base os modelos preditivos. O modelo preditivo indica, a partir da configuração atual das VMs, qual a melhor nova configuração para atender suas necessidades. Estas necessidades são determinadas por um sistema de monitoramento que analisa o nível de recursos utilizados por cada uma das máquinas virtuais que compartilham a estrutura. Quando uma máquina virtual necessita de um nível de processamento maior do que os limites definidos pelo SLA e existe a disponibilidade de recursos no ambiente, então o subsistema de realocação pode distribuir recursos para além do que foi definido no SLA. Quando isso acontece, o provedor do ambiente fica com crédito perante o cliente. Naturalmente, este tipo de situação deve ser acordado entre o fornecedor dos recursos e o cliente no SLA. A realocação de recursos consiste em mover os recursos não utilizados pelas demais VMs para a VM que esteja utilizando todos os recursos atribuídos a ela no SLA e que, ainda assim, necessite de mais recursos (área escura da VM 3 na Figura 4a). No entanto, a quantidade de recursos que o subsistema pode realocar para uma VM nunca pode provocar a quebra do SLA das outras VMs. Deste modo, mesmo que existam recursos não utilizados dentro dos limites definidos no SLA de uma VM, estes não serão realocados (área quadriculada da VM 1 na Figura 4). Ou seja, o subsistema executa a realocação apenas dos recursos que se encontram disponíveis no ambiente (área hachurada na Figura 4). Após a realocação (Figura 4b), o subsistema continua monitorando os níveis de recursos utilizados pelas VMs. Quando o processamento da VM que recebeu os recursos retorna ao nível descrito em seu SLA, os recursos tornam-se novamente disponíveis para serem utilizados pelas demais VMs.

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Figura 4. Realocação de recursos

3. Ambiente de Teste Para verificar o ganho de desempenho obtido com a proposta descrita neste artigo, foram executadas três aplicações de software livre rodando em um ambiente virtualizado. Este ambiente é composto por quatro máquinas virtuais idênticas. Cada VM hospeda um servidor web Apache Tomcat 5.5 (TOMCAT, 2008) e um servidor de banco de dados MySQL 5.0 (MySQL, 2008). Para realizar as cargas de trabalho utilizamos a ferramenta TPC-W (TPC-W, 2008). O TPC-W é um benchmark padrão da indústria para aplicações de comércio eletrônico. O tamanho do banco de dados foi configurado em 10.000 itens e 200.000 usuários. Cada conjunto de teste é executado através de uma aplicação cliente que emula o acesso concorrente dos usuários ao servidor. O intervalo que cada cliente emulado espera antes de iniciar a interação seguinte (think time) foi configurado como um valor randômico entre 1 e 7 segundos. Definimos 100 usuários como número máximo de conexões simultâneas no Tomcat e no MySQL.

Figura 5. Estrutura utilizada

O ambiente de teste busca simular um datacenter virtualizado, com múltiplas aplicações compartilhando um conjunto comum de recursos. Este ambiente é composto por duas máquinas físicas. Uma é utilizada como hospedeira de quatro VMs no Xen (Figura 5 (b)). A outra máquina (Figura 5 (a)) é utilizada como gerador de carga dos competência _ 153


clientes (RBE - Remote Browsers Emulator). A ligação entre os clientes (RBEs) e o servidor é realizada através de uma rede rápida Gigabit Ethernet. A estrutura virtualizada descrita foi hospedada em um servidor com um processador Athlon(tm) 64 X2 Dual Core de 3.8 GHz com 2.0 GB de memória RAM e com um disco rígido IDE com capacidade de 160 GB. O sistema operacional utilizado foi o Ubuntu 7.04 server i386, Kernel 2.6.19-4-server. Já a estrutura que hospeda os RBEs consiste em um servidor com um processador Athlon(tm) 64 X2 Dual Core de 3.8 GHz com 2.0 GB de memória RAM.

4. Resultados Para avaliar as funcionalidades e o desempenho do subsistema desenvolvido, foram aplicadas cargas de trabalhos sintéticas sobre a estrutura descrita na Seção 3. Em um primeiro momento foi definido um SLA que foi aplicado a todas as VMs da estrutura. Este SLA possui um SLO que especifica que, com uma carga de até 25 usuários simultâneos no sistema, o tempo de resposta da aplicação deve ser inferior a 1 segundo. A partir deste ponto, foi realizada a decomposição e configuração dos recursos. Estes foram disponibilizados de maneira uniforme para todas as VMs da estrutura. Através da decomposição, foram definidos os limites de recursos alocados para cada VM, que foram de 20% do processador (CAP) e 400 MB de memória. Na execução dos testes, busca-se retratar dois diferentes cenários. No primeiro, todas as VMs são submetidas a uma mesma carga de trabalho, com exceção de uma VM, que recebe uma carga maior de usuários do que a definida em seu SLA. No segundo, duas VMs recebem a carga de usuários definidas em seus SLAs e as duas restantes recebem uma carga de usuários maior. No primeiro cenário, as aplicações hospedadas em cada uma das VMs foram submetidas a uma carga de teste que simula o acesso simultâneo de 25 usuários. No entanto, a VM 1 teve seu número de usuários simultâneos alterado para 40. Este acréscimo de usuários busca retratar um cenário onde o SLA seria quebrado temporariamente por parte do cliente, motivado por um pico de acessos de usuários ao sistema. Os testes foram realizados em dois ambientes idênticos. Em um ambiente utilizamos apenas a decomposição de SLA para definir o limite de recursos utilizados por cada VM, e no outro utilizamos a decomposição de SLA e o subsistema de realocação de recursos proposto. A Figura 6 apresenta os tempos de resposta das aplicações em cada VM. Foram medidos os tempos com e sem o subsistema de realocação de recursos. Como se pode 154_ competência


observar na Figura 6, quando o subsistema não está executando, o tempo de resposta das VMs 2, 3 e 4 se encontra dentro dos limites definidos em seus SLAs. Entretanto, a VM 1 apresenta um tempo de resposta maior que o estipulado. Este resultado se deve ao número de usuários excedentes aos definidos no SLA. Embora a estrutura que hospeda as VMs ainda possua 20% dos seus recursos livres, o escalonador do Xen não é capaz de realizar a realocação dos recursos não utilizados em ambientes com SLAs. Com a utilização do subsistema de realocação, estes recursos tornam-se disponíveis para qualquer uma das VMs da estrutura, possibilitando suprir uma demanda maior por recursos que as VMs tenham. Comparando o tempo de resposta da aplicação, quando executada apenas com o escalonador do Xen, com o tempo de resposta quando se utiliza o subsistema, nota-se uma acentuada redução do mesmo no segundo caso. Outro resultado importante mostra que a utilização do subsistema possibilitou um ganho de desempenho global para as VMs da estrutura. Este ganho é proporcionado pelo fato do subsistema realizar a realocação para a VM que necessitar primeiro, neste caso a VM 1. No entanto, se o processamento da VM 1 retornar aos níveis descritos em seu SLA, o subsistema retira os recursos adicionais e realoca os mesmos para próxima VM que apresentar um pico de processamento. Deste modo, os recursos não são monopolizados pela VM com sobrecarga e tornam-se disponíveis para todas as VMs da estrutura.

Figura 6. Sobrecarga em uma VM

No segundo cenário de teste, de modo análogo ao anterior, as aplicações hospedadas na VM3 e na VM4 foram submetidas a uma carga que simula o acesso simultâneo de 25 usuários. No entanto, as VMs 1 e 2 tiveram o número de usuários simultâneos alterado para 35. O acréscimo de usuários busca retratar um cenário onde o SLA de duas VMs é quebrado temporariamente e as VMs disputam os recursos. competência _ 155


Como resultado (Figura 7), podemos observar que, quando sem o subsistema de realocação de recursos, as VMs 1 e 2 apresentaram um tempo de resposta maior do que o valor definido nos SLOs dos respectivos SLAs. Este resultado é motivado pelo maior número de usuários no sistema do que aquele utilizado para decomposição do SLA e consequente definição dos níveis de recursos da VM. Ao realizar os mesmos testes, mas utilizando o subsistema de realocação, obtivemos uma considerável redução do tempo de resposta das VMs 1 e 2.

Figura 7. Sobrecarga em duas VMs

Conforme os resultados apresentados, a utilização do subsistema de realocação permite atender uma maior demanda por recursos do que aqueles definidos através da decomposição de SLA e apresenta um desempenho melhor do que o obtido com o escalonador do Xen. Também podemos observar que a utilização do subsistema propiciou uma melhora no desempenho de todas as VMs da estrutura, e não apenas naquelas que possuíam uma sobrecarga de usuários.

5. Conclusões Este trabalho apresentou um modelo para realocação de recursos em ambientes virtualizados. Tal modelo conta com duas principais estratégias. A primeira está em utilizar mineração de dados para verificar se determinada máquina Xen merece ser reconfigurada, e assim indicar um melhor conjunto de parâmetros a ser modificado. A segunda contribuição está em estabelecer acordos de níveis de serviço (SLA) para que seja possível obter uma melhor utilização dos recursos existentes. Ambas as estratégias utilizam os resultados obtidos com as execuções de benchmarks. A 156_ competência


mineração de dados usa estes como fonte de dados para, a partir do desempenho apresentado em cada execução, construir os modelos preditivos utilizados para reconfiguração. Já para definir os SLAs, os resultados de benchmarks são utilizados para que seja possível fazer a decomposição das métricas de alto nível em métricas de baixo nível. Para efetuar a reconfiguração, foi desenvolvido um subsistema que usa os modelos preditivos gerados pela mineração e as políticas de SLA definidas. Os resultados apresentados mostraram que, com a utilização do subsistema desenvolvido, o ambiente consegue manter o serviço com os níveis definidos no SLA, ou, em algumas situações, atender o serviço quando existe sobrecarga de trabalho. Deste modo ele garante recompensas da parte do cliente, pelo fato de o serviço superar as expectativas do nível de serviço acordado. É importante ressaltar que os modelos preditivos utilizados para a reconfiguração dizem respeito a um dado ambiente. Caso o ambiente seja alterado, um novo conjunto de benchmarks deve ser executado para que novos modelos preditivos sejam gerados.

6. Agradecimentos Avelino F. Zorzo possui bolsa de produtividade CNPq. Elder M. Rodrigues possui bolsa de doutorado da CAPES/MEC associada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos. Leandro T. Costa possui bolsa de mestrado no projeto PDTI em cooperação com a Dell Computadores. Os autores agradecem a Fábio Rossi pelo trabalho realizado em uma versão preliminar deste artigo apresentado no Workshop de Sistemas Operacionais em 2008. Ana Winck possui bolsa de doutorado do CNPq.

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A CARREIRA PROFISSIONAL E A MOTIVAÇÃO DO TRABALHADOR DO COMÉRCIO DE PORTO ALEGRE CAREER TRAINING AND MOTIVATION OF WORKERS OF TRADE IN PORTO ALEGRE Fabio Irigoite * Lisiane Boscardin Wolff * * Luiz Touguinha Thomé * * *

Resumo O setor do comércio possui hoje em torno de 180 mil trabalhadores empregados no varejo de Porto Alegre. Sendo assim, é preciso investimento por parte das empresas na capacitação desses trabalhadores. Investir na educação e treinamento para que o trabalhador seja capaz de oferecer aos clientes informações sobre produtos e serviços. Os sindicatos de classe possuem papel fundamental, uma vez que representam empregados e empregadores em todas as esferas trabalhistas, além de dar suporte às empresas, independentemente do seu porte econômico. A visão por parte dos sindicatos demonstra que o treinamento e a capacitação ainda podem ser elementos de diferenciação em termos de motivação dos trabalhadores, o que pode auxiliá-los num melhor planejamento de sua carreira profissional, ou mesmo ser diferencial para novas oportunidades do mercado. Palavras-chave: Varejo. Capacitação. Treinamento. Sindicatos de Classe. Motivação. Carreira Profissional.

Abstract The trade sector today has around 180,000 employees working in retail business in Porto Alegre , so it takes investment by firms in educating and training these workers so that they are able to provide the consumers with information about products and services. The Unions have a key role since they represent both employers and employees in all working areas, in addition to providing support to companies regardless of their economic size. The vision from the point of view of the Unions demonstrates that training and capacity building can still be an element of differentiation in terms of motivating employees, and this can help them plan competência _ 159

* Bacharelado em Administração de Empresas pela FAPCCA, Especialista em Marketing (PUCRS), Especialista em Gestão Empresarial (PPGA-UFRGS), Professor (FATEC -SENAC-RS), Administrador do Lindóia Shopping (Porto Alegre – RS), Conselheiro do Grêmio Futebol Porto Alegrense. gerente@ lindoiashopping. com.br ** Mestre em Engenharia (UFRGS), Especialista em EAD (SENAC-RS), Pós-Graduada em Gestão da Qualidade (ULBRA) Administradora de empresas (UFRGS). Professora dos cursos de Pós-Graduação, Tecnólogo (FATEC– SENAC-RS), Graduação (ESPM) e Pós Graduação MBA (Gama Filho). lisiane.wolff@ yahoo.com.br *** Mestre em Comunicação Social (PUCRS); Pós-Graduado (FURG) e (PUCRS); Bacharel em Comunicação Social (UCPel); de extensão universitária em Recursos Humanos (SUNY-EUA). Coordenador e professor (FATEC/FACAD – SENAC-RS); e (ESADE). lthome@terra. com.br


their careers better or even be an advantage concerning new market opportunities. Keywords: Retail Business. Capacity. Training. Unions. Motivation. Career.

1. Introdução O grande desafio do varejo é compatibilizar o capital humano (força de trabalho) com a capacidade de retenção de talento nas suas estruturas, especialmente no que tange aos problemas relacionados às remunerações oferecidas, motivação dos empregados e reconhecimento. É sabido que o ser humano é motivado primeiro pelo atendimento as suas necessidades básicas (fisiológicas), e, gradativamente, até o atingimento de suas necessidades emocionais (realização pessoal). Isso tem sido cada vez mais questionado pelos estudiosos do assunto na busca do conhecimento de como motivar pessoas no varejo, se as limitações impostas pelo governo (via impostos), pela concorrência (via aumento da oferta varejista) e pela redução da renda disponível para o consumo (via queda dos níveis econômicos e de empregabilidade) têm cada vez se tornado mais complexa. Importante destacar que as mudanças nos contextos políticos e econômicos do País influenciam fortemente no que tange às relações de trabalho e, consequentemente, nas políticas de recursos humanos das empresas brasileiras. No contexto atual, é necessário compreender como as organizações podem melhorar a qualidade de seus recursos utilizando-se de estratégias que contemplem fatores sociais e econômicos que atendam as necessidades individuais em termos de desenvolvimento e motivação. Porém, para que haja sucesso na implantação dessa nova estratégia, é preciso repensar também a necessidade de reavaliação da cultura das organizações e sua predisposição em acordar essa nova diretriz junto aos órgãos de classes das profissões. As dúvidas começam a surgir frente à inexistência de informações, seja nas entidades de classe, seja na mídia, ou mesmo no meio acadêmico, deixando então uma lacuna para o gestor do varejo acerca da necessidade de buscar parâmetros de avaliação para o seu negócio, criando-se, assim, dificuldades para a tomada de decisão no que concerne aos planos de cargos e remuneração das empresas varejistas. Esse estudo se propõe a compreender a visão dos sindicatos de classe em relação ao perfil dos trabalhadores no segmento varejista tendo a motivação e treina160_ competência


mento dos trabalhadores do comércio de Porto Alegre como elementos da carreira profissional. Especificamente para este artigo contribuiram o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre – SINDILOJAS e o Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre – SINDEC, ambos localizados no Centro de Porto Alegre. Ainda neste contexto, para ratificar a importância do assunto a ser pesquisado, conforme dados do Sindicado dos Empregados no Comércio de Porto Alegre SINDEC, atualmente existem mais de 180 mil empregados no setor varejista de Porto Alegre que nunca foram pesquisados para efeitos de formação de perfil para a construção de políticas sociais, salariais, e de representatividade. Como resultado decorrente desse estudo, busca-se a conscientização da importância sobre o tema junto à classe empresarial varejista, visando oferecer um manancial de informações e conhecimentos úteis ao setor.

2. Recursos Humanos no Brasil Para Ivancevich (2008), as oportunidades igualitárias em relação ao emprego contemplam três esferas: as mudanças nos valores sociais, a situação financeira da mulher e o papel do Governo. Em termos de valores sociais, acredita-se que as pessoas devam ser remuneradas de acordo com suas responsabilidades e papéis dentro das organizações, e, ainda, que as organizações buscam lucro como forma de resultado. No Brasil, assim como nos países desenvolvidos, os últimos 30 anos foram marcados por mudanças em termos da distribuição da força de trabalho. Neste contexto, as mulheres, a partir de movimentos feministas, vêm ganhando força no que tange a sua inserção no mercado de trabalho, superando, em termos percentuais, a desigualdade em termos de gênero onde a supremacia era masculina. Hoje as mulheres representam em torno de 45% da força de trabalho nas organizações (SEGNINI, 2007). Snell e Bohlander (2009) ainda comentam a existência da Lei de igualdade de remuneração entre gêneros. No Brasil, em 1966 houve a ratificação da Convenção nº100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativa à igualdade de remuneração entre mão de obra feminina e masculina para trabalho de valor igual. Ainda em relação à questão do governo, segundo Sento (2000) apud Griffen (2007, p. 266), “[...] somente a partir da década de 1930 foram promulgadas as primeiras leis referentes às questões rabalhistas”. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), através do Decreto Lei nº 5.452, foi promulgada em 1º de maio de competência _ 161


1943 no governo do então Presidente da República, Getúlio Vargas, dando, inclusive, origem ao feriado comemorativo ao Dia do Trabalho, em 1º de maio, celebrado até os dias atuais, intensificando-se nas décadas de 1940 e 1950. A CLT unificou a legislação trabalhista existente e é o instrumento que regula as relações individuais e coletivas de trabalho, garantindo certos direitos aos trabalhadores como a limitação da jornada de trabalho, a garantia do repouso semanal, o salário mínimo negociado entre patrão e empregado. Nas décadas de 1960 e 1970 foram estabelecidas as leis de Segurança do Trabalho. Outro marco importante foi a promulgação da Constituição Federal em 1988, que criou o Direito Constitucional do Trabalho.

3. Sindicalismo no Brasil Marras (2008) afirma que o marco do sindicalismo surgiu na região CentroSul no setor metalúrgico em 1978. O maior líder sindical de todos os tempos, considerado na literatura, é o então Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que lutou por direitos e condições melhores para os trabalhadores de sua categoria, no caso, os metalúrgicos. No sindicalismo, os trabalhadores são divididos por categorias de trabalho que atuam no mesmo ramo. A partir da Carta Magna de 1988, os sindicatos puderam ser formados sem a necessidade de autorização do Estado, porém, a associação profissional é lícita pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sempre que devidamente registrada nas respectivas delegacias regionais do Ministério do Trabalho. Os sindicatos têm como objetivo defender os interesses das classes ou categorias econômicas (MARRAS, 2008). Ivancevich (2008, p. 36) acrescenta ao conceito de Marras (2008) que a representatividade dos interesses dos empregados são em termos de “[...] condições de trabalho, remuneração, benefícios adicionais, direitos trabalhistas, processos de reclamação e horas-extras”. A equidade na visão dos funcionários leva à comparação dos termos estabelecidos por Ivancevich (2008), o que implica diretamente na motivação dos mesmos, uma vez que é possível perceber a equiparação das relações. Essa percepção de justiça influencia diretamente no grau de esforço que os funcionários dedicam às suas atividades (ROBBINS, 2009). A inteligência sindical percebeu a importância de preencher as necessidades 162_ competência


psicológicas dos empregados, refletidas pelas poucas ações que as empresas realizam, afetando diretamente na motivação do empregado, além das questões anteriormente citadas (ROBBINS, 2009).

4. Motivação Griffin (2007, p. 334) define motivação como “[...] o conjunto de forças que levam as pessoas a se comportar de determinada maneira”. Solomon (2008) concorda com Griffin (2007), porém, acrescenta o conceito de processos. Para Solomon (2008, p. 138), a motivação “[...] refere-se aos processos que fazem com que as pessoas se comportem do jeito que se comportam”. A motivação é acionada por um desejo e a necessidade de satisfazer esse desejo. Robbins (2009) concorda com o conceito de Solomon (2008) e ainda acrescenta que se a necessidade não é satisfeita gera tensão e com isso há um estímulo por parte do indivíduo em termos de vontade e a busca pelo cumprimento de metas estabelecidas. Solomon (2008, p.139) comenta ainda sobre a importância da força motivacional, atribuindo a seguinte definição: “O grau de disposição de uma pessoa para despender energia a fim de alcançar uma meta e não outra reflete sua motivação subjacente para atingir aquele objetivo”. A figura1 representa o processo de motivação descrito por Griffin (2007) , o qual acredita que existe uma evolução no processo de motivação ao longo de uma série distinta de eventos.

Figura 1 – O processo da motivação Fonte: Adaptado de Griffin, 2007, p. 334

Robbins (2009) afirma que a partir do atendimento das necessidades do indivíduo, este estabelece novas que também precisam ser atendidas, o que justifica o círculo virtuoso estabelecido na figura 1, de Griffin (2007). Daft (2010, p. 720) diz competência _ 163


que a motivação “refere-se às forças internas ou externas às pessoas que desenvolvem o entusiasmo e a persistência para seguir certo curso de ação”. Daft (2010) relaciona a motivação do funcionário a sua produtividade, destacando como atribuição do gerente a motivação do funcionário com o intuito de canalizá-la para a realização das metas organizacionais. A figura 2 a seguir demonstra os pressupostos esperados pelos gerentes sobre a motivação do seu subordinado, conforme Daft (2010).

Figura 2 – um modelo simples da motivação Fonte: Adaptado de Daft, 2010, p. 722

A partir da figura 2 pode-se perceber que há um processo de aprendizagem em relação às necessidades do indivíduo.

5. Treinamento Marras (2007) define o treinamento como um processo de assimilação cultural que tem por objetivo alterar a capacidade do colaborador para realizar uma atividade levando em conta a modificação de seus conhecimentos, habilidades e atitudes no curto prazo, tendo então como objetivos: a) a formação profissional: o colaborador é capacitado para exercer a função; b) especialização: o colaborador é treinado numa área ou atividade específica; c) reciclagem: o colaborador revisa os conceitos que já foram apresentados noutro momento de sua capacitação. Chiavenato (2008) diz que, no passado, o treinamento era uma maneira de adequar o colaborador ao cargo que ele iria ocupar. Hoje em dia, esse conceito está baseado em treinamento, isto é, um processo pelo qual o colaborador é capacitado a fim de desenvolver as suas atividades em conformidade com o papel esperado pela organização. A abrangência do treinamento se dá tanto na esfera técnica, que está liga164_ competência


da à forma como o trabalho deve ser executado, quanto na esfera comportamental, de acordo com o perfil cultural da empresa e quais elementos em termos de informação e valores são indispensáveis para esse colaborador (MARRAS, 2007). Snell e Bohlander (2009) acreditam que a principal razão para as empresas treinarem novos funcionários é fazer com que os seus conhecimentos, habilidades e atitudes (CHA) atendam a um desempenho satisfatório. À medida que os funcionários permanecem na mesma organização, esta oportuniza ao mesmo a aquisição de novos conhecimentos e oportunidades, tendo como resultado a melhoria e eficiência nas atividades exercidas e, também, novas oportunidades em termos de cargos em outras áreas ou níveis superiores de alocação, contribuindo, assim, para uma visão de carreira.

6. Carreira profissional Para Ivancevich (2008, p. 442), carreira “reflete a ideia de ascensão no cargo escolhido pelo profissional”. A carreira é orientada pelo próprio indivíduo, tem abrangência comportamental em conjunto com a consistência de atividades exercidas pelo mesmo. Apesar de a carreira ser planejada individualmente, é necessário que a organização estabeleça um contexto favorável ao funcionário para que seus conhecimentos e habilidades sejam desenvolvidos e este possa exercer um cargo ou função contemplando esta realidade. No contexto atual, as possibilidades de carreira não se limitam apenas a promoções como antigamente, mas incluem transferências e até desligamentos para novos desafios profissionais (SNELL; BOHLANDER, 2009).

7. Metodologia do estudo Para esse estudo, foi utilizada a pesquisa exploratória com vertente qualitativa, sendo a coleta de dados através de pesquisa bibliográfica e roteiro de entrevistas semiestruturado aplicado no Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre - SINDILOJAS e Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre - SINDEC para os presidentes dos respectivos sindicatos, os senhores: Nilton Souza da Silva e o Ronaldo Sielichow, que auxiliaram aos pesquisadores no entendimento do funcionamento e práticas dos comerciários de Porto Alegre (empregados e empresas).

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8. Análise dos resultados As considerações aqui postas estão focadas no perfil do trabalhador do comércio em termos de distribuição por gênero e na capacitação e treinamento oferecidos pelas empresas aos seus empregados e como este treinamento incide no planejamento de carreira profissional do empregado do varejo na voz dos sindicatos. A visão tanto do SINDILOJAS quanto do SINDEC está em concordância com os dados divulgados pelas pesquisas realizadas pelo DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONOMICOS – DIEESE. A figura 3 demonstra que o SINDILOJAS especifica um perfil de colaborador em acordo com a sua percepção, que é de um público na sua maioria do gênero feminino e jovem. Em relação ao conhecimento, acredita ser necessária uma escolaridade mínima que auxilie o colaborador na execução de sua atividade. Já o SINDEC apresenta uma visão baseada em conhecimento mínimo; aponta a necessidade de o trabalhador do comércio possuir ao menos o ensino médio completo e, além disso, ter conhecimentos compatíveis para a realização de suas funções como poder dar informações aos clientes. Para a figura 3, foram consideradas as respostas obtidas na entrevista realizada nos sindicatos, respectivamente.

Figura 3 – Perfil dos Comerciários Fonte: Dados de pesquisa

Os dados apresentados na Tabela 1 a seguir, elaborada pelo DIEESE (2008), demonstram que há um crescimento de trabalhadores no setor do comércio do gênero feminino, mas ainda não pode ser considerado como uma maioria absoluta. Esses 166_ competência


dados estão em concordância com os apresentados por Segnini (2007), que reforçam a participação da mulher no mercado de trabalho, especialmente nos últimos 30 anos, reflexo da reestruturação do capitalismo abrangendo novas formas e racionalização do trabalho a partir de mudanças sociais, políticas e econômicas do Brasil. Os países desenvolvidos como os Estados Unidos apresentam similar distribuição da força de trabalho, o que leva a entender que o Brasil segue a mesma tendência. TABELA 1: - Estimativa de assalariados em Porto Alegre considerando gênero dos entrevistados.

Fonte: DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, consulta realizada em 20/02/2010

No caso do SINDEC, a visão do Presidente é convergente aos dados divulgados através de pesquisa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e divulgados através do DIEESE (2010). Como se pode analisar na tabela 2 a seguir, percebe-se que a maioria dos entrevistados possui o ensino médio completo e há um movimento significativo de pessoas buscando uma maior qualificação e investindo na graduação.

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TABELA 2: Movimentação de pessoal por setor de atividade e segundo o grau de escolaridade

Fonte: ministério do Trabalho e Emprego. Elaborado por DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, consulta realizada em 20/03/2010.

A figura 4 a seguir apresenta duas visões distintas sobre a capacitação e treinamento e a visão dos colaboradores sobre a capacitação oferecida pelas empresas em termos de motivação. O SINDILOJAS percebe o treinamento como ferramenta de motivação das empresas, já os funcionários interiorizam da mesma forma quando percebem que estes treinamentos influenciam nas oportunidades de crescimento incidentes em sua carreira profissional. O SINDEC possui uma visão mais pessimista e acha que as empresas atuam de forma retraída sobre essa questão. Acredita, ainda, que os colaboradores buscam capacitar-se, porém, não vislumbrando a sua permanência na atividade que está proporcionando essa capacitação, mas sim, como uma forma de estar mais bem preparado para novas oportunidades. Esse pensamento corrobora com os apresentados pelos autores Griffing (2007) e Daft (2010), os quais apontam a busca da motivação centrada no entusiasmo e persistência para seguir um determinado curso em prol de uma evolução profissional e pessoal, isto é, se o treinamento também influencia na motivação, os conceitos se complementam. Em ambos os sindicatos, acredita-se que a motivação do empregado está ligada à carreira profissional, mas não necessariamente na mesma empresa, o que corrobora com os autores Snell e Bohlander (2009), que afirmam a questão de que o planejamento nem sempre está ligado à promoção, mas também à aspiração por novas posições dentro de uma organização ou até mesmo à saída desta na busca de um novo mercado de trabalho, podendo ser ou não no mesmo segmento. Os resultados obtidos na pesquisa foram transcritos na íntegra para a composição da figura 4.

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Figura 4 – Treinamento e motivação Fonte: Dados de pesquisa

9. Conclusões Após um melhor conhecimento por parte dos sindicatos de classe, foi possível entender a visão dos mesmos em relação a sua percepção no que se refere ao perfil dos empregados, destacando-se a investigação da igualdade de gênero, a capacitação e treinamento dos trabalhadores do comércio de Porto Alegre, bem como a motivação por fazerem os treinamentos em relação à carreira profissional escolhida. Importante destacar que no que tange ao perfil do trabalhador, este está mudando, pois acompanha as diretrizes da globalização, tanto no que se refere a gênero, como a informações e ao conhecimento. As empresas buscam contratar pessoas mais informadas e comprometidas com resultados, tendo como elementos uma formação acadêmica mínima por parte dos trabalhadores. Isso se faz necessário porque o mercado pressupõe mudanças, hoje temos consumidores cada vez mais exigentes e que já não mais se contentam em receberem informações vagas ou incompletas sobre produtos e serviços prestados. É necessário, então, capacitar e treinar melhor os empregados, que estarão mais bem preparados em termos de conhecimentos e habilidades, a fim de tornar esse conhecimento um diferencial competitivo para o setor. Esse aumento no conhecimento e habilidades também torna o empregado mais competitivo em termos de organização em que atuam e de mercado, como comentaram Snell e Bohlander (2009). Importante ressaltar que o conhecimento dos trabalhadores necessita de certo investimento tanto por parte das empresas quanto do próprio empregado. Algucompetência _ 169


mas empresas utilizam o treinamento como ferramenta com fins de aumentar a motivação, porém, nem sempre os empregados possuem essa mesma visão, muitas vezes, os empregados aproveitam a oportunidade ou para crescerem dentro do setor ou para estarem mais competitivos para buscar novas oportunidades. Robbins (2009) destaca que a responsabilidade pela carreira é do empregado e não das Organizações. E como visto em termos de resultados, os empregados do comércio já possuem essa visão. Associam o treinamento e capacitação oferecidos pelas empresas como oportunidades futuras de crescimento profissional. Cabe refletir que o investimento em conhecimento não é uma obrigação tão somente das empresas, os sindicatos de classe, que são o canal entre empregadores e empregados, facilitam em diversas oportunidades, através de, por exemplo: eventos nos quais os custos são menores do que se realizados unicamente por uma empresa específica e palestras e seminários oferecidos, independente do porte da empresa, porém, os trabalhadores do comércio devem estar conscientes de que o seu papel em termos de formação também é de sua responsabilidade, sendo essa uma das razões para a cada dia encontrarmos um número maior de pessoas buscando um curso no ensino superior ou pessoas que realmente aproveitam essas oportunidades de treinamento e capacitação oferecidas tanto pelas organizações que atuam quanto pelos seus sindicatos de classe, pois os reflexos deste autoinvestimento se concretizarão justamente numa maior conversão de vendas, atingimento dos resultados e satisfação dos clientes em termos de organização e uma melhor preparação do empregado que o tornará mais competitivo em termos de mercado e, por consequência, o seu aproveitamento frente a novas oportunidades e desafios profissionais.

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GRIFFIN, Rick W. Introdução à Administração. São Paulo: Ática, 2007. IVANCEVICH, John M. Gestão de Recursos Humanos. São Paulo: McGraw-Hill, 2008. MARRAS, Jean Pierre. Administração de recursos humanos: do operacional ao estratégico. 12. ed. São Paulo: Futura, 2007. ______. Capital-trabalho. O desafio da gestão estratégica de pessoas no século XXI. São Paulo: Futurama, 2008. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO – MTE. Disponível em:< http:// www.mte.gov.br/>, acesso em 22.02.2010. ROBBINS, Stephen P. Fundamentos do Comportamento Organizacional. 8. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009. SEGNINI, Liliana R. P. Nova técnica do ponto de vista do Brasil: Estudos organizacionais e a questão do feminismo. In.: CLEEG, Stewart e org. Handbook de Estudos Organizacionais. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2007. SNELL, Scott; BOHLANDER, George. Administração de Recursos Humanos. São Paulo: Cengage Learning, 2009. SOLOMON, Michael R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. 7. ed. Porto Alegre: Bookman, 2008.

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Normas para Publicação Competência - Revista da Educação Superior do Senac-RS é uma publicação de periodicidade semestral cujo objetivo é promover e divulgar artigos e resenhas que contribuam para o desenvolvimento de áreas multidisciplinares. Os artigos publicados são resultado da produção de mestres e doutores e versam sobre Educação, Moda, Meio Ambiente, Gestão e Negócios, Comunicação e Informação, Hospitalidade e Lazer. A Revista também aceita resenhas de livros de pesquisadores e discentes de cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu, desde que as obras contemplem as áreas já mencionadas. Os textos devem seguir as recomendações abaixo: 1. Somente serão publicados trabalhos inéditos, de natureza técnico-científica, relacionados às seguintes áreas: Educação, Moda, Meio Ambiente, Gestão e Negócios, Comunicação e Informação, Hospitalidade e Lazer; nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. 2. A aceitação da publicação de artigo implicará transferência de direitos autorais para o Senac-RS, de acordo com a Lei de Direitos Autorais. A Instituição não se compromete a devolver as colaborações recebidas. Os autores dos textos publicados receberão um exemplar da Revista como cortesia. 3. Os originais encaminhados para análise serão submetidos ao Conselho Consultivo para emissão de parecer. No processo avaliativo, os nomes dos autores, assim como dos pareceristas, serão omitidos. 4. Diante da necessidade de qualquer modificação no texto, essa será submetida ao autor. 5. Todos os autores receberão retorno sobre o aceite da respectiva proposta. 6. Os artigos devem possuir no mínimo 12 e no máximo 15 páginas no formato A4, incluídas referências bibliográficas e notas; espaçamento 1,5 e fonte Times New Roman 12pt. 7. As propostas de artigo necessitam apresentar título e resumo de 150 a 200 palavras em português e inglês ou espanhol, seguido de três a cinco palavras-chave nos dois idiomas (português e inglês ou espanhol), obedecendo à NBR 6028. É necessário constar também o nome do autor ou autores; indicação da instituição principal competência _ 173


à qual está vinculado; atividade; titulação; endereço; e-mail e telefone para contato. 8. Deve ser encaminhada uma cópia impressa (textos e figuras) dos originais para o endereço: Av. Alberto Bins, 665, 7º andar, Porto Alegre/RS, aos cuidados da Comissão Editorial da Revista Competência, e também arquivo eletrônico, modo attached, no formato Word, para o e-mail competencia@senacrs.com.br. 9. Os textos que contiverem ilustrações, tabelas, etc., deverão ser encaminhados em formato original e em arquivos separados para o mesmo endereço eletrônico, com as indicações de inserção no texto, bem como legenda e referência de autoria (tratando-se de reprodução). 10. As imagens devem ser enviadas em formato JPG, com resolução mínima de 300 DPI’s. 11. As tabelas devem estar de acordo com as normas de apresentação tabular do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística – IBGE, 3. ed. Rio de Janeiro, 1993. 12. As notas numeradas e as referências bibliográficas (em ordem alfabética) seguem as NBR 10520 e 6023 da ABNT. Na apresentação, as notas devem preceder as referências. Livros: ALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1995. REGO, L.L.B. O desenvolvimento cognitivo e a prontidão para a alfabetização. In: CARRARO, T. N. (Org.). Aprender pensando. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 31-40.

Artigo de periódico: NOGUEIRA, Ronidalva. Michel Foucault numa breve visita às prisões de Pernambuco. Cadernos de Estudo Sociais, Recife, v. 6, n. 2, p. 269-282, jul./dez. 1990. Artigos e ou matérias de revista, boletim etc. em meio eletrônico: RIBEIRO, P. S. G. Adoção à brasileira: uma análise sociojurídica. Dataveni@, São Paulo, ano 3, n. 18, ago. 1998. Disponível em: http://www.datavenia.inf.br/frame. artig.html. Acesso em: 10 set. 1998. 13. As citações devem ser indicadas no texto somente pelo sistema autordata e estarem de acordo com a NBR 10520 da ABNT. Citações com mais de três linhas devem ser apresentadas em corpo 10, recuadas em 4cm da margem esquerda, sem aspas, com espaçamento 1,5.

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14. As aspas duplas serão empregadas somente para citações textuais de até três linhas, que estejam contidas no texto e em transcrições. 15. Os destaques, tais como nomes de publicações, obras de arte, categorias, etc. serão realizados por meio de itálico. 16. Caso o artigo contenha numeração progressiva, devem ser respeitadas as orientações da NBR 6024. 17. As resenhas, com extensão máxima de cinco páginas, devem conter as referências completas das obras analisadas e obedecer aos padrões acima especificados. 18. Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores.

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