OS FRALDOCOS
Ora na semana seguinte, enquanto os papéis não chegavam para os entregar ao frei Pachão, prior na capelinha da Costa Nova, num belo dia, quando a barca ao fim da venda trazia as pescadeiras1 para regresso à vila, o Tóino notou uma tristeza na Maria .E até descobriu umas furtivas lágrimas que enevoavam o seu lindo olhar. E dá de perguntar : - Maria !, c’a tens tu, cachopa, que na te vejo rir ? O que te padece ? Iam já em direcção à Maluca, andados que estavam uns bons cem metros. - Nada Tóino, nada home, deixa lá… num te apoquentes, que não é nada. Mas a Zefa «Tarrinca», companheira da Maria, não escondeu a razão da tristeza da Maria, e dá de opinar : - Olhe Vossemecê !, ela está assim porque o Manuel «Charrua», aquele desavergonhado, aperguntou2 se ela não queria experimentar o fogo dele, que tem mais labareda que o do Ti «Tóino». Mancatufe ! Pilado seco ! - Quê ?! - grita o Tóino «Labareda», pondo mão ao xarolo, puxando-o todo a estibordo, obrigando a barca a uma viradela em cima do eixo3. E assim dando a volta, caçou a escota fortemente. A barca pareceu querer saltar e chegar mais depressa ao ponto de partida. - Esse porco vai ver. Coso-lhe as tripas, e dou-as a comer à canzoada--- c’anda p’raí esgalfa 4. E numa orça felina, apertada, para ganhar tempo, mal a barca encosta ao moirões5 (desta feita um pouco mais bruscamente do que o habitual), lépido, o «Labareda» salta para o trapiche enquanto grita : - Passem aí uma laçada ao moirão6, que eu vou ali e já venho. - Ah hóme 7da minha alma, não me aflijas. Pode ser a tua desgraça e a minha implora Maria que faz tenção de agarrar o Tóino . Mas este não deu hipótese. E a correr entrou como um furacão pela taberna da Ti «Moura», adentro, fechando de um sopetão8 a porta, dando-lhe uma volta à chave.E dá de a guardar no bolso. A passo mais repousado foi encostar-se à varanda9 da tasca.E inclinando-se, pediu um copo de três. A «ti Moura» vendo o alvoroço que lhe ia na cara, interpelou-o: 1 Vide 1) 2 Perguntou 3 Virar sobre si mesma ; volta apertada 4 Cheia de fome 5 Estacas onde se amarram as embarcações 6 Vide 264 7 Vide 33 8 Num gesto brusco, rápido 9 Vide 62
- Que foi isso «Labareda» ? O que te fez voltar para trás ? Vens com cara de poucos amigos… - Olhe «ti Moura» : andam p’ra aí uns fraldôcos10 a fazerem de homens, a olhar, gulosos, p’ra aquilo que tem dono. Ora eu quero certificar-me o que valem os valentões. Traga-me aí um alguidar para apanhar as tripas destes badólas11 moinantes12. Maneiese 13… que deixei o «animal» mal amarrado. A um canto, numa mesa, em frente de três copos meio «entornados», estava o «Charrua», acompanhado pelo Xico da «Engrásia», mai-lo Pinto «Canastrão». Deveriam estar a falar dos dixotes14, pois logo que viram o Tóino com cara furibunda, calaram-se, e abotoaram no semblante a mais séria preocupação. - Vá!... disse o Tóino, ao Xico e ao Pinto ; lá p’ra fora. E já!... Se não querem que vos cape, também . E sugigando-os 15pelo camisete arrancou-os do chão, levando-os suspensos nas mãozorras. E enquanto a «Moura» abria a porta, o Tóino atirou borda fora os franganotes que foram mergulhar no areal em frente da tasca, para espanto dos passantes. Voltando atrás, o Tóino agarrou na mesa avantajada.E erguendo-a acima da cabeça, lançou-a sobre o «Charrua» que ficou atrunchado16 contra a parede, atordoado. O Tóino agarrou-o pelos gorgomilhos 17 arrastando-o para a porta : - Já que te andas a armar em olhudo, vou-te pôr como a tua mãe te trouxe ao mundo, para todos verem o pilado tísico que és. E se tu, ou outro, voltarem a poisar os olhos na minha Maria, faço-vos para morcelas. E num repente puxou do navalhão e, num golpe fulminante e certeiro, cortou os atilhos dos calções do «Charrua», que lhe caíram pernas abaixo, deixando à mostra as suas partes íntimas, de facto, pouco invejáveis. Viu-se! - Vá !...- diz-lhe o «Labareda», vai à tenda da Henriqueta «Pardala» e traz-me um copo de três, se não queres que eu te amanhe. O Manel, a tremer, lá foi naquela triste figura para gáudio de graúdos e chocarrice dos miúdos, que gritavam atrás : - Olha o «Pilado triste». Alcunha de que o «Charrua» nunca mais se libertou. E que o obrigou a pôr os pés, areia fora, na procura de paragens onde a novidade se não soubesse. Mas a mesma correu na proa das enviadas com o vento, e o «Pilado triste», só parou onde Portugal finda. Em Olhão, nas artes do atum.
10 Gente que não vale nada ; que ainda usam fraldas 11 Lorpas 12 Malandros 13 Mexa-se 14 Ditos maldosos 15 Agarrando-os ; subjugando-os 16 Apertado ; Entalado 17 Garganta
Encerrada a questão, o Tóino voltou à barca da passage18, agora crismada de Srª da Anunciação, e metendo a proa à Maluca, ali chegou num ápice, que o vento era frescóte19. A lição iria servir para que todo o mundo das companhas olhasse para a Maria com um respeito que levava alguns, mais medrosos, até - e à cautela -, a baixarem os olhos, só para os não cruzarem com os da Anunciação «Labareda».
Vide 1) Perguntou Virar sobre si mesma ; volta apertada Cheia de fome Estacas onde se amarram as embarcações Vide 264 Vide 33 Num gesto brusco, rápido Vide 62
Gente que não vale nada ; que ainda usam fraldas Lorpas Malandros Mexa-se Ditos maldosos Agarrando-os ; subjugando-os Apertado ; Entalado Garganta Vide 19)
Fresco mas não muito
18 Vide 19) 19 Fresco mas não muito