O Jogo: em Use, é lindo, eu garanto

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O Jogo CapĂ­tulo 1 ou 2 ou 3 ou 4


Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. (BARROS, M., 2000: 71)

Johan Huizinga foi um filósofo que viveu no século XX. Em seu livro Homo Ludens (1938) defende que é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve e até mesmo que a própria cultura possui um caráter lúdico. Para ele, o jogo tem uma função significante, conferindo um sentido à ação. “Reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material” (HUIZINGA, 2000: 7). O autor afirma que a atividade lúdica não é exclusiva dos seres humanos, mas também pertencente aos animais, que obviamente também são seres dotados de espírito. O jogo, pois, é fascinante, cativa e tem um caráter profundamente estético. As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo 3


de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da natureza. (HUIZINGA, 2000: 7)

A poesia de Manoel de Barros é rica nesse sentido. Artista afeito às “coisinhas do chão” como ele próprio diz, como lesmas e lagartos, explora as potencialidades da linguagem ao estimular o jogo linguístico, na medida em que desautomatiza a mesma de suas relações lógico-gramaticais, e perceptíveis nos seguintes poemas de Manuel Barros (1994: s/p): Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. E No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E, pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos. O verbo tem que pegar delírio. 4

Com a poesia, Manuel Barros (1994) fala sobre o poder do poeta, poder do artista em mudar o status das coisas, transformar “coisinhas da terra” em coisas celestiais. Esse ponto de encontro entre o jogo e a arte é apontado por Huizinga (2000) que é considerado um importante estudioso a pensar o conceito de jogo, e defende que o jogo tem sempre um forte caráter estético. “Em suas formas mais complexas o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres dons de percepção estética que o homem dispõe. São muitos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza.” (HUIZINGA 2000: 9). Ao ler essa frase, contatei que validou algumas impressões que eu tinha, além de apontar que características como ritmo e harmonia são louváveis. Outra importante contribuição desse autor é que ele enumera uma série de características do jogo, as quais optei listar primeiramente e depois me referir a algumas mais especificamente: • • • • • • • •

É livre, no sentido de ser uma atividade voluntária. É uma evasão da vida “real”, de ser extraordinária. É um intervalo na vida cotidiana. Possui uma qualidade de isolamento, limitação de tempo-espaço. Possui capacidade de repetição, com renovação de significado. Possui uma ordem específica e absoluta (ele é ordem e cria ordem). Há uma tendência para ser belo. É fascinante, cativante. 5


Todas parecem pertinentes e encontrei em cada uma um perfeito casamento em relação às minhas intenções como artista e que estão aparentes em Use, é lindo, eu garanto. Propor a participação, que deve ser voluntária por parte do público (cuja não-participação é também uma opção) está prevista na origem do trabalho, e que essa ação é bela exatamente por ser exercício do belo (exercitar o ritmo e a harmonia, no caso, formal e cromática). Algo que fascine e cative, que seja “engajante” e comovente. Uma proposição ao (co)mover, mover conjuntamente (no sentido figurado ou até mesmo literal), de jogar junto, de ser parceiro. Recentemente notei uma propaganda na televisão de uma marca de brinquedos cujo slogan é “Família joga junto”. O tempo destinado ao jogo dentro da instituição da família parece estar cada vez mais restrito. Não me lembro da última vez que joguei algum jogo com alguém do meu núcleo familiar. Nem ludo, nem xadrez, nem damas. Estamos sempre sem tempo. Nos jogos existem regras, são elas que valem dentro desse espaçotempo circunscrito, e rompê-las implica na “anulação do feitiço” e a magia se desfaz. Nos jogos infantis é presente a figura do “desmancha-prazeres”, aquele que destrói para todos o mundo mágico do jogo e que acaba frequentemente sendo expulso da brincadeira. Agora, é frequente também que os desmancha-prazeres acabem por fundar uma nova comunidade, com novas regras, que para Huizinga (2000), são as figuras dos revolucionários cujas ações são marcadas por um certo elemento lúdico. 6

No mundo dos adultos, o jogo é algo a ser praticado somente nas horas de ócio. Sempre atarefados com sua vida cotidiana, não podem se dar ao luxo de brincar. O jogo assume então a qualidade de passatempo. Use, é lindo, eu garanto tem sua lógica baseada em um sliding puzzle, um passatempo. O que é pensar uma obra de arte que propõe essa outra dimensão temporal? Uma sugestão de como administrar seu tempo? Aos poucos fui percebendo que talvez deixá-lo unicamente exposto num museu ou galeria não seria talvez tão interessante quanto deixá-lo na rua ou em uma empresa, ele poderia aí assumir uma posição mais radical de proposição, sugerindo a inoperatividade dentro do cotidiano. A diferença entre deixá-lo num espaço destinado à arte é que o sujeito escolheu um horário possível dentro de seu tempo destinado ao lazer para ir a uma instituição, o tempo destinado ao “passatempo” já estava programado, enquanto no caso de estar na rua ou inserido no próprio espaço do trabalho seria necessário pausar outra atividade para ativar o jogo, a obra.

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Pause > Play Surgiu-me a ideia de que enquanto não estamos jogando (playing) estamos pausados (pause). Passamos então grande parte da vida no pause e não sei o quão saudável isso é. Outra característica fundamental do jogo é o movimento, que é lindamente descrita por Gadamer (1985: 38). O que é vivo tem o impulso do movimento em si mesmo, é um automovimento. O jogo aparece então como um auto-mover-se que por seu movimento não pretende fins nem objetivos, mas o movimento como movimento, que quer dizer um fenômeno de redundância, de auto-representação do estar-vivo.

Use, é lindo, eu garanto tem uma dinâmica própria, mas cada pessoa pode inserir sua própria lógica de interação cromática, ou construir isso com um parceiro e jogarem juntos. Talvez o amarelo fique melhor ao lado do azul, ou talvez do vermelho! Mas essa peça vermelha talvez fique “não tão legal” perto da azul! Está sempre em movimento quando tocado, numa autorrenovação que quando cessado fica à espera do próximo ato que o atualize. Gadamer (1985: 43) propõe que para entendermos qual a base antropológica da nossa experiência de arte temos que desenvolver o conceito de 11


jogo. Afirma que “cada obra deixa como que para cada um que a assimila um espaço de jogo que ele tem que preencher”. A arte exige uma reflexão, uma tarefa de construção por parte do público. Acabo de me lembrar de um fantástico trabalho de vídeo que vi uma vez num museu em Recife, de autoria de Rivane Neuenschwander e Cao Guimarães chamado Quarta-feira de Cinzas / Epilogue (5’44’’). É quase um estudo biológico, no qual os artistas jogam no chão algumas lantejoulas, que penso

eu, foram banhadas em açúcar, pois o que se segue são várias formigas aparecendo para levar os pedaços coloridos de lantejoulas para o formigueiro. No meio do caminho aparecem também formigas de outras espécies, e elas acabam duelando entre si, culminando até mesmo na morte de uma formiga. Ao observar o vídeo é possível que fluam sentimentos diversos, pois ao mesmo tempo em que é lindo observar as cores serem transportadas em meio ao mato (às vezes as formigas são imperceptíveis), é meio violento ver o jeito que brigam entre si. Parecem brincar e brigar. Eu, por estar de fora, sinto como se estivesse na Grécia antiga observando os gladiadores numa arena. Tem algo de muito sério no jogo, de perigoso quando levado a sério. E algo de perverso na proposta de alguns jogos. É impossível também não se lembrar de Jumanji, no filme, dois irmãos encontram um jogo e decidem jogar, porém cada movimento torna-se excessivamente real; animais e outros elementos aparecem magicamente assim que os jogadores arremessam os dados, colocando-os cada vez mais em perigo.

Rivane Neuenschwander e Cão Guimarães. Quarta-feira da Cinzas / Epilogue. 2006.

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Em uma história de Anderson aparece um livro cujo preço valia a ‘metade do reino’. Nele tudo estava vivo. ‘Os pássaros cantavam e as pessoas saíam do livro e falavam.’ Mas quando a princesa virava a página ‘pulavam imediatamente de volta, para que não houvesse desordem’. Delicada e imprecisa, como tanta coisa que ele escreveu, também essa pequena criação passa ao lado daquilo que é o mais essencial aqui. Não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as imagina – a própria criança que as imaginando durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo pictórico. (BENJAMIN, 2002: 69)

Benjamin (2002) dedica o sétimo capítulo de sua obra aos livros infantis. Aponta a importância das ilustrações para que elas possam animar as palavras e viver a história. Parece-me como o jogo, que também cria uma condição espaço-temporal diferenciada. A criança constrói o livro na medida em que vai lendo, enquanto joga junto. Muitos artistas se dedicam a pensar o conceito de livro, culminando na criação de livros de artistas. Reflito também acerca das dimensões táteis observáveis em livros que apresentam significativas características de fisicalidade e materialidade, a partir de minha experiência pessoal de folheá-los, à luz de conceitos da fenomenologia de Merleau-Ponty. Nesse sentido, é proposta a concepção de livro de artista como lugar tátil, lugar funda16

do pelo artista e fruído pelo folheador. Espaço de encontro de corpo e livro, as páginas são assim consideradas como territórios para a experimentação de sensações táteis intensificadas. (SOUSA 2009: 11)

O artista leva em consideração o leitor, que agora é chamado de “folheador”, pois o ato de entrar em contato com o corpo do livro da obra é fundamental. Um contato corpo-a-corpo, um contato franco. São muitas as relações desse mundo que reconheço como características perceptíveis em Use, é lindo, eu garanto. Ao escrever o projeto e iniciar o processo de escrita, comecei a pensar como gostaria que fosse o formato da publicação que conteria a monografia. Gosto da ideia de pensá-lo como penso o trabalho plástico e quero que a ação de lê-lo e folheá-lo seja uma extensão da experiência que tanto me refiro quando falo sobre ele. Propor um jogo, permitir ao leitor optar pelo caminho, percurso da leitura. O jogo da amarelinha, de Cortázar (1999) também propõe que o leitor tenha uma autonomia para escolher qual caminho trilhar durante a leitura, mas ainda existe uma numeração, uma sequência numérica que o leitor pode se apegar. Foi um desafio pensar em um formato que ao mesmo tempo correspondesse com minhas vontades e cumprisse com as expectativas de um formato acadêmico. Desmembrar os capítulos centrais do texto e dar autonomia para que 17


cada um existisse interdependente dos outros três foi um desafio, pois teria de fazer sentido independentemente do caminho escolhido pelo leitor, fruidor do texto, o parceiro no jogo, como a criança que vai construindo o livro na medida em que vai lendo.

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