O objeto, ou não: em Use, é lindo, eu garanto

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O Objeto, ou não Capítulo 1 ou 2 ou 3 ou 4


O trabalho intitulado Use, é lindo, eu garanto funciona a partir da utilização do sistema de um sliding puzzle1, o espectador pode alterar a composição2 cromática da peça. O trabalho tem sua potencialidade máxima desenvolvida quando alguém o está tocando e alterando sua composição. Meu trabalho renova-se pelo toque de cada pessoa que a cada vez constrói um novo jeito de ver. O toque o ativa. Amarelo + Amarelo + Verde + Azul Vermelho + Roxo + Azul + Azul + Verde + Amarelo Vermelho + Laranja + Amarelo + Laranja + Vermelho + Roxo + Azul Azul + Roxo + Vermelho + Vermelho + Laranja + Amarelo, por exemplo. E comeremos luz com os olhos.

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Um sliding puzzle é um tipo de quebra-cabeça que desafia o jogador a deslizar peças geralmente planas

ao longo de uma rota pré-determinada (geralmente em uma placa) para estabelecer uma certa configuração final específica. 2

Algumas definições da palavra composição: 1) Proporção dos elementos que entram num corpo compos-

to; e 2) Ação de produzir uma obra intelectual.

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Gosto de pensar que as possibilidades de composição são infinitas, porém um amigo matemático calculou exatamente quantas são as possibilidades: Como são 16 quadrados (1 vazio, 5 amarelos, 5 vermelhos e 5 azuis), é preciso fazer a permutação (troca de lugar) dos 16 quadrados, dividindo pela permutação das repetições (por exemplo, trocar dois quadrados vermelhos não muda nada, por isso precisamos “descontar” as situações de trocas entre as próprias cores). Sendo assim: Permutação de 16 quadrados, dividido pela permutação de 5 amarelos, 5 vermelhos e 5 azuis temos:

Essa conta resulta em 12.108.096 combinações possíveis, ou seja, 12 milhões, 108 mil e 96 combinações (Lembrando que, por exemplo, 5! (lê-se: 5 fatorial) é igual a 5.4.3.2.1 = 120). (RAFAEL PELIZZER3)

Na verdade, o espectador não tem liberdade de criação com a obra, e 3

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Colaborador deste trabalho. Autor dos cálculos.

sim liberdade de escolha, optando por uma dessas combinações possíveis. E cada combinação tem sua finitude, mas a experiência que a pessoa terá, beira o infinito (aliás, faz sentido dizer que a experiência é infinita? O infinito é uma unidade de medida muito grande, mas ainda continua sendo uma unidade de medida. Talvez seja melhor pensar que a experiência é incomensurável?). A experiência é sempre singular, individual. Duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não passam pela mesma experiência. A obra está sempre mudando, sendo alterada, tocada por diversas pessoas que nela criam lógicas próprias de interação entre as cores; e que durante um tempo indeterminado fica em modo latente (gosto de pensar que possui uma memória de curto prazo), esperando a próxima pessoa que o embaralhará novamente e assim o ciclo continua. Foi construído baseado na lógica de um jogo. Para Huizinga (2000: 5), o jogo tem uma função significante, algo que transcende as questões cotidianas e confere um sentido à ação; e “o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência”, assim afirma que reconhecer o jogo é reconhecer o espírito, pois sua essência não é material, ultrapassando os limites do mundo físico. Pensei no caso das pessoas que só teriam contato com a publicação dessa monografia e como eu poderia descrever a experiência de manipular Use, é lindo, eu garanto. Encontrei-me sem palavras e optei por incluir na 5


publicação um flipbook, que também consegue reproduzir a experiência que se teria com a obra, mas pelo menos acredito ser menos distante do que minhas palavras poderiam descrever.

Esquema da moldura

Esquema de uma peça

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A primeira ideia que tive foi a de fazer as peças em vidro colorido (pensando mesmo na linha dos vitrais tradicionais), porém essa ideia foi logo abandonada porque: a) é um material frágil, o que dificultaria o transporte e a manipulação; b) o peso de cada peça dificultaria a manipulação; e c) quanto ao corte, as peças “móveis” teriam cantos vivos, o que poderia machucar o público no momento da interação. A segunda ideia foi o uso do material acrílico, que é o mais indicado por: a) ser leve e transparente; b) ter diversas espessuras; c) ter fabricado as cores necessárias para a execução das peças e que não desbotam facilmente; e d) apesar de riscar facilmente, poderá sempre ser polido.

para fazer a fresa, cortar e forjar as peças, parafusar, criar o apoio para mantê-lo 90º graus, lixar o acrílico, poli-lo entre outras funções.

Esboço inicial. 2011. Aquarela sobre papel Fabriano. 29,7 X 21,0 cm. Acervo Pessoal

Foi um longo processo, que contou com o envolvimento de várias pessoas, desde o projeto inicial até a sua materialização. A ideia do objeto surgiu há aproximadamente um ano, e essa foi uma das primeiras versões – um projeto em aquarela. Optei pela redução de quantidade de cores, escolhendo somente as primárias quando percebi que no encontro dos encaixes fêmea e macho, surge a cor secundária. Muitas pessoas ajudaram no processo, como mencionado, no projeto técnico, com assessoria, a decidir qual seria a melhor espessura do acrílico 8

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Foram tantas as dificuldades durante processo de trazer ao mundo real a forma que estava até então no mundo das ideias, que em alguns momentos achamos que não seria possível. Estive sozinha e/ou acompanhada por longos períodos ao longo de sua execução. Algumas pessoas doaram seu tempo e outras cobraram por ele, mas independentemente sou-lhes muito grata, pois sem elas o projeto não teria se materializado. E vê-lo assim, pronto, tão meu e tão dos outros, é algo muito importante para mim.

Durante o processo de execução de Use, é lindo, eu garanto, eu continuava lendo referências de filósofos e pensadores para escrever a monografia. Nesse processo comecei a perceber qual era a real vocação do meu projeto e que estava certa em me dedicar à criação do objeto, mas que o importante não era o objeto em si, e sim a experiência que o sujeito teria com ele. Bourriaud (2009a: 147) cita uma frase de Guattari: “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo”. O objeto é o caminho para se chegar ao lugar que é o sujeito, onde o trabalho realmente acontece. Bourriaud explica que durante a história, a arte sempre se debruçou sobre as relações. No princípio era entre a Humanidade e divindade, entre Humanidade e objeto e agora, nas relações inter-humanas, sendo essa a estética relacional. Aliás, são muitos os artistas que se debruçam sobre as relações inter-humanas. Ainda de acordo com Bourriaud (2009a: 26), “a estética relacional constitui não uma teoria da arte, que suporia o enunciado de uma origem e de um destino, e sim uma teoria da forma”, pois para ele, toda obra de arte é um modelo de mundo viável então é o papel do artista “arquitetar” essa forma, esse mundo. Com esse pensamento, sou levada a lembrar de vários artistas que se debruçaram sobre a forma para modificar a relação que os sujeitos têm com o objeto, e na minha mente surgem exemplos palatáveis, como os neoconcretistas, especialmente Helio Oiticica e Lygia Clark.

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A prática do artista, seu comportamento enquanto produtor, determina a relação que será estabelecida com sua obra: em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos. (BOURRIAUD, 2009a: 59)

O mesmo tipo de pensamento que encontramos em Bourriaud cujo texto original é de 1998, é possível relacionar com o de Gullar (2007: 90) em sua Teoria do não-objeto (1959): A expressão não-objeto não pretende designar um objeto negativo ou qualquer coisa que seja o oposto dos objetos materiais com propriedades exatamente contrárias desses objetos. O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rastro.

Para Gullar o papel do artista é criar uma forma, um objeto outro que não deve fazer alusão a objetos já pertencentes ao mundo e utilizáveis como lápis, batedeira ou tapete cujo uso diário esgota a relação de diferentes possibilidades de sentidos. Esse objeto especial deve resgatar a experiência primeira de mundo. Para Oiticica (que imagino se divertia ao nomear seus trabalhos), o título já é uma invenção e problematizava a relação significado-significante como aponta Favaretto (1992). Temos os Metaesquemas, 13


Invenções, Bilaterais, Relevos espaciais, Núcleos, Penetráveis, Bolóides, Parangolés, Manifestações Ambientais, Tropicália, Suprassensorial, Crelazer, Probjeto, Apocalipopótese, Éden, Ninhos, Barracão, Não-Narrativas, Subterrânia, Delírio Ambulatório e Contrabolóides.

É preciso pavimentar bem essa via de acesso ao lugar de destino (pensando na estrada como objeto e a cidade como o sujeito). O artista é arquiteto e engenheiro e pedreiro. Nós somos os propositores: Nós somos os propositores: nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido de nossa existência. Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê. Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação. Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado nem o futuro, mas o agora. (CLARK, 19684)

Ou em Hélio Oiticica (apud FAVARETTO 1992: 119): Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ). B47 Bólide Caixa 22, exata 1967 Reprodução fotográfica autoria desconhecida.

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A antiarte é, pois, uma nova etapa [...]; é o otimismo, é a criação de uma

Lygia Clark.Bicho de bolso. 4

Informação disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/arquivoPT.asp>. Acesso em: 12 out. 2012.

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nova vitalidade na experiência humana criativa; o seu principal objetivo é o de dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora. É o começo de uma expressão coletiva.

É perceptível nas obras, nos escritos e nos discursos desses artistas brasileiros uma postura diferente em relação ao público, uma postura mais generosa, “de dar ao público a chance”. Para Ferreira Gullar (2007: 99), muitas das estruturas dessas obras (os não-objetos) sempre levam em consideração o outro, até mesmo ao ponto de que ficam em estado de latência até que o público o ative: A contemplação conduz à ação que conduz a uma nova contemplação. [...] A ação não consome a obra, mas a enriquece: depois da ação a obra é mais que antes – e essa segunda contemplação já contém, além da forma vista pela primeira vez, um passado em que o expectador e a obra se fundiram: ele verteu nela seu tempo.

vez é embaralhada e recomeça. Esse sujeito, criatura que animará, trazendo à vida cada vez em que lhe tocar, é fundamental! Esse sujeito é ativo, e chamá-lo de expectador reduz sua potência. Ele é cocriador, artista enquanto cria junto. Enquanto jogamos junto (não literalmente, claro. Ou até, talvez). É nele em que de fato acontece a experiência. Lembrando também que a não-participação é uma opção do sujeito. O artista faz uma proposição que pode ser acatada ou não pelo público, no exercício do seu livre arbítrio. O artista propõe uma experiência, mas depois fica a cargo dos indivíduos descobrirem por eles mesmos o que fazer com a sua própria experiência (que é individual e intransferível), e isso é diversidade.

No caso de Use, é lindo, eu garanto, a atuação do público foi prevista e almejada. Sem o espectador, a obra existe como potência, à espera do gesto humano que a atualize. Para Bourriaud (2009b: 21) “Usar um objeto é, necessariamente, interpretá-lo”. Como foi dito no início do capítulo, cada um poderá inserir sua própria lógica de combinação compositiva que a cada 16

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Reconheço em Use, é lindo, eu garanto muito da Teoria do não-objeto, mas não o classifico assim. No momento consigo pensá-lo como uma área de intersecção entre várias “modalidades” já estabelecidas pelo mundo da arte: pintura, escultura, happening, e vídeoinstalação, possuindo diversos graus de pertencimento a uma ou outra, dependendo de como opto por expô-lo. Acredito que o raciocínio primário da estrutura de Use, é lindo, eu garanto surge da pintura, quando se dedica a problematizar as composições cromáticas. Além do fato de possuir uma moldura, ainda que transparente, ela evoca a estrutura básica de um quadro e, portanto, essa identidade “pictórica” é imanente ao trabalho e independe de como decido expô-lo. Também é o caso da escultura, por ser tridimensional, e principalmente quando opto por colocá-lo em uma base, o pedestal onde tradicionalmente a escultura é apresentada. O espaço para a exposição desse modo pode variar, podendo ser exibida tanto em lugares fechados como abertos, por exemplo, numa praça (por quanto tempo ela permanecerá por lá já é outra questão). Um convite ao happening que pode ser aceito ou não pelo público. Quando é exposto numa sala, na penumbra, onde um foco de luz é apontado para o objeto e a parede da sala é usada como anteparo, na qual as sombras são projetadas, acredito ter algumas semelhanças com a videoinstalação. Um vídeo que acontece quando o visitante o está ativando (play, playing = brincando), no caso, o visitante seria uma espécie de DJ, 19


remixando possibilidades cromáticas. E o mais importante, a sua própria sombra também é projetada na parede, ele se vê alterando o sistema.

gíveis e ele percebe: Eu existo. Se eu existo e atuo no espaço, Importa se o tipo de ação que eu tomar se transforma em um senso de responsabilidade? Para Lygia Clark (apud MELLO, 2008: 167) “É no instante em que pratica o ato, que o espectador percebe simultaneamente o sentido de sua própria ação”. O espaço da arte é tão fantástico, pois consegue transitar muito facilmente entre as esferas do individual e do coletivo (e que não devem ser vistas como polos opostos), me interessa esse ponto de vista de alteridade que o objeto de arte pode trazer. A tendência contemporânea da estética relacional é ultimamente criticada. Dizem que ao expor em espaços restritos, como museus e galerias, os artistas estariam contradizendo o desejo de uma sociabilidade que funda o sentido de seus próprios trabalhos. Neste sentido, Bourriaud (2009a: 115) aponta:

Esta opção de expô-lo evidencia para o visitante a ação de seus atos (consciência de estar alterando o sistema). Qual a diferença entre estar em uma imagem e estar em um espaço? Quando o visitante percebe que pode alterar o sistema, torna as coisas tan20

O que esses críticos esquecem é que o conteúdo dessas proposições artísticas deve ser julgado formalmente: em relação à história da arte e levando em conta o valor político das formas, a saber, a transposição dos espaços construídos ou representados pelo artista para a experiência vivida, a projeção do simbólico no real. Seria absurdo julgar o conteúdo social ou político de uma obra ‘relacional’ descartando pura e simplesmente seu valor estético [...] 21


O que importa aqui é o resgate, através da obra de arte, da experiência primeira do mundo, e que esta não deve ser classificada às modalidades tradicionais na arte, pois ficaria sujeita ao mundo já conceituado (como pintura ou escultura). E finalmente chegou-se ao momento atual, em que o artista já não se preocupa em fazer pintura ou escultura, para através delas reencontrar a experiência primeira do mundo: as formas, as cores, o espaço não pertencem a esta ou àquela linguagem artística, mas à experiência viva e indeterminada do homem. (GULLAR, 2007: 98)

Portanto, para mim é relevante que eu me dedique a refletir sobre qual é essa experiência primária que tento resgatar, ao invés de tentar categorizar Use, é lindo, eu garanto em alguma classificação pré-existente, ou até mesmo de criar uma nova.

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