Experiência: em Use, é lindo, eu garanto

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Experiência Capítulo 1 ou 2 ou 3 ou 4


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As mãos e os olhos, quando a experiência é estética, são instrumentos através dos quais a criatura viva inteira, totalmente ativa e em movimento, opera. Então a expressão é emocional e guiada por um propósito. (DEWEY, 1980: 100)

Em seu livro Arte como Experiência (de 1934), Dewey diz que o esquema padrão de toda experiência é que ela é o resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo no qual ela vive. Bondía (2002: 21) simplesmente diz que “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”, e adverte sobre a pobreza de experiências que caracterizam nosso mundo, já que esta só acontece quando efetivada a relação sujeito-objeto. O sujeito deve estar apto para que essa relação seja significativa. O autor também aponta alguns motivos que nos têm levado a esse empobrecimento, como a velocidade da informação e a falta de silêncio e de memória (chama essa tríade de “lógica da destruição generalizada da experiência”). Qual seria o papel do artista nessa intrincada relação? Natural relação sujeito-objeto. O próprio artista é uma criatura viva, sujeito ativo que cria significado enquanto se relaciona com o mundo à sua volta, e tocado por uma experiência significativa com o objeto (podemos pensar aqui a própria experiência como objeto de reflexão), dá forma a essa reflexão criando um objeto outro que por si é capaz de relacionar-se com outros sujeitos, resul4

tando em diversas experiências outras que talvez nada tenham a ver com a que engatilhou todo o processo. Ufa! Pareyson (2001) explica que em filosofia, a experiência é ao mesmo tempo objeto de reflexão e de verificação do pensamento e o pensamento é resultado e guia da interpretação da experiência e que, portanto, as duas operações ocorrem concomitantemente, sendo complementares e de forma alguma excludentes. [...] estética é filosofia justamente porque é reflexão especulativa sobre a experiência estética, na qual entra toda experiência que tenha a ver com o belo e com a arte: a experiência do artista, do leitor, do crítico do historiador, ou simplesmente de qualquer um que desfruta de qualquer beleza (seja ela artística, natural ou intelectual). (PAREYSON, 2001: 5)

Quando me refiro ao conceito de beleza, tenho consciência que este foi e é trabalhado incansavelmente por filósofos e pensadores, mas uma definição que me parece satisfatória é que a beleza é uma combinação de qualidades que impressionam agradavelmente a visão ou outros sentidos. Meu trabalho como artista parte deste princípio, de impressionar o outro, o sujeito através do objeto. Cativá-lo e ‘apaixoná-lo’. Existe algo de sensual e sensível nesse meu querer. 5


Eu-artista quero impressionar o outro, fruidor da minha obra. Fazê-lo parar por um momento, olhar e deixá-lo tocar, se assim o quiser. Dewey (1980: 99) diz que “Há um elemento de paixão em toda experiência estética” e também que existe um quê de sofrimento, um padecimento que faz parte da incorporação vital para que a experiência seja significativa. Encontramos em Bondía (2002: 26), uma ideia semelhante quando este decide explicitar o seu uso da palavra paixão como chave para o entendimento da relação sujeito-objeto, sendo uma das possíveis interpretações a análise da postura do sujeito:

Segundo Bondía (2002: 25), a palavra experiência vem do latim experiri cujo radical é o mesmo da palavra periculum, perigo. Até mesmo em Dewey (1980: 95) podemos encontrar uma frase alertando sobre sua consumação: “A experiência constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua consumação através de uma série de variados incidentes”.

O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada a ver com a mera passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. [...] A paixão funda, sobretudo, uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não nela mesma, mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar.

Ao que parece, apaixonar-se é perigoso! 6

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Coisa muito bonita, que irradiava uma luz azul. Eu me apaixonei pelo brilho da morte. Devair Ferreira

Em 13 de setembro de 1987, teve início um processo de contaminação que resultou no maior acidente radiológico do mundo, ocorrido fora das usinas nucleares, atingindo nível 5 na Escala Internacional de Acidentes Nucleares. Nesse dia, dois catadores de sucata encontraram uma máquina utilizada em radioterapias num hospital abandonado na região central da cidade de Goiânia, a cápsula de chumbo e aço continha cloreto de césio; ela foi desmontada e vendida a um ferro velho. A parte de aço foi considerada sem valor de venda e deixada de lado por Devair Ferreira, dono do ferro velho. (CÉSIO 137, 1991) Ao cair da noite, Devair percebeu que uma estranha e fascinante luz azul estava sendo projetada na parede, notou que vinha da cápsula de aço e ficou fascinado. Só foi possível que Devair percebesse a luz, pois nessa cápsula onde ficava armazenado o cloreto de césio tinha uma janela de irídio que permitia a passagem dessa luz emanada do composto radioativo. Césio ou do latim caesium significa “céu azul”. De acordo com os relatos, Devair “brincava” de projetar a luz azul pelo espaço de sua oficina, inclusive levou a peça para o interior de sua casa para mostrar à sua esposa Maria Gabriela. Nos dias que se seguiram, todos que iam visitá-los saiam com um pou8

co do “pozinho mágico” que Devair jurava que de noite brilhava com uma linda luz azul. Entregando até mesmo para seus irmãos levarem para suas casas para mostrar às crianças. Seu irmão Ivo Ferreira deu o cloreto de césio para sua filha de cinco anos de idade brincar, a menina Leide acabou ingerindo-o acidentalmente por não ter lavado às mãos antes de jantar, o que a levou à morte no dia 23 de outubro, no mesmo dia em que morreu sua tia Maria Gabriela. Elas foram consideradas as primeiras mortes pelo contato com o composto radioativo. Desde quando Devair percebeu a luz azul, ele, sua mulher e os funcionários do ferro velho começaram a passar mal, com náuseas, dores de cabeça e até mesmo perda de cabelo. Contudo, ignoravam o motivo desse mal estar, acreditavam terem comido algo estragado. Somente quando a cunhada de Devair, que tinha trabalhado em um hospital, suspeitou da estranha cápsula e desconfiou dos sintomas, pediu para Maria Gabriela levar a peça para a Vigilância Sanitária (detalhe: para tal, ela e um funcionário do ferro velho pegaram um ônibus coletivo urbano cheio de pessoas). A cápsula permaneceu durante dois dias inteiros abandonada em uma cadeira na Vigilância, que não acreditava que os sintomas que sofria Maria Gabriela poderiam ser originados por aquela peça de aço. A morte de Leide iniciou uma batalha judicial, pois tanto os coveiros quanto a população local não queriam que ela fosse enterrada no cemitério local, pois contaminaria o solo, queriam que ela fosse cremada. Depois de dias de impasse, ela foi en9


terrada em um caixão blindado, erguido por guindaste, e durante o enterro, a população jogava pedras e pedaços de cruz, em protesto. No total, 112.800 pessoas foram registradas oficialmente como expostas aos efeitos do césio. Durante o processo de limpeza, chegou-se à conclusão que 13.500 toneladas de lixo atômico foram resultantes, acondicionadas em 14 contêineres que permanecerão perigosos para o meio ambiente por 180 anos. Não tenho dúvidas que o motivo da gigantesca proporção que tomou esse acidente foi originado pela experiência estética que Devair teve com a luz azul emanada do césio, provavelmente se fosse simplesmente um pó branco como o sal de cozinha não teria chegado a essa proporção. Somente porque parecia haver algo de mágico e fascinante nesse pó, ele quis compartilhar esse fascínio e o que experienciou, queria que outros também vissem esse fenômeno. Assisti a um documentário com relatos da época, em que Devair dizia: “mas era lindo, era uma luz azul!”, incrédulo que uma coisa bela pudesse ser mortal. Identifico-me com Devair, quero partilhar o que acredito ser belo, o que acredito ser bom, mas preocupo-me, assim como aconteceu com ele, que talvez proporcionar essa experiência para as pessoas seja perigoso, ou danoso. Sinto carregar uma imensa responsabilidade. 10

Dewey (1980: 92) afirma que “A experiência pode ser danosa para o mundo e sua consumação indesejável. Mas possui qualidade estética”. Temo, então, seus desdobramentos. Uma experiência estética pode mudar o mundo. E não, não acredito estar exagerando ao dizer isso. Por assim dizer, considero o exemplo do acidente Césio 137 sintomático, mas é claro que a experiência não necessariamente causa um impacto negativo, por exemplo: quando Darwin estava nas Ilhas Galápagos e percebeu que os bicos dos tentilhões eram diferentes de acordo com seu habitat, provavelmente teve uma experiência estética que o levou a pensar e chegar a essa conclusão. Ou quando uma maçã caiu na cabeça de Newton. Ou quando Kandinsky viu seu próprio quadro virado no cavalete. É a partir de reflexões sobre o mundo que chegamos à conclusão sobre como o mundo é. Pareyson (2001: 6) define sucintamente a experiência como um “[...] objeto ao mesmo tempo de reflexão e de verificação do pensamento e o pensamento é, ao mesmo tempo, resultado e guia da interpretação da experiência”. Pode parecer meio óbvio dizer isso, mas é que às vezes temos a impressão que isso funciona no sentido contrário, talvez porque, geralmente, durante o período escolar costumamos aprender a teoria primeiro e em seguida tentamos aplicá-la na nossa vida, mais diretamente como as leis da física (isto é, se algum dia conseguirmos concretizar esses pensamentos abstratos; eu, por exemplo até hoje não sei para que serve a matriz de Vandermonde...). 11


Menina interagindo com obra de Olafur Eliasson. Sua fogueira c贸smica (2011). SESC Belenzinho/SP.

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Ter uma experiência é tornar-se parte do mundo. Tornar-se parte do mundo é realmente sobre dividir responsabilidade. (Olafur Eliasson)

Compareci a dois eventos com sua participação em São Paulo: uma palestra na abertura de sua exposição no SESC Pompéia e uma mesa redonda no Goethe-Institut, sobre os caminhos da educação da arte. Durante a palestra, ele apontou quais são os questionamentos primordiais que o move – por que, para que e quais as consequências de se fazer arte. Olafur fez vários experimentos, como pedir para a plateia fazer cóce14

Olafur Eliasson. Sua fogueira cósmica. 2011. Sesc Belenzinho.

Sem dúvida alguma, um artista pelo qual sinto uma grande afinidade e respeito é o dinamarquês Olafur Eliasson, por vários motivos. Em 2011, o Videobrasil realizou uma exposição de seus trabalhos em São Paulo e me senti muito ligada à sua produção plástica e pela pessoa que ele é.

gas na pessoa sentada à sua direita e também rir gradualmente. Principalmente durante a palestra no SESC Pompéia, enquanto falava sobre o que o movia, eu percebi que eram praticamente as mesmas questões que me movem. Os títulos de seus trabalhos me soam fascinantes: Seu corpo da obra, Seu planeta compartilhado, Your atmospheric colour atlas, Your watercolour horizon, Your uncertainty of colour matching experiment. A exposição Seu corpo da obra estava dividida em três locais de exibição: SESC Pompéia, SESC Belenzinho e Pinacoteca do Estado. Interessei-me mais pelos trabalhos expostos nas duas unidades do SESC. Eu fui várias vezes visitar, ficando horas no local. Sentava-me no chão, onde estava exposta Sua fogueira cósmica (SESC Belenzinho) e assistia às cores passando pelas paredes como se contemplasse o nascer e o pôr-do-sol. Sentia-me totalmente confortável andando em Seu Caminho Sentido (Sesc Pompéia) pois sentia purificar meus olhos, de uma certa forma. Sentia estar padecendo da cegueira branca que José Saramago escreve em Ensaio sobre a Cegueira (1995). Ficava recostada em uma parede, ouvindo os gritos de surpresa dos novos visitantes, ao perceberem que lhes foi tirada a visão. Um dia conversando com um dos arte-educadores, este me disse que um menino ao correr pelo espaço havia caído de boca no chão e quebrado alguns dentes. Provavelmente nunca se esquecerá da estranha sala branca enevoada. Olafur almeja criar experiências sensíveis para o sujeito, mas deixa a cargo 15


desse sujeito descobrir o que fazer com elas. Esse sujeito, ao perceber que faz parte do mundo, faz uma transição do âmbito privado ao público. Alerta que ao se referir à coletividade, nem sempre implica em consenso, pelo contrário, tenta cultivar uma postura de que apesar de não sermos iguais continuamos juntos. Menciona que empatia é um conceito importante para ele. A empatia está relacionada à habilidade de experimentar reações emocionais por meio da observação da experiência alheia. Sempre achei fascinante a expressão em inglês que traduz essa ideia de empatia: put yourself in someone’s else shoes. Como se ao ocupar o mesmo espaço de uma pessoa, perceberemos qual o seu ponto de vista e então compreenderemos. Para que possamos ter uma experiência (compartilhada ou não), precisamos de tempo. Precisamos de tempo para pensar, para sentir. Olafur acredita que ultimamente o tempo nos está sendo negado. E se não temos tempo não teremos mudanças, pois a mudança leva tempo ou depende dele. Sua ideia é devolvê-lo às pessoas. Para que o público entenda seus trabalhos, é preciso experimentar e isso leva tempo. Não sei se ele conhece Jorge Bondía, mas aposto que concordaria com sua tríade da lógica da experiência. Retomando a citação de Olafur, quando diz que ter uma experiência implica em fazer parte do mundo e, por consequência, dividir responsabilidade, aponta a responsabilidade ética do artista. A arte abre a possibilidade de um diálogo saudável de como o mundo deveria ser, e isso me move. 16

Porém, começo a me deparar com outras questões como: Como saber se a experiência aconteceu e se foi efetiva (e o que significa pensar na eficiência de uma experiência?), e ainda, como registrar essa experiência? No caso dessa última acredito ser bem complexa. Qual seria a melhor (ou a mais eficiente) forma de registro? Por vídeo? Fotografia? Entrevistas gravadas, somente sonoras? É importante que o artista consiga armazenar esse repertório – como material para futuras pesquisas –, mas como é possível registrar algo que acontece em outro lugar? No sujeito? Como registrar sem invadir? Admito que eu não consegui chegar a uma conclusão satisfatória. Por enquanto, opto por registrar por meio de fotografias e anotações de relatos dos sujeitos perceptores de Use, é lindo, eu garanto.1

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É possível ter acesso a este material no Apêndice.

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Leonilson. Ilustração da coluna de jornal Folha de S. Paulo “Moda bizarra aterrissa nas bocas e nas TVs”. 1991.

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A frase que dá nome ao meu trabalho – Use, é lindo, eu garanto – não é de minha autoria. Ela pertence a um desenho do artista Leonilson como uma ilustração para uma coluna de jornal. Porém preciso apontar que já tinha ouvido a frase antes e fora de contexto, pois uma amiga artista fez um trabalho onde ela retirava frases de livros e filmes e as espalhava como adesivos pela cidade. Foi assim que a vi, pela primeira vez. Desde o primeiro instante gostei. Achei-a poética na medida certa e sedutora de certo jeito. Durante o processo de construção do meu trabalho, eu não conseguia pensar em um título que me agradasse, que desse conta de dizer o necessário sem ser demais. Durante muito tempo, ele tinha o nome provisório de Vitral Cambiante que não me agradava de forma alguma. Na medida em que fui me aprofundado na pesquisa e percebendo a dimensão do trabalho, sua dinâmica própria e vontades, lembrei-me dessa frase que um dia tinha lido solta pelo mundo. Depois de pesquisar um pouco, cheguei até o desenho de Leonilson e descobri sua real intenção com essa frase.

me de informações (inúteis) que recebemos em tão pouco tempo, e como tentam a todo instante nos seduzir com ideias e produtos. Lembrando que para Bondía (2002: 21), a velocidade com que nos chegam as informações é um dos elementos de sua tríade da destruição generalizada da experiência – “A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência”. Inevitavelmente, o uso que eu faço da mesma frase é o total oposto como é possível compreender neste capítulo.

No desenho, ela não está sozinha, era acompanhada por muitas outras como: namore mais, come’rcio, R vaidade, vá fazer ginástica, leia mais, você está bem, Faustão, enchentes, Fanta’stico, pense mais, sequestros, inu’til, carro importado, segregação, as minorias, labirintos, cultura, BMW, mediocridade, Hebe, programa legal entre tantas outras. Percebi que o uso que Leonilson fazia da frase Use, é lindo, eu garanto, era totalmente irônico. Ele estava criticando a sociedade de consumo, a mídia e a quantidade enor20

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