De|Generadas - "Caminhos e legados"

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Abertura do evento De|Generadas Sesc Santana, 05/03/2015

Inês Castilho

Boa noite, sejam bem-vindas e bem-vindos ao evento DeGeneradas – “aquelas que perderam ou tiveram alteradas as qualidades de sua espécie; que são corrompidas, estragadas, adulteradas, pervertidas”. Desde quando nós mulheres somos vistas assim, como degeneradas? Não se sabe exatamente, mas com certeza há muito tempo – desde que Eva comeu a maçã. O patriarcado – organização social em que o domínio é do pai, do patriarca – teria tido início com a acumulação primitiva do excedente de produção e a propriedade privada, num processo que iria desembocar no capitalismo, segundo o teórico alemão Engels, do século 19 [1]. Outros autores estabelecem uma relação entre o domínio da Natureza e da mulher – percebida também como Natureza – pelo homem. Vemos hoje aonde nos levou esse domínio: a uma crise civilizatória e à beira de um colapso ambiental, que coloca em risco a própria existência da humanidade. Fato é que a capacidade de reproduzir a espécie, função primordial da vida neste planeta, era percebida como privilégio exclusivamente feminino, um fenômeno mágico, até descobrir-se que também o homem tinha um papel na concepção e na geração da vida. Contudo, só a mãe era capaz de legitimar a descendência, e apenas mantendo a mulher sob domínio – domínio este confundido com proteção – era possível garantir a transmissão da herança. Teria tido início, assim, o patriarcado. Um patriarcado mantido e assegurado pelas instituições religiosas monoteístas tais como o Judaísmo, o Catolicismo e o Islamismo. Desde então, atravessamos a História como seres inferiores – a democracia grega não incluía nem as mulheres nem os escravos. E fomos atiradas à fogueira, acusadas de ser bruxas e feiticeiras por deter conhecimentos de cura, até que a medicina, então território exclusivo dos homens, nos excluísse dessa função. Vale lembrar aqui que a Faculdade de Medicina da USP, a mesma que é hoje objeto de denúncias de estupro e outras violências sexuais contra estudantes do sexo feminino, não tinha banheiro para mulheres até pouco tempo atrás.


Encerradas em casa, sem direito aos espaços públicos e de poder, vivemos como esposas fieis, a existência passada entre uma, outra e mais outra gestação, parto e aleitamento, nas casas grandes e senzalas do Brasil rural. Minha avó teve 14 filhos em seus 50 e poucos anos de vida. Ou então como prostitutas, nos bordeis e nas ruas. Outra antepassada, Ercília Nogueira Cobra, que se rebelou contra a opressão feminina, escreveu nos aos 20 do século passado os livros “Virgindade anti-higiênica” e “Virgindade inútil”, tendo acabado seus dias como pianista de um prostíbulo. Se adotávamos comportamentos desviantes do padrão, éramos consideradas loucas e internadas no hospício. Se desejávamos viajar, éramos obrigadas a esconder nossa identidade vestindo-nos com roupas e chapéus masculinos. Clandestinas, tivemos de assinar como homem para poder publicar nossos escritos. Negaram-nos o direito ao conhecimento, à palavra e ao trabalho remunerado. Nossa alma foi partida entre as identidades da puta e da santa. Até o direito ao voto, à representação política e à cidadania, foram muitas lutas. Dentro e fora de casa, no Brasil e fora dele. E assim nossas antepassadas nos trouxeram até os anos 1960 e 1970, quando uma nova onda libertária levantou os jovens de todo o mundo e, no Brasil, então sob o jugo de uma ditadura militar, fundamos o primeiro jornal declaradamente feminista do país, o Nós Mulheres. Contávamos, para isso, com o aval da ONU (Organização das Nações Unidas), que instituiu 1975 como Ano Internacional da Mulher.

Inaugurava-se, então, ainda muito timidamente, uma narrativa dissonante da história oficial, do discurso dominante. Uma contranarrativa que vinha politizar a vida privada e a subjetividade – campos do feminino por excelência. A emergência das mulheres – consideradas uma minoria política, embora sejam a metade, ou mais, da população do país - acontecia paralelamente à de outras minorias políticas, como os negros e os homossexuais. Nascia ali a micropolítica, a política do cotidiano, que viria a desembocar nas lutas contemporâneas, do ativismo independente, praticado fora dos sindicatos e dos partidos, nas redes e ruas.


Nos exatos 40 anos que nos separam daquela segunda onda feminista – mais tempo talvez do que a maioria de vocês têm nesta vida – muita água rolou por debaixo da ponte. Em São Paulo, a década de 80 viu nascer outro jornal feminista, o Mulherio, criado pelas pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas. Espalharam-se pelas universidades do país os centros de estudos da mulher. Brotaram movimentos de mulheres negras, assim como grupos gays e LGBT. Foram criadas as primeiras instituições governamentais em defesa dos direitos da mulher. Não sem dificuldades atravessamos os anos 90, com a onda neoliberal que virou de cabeça para baixo as esperanças levantadas pela contracultura dos anos 60. Mas, ainda que quase silenciosamente, as mulheres foram ocupando os postos de trabalho e os bancos escolares, adquirindo escolaridade hoje superior à dos homens. Até que aportamos nos anos 2000, quando renovamos as esperanças de um novo século de igualdade e justiça. O estigma do feminismo foi sendo diluído, e a liberação das mulheres espalhou-se pelo país, atravessando gerações. Aumentou significativamente o número de mulheres que se declaravam feministas – eram 21% em 2001, passando a 31% em 2010, como aponta pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc [2]. Ao mesmo tempo, o assunto foi cooptado pela mídia empresarial e o “poder rosa” passou a ser associado com moda, perfumes e flores. Mulheres ocupam hoje o lugar que ditadores ocuparam nos anos 70 e 80 na presidência do Chile, da Argentina e do Brasil. Chegamos ao topo das empresas e ocupamos as bancadas dos telejornais, a direção dos carros e até de aviões. Orgulhosas, acabamos de ouvir a ganhadora do Oscar Patricia Arquette, num papel de mãe solteira no filme Boyhood, clamar pela igualdade salarial entre homens e mulheres ao receber a estatueta. A Marcha das Vadias está nas ruas, reafirmando que nossos corpos nos pertencem, e que não somos nem santas, nem putas. Aparentemente, chegamos lá. Mas o direito de escolha varia segundo a região da cidade e do país, e a determinação racial e econômica. Ainda morremos pela violência do marido ou do namorado, pelo aborto clandestino, pela lipoaspiração. Nosso corpo não nos pertence, pois somos proibidas de escolher se queremos – ou não – ser mães. A educação diferenciada continua aí: rosa para as meninas e azul para meninos. Ideologicamente a mulher brasileira, sobretudo a de classe média, é ainda muito submissa ao padrão imposto pelo mercado de consumo. Nas ruas desta capital, é possível hoje ouvir um jovem dizer que quem manda em casa é o homem. Ou o motorista de um ônibus cantar o sucesso musical do momento, “homem não chora”. Também é possível ouvir uma jovem mineira relatar o abuso sexual do padrasto, sofrido por ela e suas irmãs pequenas – sendo que ele continua livre, e, pior, a mãe dela ainda vive com ele. E quando vamos a público nos declarar livres e autônomas, a resposta é violenta – como têm visto as mulheres que se expõem nas redes sociais. Um sujeito relata um estupro num programa de tevê e é aplaudido. Um parlamentar ameaça de estupro uma colega de Parlamento. Ambos continuam impunes.


Por isso estamos novamente aqui, reunidas. Para honrar nossas mães e avós, desconstruindo e desnaturalizando o machismo e a violência. Para afirmar, com a escritora francesa Simone de Beauvoir, que biologia não é destino: não há um jeito único, não há um jeito certo de ser mulher. Afirmando a diversidade das mulheres, a diversidade dos amores, a diversidade das escolhas. Aos 68 anos, integro a tribo das novas avós, que tentam construir outra identidade feminina. Que rejeitam a ideia de, com a idade, passar de ‘mulher hiperssexuada’ para ‘velha assexuada’, da hipervisibilidade à invisibilidade. Estamos abrindo caminho para as próximas gerações ao afirmar, como Rita Lee na música Pagu, que “nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda”. Lutando para dissolver as forças de poder – macro e micropoderes – que atravessam nossos corpos, sob o jugo de um capitalismo mais selvagem que nunca. Recusando ser mulher-mercado e dizendo não ao feminino manipulado pela publicidade e pela indústria cultural. [1] “A Origem da Família, da Propriedade privada e do Estado”, 1884 [2] Pesquisa de opinião pública “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizada em 2001 e 2010.


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