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FERNANDO LEMOS
mais a mais ou menos
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FERNANDO LEMOS
3.10.19 — 26.01.20
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Realidade e inconsciente
3 Uma das potências da prática artística de viés surrealista está na sua disposição em lidar com instâncias do inconsciente. A utilização de imagens fantásticas, em confronto com uma realidade cotidiana e instrumental, pode destrancar portas comumente fechadas pelo senso utilitário, revelando elementos geralmente imperceptíveis dessa mesma realidade. Por criar imagens supostamente análogas às da visão, a fotografia mostra-se capaz de provocar surpreendentes tensões perceptivas. A produção visual de Fernando Lemos resulta do amálgama entre uma vasta cultura visual e distintas reminiscências. Entre suas imagens estão aquelas em que traços do inconsciente encontram passagem, ora produzidos fotograficamente, ora projetados em registros preexistentes. Características como essas fundam mundos imaginários, cujo lastro encontra-se na experiência de Lemos como integrante do grupo surrealista português, entre as décadas de 1940 e 50. Vigentes num contexto autoritário, as práticas desse núcleo desdobravam-se em provocações, formas de oposição e crítica ao sistema político português de então.
Ao deixar Portugal e vir para o Brasil, em 1953, o artista estabeleceria ampla interlocução com artistas e intelectuais brasileiros, ocasião em que se abrem novas possibilidades para o seu desenvolvimento artístico nos terrenos da pintura, do design gráfico e do desenho. Intensa e extensamente exploradas nas décadas subsequentes, suas investigações e criações nesses campos expressivos obtiveram notável reconhecimento de seus pares e da crítica. Ao realizar a exposição Fernando Lemos – mais a mais ou menos, o Sesc enseja leituras acerca de uma trajetória inventiva que delineia territórios oníricos, nos quais o oculto se revela, trazendo à tona faces extraordinárias da existência. A abrangente produção de Lemos, que também envolve experimentos com a escrita, coloca questões fundamentais sobre o fazer artístico e sua capacidade de, através do acesso à camadas psíquicas alheias à consciência, desvelar extratos ainda não conhecidos da realidade. Danilo Santos de Miranda, Diretor do Sesc São Paulo
Fernando Lemos e o etc.
4 Há pessoas assim. Conhecemolas através da História Universal. São, ao que parece, poucas em cada época, mas não as esquecemos porque são uma totalidade que nos ultrapassa, que nos espanta. Encontramse no Renascimento, onde o pensamento e a ação se levantavam da procura, investigação e curiosidade, e nessa pesquisa tudo se juntava, tudo urgia. Os clássicos não respondiam ao tempo que era urbano, mas era outro. Tudo era ensaio e suplantação. Quando penso em Fernando Lemos penso no pintor Turner, que imprimia, criava desenhos, encadernava os livros e as estampas e tinha tempo para pintar de forma inovadora imagens de um modo muito seu de exprimir o fora e o dentro do homem e o seu caminho de mudança. Hoje, a especialização é o resultado de um saber universal que se guarda virtualmente e, naturalmente, não se pode abarcar. Fernando Lemos absorveu na juventude, através de um grupo excepcional de amigos, o espírito crítico por meio das artes que, entre as duas Grandes Guerras, se distribuiu em “ismos” diversos. Integrou-se num grupo surrealista para a exposição
na Casa Jalco, em Lisboa, e entre as artes visuais escolheu o suporte fotográfico. Pelo que se sabe desse seu primeiro período artístico, ainda em Lisboa e, já emigrado da ditadura salazarista, no Brasil, o espírito do design, dos desenhos e da fotografia é o do Modernismo, na sua abertura ao desenho de traço preciso e impressivo e o devaneio marcante nas figuras femininas, um pouco ao modo de Miró, também inclassificável. Já era criador de arte na fotografia, no design, na caricatura e, nomeadamente, na pintura. Apenas não figurativa, a sua produção sujeitava-se a um estilo próprio, que se desliga do Modernismo e Surrealismo. Deste ficam, por vezes, os títulos das suas peças. Este conjunto de imagens aponta para a sua diversidade de expressão e de suportes. É um mundo contemporâneo devolvido depois de desconstruído. Seja qual for o suporte, é um mundo muito seu, não cede a padrões. Diverso e com imensos testemunhos. É difícil, hoje, averiguar sua influência na arte da pintura, pois não há uma linha contínua, mas ensaios e inovações. Mas sabe-se bem em dois campos o seu papel. Na fotografia, quando nos anos 1990 começou a ser conhecido
5 na Europa, principalmente em Portugal, com exposições da sua obra fotográfica1, influenciou decisivamente a nova fotografia portuguesa do regime democrático. Foi por essa importância na renovação que lhe foi atribuído o Prêmio Nacional de Fotografia pelo Centro Português de Fotografia (julho de 2001). Mas Fernando Lemos é também escritor e poeta, e ainda um contador de histórias muito críticas. Lutou pela liberdade e continua a fazê-lo com obras e palavras. Neste sentido, as suas palavras têm proporcionado diversos argumentos para teatro e filmagens em vídeo. Esse papel, sempre ligado à libertação, também é uma marca da sua influência, nomeadamente nas gerações mais novas, tão necessária no Brasil de hoje. Necessárias são ainda as múltiplas publicações da sua obra, que não deixam de aparecer. A maioria é publicação de memória, homenagem e reconhecimento. E
1 Em 1992, LeMois de laPhoto à Paris, CAM – Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian/Paris (Fernando Lemos). Em 1977, no Centro de Arte Contemporânea, no Porto (A Fotografia na Arte Moderna Portuguesa). Em 1982, em Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas Artes (Refotos). E em 1994, na Fundação Calouste Gulbenkian (À Sombra da Luz).
sempre, em cada obra nova, um ensaio inovador e entrosamento de artes. Uma tendência de sempre, a anulação de fronteiras, de muros, a exigência da imaginação. E, no entanto, Fernando Lemos vive e sabe o mundo em que vive e é esse mundo, físico e social, que surge na sua obra. Mundo de afetos, mundo do descontentamento, universo da indiferença e vontade do poder. Tudo nele se liga, o físico e o econômico, o social e o político, a cultura que enfraqueceu os seus suportes tradicionais. A diversidade das opções, da obra, dos caminhos a seguir assenta na liberdade de pensar e de agir que orientou a sua personalidade, a sua vida e a sua influência. E é isto que aqui se pode observar. TERESA SIZA é fotógrafa, professora e historiadora portuguesa, idealizadora do Centro Português de Fotografia, no Porto
“nos meus pensamentos sempre as palavras lutam duas a duas pela verdade palavras se metem dentro de outras palavras querendo ideias sou uma caixa de vários lados com vários cantos com duas sombras uma escura que nasce da clara outra clara que nasce da escura a luz cintila e a sombra dorme a sombra estatela-se e a luz ergue-se nasce cada palavra dentro de outra palavra” FERNANDO LEMOS
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Aquarelas, fotografias, desenhos, nanquim, pinturas, poesias, postais...
Nascido em Lisboa em maio de 1926, Fernando Lemos estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio e frequentou o curso livre de pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes. Mais conhecido e divulgado como fotógrafo, construiu uma trajetória artística abrangente e complexa, estruturada pela contestação e pela libertação de regras e técnicas acadêmicas em diversos meios. Mais do que libertação, pode-se dizer que Lemos viveu e vive em busca da subversão das regras. Esse é o seu motor. Acometido ainda criança pela poliomielite, nunca encarou a limitação dos movimentos como limitação da vontade, da ação e do pensamento. Ao contrário, fez disso a sua superação, colocandose à frente e com mais força do que os meninos de sua idade. Desde bem pequeno, acompanhava o pai, marceneiro e restaurador de móveis, às casas das famílias de classe média de Lisboa. Carregado pela mãe, ia ao mercado e às feiras, lendo em voz alta os jornais usados para embrulhar peixes. Na adolescência, começou a trabalhar em uma litografia. Inicialmente, como supervisor de gravação das matrizes; depois como desenhista e letrista na pedra litográfica e no zinco. Trabalhou a seguir em agências de publicidade fazendo desenhos de rótulos, embalagens e peças gráficas.
Em 1949, comprou uma câmera Flexaret e começou a fotografar parentes, amigos e lugares próximos de casa, no número 32 da Rua do Sol ao Rato, em Lisboa. Encantou-se com o laboratório, com a transparência dos químicos, aquele “percurso meio aquático”, como ele disse. Conhecendo e experimentando os processos gráficos e fotográficos, da exposição do filme ao laboratório, ancorado no fazer artístico, construiu uma linguagem própria, recorrendo à inversão, à fragmentação, à solarização e a sobreposições. Uma obra marcada pela imagem construída, visando efeitos de revelação, ocultação, incisão, encenação, invenção. E assinalada pela exuberante participação das mãos como ferramenta de construção de um diálogo entre o trabalho e o sonho. Nesse diálogo, o corpo nu, um tema central, surgiu inicialmente como exercício de observação na Escola de Artes. Na fotografia, Lemos o reinventou como espectro subversivo e projeção do desejo. De suas experiências de sobreposição de imagens em um mesmo fotograma, nasceram as áreas de sombra, os diversos planos e texturas. Assim, ficavam ainda mais claras as relações gráficas de composição e concepção espacial presentes em toda a obra do artista.
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Estudo de modelo vivo 1949 | Grafite, carvĂŁo e aquarela sobre papel 22 x 32 cm Acervo do artista
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Sem tĂtulo 1960 | Caneta esferogrĂĄfica sobre papel | 22 x 30,5 cm Acervo do artista
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Movimento desembaraรงado 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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A realidade pelo telhado 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Colagem 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Relance 1940/1950 | Fotografia 40 x 70 cm Acervo do artista
Lemos fez sua primeira exposição surrealista na Casa Jalco, em Lisboa, em 1952. O salazarismo já contava quase 20 anos. E apesar (ou mesmo por causa) dos protestos e rotulações vindos de um público conservador oprimido sob um regime autoritário, a exposição foi marcante. Para uma publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2004, a crítica e historiadora da arte Sandra Vieira Jürgens observou: “Foram expostos 22 guaches, 29 desenhos, 20 pinturas a óleo caracterizadas pela exploração do registro abstrato e pela conjugação dinâmica de formas orgânicas e um conjunto de 75 retratos em que Fernando Lemos utilizava a fotografia manipulada para revelar aspectos característicos das personalidades retratadas, bem como uma série de composições encenadas, enigmáticas, pontuadas por manequins de vitrines, onde utilizava efeitos peculiares de iluminação, técnicas de solarização e sobreposição de imagens. Dado o seu caráter surpreendente, compreende-se que estas imagens insólitas tenham fascinado o meio cultural português”.
No mesmo ano de 2004, Lemos dirigiu, com José Augusto França, a Galeria de Março, nascida do entusiasmo gerado pela exposição na Casa Jalco e aberta em março com uma exposição de Almada Negreiros. Ali estiveram, com suas obras, Júlio Pomar, Lima de Freitas, António Pedro, António Dacosta, Fernando Lanhas e Jorge de Oliveira, além do próprio Lemos com suas fotografias. Esse grupo de artistas marcou o início do abstracionismo em Portugal, culminando no I Salão de Artes Abstratas. Mas a ausência de compradores levou ao encerramento da galeria dois anos depois.
Galeria de Março – 11 Catálogo da exposição Edgard Pillet – Composições Abstratas Design gráfico de Fernando Lemos 1953 | Impressão em tipografia e clichê 18 x 23,5 cm Acervo Instituto Moreira Salles Exposições 3 – Azevedo, Lemos, Vespeira Catálogo da exposição Surrealista (3), Casa Jalco Design Gráfico de Fernando Lemos 1952 | Impressão em tipografia e clichê 20 x 27,5 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Luis Pilar 1940 /1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Luz despertada 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Relógico da série Moto Contínuo 1968 | Nanquim sobre papel Acervo Instituto Moreira Salles
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Palavtas leva-as o vento – roupas leva-as o tempo 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Natureza morta 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Sem tĂtulo 1960 | Caneta esferogrĂĄfica sobre papel 22 x 30,5 cm Acervo do artista
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Nu de surpresa 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Eu 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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“Poderia dizer-se que a fotografia é o momento de ver e o fotógrafo o homem que antes de tudo vê. O gesto de disparar que permite a imagem é mais um gesto que suspende o tempo e o fixa, do que um esforço que o persiga a par, e de tal nos dê conta. Além disso, a fotografia é o episódio moderno da luz e das trevas: é algo que a luz elabora no mais profundo da noite fabricada, sòzinha, misteriosamente como num acto secreto, e traz consigo a aparência das coisas ao desennovelar-se da treva pouco a pouco, como num nascimento. Depois, é a surpresa da naturalidade que respira pelo rosto das pessoas, ou o modo que elas têm de estar contra o fundo e dentro das paisagens, simultâneamente,
ou aquele quieto e despertado que é a razão de ser dos objectos ao pé uns dos outros ou, ainda, o juntar propositado destes vários modos de estar na realidade, próprios aos seres e às coisas e que vem a ser o maior espectáculo deste mundo. O Fernando de Lemos é um dos raros familiares deste espectáculo, um dos raros que presta à sua consubstancialização gráfica desvelos tão generosos, apropriações e entregas tão fundas como se dum acto de amor se tratasse, passado entre ele e a memória instantânea dos seres e das coisas.” JORGE AUGUSTO FRANÇA
para o Catálogo da Oitava Exposição da Galeria de Março (Galeria de Arte Publicitária, Limitada), dezembro a janeiro de 1953.
Lemos acabou por abandonar a fotografia e, em 1953, diante de sua clara e acentuada postura de oposição ao regime salazarista, abandonou também Portugal. Deixou para trás sua cidade natal, sua casa, grandes amigos que ficaram e outros que também escaparam para diversos países. Em entrevista ao jornal “Público”, em 2011, ele lembraria: “A vida em Portugal era uma coisa para chorar. Uma agonia viver naquele país com uma ditadura que ia roubar o que podia ser bom em mim. Então me entusiasmei com os festejos do IV Centenário de São Paulo, no Brasil, que seriam em 1954. Vim em agosto de 1953. Arranjei passagem no (transatlântico) Vera Cruz, com a ideia de não voltar mais a Portugal e não voltei. Despedi-me de toda a gente”. Chegando ao Brasil, Lemos trazia os trabalhos que havia mostrado na Galeria de Março. E cartas de recomendação de Jorge de Sena, Adolfo Casais-Monteiro e António Pedro para entregar a Manuel Bandeira e Carlos Drummond
de Andrade quando chegasse ao Rio de Janeiro. Em 1953 suas fotografias foram expostas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no MAM de São Paulo, apresentadas no catálogo da mostra pelo poeta Manuel Bandeira: “Na escolha do ângulo, na composição das montagens, no seu fino sentido das naturezasmortas, num certo dom de, pelo jogo das sombras, sugerir a cor, aderindo às vezes fidelissimamente à realidade, como em alguns retratos [...], em outros casos interpreta, em outros deforma, fazendo pensar nas famigeradas conjugações de planos picassianos, em certas composições, onde mistura negativos e positivos, sabe criar intensa atmosfera de mistério com os seus contornos dir-se-ia fluorescentes”. A mudança do Rio de Janeiro para São Paulo aconteceu quando o historiador e professor Jaime Cortesão convidou o artista a trabalhar no IV Centenário de São Paulo, durante as instalações dos equipamentos culturais para a inauguração do Parque Ibirapuera. Fixado na capital paulista, Lemos venceu o Prêmio
Nacional Brasileiro na Bienal de São Paulo de 1957 e trabalhou em artes plásticas, publicidade, design gráfico e industrial, principalmente na Maitiry, estúdio de criação que reunia profissionais ligados ao desenvolvimento de projetos de feiras, cinema, programação visual, desenho industrial e promoção de produtos. Nesse período, conheceu e se aproximou de intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Paulo Emílio Sales Gomes, Augusto e Haroldo de Campos, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. Ainda, e especialmente, Hilda Hilst, Renina Katz, Maria Bonomi, Flavio Mota, Aldemir Martins, Manabu Mabe, entre outros grandes artistas de sua geração.
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“Leva o que não trazes – a tua mocidade. Traz o que não levas – ter vivido. É a história do mundo a sua crueldade E o sonho o seu sentido.” ANTÓNIO PEDRO
Poema de António Pedro escrito quando Fernando Lemos partiu de Portugal para o Brasil. Poesia Portuguesa Contemporânea, Antologia. Carlos Nejar, Editora Ohno-Kempf.
Texto de apresentação da exposição de Fernando Lemos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro escrito por Manuel Bandeira 1953 | Carta original datilografada, reproduzida digitalmente 20 x 25,5 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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“O desenho sempre esteve presente e me resgatou. A pintura demora mais, não se faz uma revolução com a pintura. Corre-se o risco de, a pintura estando pronta, a revolução não ter mais sentido. Com o desenho, não. Com o desenho se faz uma revolução, porque o desenho tem precisão, como num eletrocardiograma, não tem retoque. A pintura precisa que se lave a tela, molhe, vire, costure etc.” Fernando Lemos em entrevista a Carlos Augusto Calil, no livro Percurso, Editora Bei, 2010.
Dupla anterior Painel para a Exposição de História de São Paulo, nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo 1940/1950 Acervo Instituto Moreira Salles
Longe da fotografia, que jamais retomaria, Lemos voltou-se ao desenho. Até então independente, associado a ilustrações, caricaturas ou charges políticas, ele começou a assumir seu papel na pintura e na escrita do artista como se fosse escultura. O crítico e historiador de arte José Augusto França anotou que “o desenho, para Lemos, é um processo de conhecimento. O trabalho de desenhar esclarece-o até as últimas consequências daquilo em que se empenha. Na sua prancheta um desenho gera outro; uma cadeia de formas organizadas e explicadas num jogo cíclico resolve-se sem enganos, através de todas as surpresas que promove e desafia.”
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Desenho anedรณtico 1970 | Nanquim e lรกpis sobre papel 22 x 32 cm Acervo do artista
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Sem tĂtulo 1960 | Nanquim sobre papel 20,5 x 26 cm Acervo do artista
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Desenho anedรณtico 1970 | Nanquim e lรกpis sobre papel 22 x 32 cm Acervo do artista
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Ilustração revista Sombra 1954 | Nanquim sobre papel impresso 23 x 31,7 cm Acervo do artista
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“A presença da fotografia ia além do desejo de abertura dos suportes tradicionais de criação. Se a pintura se resolvia na destruição e no esfacelamento das coisas ou de parte delas, o fotógrafo, “consciente dos efeitos que produziam os processos de ocultação, sobreposição e amachucamento das formas”, fazia “uma tentativa de reconstrução do mundo que nada tinha de simbólico. Apesar do longo caminho que a pintura teve que percorrer na definição da sua obra, a verdade é que o desenho ganhara desde muito cedo uma mais adequada e justa compreensão ... Mas o desenho como domínio da sua revolução plástica não era também alheio aos instrumentos de que o pintor dispunha ou se socorria. A tentação de trocar o desenho pela poesia e a poesia pelo desenho foi permanente.” MARGARIDA ACCIAIUOLI
professora catedrática do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. (Fernando Lemos - Caminhos da Arte Portuguesa, Editora Caminho, 2005).
Em 1963, à distância, Lemos retomou parte dos laços portugueses ao se candidatar a uma bolsa de estudos em artes, concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa. Aprovado, realizou sua primeira viagem ao Japão. A experiência compartilhada com calígrafos em Tóquio afirmou sua maneira de pensar o desenho. O branco preenche o campo, passa a criar vazios intercalando-se em camadas sobrepostas, tornase o elemento determinante da composição; aplicado sobre o preto ordena/desordena o espaço. O preto estrutura a composição, oculta-se no espaço, equilibra a ação, o gesto. Nos papéis japoneses, os mais translúcidos, as camadas se sobrepõem e ultrapassam a superfície para atingir o outro lado, produzindo uma nova relação entre os vazios e os traços. A pintura, a caligrafia e o desenho se transformam a partir do gesto do pincel, que ultrapassa as duas dimensões do papel.
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Fotografias feitas no JapĂŁo 1963 | Folha de contato de negativos 120 mm 30 x 40cm Acervo Instituto Moreira Salles
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Sem tĂtulo s/d | Aquarela sobre papel japonĂŞs, camada 03 36,5 x 31 cm Acervo do artista
Hilda Hilst 1940/1950 | Fotografia 30 x 30 cm Acervo Instituto Moreira Salles
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A Fernando Lemos Já não sei mais o amor e também não sei mais nada. Amei os homens do dia suaves e decentes esportistas. Amei os homens da noite poetas melancólicos, tomistas, críticos de arte e os nada. Agora quero um amigo. E nesta noite sem fim confiar-lhe o meu desejo o meu gesto e a lua nova. Os que estão perto de mim não me veem... Estende a tua mão. Ficaremos sós e olhos abertos para a imensidão do nada. HILDA HILST
Da poesia, 2018. Ed. Companhia das Letras.
Por muito tempo, talvez tempo demais, as fotografias surrealistas de Lemos ficaram engavetadas. Somente voltaram a público em 1992, para uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, durante o Mois de la Photo. Àquela altura o desenho e a pintura, em acrílica e aquarela, já tinham a mesma força da fotografia em sua obra. A palavra, a escrita, o desenho e a imagem em seus novos trabalhos passaram, então, a formar um sistema rizomático, como definido por Deleuze e Guattari. Ou seja, sem uma relação de hierarquia por nível de importância. Pode-se dizer que todo o trabalho de Lemos é gráfico. O desenho, a pintura e a aquarela também são usados dessa maneira em seus cartões postais com legendas poéticas e provocativas. “Na Modernidade, a pintura por exemplo, com quem a fotografia mais tem querido igualar-se, deixou de ser referencial e passou a ser o seu próprio enunciado e referenciador. E
é aí que começamos a dar-lhe acesso atencioso. Ela chega afinal não apenas como arte, mas talvez a única que poderá ter-se como moderna. No sentido exato do gesto criativo, e segunda-via-dareal, aquilo que concede ao objetual as garantias de contemporaneidade, porque com ela imediatamente se confere e identifica. A fotografia traz mais do que isso. Parece-nos que ela decididamente nos lacrou como artistas, foi por ter inaugurado a lei conceitual do registro inerente ao próprio fato. Agora o gesto criativo, como artefato artístico, será tanto mais moderno e atual e verídico, o quanto nasça como já sendo o seu próprio registro, que simultaneamente, de irremediável, se anuncia. Não se faz simples referencial para se afirmar. Ele é, como ela é. Aquilo mesmo a que se refere. O ato legítimo de perpetuação da imagem.” Fernando Lemos em artigo para o Jornal da tarde “O Sexo da Fotografia”, década de 1970
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Ex-fotos 7 s/d | Técnica mista sobre impressão fotográfica em papel resinado colorido 15 x 10 cm Acervo do artista Ex-fotos 6 s/d | Técnica mista sobre impressão fotográfica em papel resinado colorido 15 x 10 cm Acervo do artista
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Todo do Nada 2019 | Pintura com tinta acrĂlica sobre papel de aquarela 44,5 x 31,5 cm Acervo do artista
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Sem tĂtulo (Fizeram tudo para intimidar e adormeceram) 2000 | Pintura em aquarela, tinta acrĂlica e caneta 14,7 x 10,5 cm Acervo do artista
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Sem tĂtulo (Fomos aos carapaus fritos na Gulbenkian) 2000 | Pintura em aquarela, tinta acrĂlica e caneta 14,7 x 10,5 cm Acervo do artista
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Ao longo dos anos de ditadura no Brasil, Lemos trabalhou como ilustrador e colunista no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Nesse ofício ele pôde incluir todos os seus talentos, reforçando a postura política de oposição a movimentos de extrema-direita que já o haviam empurrado de Portugal, e no Brasil, o reencontravam. Aqui ele participou de movimentos, campanhas e associações, emprestando suas ideias e suas mãos à confecção de cartazes, desenhos de logomarcas, organização de grupos e redação de manifestos. Sua resistência política foi feita também em instituições culturais como o Departamento de Informação e Documentação Artísticas, o Idart, que ajudou a estruturar a convite de Maria Helena Franco, crítica de arte e diretora da Seção de Arte da Biblioteca Municipal. Ligado à
Secretaria Municipal de Cultura, o projeto foi fundamental para as artes paulistanas. Apesar do cerceamento às ideias imposto pela ditadura, o “milagre econômico” deixava florescer certo clima favorável e entusiasmado sobre o desenvolvimento do Brasil e das brasilidades. Por isso, desde o ano de sua criação, em 1975, até o fim, em 1982, o Idart teve raras liberdade e autonomia de ação. Lemos não só desenhou a marca do instituto. Criou toda a sua identidade do ponto de vista da vocação do órgão, que abria espaço para pesquisas e investigações veiculadas em publicações prestigiadas no período. Sob protestos do então prefeito Olavo Setúbal, Lemos até instalou, no Centro Cultural São Paulo, uma gráfica para imprimir esses projetos de pesquisa. Na mesma época, tornou-se professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, dando aulas de design gráfico e desenho.
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Desenho só desenho a sós — Série de 36 desenhos 2012 | Nanquim e tinta acrílica sobre papel japonês 27,5 x 38 cm Acervo do artista
54 Na escrita, Lemos havia publicado, em 1953, Teclado Universal, série de 14 poemas revelando seu imaginário surrealista. O volume saiu no último número da segunda série dos Cadernos de Poesia, sob a direção de Jorge de Sena. Em 1985, foi reeditado com o título Cá & Lá, num volume atualizado contendo 118 poemas, prefácio de Jorge de Sena, um texto de E. M. de Melo e Castro e um poema de Haroldo de Campos. Em 2019, com coordenação de Valter Hugo Mãe, ganhou nova reedição com o título Poesia de Fernando Lemos, acrescida de uma seção de poemas inéditos e dispersos, intitulada 500 Anos de Segredos. Em junho de 2019, ao completar 94 anos, Lemos esteve em sua cidade natal para lançar esse livro e outro de fotografia, Fernando Lemos, da Série Ph. da Imprensa Nacional Casa da Moeda. E abrir pessoalmente três exposições: uma retrospectiva de design no Museu de Design de Lisboa, sua obra em azulejo na Galeria Ratton e uma mostra de desenhos, pinturas, fotografias e cartões postais na Galeria 111. A rotina nesses dias de reencontros no verão lisboeta foi registrada pela equipe do cineasta Victor Rocha, que fará um filme sobre a vida
do artista. Tanto lá como cá, em sua casa na zona oeste de São Paulo, Lemos se levanta todos os dias e faz um desenho. Também continua pintando, estudando, lendo e escrevendo, além de visitar exposições e dar palestras. A presente mostra no SESC Bom Retiro reúne um pouco, um quase nada, da extensa obra de Fernando Lemos. Como descreveu o também fotógrafo português Jorge Molder no catálogo de 1994 da Fundação Calouste Gulbenkian, “uma obra com tal robustez e complexidade obriga sempre a um exercício periódico de revisitação que a redescobre e reinventa”. É esse exercício que gostaríamos de propor a respeito deste artista imenso e intenso que está sempre a nos surpreender com a sua caixa de vários lados e a iluminar as nossas sombras e transparências. ROSELY NAKAGAWA Curadora independente, criou a primeira galeria de fotografia em São Paulo, a Galeria Fotoptica, com Thomaz Farkas, em 1979. Coordenou a Casa da Fotografia Fuji de 1996 a 2004 e foi curadora das galerias Fnac de 2004 a 2010.
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Ilustrações para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo 1956–1967 | Série de 13 desenhos impressa a partir de estudos em nanquim sobre papel 12cm x 18cm (unidade) Acervo Museu de Arte Moderna SP
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Ilustrações para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo 1956–1967 | Série de 13 desenhos impressa a partir de estudos em nanquim sobre papel 12cm x 18cm (unidade) Acervo Museu de Arte Moderna SP
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Ilustrações para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo 1956–1967 | Série de 13 desenhos impressa a partir de estudos em nanquim sobre papel 12cm x 18cm (unidade) Acervo Museu de Arte Moderna SP
59 FERNANDO LEMOS 1926 Nasce em Lisboa.
1963 Recebe os prêmios Melhor Capa
design Tanto Mar a convite da curadora
de Livro e Melhor Apresentação Gráfica
Adélia Borges e de Barbara Coutinho,
na II Bienal Internacional de Arte Gráfica
diretora do Museu de Design de Lisboa
Geral de Artes Plásticas – Cartazes,
de São Paulo, com o livro para crianças
(MUDE).
na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Televisão da Bicharada, de Sidónio
1950 Participa da Primeira Exposição
1952 Com os amigos Vespeira e
Muralha. Funda a Editora Giroflé com
2019 Realiza exposição individual de
um grupo de intelectuais brasileiros.
toda sua obra de design, no MUDE, com curadoria de Chico Homem de
Fernando Azevedo, realiza uma exposição de pintura, desenho e
1965 Na oitava edição da Bienal,
Mello e direção de Bárbara Coutinho.
fotografia na Casa Jalco, no Chiado,
participa com uma sala especial.
Na galeria Ratton, com curadoria de
em Lisboa.
Realiza uma retrospectiva (1953
Ana Viegas e Tiago Monte Pegado,
/ 1965) no Grêmio dos Alunos da
mostra trabalhos projetados para
1953 Publica Teclado Universal nos
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
painéis em azulejo, em estudos
Cadernos de Poesia. Fixa residência
da Universidade de São Paulo.
diversos. Na Galeria 111, realiza a
no Brasil. Expõe suas fotografias nos
exposição Mais a Mais ou Menos,
museus de arte moderna de São Paulo
1969 Com Jorge Bodanzky, faz sua
núcleo inicial da mostra homônima a
e Rio de Janeiro. Após a exposição
única experiência em cinema como
ser realizada no SESC Bom Retiro/SP,
no Rio de Janeiro, que conta com a
diretor de fotografia do longa-
em outubro de 2019, com a curadoria
apresentação do escritor Manuel
metragem Compasso de Espera (1969-
de Rosely Nakagawa.
Bandeira, muda-se para São Paulo.
1973), dirigido por Antunes Filho. PRÊMIOS RECENTES
1954 Representa Portugal na II Bienal
1977 Participa da coletiva
2001 Prêmio Anual de Fotografia do
de Arte de São Paulo e recebe o Prêmio
A Fotografia na Arte Moderna
Centro Português de Fotografia, Porto.
de Aquisição Câmara Portuguesa
Portuguesa, realizada no Centro de
do Comércio de São Paulo. Faz a
Arte Contemporânea, no Porto.
2016 Prêmio da Crítica em Artes Visuais da Associação Paulista de
montagem da Exposição Histórica de São Paulo no IV Centenário, com
1985 Publica Cá & Lá, livro que inclui
Manuel Lapa e curadoria de Jaime
os poemas de Teclado Universal e
Cortesão.
outros inéditos.
1957 Na IV Bienal recebe o prêmio
1991 Publica Desenhumor e
Tem obras expostas e premiadas
Melhor Desenhista Nacional.
O Quadrado Visualterado.
em Moscou, Barcelona, Frankfurt,
Críticos de Arte (APCA). 2018 Feito Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Hamburgo, Toulouse, Aix-en-Provence,
Representa o Brasil com desenhos na Fourth International Exhibition, no
1994 A Fundação Calouste
Paris. E também nas coleções do
Japão.
Gulbenkian promove no Centro de
Centro Cultural de Belém, Fundação
Arte Moderna, em Lisboa, uma grande
Berardo, Fundação Cupertino
1959 Recebe o Prêmio de Aquisição
retrospectiva de suas fotografias: À
Miranda, Museu Chiado e Fundação
João A. Doria, na V Bienal.
Sombra da Luz. A exposição também
Calouste Gulbenkian.
se realiza em Aix-en-Provence (1996) e em Toulouse (1998). 2018 Participa da exposição coletiva de
SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda
VISITAÇÃO
3 de outubro de 2019 a 26 de janeiro de 2020 Terça a sexta, das 9h às 21h Sábado, das 10h às 21h Domingo e feriado, das 10h às 18h AGENDAMENTO DE GRUPOS
Superintendentes Técnico Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli Gerentes Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone Artes Gráficas Hélcio Magalhães Sesc Bom Retiro Monica Machado Exposição Fernando Lemos – mais a mais ou menos Curadoria Rosely Nakagawa Equipe Sesc Daniela Garcia, Geraldo Ramos Jr, Giuliano Almeida Ziviani, Ivoneide Oliveira, Jairo da Silva, José Lucas Gonçalves, Juliana Okuda, Larissa Meneses, Leonardo Borges, Mariana Thalacker, Michael Anielewicz, Odair Freire dos Santos, Rogerio Ianelli, Tina Cassie, Vania Vassalo Produção Executiva Valeria Prata Produção Fabiana Farias Pesquisa Gabriela Nakagawa Projeto Expográfico Ricardo Amado Assistente de pesquisa e expografia Flávio Franzosi Design gráfico e sinalização Luciana Facchini e Pedro Alencar (assistente) Projeto Luminotécnico Lúcia Chediek Realização do filme TILT REC Projetos de Engenharia Jarreta Projetos Laudos de Conservação Angela Freitas Montagem fina Manuseio obra de arte Instalações em altura Dennis Inoue Textos Tereza Siza e Rosely Nakagawa Edição e organização de textos Christian Cruz Revisão Anaelena Lima e Breno Liguori Digitalização e tratamento de imagens Estúdio 321 Ação Educativa Marcio Farias Supervisão do educativo Gabriela Scardone Ávila Educadores Ana Elise Soares, Bruna Lopes Diniz, Dante Chiarini Volpato, Fernanda Moreira Braga
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