De 2 de novembro a 27 de janeiro de 2019
REAPRENDER O ÓBVIO A Declaração Universal dos Direitos Humanos nos lembra que compartilhamos um destino comum, somos interdependentes e coexistimos com os demais seres e o planeta. A simplicidade e a obviedade desses ideais causa espanto. Mais ainda quando notamos que uma parte deles está sob ataque. O contexto atual tem evidenciado um crescente avanço de posições e questionamentos em sentido inverso, qualificando-os como excessivos. Desconsideram o óbvio: somos iguais em direitos e deveres. A longa história de lutas em favor da dignidade humana merece ser cultivada e valorizada. Por vezes, a percepção de que algo sempre nos pertenceu faz com que fiquemos acomodados e indiferentes. Esquecemos que, ao longo da existência, aprendemos e reaprendemos por meio da educação, da convivência, da experimentação e da cultura, entre outras dimensões do conhecimento. Os Direitos Humanos requerem o compromisso permanente das sociedades. Por isso nunca será cedo ou tarde demais debater, de maneira crítica, a condição do ser humano, recorrendo a abordagens e propostas diversas. Nesse sentido, a exposição Para Respirar Liberdade - 70 Anos da Declaração dos Direitos Humanos, realizada em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, a partir de interpretações do artista Otávio Roth, convoca para uma reflexão sobre uma organização social mais justa e igualitária, centrada no exercício da autonomia e na solidariedade. Ao incorporar atividades complementares colaborativas, abrem-se canais de participação, interação e sensibilização para públicos de diferentes faixas etárias e formações. Como instituição sociocultural de caráter educativo, o Sesc acredita que reafirmar o óbvio, muitas vezes, seja necessário para destravar as amarras invisíveis que atravancam os espaços públicos de encontro, escuta e diálogo. Esse ideal de desenvolvimento cidadão, amparado pelos princípios do bem-estar social e da qualidade de vida, está intimamente ligado ao cuidado, ao respeito e ao afeto em relação aos outros. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
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Brasil é um país marcado por feridas históricas que nunca foram curadas. Com a ditadura militar, por 21 anos, nosso país conviveu com o horror da perseguição política, da censura à imprensa, da tortura e da morte de quem ousou se posicionar pela democracia. Não podemos nos esquecer desse passado. Um país sem memória perde a oportunidade de corrigir seus erros e de pensar seu futuro em termos de dignidade humana. O acesso à memória e à verdade é um direito. A memória coletiva de um povo é fundamental para a democracia. Nesse sentido, o Instituto Vladimir Herzog, em parceria com o Sesc-SP, apresenta a exposição Para Respirar Liberdade – 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com obras do artista e ativista político Otávio Roth. A partir do trabalho delicado do artista, a mostra valoriza os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento histórico que precisa ser resgatado em meio ao contexto de acirramento da violência e do discurso de ódio. Aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a Declaração é uma resposta aos crimes contra a humanidade cometidos ao longo da Segunda Guerra Mundial, atos de barbárie que levaram milhares à morte. Setenta anos depois, acompanhamos inúmeros retrocessos dos direitos sociais, uma assustadora ascensão do fascismo e uma perversa criminalização dos direitos humanos. Não é possível admitir que tais violências sejam apresentadas como discursos legítimos. Em um momento tão frágil de nossa democracia, o Instituto Vladimir Herzog reforça sua missão na defesa dos direitos humanos e reafirma sua posição de luta por meio do diálogo e da valorização da cultura. Acreditamos que a arte, especialmente quando engajada politicamente, é essencial para transformar a cultura de violência. É ela quem tem a potência de acessar o que há de mais humano em cada um de nós e de nos mobilizar para a construção coletiva de um mundo mais justo e digno. Esta exposição nasce em um momento crucial, e esperamos que a força da obra de Otávio Roth possa nos inspirar para a resistência e para a defesa dos valores democráticos, abrindo caminhos para que todos e todas possam respirar liberdade. Rogério Sottili Diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog
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távio Roth foi um artista plástico e ativista à frente de seu tempo: foi papeleiro e proponente de grandes instalações de arte participativa entre os anos 1980 e 1990, quando tanto o papel artesanal quanto o fazer coletivo ainda eram pouco explorados no país. Sua produção é vibrante e, ainda assim, delicada. Roth experimentou fotografia, gravura, desenho livre e diversas técnicas em papel, além da construção de grandes instalações, colaborativas e individuais, misturando colagem, dobradura, desenho e escrita. A marca de seu trabalho não está, pois, nos recursos plásticos e materiais que explorava, mas sim nos valores que se propunha a disseminar através de sua obra. Sua produção é marcada pela constância de seu ideal norteador: o respeito aos direitos humanos, à liberdade de expressão, à igualdade no diálogo. A defesa desses valores, basilares na estruturação de uma sociedade harmônica, é legada ao Acervo Otávio Roth (AcOR) como sua principal missão. Entendemos o papel social da arte como aquele de sensibilizar pessoas, agregar ideias e fortalecer uma rede entre indivíduos e instituições comprometidos com a criatividade e o pensar livre, pautada no respeito e na promoção dos direitos humanos. Sob esse espírito, estruturamos o Acervo como uma organização em rede, focada na preservação e promoção da obra deixada por Roth, mas também aberta ao desenvolvimento de novos projetos, para que, de maneira orgânica, possamos continuamente celebrar esse legado, que, junto ao de tantos outros artistas e ativistas, nos orienta a pensar o futuro. A instalação itinerante de arte participativa A Árvore materializa nossa essência: Roth faleceu apenas três anos após iniciado o projeto. Não obstante, em 2018 a obra mais do que dobra de tamanho, graças à ação de 70 mil jovens colaboradores que, após 25 anos, nutrem um novo – e esperamos longevo – ciclo de crescimento. Essa longa jornada que decidimos retomar canaliza e ilustra nossos esforços de contribuir para a permanente promoção de uma cultura de paz e inclusão. Convidamos vocês a se juntarem a nós nessa missão, pois acreditamos que uma sociedade mais inclusiva e próspera depende da contribuição de todos. Isabel Roth Curadora do Acervo Otávio Roth
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ideia de transformar o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos em imagens gráficas surgiu em 1976. Vivia na Inglaterra e ali participava dos movimentos de defesa dos direitos humanos. Acreditava, assim como ainda hoje, que os princípios contidos na Declaração representavam as mais nobres aspirações humanas. Daí ter feito dela meu estandarte de luta. Mas, além das palavras, impunha-se a necessidade de imagens simples e diretas que melhor ajudassem a divulgar e memorizar seu conteúdo. A realização deste projeto consumiu dois anos de trabalho. A primeira versão da obra foi exposta em Oslo comemorando o 30o aniversário da Declaração em 1978. Seguiu-se uma série de exposições: Palais de Chaillot (Paris, 1978), Nações Unidas (Nova Iorque, 1981), Palais des Nations (Genebra, 1981), International Centre (Viena, 1981). Este ano (1983) Tóquio e Rio de Janeiro. Ao longo desta trajetória tive a grata recompensa de ver pouco a pouco meu trabalho surtir efeito: pessoas atraídas pelo grafismo da obra tomavam conhecimento de cada um dos artigos da Declaração. Desta forma a Declaração Universal dos Direitos Humanos tornava-se o denominador comum dos anseios dos mais diferentes indivíduos. Por isto, otimista, confio que algum dia viveremos regidos por seus ideais. Só é preciso que queiramos.
Otávio Roth Dezembro de 1984
PARA RESPIRAR LIBERDADE 70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Há 70 anos, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada por 48 estados, com oito abstenções. Cabe destacar que não houve nenhum questionamento nem pedido de alteração ao texto apresentado, nenhum voto contrário. Hoje, o texto da DUDH da ONU tem significado universal, seus princípios são cada vez mais relevantes e regem os valores fundamentais do mundo civilizado. O Instituto Vladimir Herzog e o Sesc São Paulo uniram esforços para realizar a exposição Para Respirar Liberdade – 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A mostra também homenageia o artista plástico Otávio Roth (1952-1993), que dedicou sua vida e sua expressão artística à defesa e à difusão dos direitos humanos, consagrados na Declaração da ONU. OTÁVIO ROTH E OS DIREITOS HUMANOS Em depoimento realizado em 1979, Otávio Roth revelou que a epígrafe do túmulo do jornalista Vladimir Herzog causou um enorme impacto em sua obra: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados”. Segundo ele, no texto de Vladimir Herzog “estava toda a essência que eu procurava para a minha arte – a defesa dos direitos humanos”. Em 1976, um ano após o assassinato de Herzog, Roth foi estudar em Londres, na Inglaterra, onde desenvolveu técnicas de impressão e de fabricação de papel artesanal. Nesse período, tornou-se aluno e amigo do artista e militante social Paul Peter Pietch, cujos ensinamentos influenciaram sua postura de artista e sua expressão gráfica. Quatro anos depois, mudou-se para Oslo, na Noruega, e lá produziu sua primeira série de gravuras contendo a totalidade dos artigos contidos na DUDH, em norueguês.
No 30º aniversário do documento (1978), Roth apresentou sua segunda versão em linogravura dos 30 artigos da Declaração: cartazes em língua inglesa. A primeira imersão do artista voltada para os direitos humanos foi eminentemente gráfica. Roth obteve sínteses surpreendentes e de fácil compreensão ao ilustrar conteúdos às vezes áridos e complexos, detendo-se nos aspectos essenciais de cada artigo. A crítica de arte Radhá Abramo chamou atenção para a força expressiva desse conjunto de gravuras: “As figuras, como de uma casa ou de uma criança, compostas ao lado de palavras, assumem papel de alegoria plástica, deixando de ser uma mera ilustração. Elas complementam o significado dos direitos. A proeza do gravador vai além: o texto escrito reporta-se invariavelmente ao raciocínio, faz o leitor pensar abstratamente. O texto plástico, apreendido sensorialmente pela visão, pelo tato, estimula a sensibilidade do espectador. Ora, Otávio Roth eleva seu discurso artístico a sua potencialidade máxima, já que a imagem dos direitos – impressa na gravura – atinge o raciocínio e a emoção do espectador simultaneamente”. O poder de comunicação do conjunto gráfico de Otávio Roth despertou enorme interesse na Europa e nos Estados Unidos. Em 1981, a versão em inglês foi adotada pela ONU e, desde então, permanece em exposição nas sedes de Genebra (Suíça), Viena (Áustria) e Nova York (Estados Unidos). Roth desenvolveu, ao todo, cinco outros conjuntos sobre direitos humanos, em técnicas variadas, sendo que um deles foi realizado no Japão e executado em parceria com o mestre de caligrafia artística Ryoichi Kogi. Para a versão japonesa, Roth teve de recorrer a símbolos orientais para imprimir imagens que fossem inteligíveis aos japoneses e que representassem os conceitos expressos na Declaração. Depois dessa experiência, Roth evoluiu para novos conceitos plásticos, atuou além da fronteira gráfica e passou a explorar novas possibilidades de expressão no espaço. Criou ambientes envolventes que transformaram o espectador em protagonista, isto é, em participante ativo de seu processo criativo. Seus projetos uniam um grande número de pessoas. O artista percebeu que os conceitos da DUDH não dependiam apenas da compreensão racional, mas, para ser efetivamente adotados, precisavam ser vivenciados através de experiências coletivas e solidárias.
O projeto A Árvore foi desenvolvido com o propósito de criar uma obra coletiva, através de um intenso processo participativo. Crianças de todas as idades, acompanhadas de seus pais, eram incentivadas a criar um desenho que remetesse a um sonho ou um desejo e uma mensagem sobre um papel artesanal em forma de folha. Centenas de folhas eram fixadas nos ramos pintados em nanquim e mais uma centena era acrescentada a cada semana de trabalho, formando uma frondosa árvore. A Árvore exposta no Sesc é o resultado do trabalho de 70 mil jovens e forma um conjunto envolvente e solidário. O projeto desenvolvido por Otávio Roth permanece vivo e aberto. Não finda – ao contrário, multiplica-se e atravessa gerações. Muitos dos pais que hoje acompanharam seus filhos já participaram anos atrás, quando eram pequenos. Com isso, Roth criou uma corrente de comunicação solidária, inclusiva – com energia humana ensolarada. Na época em que Roth produzia sua obra humanista e libertária, o processo democrático ainda não havia sido retomado no Brasil. Mesmo vivendo no exterior, o artista ofereceu sua criação gráfica para difundir as lutas libertárias, participou de diversas ações da Anistia Internacional e envolveu-se com os movimentos que lutavam para restabelecer a democracia no Brasil. Anos depois, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito depois de 21 anos (de 1964 a 1985) de ditadura militar. Contudo, a eleição, apesar de ter restaurado a democracia, obedeceu às regras do regime militar e ocorreu pelo voto indireto, através do colégio eleitoral do Congresso Nacional. Contudo, a restauração democrática exigia uma nova Constituição, que, depois de promulgada em 1988, foi chamada por Ulisses Guimarães de “Constituição cidadã”. O texto constitucional consolidou a legislação sobre os direitos humanos, e, como afirma Flávia Piovesan: “A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, considerando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil”. A nova Constituição consagrou os direitos individuais e a liberdade de opinião, manifestação e organização; criminalizou o racismo; aboliu a pena de morte e o banimento; garantiu a liberdade religiosa; repudiou a tortura e os tratamentos desumanos e degradantes.
Otávio Roth percebeu o enorme significado e a importância da “Constituição cidadã” e se propôs a realizar com ela um trabalho semelhante ao feito com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Infelizmente, devido a sua morte prematura, o projeto não foi concluído. ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE ARTE, PREOCUPAÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL Há na história da arte, notadamente após a Revolução Francesa, exemplos contundentes de repulsa à crueldade e ao abuso dos poderes constituídos. Talvez a obra mais relevante seja a série de pinturas de Francisco Goya Os Desastres da Guerra, realizada entre 1810 e 1814. Nas telas de Goya, a guerra é representada de modo inglório, sem heróis, conduzida por assassinos cruéis. Na Europa do século 20, o tema das duas grandes guerras foi tratado por diversos artistas. O painel Guernica, de Pablo Picasso, realizado em 1937, denuncia as atrocidades cometidas pelo fascismo e foi apresentado no Pavilhão da República Espanhola por ocasião da Exposição Internacional de Paris. A grande tela de Picasso comoveu o mundo e repercutiu no ambiente artístico brasileiro. O painel mostrava o criminoso bombardeio de um avião nazista contra a população da cidade de Guernica, em 26 de abril de 1937, em favor das tropas lideradas por Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola. Outro exemplo de repercussão internacional que denunciou a injustiça é a pintura A Paixão de Sacco e Vanzetti, do artista americano Ben Shahn. Na tela, os dois anarquistas italianos aparecem em caixões abertos diante dos juízes que os condenaram à morte. Mesmo sem provas, os imigrantes foram executados em 1927. No poema América, de Allen Ginsberg, há menção à injustiça: “América o Sacco & Vanzetti não podem morrer”. Cinquenta anos depois (1977), o governador de Massachusetts promulgou um documento que os absolvia. Vale ressaltar que a obra de Ben Shahn era admirada por Otávio Roth, que via nela um caminho artístico a ser seguido – denunciar toda injustiça. No Brasil, apenas com o modernismo as artes plásticas refletiram, de modo explícito e intencional, sobre os conflitos da sociedade brasileira, mas foi sobretudo a partir da década de 1930 que essa preocupação
ganhou força e atraiu um número expressivo de artistas a tratar de temas que abordavam as injustiças sociais. Desde os anos 1930 Di Cavalcanti já produzia para a imprensa ilustrações com críticas contra o fascismo. Portinari mostrava o drama da miséria e exaltava a força do trabalhador e suas qualidades humanas. Em 1957, os painéis Guerra e Paz de Portinari foram instalados na sede da ONU e tratam o tema da guerra com ênfase no sofrimento do povo e não na violência dos combates. No Brasil, a gravura foi a técnica mais utilizada para a expressão de crítica social, certamente por permitir ampla reprodução. A imagem gravada servia também para ilustrar panfletos e cartazes com a intenção de propagar ideias e mobilizar a sociedade e os trabalhadores. Nesse contexto, nos anos 1950 surgiram clubes de gravura em diversas cidades do país (Bagé, Porto Alegre, São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Recife). O Clube de Gravura de Porto Alegre, criado por Carlos Scliar e Vasco Prado, foi o mais ativo e duradouro. Logo se associaram ao clube outros artistas, como Glênio Bianchetti, Glauco Rodrigues e Danúbio Gonçalves. A década seguinte (1960) foi de recrudescimento da Guerra Fria que atingiu a América Latina em decorrência da Revolução Cubana, mas foi também uma época de grandes transformações no campo das ideias, dos costumes, das ciências e das artes. No começo desse período, o Brasil vivia um momento de otimismo desenvolvimentista e de mudanças sociais que foi frustrado pelo golpe militar de 1964. A quebra do regime democrático retirou direitos políticos, baniu do país as principais lideranças, prendeu opositores e introduziu a censura na imprensa e nas expressões artísticas. Em 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5, teve início o período que ficou conhecido como “anos de chumbo”, quando a população, privada de seus direitos e garantias civis, assistiu a uma escalada repressiva e ao endurecimento do poder militar. Ainda assim, houve resistência libertária na cultura e nas artes, provocada em grande parte pela mudança nos costumes. Enquanto isso, nos países democráticos da Europa o movimento da “contracultura” mobilizou a juventude e atacou o modus vivendi político, a ética vigente, a sociedade machista e os hábitos burgueses.
Pois bem, nesse caldeirão de transformações e retrocessos, de sonhos e de rebeldias, os artistas procuraram criar suas obras na velocidade dos acontecimentos políticos e sociais. A arte devia preocupar-se com a inovação de sua linguagem e, ao mesmo tempo, com a transformação da sociedade. Era preciso colocar-se à frente das ideias políticas e estar na vanguarda das propostas estéticas. Durante a ditadura, os órgãos de repressão e de censura estavam sempre vigilantes. Inúmeras obras foram consideradas ofensivas ao poder militar e eram retiradas de circulação ou destruídas. Em certas ocasiões, agentes atuavam em plena exposição, vandalizando obras que criticavam o regime ditatorial. Outras eram previamente censuradas e, assim, impedidas de ser expostas. Os direitos humanos foram constantemente desrespeitados e recrudesceu a violência do Estado. Pessoas eram presas, torturadas e assassinadas nos porões da repressão. Vladimir Herzog foi morto sob tortura em 25 de outubro de 1975 nas instalações do DOI-Codi, no quartel-general do II Exército de São Paulo. A morte do jornalista causou enorme indignação. O laudo oficial, entretanto, tratava de suicídio, embora todas as evidências demonstrassem que havia sido assassinato. Em protesto, milhares de pessoas enfrentaram as barreiras policiais para assistir à missa ecumênica na Catedral da Sé em sua memória e para manifestar-se contra a violência e a ditadura. O artista Antônio Henrique Amaral pintou a tela intitulada A Morte no Sábado e Cildo Meireles criou um carimbo com a frase “Quem matou Herzog?”, que era aplicado nas notas de dinheiro que voltavam a circular, denunciando a mentira e a violência do aparato repressivo da ditadura. Nos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, A Árvore de Otávio Roth se mostra frondosa no hall de entrada do Sesc Bom Retiro. É uma representação da vontade que temos de respirar liberdade e de ver os conceitos dos direitos humanos florescerem entre nós. Fabio Magalhães Curador
OS SETENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS ATRAVESSANDO UM MAR DE CONTRADIÇÕES1 No ano em que celebramos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, perguntamo-nos: onde estamos exatamente? Temos realmente algo a comemorar? Aniversários de declarações e tratados internacionais carregam, em geral, certa carga de frustração, inevitável se compararmos os ideais neles consagrados com a realidade atual. A Declaração, em seu preâmbulo, proclamava que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. A Declaração foi concebida como um equilíbrio cuidadoso das liberdades individuais, proteção, oportunidade econômica e deveres para a comunidade. Essa visão holística é tão relevante hoje como foi há 70 anos. Um dos fatores que contribuem para o sucesso da Declaração é precisamente que ela transcende o direito internacional ao enunciar princípios morais gerais aplicáveis a todos. Seu caráter de non biding, não vinculante, é uma de suas maiores vantagens, tendo seus artigos alcançado um status próximo de normas de direito internacional consuetudinário. Sua flexibilidade oferece amplo espaço para novas estratégias a fim de promover direitos humanos. A Declaração serviu como plataforma para inúmeras iniciativas no direito internacional de direitos humanos, como os dois pactos internacionais de direitos civis e políticos e o de direitos econômicos, sociais e culturais, em 1966; os mandatos de relatores especiais por país e temáticos; e a pletora de órgãos de tratados com experts independentes do Tribunal Penal Internacional, em 1998.
Uma versão anterior deste texto foi apresentada no “I Fórum de Direitos Humanos da AASP – 70 Anos da Declaração Universal Dos Direitos Humanos”, Associação dos Advogados de São Paulo, 20/4/2018. 1
A Revisão Periódica Universal, criada em 2006 com o Conselho de Direitos Humanos (que sucedeu a Comissão de Direitos Humanos, fundada em 1946), compreende o exame da situação dos direitos humanos em todos os estados membros, tendo como fundamento legal a Declaração. Os relatórios voluntários dos estados membros ao Conselho de Direitos Humanos, com respeito ao padrão non biding, não vinculante, da Declaração parecem mais efetivos que as chamadas obrigações vinculantes impostas pelos tratados de direitos humanos. Desde a adoção da Declaração, a maioria dos governos introduziu normas internacionais de direitos humanos em suas leis e constituições, enquanto um número ainda maior de organizações e redes da sociedade civil no mundo inteiro apela para o dever de responsabilização, accountability, dos autores de violações. Entretanto, ainda hoje, a dignidade de milhões de pessoas continua a ser violada em consequência de governabilidade fraca ou ineficaz, pobreza, desigualdade, corrupção e guerra. Continua a existir um fosso entre as altas aspirações dos direitos humanos e sua implementação, entre a retórica de governos e sua falta de vontade política para realizar as promessas. UM FOSSO ENTRE A DECLARAÇÃO E A REALIDADE Hoje, mais de 1 bilhão de pessoas – um em cada seis seres humanos – vivem em condições de pobreza extrema. No Brasil, segundo o IBGE, o número de pessoas em extrema pobreza passou de 13,34 milhões em 2016 para 14,383 milhões em 2017 – um aumento de 11,2%. A desigualdade de renda aumentou em todas as regiões do mundo nas últimas décadas. Em 2016, a parte da renda nacional dos 10% mais ricos era por volta de 55% na África Subsaariana, no Brasil e na Índia. Todo ano, entre 500 milhões e 1,5 bilhão de crianças em todo o mundo sofrem alguma forma de violência física, psicológica e sexual no lar, na escola, no trabalho, em instituições judiciais e na comunidade. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 11 milhões de meninas entre 5 e 17 anos exercem trabalho doméstico, considerado uma das piores formas de trabalho infantil. Só no Brasil são 3 milhões, sendo elas, em sua maioria, negras.
Nós, agora, estamos assistindo a níveis altíssimos de pessoas deslocadas de sua moradia. São cerca de 65 milhões, sendo que 22,5 milhões são refugiadas – a metade delas menores de 18 anos. Em consequência da guerra na Síria, em março de 2018, havia 5 milhões de refugiados – 1 milhão desses na Europa. O grande desafio do século 21 é fechar ou pelo menos reduzir significativamente o fosso entre as normas de direitos humanos e a realidade de sua não aplicação. Uma estratégia de direitos humanos para a próxima década deve responder eficientemente ao desafio da pobreza e da desigualdade. O mais paradoxal quanto à implementação das normas internacionais é que ela requer o fortalecimento dos sistemas nacionais de proteção eficazes. Esses mecanismos incluem o sistema judicial, a polícia, as prisões, os ministérios sociais, a legislatura, assim como as organizações nacionais de direitos humanos e organismos oficiais de monitoramento, complementados pelo espaço assegurado para os defensores de direitos humanos. Não esqueçamos que o governo democrático no Brasil nunca conseguiu garantir a segurança aos defensores de direitos humanos. Segundo a Anistia Internacional, o Brasil é o país das Américas onde mais defensores de direitos humanos foram mortos nos últimos três anos. Em 2017, foram 58 – a maioria composta de ativistas envolvidos com questões ligadas ao meio ambiente e à terra. PROGRESSO NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS Devemos reconhecer que, em meio a tantos horrores, a luta pelos direitos humanos progrediu mais do que o esperado. Como poderíamos imaginar, em meados do século 20, que o poder supremo do Leviatã, o princípio sacrossanto de soberania do Estado, poderia ser mitigado por órgãos internacionais e desafiado por relatores especiais? Mas essa evolução sempre sofreu a interferência da outra face do Estado moderno, justamente por deter o monopólio do uso legítimo da força física. Pois o Estado é o lugar da contradição: ao mesmo tempo, o maior violador de direitos humanos e o defensor pacis, protetor dos fracos, garantidor dos direitos.
Em consequência, a luta pelos direitos humanos ocorre num campo de contradições, pois gravita em torno do Estado e da política. Não há política sem contradição, não há luta pelos direitos humanos sem conflitos, obstáculos e resistências. Creio que nos iludimos ao pensar que essas contradições, de certa maneira, tivessem sido solucionadas na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993, com sua Declaração e Programa de Ação, em que a democracia figura como o regime que mais tende a proteger os direitos humanos. A democracia não é capaz de, por si só, prevenir as violações ou de eliminar o autoritarismo socialmente implantado no Brasil, por exemplo, que precede a ditadura, continua nela e sobrevive na democracia. Na América do Sul, democracias saídas da transição política da ditadura ocultam a opressão sofrida pela parcela da população economicamente mais desfavorecida, a corrupção de políticos e agentes estatais e a cumplicidade de ambos com o crime organizado. No Hemisfério Norte, o governo dos Estados Unidos da América, durante a invasão do Iraque, legalizou o uso da tortura contra suspeitos e prisioneiros por terrorismo. Em algumas democracias europeias, vemos o fortalecimento de partidos autoritários na França e na Itália e até mesmo o florescimento de partidos nazistas na Grécia, que chegam a integrar coalizões de governo na Áustria e na Alemanha. Essas democracias consolidadas sem nenhum respeito à convenção sobre refugiados e ao princípio de non refloulement reprimem, prendem e expulsam refugiados sírios e confinam famílias e crianças em centros de detenção por longos prazos. A DECLARAÇÃO E O BRASIL Mas, afinal, aqui no Brasil, o que significou o retorno ao governo democrático constitucional para a implementação dos princípios da Declaração? Pela primeira vez na história republicana, quase meio século depois da Declaração, os direitos humanos foram assumidos como política de Estado, desde o retorno ao governo civil, em 1985, com a Constituição de 1988 e, de forma mais definida, desde 1995, pelos governos dos
presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Deve-se reconhecer que todos os governos anteriores foram coniventes e, por vezes, responsáveis pelo reinado nas sombras dos cleptocratas de sempre. O PMDB (atual MDB), não por acaso, esteve presente em todos os gabinetes presidenciais desde 1985. Esses governos, sem maioria no Congresso, foram obrigados a formar coalizões com partidos conservadores e fisiológicos – o famoso presidencialismo de coalizão, cunhado por Sérgio Abranches, ou de cooptação, segundo Fernando Henrique Cardoso. Mas, para o bem ou para o mal, sob Dilma, Lula e Fernando Henrique, ao menos, existia uma pressão contrária que variava muito de intensidade e de prática, dependendo da conjuntura, que exercia um contrapeso progressista para a promoção dos direitos humanos ao conservadorismo de nosso establishment político-partidário, que jamais assumiu a hegemonia no bloco no poder, como agora, no presente governo. Isso tudo tornou possível, naqueles mandatos presidenciais, a implementação de iniciativas sob os princípios da Declaração, como: políticas sociais de combate à pobreza extrema, como o Fome Zero e o Bolsa Família; criminalização da tortura; criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado; ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA; os três PNDH (Programa Nacional de Direitos Humanos); a Lei Maria da Penha; a lei contra castigo físico de crianças; as políticas afirmativas de direitos dos afrodescendentes; as Comissões Nacional da Verdade e de Mortos e Desaparecidos; a erradicação do sub-registro civil de nascimento; os programas de proteção a defensores de direitos humanos, a crianças ameaçadas de morte e a testemunhas; o ProUni; o Estatuto da Criança e do Adolescente; o Estatuto do Idoso. O GOLPE CONTRA A DEMOCRACIA E OS DIREITOS HUMANOS Todo esse desenvolvimento virtuoso da política de Estado de direitos humanos no Brasil, inspirado pela Declaração, toda a operacionalidade que levamos mais de 20 anos para montar foi posta abaixo numa penada, como disse o ex-ministro José Gregori, pelo governo que emanou do golpe institucional do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Por isso a situação atual é tão grave. Não foi apenas um golpe contra um partido ou um programa ideológico, mas visando a reverter os mínimos ganhos em direitos humanos pela maioria mais pobre da população. Os alvos dessa operação de retrocesso são amplos e diversos. Os mais aberrantes já aprovados violam tratados de direitos humanos que o Brasil ratificou: a PEC 55, bloqueando gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais, congelando o gasto social por 20 anos; e a reforma trabalhista, sem consultas formais obrigatórias com as organizações de trabalhadores, autorizando acordos coletivos e individuais a prevalecer sobre a legislação trabalhista, liquidando a jornada de oito horas, reivindicação desde as greves de 1907, e diminuindo a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho. A pauta regressista, apoiada pela base política retrógrada do presente governo, compreende ainda a revogação do Estatuto do Desarmamento; revisão e obstáculos para a demarcação de terras indígenas; modificação do Estatuto da Família, recusando o reconhecimento das relações homoafetivas; e a lei de atendimento às vítimas de violência sexual, dificultando o aborto. Essa desconstrução agravou-se no processo eleitoral de 2018, com uma onda de informações falsas, violência nas ruas, apoio à tortura e discursos de ódio contra mulheres, negros, indígenas e LGBTQ. Convivemos, ao longo da campanha eleitoral, com um candidato à Presidência da República fascista, que teve como principal bandeira a negação dos direitos humanos. Independentemente do resultado dessas eleições, é preocupante o apoio de grande parte da população brasileira a esse projeto autoritário e desumano. Trata-se de um patamar de violência ao espírito democrático que não vivíamos desde a redemocratização. Em face desse quadro regressista, não há alternativa a não ser a reafirmação da democracia no Brasil, da própria política e da construção de um grande arco democrático cujo denominador comum seja a Declaração em torno de tolerância, luta contra a desigualdade e o racismo, aumento dos programas sociais para os mais pobres, melhores soluções contra a violência criminal e pela segurança cidadã, debelação da corrupção,
garantias para os defensores de direitos humanos, pela liberdade de expressão e associação, pela retomada de uma política de Estado de direitos humanos. Acredito que não exista nenhum outro elenco de princípios senão aqueles fundados na Declaração, que possa permitir, na diversidade universal, respeitando exigências fundamentais, que o ser humano viva de maneira digna e respeitável, em todo o mundo e no Brasil hoje. Os direitos humanos continuam sendo o horizonte do século 21. Paulo Sérgio Pinheiro Presidente da Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria Coordenador da Comissão Nacional da Verdade no Brasil
OTÁVIO ROTH VIDA E OBRA Otávio Roth nasceu em São Paulo, em 1952. Morou em Israel, Inglaterra, Noruega e Estados Unidos. Viajou como pesquisador por países da Europa, das Américas e da Ásia, coletando amostras de materiais, papéis e objetos, documentando em fotos e textos diferentes técnicas de feitura de papel artesanal e adquirindo livros raros que hoje compõem a biblioteca especializada do Acervo Otávio Roth. Estudou fotografia e cursou comunicação e marketing na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, e desenho gráfico na Hornsey College of Art, em Londres, Inglaterra, sob a orientação do professor Paul Piech. Lá, desenvolveu sua técnica como gravador e seu interesse por temas políticos. Em Oslo, na Noruega, onde viveu por três anos, produziu em xilogravura a primeira série ilustrada da Declaração Universal dos Direitos Humanos (em norueguês), composta de 30 peças. Posteriormente, realizou uma série em inglês e, após sua exposição na Automation House (Nova York, Estados Unidos) e o reconhecimento da crítica, três álbuns foram adquiridos pelas Nações Unidas, e estão em exposição permanente nas sedes da ONU em Nova York (EUA), Genebra (Suíça) e Viena (Áustria) desde 1979. Foi o primeiro artista plástico a expor em vida nas Nações Unidas. Depois das primeiras versões em xilogravura, reescreveu o texto da Declaração em português, francês, espanhol, dinamarquês e japonês, experimentando técnicas tão diversas quanto pulp painting, aquarela e crayon. Seu engajamento político rendeu outras parcerias com as Nações Unidas e também com a Anistia Internacional, além de uma união com a autora paulistana de livros infantis Ruth Rocha, com quem publicou 11 títulos voltados para o público infantojuvenil, dos quais dois foram especialmente encomendados pela ONU para desenvolver temas de direitos humanos e sustentabilidade na educação infantil. Os livros Declaração Universal dos Direitos Hu-
Discurso de Otávio Roth na abertura da exposição Declaração Universal dos Direitos Humanos na Organização das Nações Unidas (Nova York, EUA, 10 de dezembro de 1981) Arquivo da família
Doutor Kurt Waldheim na abertura da exposição Declaração Universal dos Direitos Humanos na Organização das Nações Unidas (Nova York, EUA, 10 de dezembro de 1981) Arquivo da família
O artista produz folha de papel artesanal em ateliê (Nova York, EUA, 1980) Arquivo da família
manos e Azul e Lindo, Planeta Terra Nossa Casa foram traduzidos para mais de dez idiomas e utilizados por braços institucionais da ONU em diversos países. Como consequência do trabalho como gravador e da curiosidade pela produção de ferramentas, tintas e suportes para suas obras, Roth desenvolveu robusta pesquisa sobre papel artesanal, sendo precursor do uso da técnica no Brasil. Fundou, em 1979, a Handmade – primeira oficina de papel artesanal do país, com a finalidade de produzir papéis de qualidade para uso artístico. No começo dos anos 1980, desenvolveu pesquisa no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). Na mesma época, realizou a exposição Criando Papéis (Masp, 1982, e MAM-RJ, 1982), a primeira sobre o tema no país. A fim de expandir o acesso ao público sobre conhecimentos relativos ao papel, publicou O Que É Papel (1983) pela Coleção Primeiros Passos, primeiro livro escrito em língua portuguesa sobre o assunto. Anos depois, lançou, em coautoria com Ruth Rocha, a coleção O Homem e a Comunicação, pela qual foi agraciado em 1993 com
o Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Coleção e Melhor Projeto Gráfico e com o Prêmio Monteiro Lobato (Academia Brasileira de Letras). Difundiu seus conhecimentos sobre papel e sobre a história do livro em cursos, palestras e oficinas, tendo influenciado fortemente a formação de papeleiros e pesquisadores do livro em todo o país, conforme relatado pela professora Thérèse Hofmann Gatti em A História do Papel Artesanal no Brasil. Entre 1979 e 1986, realizou cursos livres em seu ateliê sobre a história da comunicação e da escrita e sobre a história e técnicas de feitura de papel artesanal. Foi ainda convidado a ministrar cursos no Masp (SP), MIS (SP) MAM-RJ, Projeto Axé (BA), UnB (DF) e Ministério da Justiça (DF), entre outros locais. Em paralelo ao trabalho de pesquisa e disseminação das técnicas papeleiras, Roth desenvolveu identidade artística própria como papeleiro e artista plástico. A partir da menor folha de papel artesanal que ele conseguiu produzir, chamada de Peninha, montou instalações de grandes proporções, prestigiadas em museus de diversos países, como Alemanha, Dinamarca, Japão, Estados Unidos e Brasil. Suas experimentações evoluíram para obras de arte colaborativas, amplamente exploradas no Brasil dos anos 1980. O projeto mais ambicioso concebido por Roth chama-se A Árvore, uma instalação itinerante de arte colaborativa composta de folhas adesivas pintadas por milhares de crianças do mundo inteiro. Roth também atuou como curador. A ele, não bastava promover sua obra: esforçou-se para que o papel artesanal como suporte e expressão artística conquistasse o reconhecimento nas artes plásticas brasileiras, atuando, para isso, como incentivador e promotor de outros artistas. Por um lado, trouxe para o cenário brasileiro nomes estrangeiros importantes, a fim de disseminar o conhecimento e o contato do público nacional com técnicas papeleiras tradicionais e novas tendências em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre; por outro, convidou artistas brasileiros a experimentar trabalhar com o papel artesanal, oferecendo ele
mesmo os materiais e os conhecimentos necessários para isso e garantindo espaço expositivo de relevância na década de 1980 em espaços culturais destacados, no Brasil e nos EUA. Foi agraciado quatro vezes pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA): em 1979, como melhor gravador, em 1985, por sua pesquisa, e em 1989 e 1991, como melhor ilustrador infantojuvenil. Roth morreu em 30 de agosto de 1993, aos 40 anos.
À esquerda, fragmento de matéria de Angélica de Moraes, Roth: Direitos Humanos como Arte (Zero Hora, Porto Alegre, agosto/1984) e à direita, fragmento de matéria de Beatriz Schiller, Um brasileiro desenha os direitos humanos na ONU (Estado de São Paulo, São Paulo, dezembro/1981)
Antônio Gonçalves Filho, “ONU expõe xilos do brasileiro Roth”, Folha de S.Paulo (São Paulo, 10 de dezembro de 1981, Ilustrada)
OS ARTIGOS Otávio Roth foi o primeiro artista plástico a ilustrar os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. De sua formação como publicitário e artista gráfico vieram a base e a inspiração para transcrever o texto da Carta com uma tipografia alegre e colorida e sintetizar a essência de cada um dos artigos em imagens singelas e delicadas. Seu objetivo era que todos tivessem condições de ler e compreender o conteúdo do texto, para que assim pudessem contribuir para a defesa e a promoção dos direitos humanos. Essa motivação é a base de uma série de trabalhos do artista, sempre comprometido com a democratização da informação para adultos e crianças e com a disseminação de valores humanistas. As imagens desta sessão apresentam uma pequena parte do trabalho gráfico de Roth. As quatro primeiras obras compõem respectivamente os álbuns em português, espanhol, francês e japonês. Como se pode notar, as obras foram produzidas com técnicas variadas (pulp painting, crayon, aquarela), e hoje integram acervos de museus e centros culturais no Brasil, na Dinamarca e no Japão. Em seguida vem a série em inglês, produzida em xilogravura, como as versões expostas nas sedes da ONU em Nova York (EUA), Viena (Áustria) e Genebra (Suíça). Além das versões aqui apresentadas, Roth produziu séries em norueguês e dinamarquês, e esperava seguir criando obras gráficas em novas línguas, em tantos idiomas quanto fossem possíveis, em sua constante missão de promover os direitos humanos.
Otávio Roth Artigo 10, Série Declaração Universal dos Direitos Humanos em português (1984) Pulp painting e aquarela sobre papel artesanal 100 x 75 cm Coleção da família Reprodução de Fábio Praça
Otávio Roth Artigo 5o, série Declaração Universal dos Direitos Humanos em espanhol (1988) impressão offset (original em crayon sobre papel artesanal pertencente à Coleção Kunsten Museum of Modern Art Aalborg, Aalborg, Dinamarca) 65 x 45 cm Coleção da família Tradução: Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
Otávio Roth Artigo 13, Série Declaração Universal dos Direitos Humanos, em francês (1988) impressão offset (original em crayon sobre papel artesanal pertencente à Coleção Kunsten Museum of Modern Art Aalborg, Aalborg, Dinamarca) 65 x 45 cm Coleção da família Tradução: I) Toda pessoa tem o direito de circular livremente e escolher sua residência no interior de um Estado. II) Toda pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar a seu país.
Otávio Roth Artigo 23, série Declaração Universal dos Direitos Humanos em japonês (1983) impressão offset (original em aquarela e nanquim sobre papel de arroz pertencente à Coleção Jinken Yogo Kyouryokukai, Tóquio, Japão) 65 x 45 cm Coleção da família Tradução: I) Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. III) Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e a sua família uma existência conforme a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.
Otávio Roth Série Declaração Universal dos Direitos Humanos em inglês (1978) xilogravura sobre papel artesanal 71 x 51 cm Coleção da família Reprodução de Fábio Praça ARTIGO 1 Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
ARTIGO 2 I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
ARTIGO 3 Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
ARTIGO 4 Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas.
ARTIGO 5 NinguĂŠm serĂĄ submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
ARTIGO 6 Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
ARTIGO 7 Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
ARTIGO 8 Todo o homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remÊdio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
ARTIGO 9 NinguĂŠm serĂĄ arbitrariamente preso, detido ou exilado.
ARTIGO 10 Todo o homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
ARTIGO 11 I) Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa. II) Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituiam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
ARTIGO 12 Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo o homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
ARTIGO 13 I) Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. II) Todo o homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.
ARTIGO 14 I) Todo o homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. II) Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
ARTIGO 15 I) Todo homem tem direito a uma nacionalidade. II) NinguĂŠm serĂĄ arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
ARTIGO 16 I) Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, tem o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. II) O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. III) A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
ARTIGO 17 I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
ARTIGO 18 Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observâcia, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
ARTIGO 19 Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
ARTIGO 20 I) Todo o homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. II) Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
ARTIGO 21 I) Todo o homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. II) Todo o homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. III) A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
ARTIGO 22 Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indipensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
ARTIGO 23 I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.
ARTIGO 24 Todo o homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
ARTIGO 25 I) Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à seguranca em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
ARTIGO 26 I) Todo o homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnica profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
ARTIGO 27 I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios. II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
ARTIGO 28 Todo o homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
ARTIGO 29 I) Todo o homem tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. II) No exercício de seus direitos e liberdades, todo o homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. III) Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
ARTIGO 30 Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e liberdades aqui estabelecidos.
A ÁRVORE A Árvore é uma instalação itinerante de arte participativa formada por folhas de papel pintadas individualmente por crianças do mundo inteiro. O projeto foi idealizado por Roth em 1990, durante uma atividade desenvolvida na Escola da ONU (Nova York, EUA), e nos anos subsequentes viajou por diferentes países, como EUA, Dinamarca, Alemanha, Israel e Brasil. Roth buscou celebrar a paz e integrar pessoas de todo o mundo nesse projeto por um futuro comum. Na concepção original, A Árvore deveria chegar a 1 milhão de folhas até 2000, quando seria projetada sobre a fachada do edifício-sede da ONU, em Nova York, em uma mensagem de paz e harmonia entre os povos. Devido à morte prematura do artista, em 1993, a obra não foi finalizada nessa época. Ainda assim, durante os três anos em que esteve à frente do projeto, Roth trabalhou diretamente com 65 mil crianças de 70 países diferentes, produzindo uma instalação bidimensional de quase 400 metros quadrados. A curadoria do Acervo Otávio Roth relançou A Árvore quase 25 anos após sua interrupção, promovendo o projeto como uma obra que materializa o processo contínuo de promoção da cultura de paz, através da sensibilização de crianças de diferentes origens e – como em 2020 A Árvore completará 30 anos – de diferentes gerações. Sob esse novo olhar, entende-se que a força da obra reside justamente em seu constante crescimento, sem prazo para ser finalizada nem limite para o número de participantes. Através de uma ampla rede de parceiros e apoiadores, o projeto pretende seguir mobilizando crianças de todas as idades, ao longo de gerações, contribuindo para o entendimento da arte como um espaço de trocas e livre expressão de todos. Sob seu guarda-chuva, oficinas com enfoque no ensino de direitos humanos e discussões relativas à sustentabilidade socioambiental ganham contornos leves e delicados, convidando à reflexão de maneira responsável porém positiva e não traumática.
Registro da primeira oficina de A Árvore (Escola da ONU, Nova York, EUA, 1990) Arquivo da família
Otávio Roth com professores e alunos da primeira turma de participantes do projeto A Árvore (Escola da ONU, Nova York, EUA, 1990) Arquivo da família
O artista no ateliê por ocasião da confecção do selo comemorativo “Conservation and Protection of Nature”, WFUNA-UN (Nova York, EUA, 1982)
Além das gigantescas dimensões da instalação e do grande número de participantes, A Árvore é a base para o desenvolvimento de uma série de discussões. Ela fala da arte como ponto de encontro de crianças de todo o mundo e se apresenta como espaço de relativização das diferenças. Ao mesmo tempo, transmite a todos o sentimento de pertencimento a uma mesma humanidade: à expressão da individualidade de uma criança – seu desenho em uma pequena folha de papel – soma-se a de milhares de outras crianças, simbolizando a contribuição do indivíduo para a constituição da coletividade. Essa proposta, executada com simplicidade e criatividade genuinamente brasileiras, traz consigo uma grande lista de provocações, como a reflexão sobre a paz e a coexistência pacífica; a descoberta de outras culturas; a arte como meio de expressão e comunicação interpessoal e intercultural; questões ligadas à
Acima: Oficina em escola particular (São Luís do Maranhão, 1995) Foto de Denise Machado Lorch À direita: O artista na montagem da instalação A Árvore no 21o Panorama de Arte Atual Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, 1991) Foto de Ana Roth Abaixo: A Árvore, Instalação Itinerante de Arte Participativa (Organização das Nações Unidas, Nova York, EUA, 1992 Arquivo da família
infância e à juventude; uma reflexão sincera sobre os direitos humanos; e o desenvolvimento de um olhar voltado à sustentabilidade socioambiental do planeta. A Árvore é uma síntese do processo criativo de Otávio Roth, pelos signos que carrega, pelo processo de construção colaborativa que provoca e pelo resultado estético que alcança. O artista já havia explorado a imagem da árvore e suas folhas em pelo menos outras três obras, encomendadas pelas Nações Unidas por ocasião do lançamento de selos comemorativos da World Federation of UN Associations (“Conservation and Protection”, Nova York, 1982; e “Medicinal Plants”, Nova York, 1990) e a também instalação de arte participativa Corações Abertos (1991), essa última
Oficina de folhinhas no Sesc Paulista (São Paulo, outubro de 2018) Foto de Isabel Roth
voltada para o corpo de funcionários de uma fábrica em Cruzeiro, SP. Da mesma forma, Roth já havia experimentado de maneira pioneira outros tantos processos de construção de instalações participativas, convidando crianças e adultos para conhecer e refletir sobre o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Documento da Paz, Jerusalém, 1989 – instalação participativa feita com crianças israelenses e palestinas), da Constituição Federal (Mural Cívico, São Paulo, 1988 – projeto de construção colaborativa do preâmbulo e artigo V da Carta Magna envolvendo 5 mil pessoas) e sobre a coexistência pacífica de maneira ampla (Face a Face, Cruzeiro, 1991, e Versos de Fim de Ano, São Paulo, 1993). Essa constante preocupação em propiciar um espaço de trocas, convidando seus colaboradores a compartilhar a autoria de seus projetos, explicita o indiscutível respeito do artista pelos conteúdos com que se propunha a trabalhar: a valorização do espírito coletivo, o pioneiro trabalho em rede, o compromisso com valores amplos e preocupações comuns a todos. Isabel Roth Curadora do Acervo Otávio Roth
Otávio Roth Conservation and Protection of Nature (Selo comemorativo encomendado pelo WFUNA, Nova York, EUA, 1982) Xilogravura sobre papel artesanal 46 x 31 cm Coleção da família
A ÁRVORE NO SESC A obra ganha fôlego com a montagem da exposição Para Respirar Liberdade – Setenta Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Sesc Bom Retiro, SP, de 1/11/2018 a 27/1/2019), através de sua inusitada montagem tridimensional. Pela primeira vez, em seus quase 30 anos de existência, A Árvore foi reconstruída no formato de um grande móbile especialmente desenhado para o átrio interno do edifício de quatro andares do Bom Retiro, em projeto assinado por Pedro Mendes da Rocha. Para a confecção desses novos galhos, 70 mil crianças foram mobilizadas ao longo de dois meses de oficinas, realizadas através da Rede Sesc (Projeto Curumim e Oficinas Livres nas unidades Sesc Belenzinho, Bom Retiro, Paulista e Pompeia), escolas particulares e por meio de uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação, que, através da articulação com coordenadores dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), mobilizou mais de 50 mil crianças e adolescentes da rede pública de ensino. Nomes, idades e país de origem de todos os jovens participantes do projeto foram registrados em fichas, que podem ser consultadas pelos visitantes durante o período expositivo.
Estudo técnico de Lee Dawkins para a montagem da instalação A Árvore no átrio do Sesc Bom Retiro (São Paulo, setembro de 2018)
PENINHAS Uma peninha é uma folha de papel artesanal de algodão colorida com pigmentos naturais e moldada sobre palitos de dente. Essa peça foi desenvolvida com o conceito de menor folha de papel do mundo em uma viagem de Roth ao Japão, no início dos anos 1980, por ocasião de um congresso internacional de papeleiros em Tóquio. O artista desafiou-se a produzir a menor folha de papel artesanal, utilizando-se, para isso, dos instrumentos disponíveis em seu quarto de hotel. Usou um retalho de algodão da manga da camisa como fonte de celulose; mastigou a peça até criar uma polpa, substituindo assim o processo de maceração das fibras em um moinho; utilizou como molde um palito de dente; substituiu a prensa pela pressão entre seus dedos; e, em vez de pendurar as folhas em um varal, deixou-as espetadas em um pequenino suporte para secagem. A partir dessa unidade, com clara inspiração no minimalismo japonês, Roth compôs diversas peças tridimensionais usando como suporte os materiais que compõem um molde de papel artesanal: cordas, bambus e madeira. Essas obras de cunho autoral foram expostas em galerias de São Paulo (Brasil) e Nova York (EUA) ao longo da década. No fim dos anos 1980 e a partir dessa mesma pequena peça de papel artesanal, Roth criou imensas instalações de arte em formatos variados, estruturadas sobre placas de madeira ou cerâmica ou aplicadas diretamente sobre o piso e as paredes. Entre diversas instalações compostas sobre essa técnica, destacam-se algumas, como População (Leopold Hoesch Museus, Düren, Alemanha, 1988), instalação composta de 6.200 peninhas dispostas em um octógono de acrílico suspenso, montada in loco pelo artista, com a participação do público, durante a abertura da exposição; O Grande Rabo (Nordjyllands Kustmuseum, Aalborg, Dinamarca, 1988), instalação composta de 100 mil peninhas, montada com a participação de crianças; e a série O Jardim, composta de instalações montadas no Museu de Arte Moderna (São
Apresentação das etapas de confecção de uma peninha por Otávio Roth Fotos de Nelson Kon
Paulo, Brasil, 1988), no Kyoto Museum (Quioto, Japão, 1989) e no Azabu Museum (Tóquio, Japão, 1989). Para a exposição Para Respirar Liberdade, a curadoria do Acervo Otávio Roth desenvolveu uma nova instalação, livremente inspirada nas obras População e O Jardim. População II é uma instalação linear de 10 metros de extensão feita de papel artesanal e madeira, composta de 2.500 peninhas, moldadas uma a uma, reproduzindo a técnica desenvolvida pelo artista. As cores da peça remetem àquelas da primeira instalação do tipo, População (Düren, Alemanha, 1988), concebida no ano da promulgação da Constituição Federal. Em 2018, essa obra completa 30 anos de existência – assim como nossa Carta Magna. Pelo simbolismo da data e pela convergência de seu conteúdo com a temática dos direitos humanos abordada na presente exposição, optou-se por fazer referência à peça População através das cores das peninhas – tons de azul, verde e amarelo. Já o formato linear remete às instalações da série O Jardim, montadas anteriormente em Tóquio e Quioto (Japão) e expostas pela última vez em São Paulo em novembro de 1993, em uma mostra in memoriam organizada no Masp poucos meses após a morte prematura de Roth.
Otávio Roth Jardim (1989) 20 mil elementos sobre pedra Coleção da família Foto de Valdir Barros
Otávio Roth População (1988) instalação com 6 mil elementos sobre acrílico Coleção Leopold Hoesch Museum (Düren, Alemanha) Foto de Otávio Roth
UNIDADES DE INTERPRETAÇÃO As instalações com peninhas sintetizam o encontro entre dois grandes eixos da obra de Roth: o estudo do papel artesanal e a proposição reflexiva, de maneira singela e delicada, sobre o papel do indivíduo na coletividade. A peninha é a síntese de quase duas décadas de pesquisa de Roth sobre o papel artesanal. Do início dos anos 1970 até sua morte, em 1993, o artista realizou inúmeras viagens de pesquisa a países asiáticos e europeus, que visitava a fim de listar fibras, coletar amostras, conhecer e registrar técnicas de feitura diversas. Desse extenso acervo documental, que hoje compõe a Biblioteca Especializada do Acervo Otávio Roth, ele obtinha as referências para desenvolver as próprias experimentações com fibras e texturas e, pouco a pouco, foi deixando de trabalhar o papel como suporte para suas obras para elevá-lo ao status de obra em si. A peninha materializa a capacidade de síntese do pesquisador e artesão, que consome a história e a tradição milenar de papeleiros orientais para regurgitar – literalmente – uma pequena e simples amostra-síntese desse conhecimento acumulado. Esse processo ilustra o constante compromisso do artista em simplificar sua obra, facilitando a transmissão de seus valores e ideias para um público amplo e heterogêneo. Reside, aí, um traço presente também em suas escolhas como artista gráfico e professor: sua permanente preocupação em democratizar o acesso às informações aprendidas, como se pode ver através do extensivo trabalho de reescrita e ilustração dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em várias línguas e técnicas. As grandes composições de peninhas sugerem igualmente uma bem-humorada provocação do artista sobre a relação entre o tempo de se fazer arte, à medida que posicionam a unidade artesanal em meio a uma série de escala praticamente industrial. Márcio Doctors aprofunda tal dicotomia entre o artesanal e o industrial – a produção repetida e infindável – estabelecendo um
paralelo entre o fazer asiático e o fazer europeu: “Há nessa série de trabalhos atuais outro encontro interessante a se destacar: o oriental e o ocidental. Essa ideia toma ainda mais força quando descobrimos que a origem desses trabalhos aconteceu na solidão de um quarto de hotel em Tóquio. (...) A partir de condições mínimas – à la Robinson Crusoé –, Otávio Roth reconstruiu da maneira mais simples possível todo um processo bastante mais sofisticado. Há, além desse episódio oriental, um sentido que nós, ocidentais, deixamos enterrado na Idade Média e que hoje determina a especificidade japonesa: a capacidade de gerar o novo a partir da repetição. Se, por um lado, o artista incorporou a fantasia ocidental que identifica em um único sujeito heroico a capacidade de reconstruir o mundo a partir de condições mínimas, contando mais do que tudo com a deliberação de sua vontade, por outro, à moda da fantasia japonesa, repetiu-se, copiou-se infinitamente, para executar um rearranjo do novo” (DOCTORS, 1989).
Otávio Roth Jardim I (1989) 20 mil elementos sobre granito Coleção Azabu Museum, Tóquio, Japão Foto de Osvaldo Masakazu Kitahara
Otávio Roth Jardim II (1989) papel artesanal com pigmentos naturais aplicado sobre o piso e as paredes Coleção Kyoto Museum, Quioto, Japão Foto de Osvaldo Masakazu Kitahara
Registro fotográfico de exposição composta de 30 artigos ilustrados da Declaração Universal dos Direitos Humanos em dinamarquês crayon sobre papel artesanal Foto de Otávio Roth Otávio Roth Em primeiro plano, O Grande Rabo (1988) instalação com 20 mil elementos sobre borracha Coleção Nordjyllands Kunstmuseum (Aalborg, Dinamarca)
O resultado da obra propõe ainda uma experiência de dois níveis para o espectador, à medida que ele é convidado a vivenciar a composição no espaço expositivo e, simultaneamente, levado a estabelecer uma relação intimista, aproximando-se da obra para perceber seus detalhes e reconhecer suas unidades básicas. Sua percepção das dimensões reais da instalação varia conforme seu
Título desconhecido (São Paulo, 1990) 8.000 elementos sobre madeira Coleção da família
deslocamento pela galeria, mimetizando um jogo de perspectivas como aquele do sociólogo, que analisa seu objeto de estudo a distância mas que, sob o olhar atento, toma consciência do espaço que individualmente ocupa no todo. Desse jogo de afastamento e aproximação, de percepção da totalidade e reconhecimento dos elementos constituintes, deriva uma leitura mais política da obra. De forma metafórica, essa grande composição de milhares de peças singulares remete à contribuição de cada indivíduo para a construção da coletividade. Esse ideal de reconhecimento e valorização do grupo permeia outras tantas obras de Roth, de maneira mais explícita em suas diversas
experiências de construção de obras de arte participativa, como Corações Abertos (1986), Mural Cívico (1988) e A Árvore (1990). A produção artística de Roth está ligada à defesa inequívoca dos direitos humanos, ao respeito e à valorização da coletividade e ao compromisso total com o acesso democrático à informação. O reconhecimento desses três eixos norteadores de seu percurso profissional é o que nos permite conectar obras à primeira vista tão díspares quanto seu trabalho gráfico e figurativo que versa sobre os artigos da Declaração, suas grandes instalações de arte colaborativas e suas delicadas e intimistas peças de papel artesanal. Isabel Roth Curadora do Acervo Otávio Roth
SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Técnico Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Paulo Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli Gerentes Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Estudos e Programas Sociais Cristina Riscalla Madi Assessoria de Relações Internacionais Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Artes Gráficas Hélcio Magalhães Sesc Bom Retiro Monica Machado Equipe Sesc Ana Cristina de Souza, Carolina Barmell, Celina Dias Azevedo, Cleizer A. Marques, Daniela Garcia, Ivoneide Oliveira, Jairo da Silva, José Lucas Gonçalves, Juliano Azevedo, Kelly Teixeira, Michael Anielewicz, Odair Freire dos Santos, Rogério Rodrigues, Sandra Leibovici, Tina Cassie, Ubiratan Nunes Rezende, Vânia Vassalo INSTITUTO VLADIMIR HERZOG Presidente Clarice Herzog Presidente do Conselho Ivo Herzog Diretor Executivo Rogério Sottili Diretora Educacional Ana Rosa Abreu Coordenadora Educacional Neide Nogueira Curadora dos Prêmios Ana Luisa Zaniboni Gomes Assessora de Projetos DMV Carla Borges Coordenador de Projetos Especiais Lucas Paolo Vilalta (Coordenador) e Dyego Oliveira (assistente) Comunicação Nemércio Nogueira (Diretor), Carolina Vilaverde, Giuliano Galli, Semayat Oliveira e Vinicius Martins (Assistentes) Assistente Administrativa Tatiana Rocha Estagiário Lucas Vasconcellos ACERVO OTÁVIO ROTH Direção Executiva Ana Roth Curadoria Isabel Roth Consultoria Maria Helena Webster Educação Felipe Faya Museologia Denise Lorch
PARA RESPIRAR LIBERDADE 70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Curadoria Fabio Magalhães e Isabel Roth Produção Ana Helena Curti (coordenação), Carolina Brunelli, Eduardo Toni Raele, Fernando Lion e João Luiz Calmon (Assistentes) Equipe de produção para Oficinas de Folhinhas Ana Maria Matos, Ana Paula Lopes, Bianca Zecchinato, Bruno Coltro, Cadu Gonçalvez, Carolina De Angelis, Eloise Zadig Martins, Isadora Mellado, Jornada Braz, Julia Cavazzini, Jussélia Bernardo, Luciara Ribeiro, Marcela Nigro, Mona Perlingero, Natame Diniz, Priscila Menegasso, Rodolfo Pitarelo e Victor Santos Projeto expográfico Pedro Mendes da Rocha (projeto), Brigida Garrido e Debora Tellini Carpentieri (Assistentes) Projeto de Programação Visual Luis Bueno Museologia Denyse L. A. P. da Motta Coordenação de Montagem e Projeto de iluminação Lee Dawkins Equipe de Montagem Caio Caruso, Elvis Moreira, Felipe Albertin, Juan Manuel Wissocq, Marcia Moreira, Rodrigo Primo e Victor Caruso Instalação da obra População II Denise Machado Lorch e Valdir Barros Vídeo João Falsztyn (direção, fotográfica e montagem), Área47 Audiovisual (produção executiva), Helena Martins (Edição de Som e mixagem), Marco Caramelli (técnico de som), Renan Gusmão (assistente) Pesquisa de imagens de arquivo Conceito Revisão de textos Fabiana Pino Transporte Artworld Seguro Affinité Seguros INSTALAÇÃO A ÁRVORE Todas as folhas que compõem a obra “A Árvore” foram produzidas em oficinas educativas realizadas em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo / rede de Centros de Educação Unificada (CEUs), escolas particulares e equipes do projeto Curumim do Sesc São Paulo.
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